Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
O conceito de externalidade: o conflito entre o privado e o social
O uso dos agrotóxicos é um caso típico de externalidade negativa, onde um ou mais produtores são as fontes, e um ou mais indivíduos são os receptores das externalidades. A externalidade é um importante conceito econômico utilizado para entendermos como a economia e a formação de preços freqüentemente deixam de incorporar os impactos sociais, ambientais e sanitários conseqüentes das atividades produtivas que geram produtos e serviços. Desta forma, a "competição" entre agentes econômicos (e entre países e regiões num plano comercial mais global) por melhores preços oferecidos ao "mercado", longe de otimizar o funcionamento da economia, pode se constituir num dos maiores entraves para a sustentabilidade do desenvolvimento, pois externaliza diversos custos sociais, ambientais e sanitários que permanecem ocultos nos preços das mercadorias e terminam por serem socializados. Isso ocorre quando florestas são desmatadas, rios e solos são poluídos, trabalhadores e consumidores são contaminados, e as doenças e mortes – freqüentemente invisíveis no conjunto das estatísticas de saúde - acabam sendo coletivamente absorvidas pela sociedade e pelos sistemas públicos previdenciários e de saúde.
Um produtor agrícola, ao tomar uma decisão quanto à quantidade a aplicar de um agrotóxico, faz a avaliação em relação à produtividade marginal e o custo marginal privado de utilizá-lo. Entretanto, esse pode não ser o melhor resultado numa perspectiva de bem-estar social e mesmo individual no longo prazo, pois o custo marginal ou benefício marginal individual pode desprezar efeitos para a saúde humana e dos ecossistemas, assim como os impactos destes para o sistema de saúde, previdenciário e a sociedade como um todo. Assim, se por um lado o custo marginal do uso de agrotóxicos pelo agricultor inclui itens tal como o preço do insumo, o custo do trabalho do aplicador e o material usado na aplicação, por outro lado não inclui os danos à fauna e flora, à qualidade da água e do solo e à saúde humana.
Segundo Pearce4, as externalidades surgem por divergência entre interesses sociais e privados: os livres mercados seriam baseados num estreito interesse pessoal, onde o gerador da externalidade não tem qualquer incentivo para contabilizar os custos que impõe a terceiros. Se a externalidade for negativa, há maior produção desta pelo agente gerador, em equilíbrio competitivo, do que seria socialmente desejável. E é nesse sentido que o uso de agrotóxico gera externalidade, uma vez que os custos externos ou os custos sociais impostos por essa atividade não são levados em consideração quanto os agentes econômicos tomam a decisão de aplicar o produto. E no caso dos agrotóxicos aplicados pelo próprio produtor, há ainda outro fator complicador: a ignorância ou desprezo quanto aos efeitos de médio e longo prazo à própria saúde humana.
A Figura 1 ilustra bem o problema, uma vez que a racionalidade do agricultor em usar o agrotóxico está representada pelas áreas na figura que compreendem o benefício e o custo privado de utilizar o agrotóxico. Nota-se que a área que representa o benefício de aplicar o agrotóxico é significativamente maior que aquela que caracteriza o custo privado do agricultor. Entretanto, como já comentado, esse custo privado não leva em conta as externalidades e, sendo assim, para se calcular o nível de bem-estar da sociedade como um todo, seria necessária uma análise custo-benefício social que considere os custos sociais. O resultado seria um benefício líquido negativo, em que os custos, quando se incorpora o valor das externalidades, são maiores que os benefícios, como representado pela área tracejada da figura em contraposição à área que caracteriza o total dos benefícios.
Na verdade, o agricultor não tem nenhum incentivo para internalizar esses custos quando enfrenta o dilema de usar ou não o agrotóxico; pelo contrário, tende a superestimar o seu benefício. E é aí que entram os instrumentos de regulação ambiental, uma vez que as suas medidas, quando levadas em conta nesse processo de tomada de decisão, reduzem o hiato entre custo privado e custo social, promovendo a racionalização do uso dos agroquímicos na agricultura.
Conforme já comentado, o uso de agrotóxico gera externalidades no meio ambiente e na saúde humana, sendo que muitos desses impactos no longo prazo ainda são desconhecidos. Na saúde humana, existem dois tipos de efeitos toxicológicos, por meio direto, através da intoxicação do trabalhador rural, e por via indireta, prejudicando a saúde do consumidor quando ingere um alimento cujo nível residual se encontra em níveis prejudiciais à saúde. No primeiro caso, os efeitos sobre a saúde podem ser agudos e crônicos. Na intoxicação aguda, o dano efetivo é aparente em um período de 24 horas, enquanto na crônica o dano resulta da exposição contínua a doses baixas de um ou mais produtos. Os efeitos agudos são mais visíveis, sendo que o intoxicado apresenta sintomas de convulsões, vômitos, náuseas, dentre outros, ao passo que os crônicos podem aparecer semanas, anos ou décadas após o período de uso. Fatores como a desinformação e o despreparo dos sistemas de saúde podem fazer com que os casos passem desapercebidos, gerando subnotificação. Estudos correlacionam o uso de agrotóxicos à redução da fecundidade e a alguns tipos de cânceres5.
Quanto ao meio ambiente, os agrotóxicos também agem de duas maneiras: acumula-se na biota; e contaminam a água e o solo. A dispersão de agrotóxicos no ambiente pode causar um desequilíbrio ecológico na interação natural entre duas ou mais espécies. Alguns tipos de agrotóxicos – como os organoclorados, já amplamente proibidos, porém com passivo ambiental decorrente de sua elevada persistência – se acumulam ao longo da cadeia alimentar por meio da biomagnificação, que é o aumento do nível trófico. Segundo Peres & Moreira6, a contaminação de peixes, crustáceos, moluscos e outros animais representa uma fonte potencial de contaminação humana, cujos riscos podem ser ampliados a todos os consumidores desses animais como fonte de alimento.
Além do mais, alguns agrotóxicos, além de erradicar as pragas, também eliminariam seus inimigos naturais, ou seja, seus predadores e competidores. Acrescenta-se o fato de que alguns indivíduos são mais resistentes, o que faz com que, na maior parte das vezes, as pragas não sejam completamente dizimadas, restando indivíduos com genótipo mais forte. O cruzamento desses indivíduos, em adição a uma menor competição por alimento, espaço e abrigo, promove aumentos substanciais na população, fazendo com que a praga volte mais resistente e em níveis populacionais maiores do que antes da aplicação química. De acordo com Paschoal7, "espécies antes suscetíveis a determinados praguicidas, sob pressão dos mesmos, não são mais controláveis nas dosagens normais recomendadas, passando a tolerar doses que antes matavam quase a totalidade de seus progenitores".
A outra via de impacto ambiental é a contaminação na água e no solo, tendo em vista que a degradação da qualidade de águas subterrâneas e superficiais tem sido identificada como a principal preocupação no que diz respeito ao impacto da agricultura no ambiente8. A contaminação de coleções de água superficiais e subterrâneas tem um potencial extremamente poluente, pois se, por exemplo, o local onde for aplicado o agrotóxico for próximo a um manancial hídrico que abasteça uma cidade, a qualidade dessa água captada também deverá estar comprometida. No que diz respeito à contaminação no solo, o acúmulo dos agrotóxicos pode fragilizar e desencadear absorção de elementos minerais, principalmente em solos desnudos, concorrendo para a redução do grau de fertilidade do mesmo.
A Figura 2 simplifica algumas externalidades provocadas pelo uso dos agrotóxicos e traz alguns exemplos de mecanismos de regulação atualmente discutidos no debate sobre as políticas atinentes ao tema no país. O objetivo é apontar que essas políticas podem ser vistas como uma espécie de "cinturão protetor", pois uma vez aplicadas, essas medidas passam a auxiliar o processo de racionalização do uso desses produtos, tendo em vista que são elementos que passam a ser incorporados indiretamente no processo de tomada de decisão de utilizar ou não o agrotóxico.
Os exemplos de políticas possíveis de serem adotadas podem ser indutores de mudanças estruturais de tecnologias produtivas, ou de comando-controle para situações onde a saúde pública reconheça a existência de riscos mais graves para a população. Neste último caso estão as medidas de banimento ou o uso restritivo de diversos agrotóxicos, que devem ser comprados e aplicados sob circunstâncias específicas, conforme prevê o uso do receituário agronômico que nem sempre é adotado na prática. As medidas envolvendo mudanças estruturais podem ser de vários tipos, como o aumento da demanda da sociedade por alimentos mais saudáveis através de campanhas educativas que revelem os níveis de contaminação e os perigos associados de vários produtos, o que a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) começou a realizar em anos recentes. Também campanhas educativas junto aos agricultores e trabalhadores que aplicam podem ter repercussões positivas, ainda que não produzam mudanças estruturais nas tecnologias de produção.
Por exemplo, há de se esperar uma redução nos danos na saúde do trabalhador rural pelo fato de haver um maior uso de equipamentos de proteção individual (EPI), controle de uso de agrotóxicos com elevado grau toxicológico, uso do receituário agronômico, programas de vigilância epidemiológica que monitoram a saúde do trabalhador no campo, programas de educação ambiental, dentre outros mecanismos. Também se espera que, uma vez adotados os prazos de carência e um monitoramento respeitando o limite de tolerância nos grandes entrepostos comerciais, os impactos na saúde dos consumidores sejam reduzidos. Quanto à contaminação da água e solo e o grau de acumulação na biota, medidas como o monitoramento por meio de análise laboratorial dos níveis de princípio ativo e a implantação de postos ou centrais de recebimento de embalagens são importantes no sentido de reduzir a contaminação direta e indireta, minimizando seus diferentes efeitos sobre o meio ambiente.
Entretanto, sem fiscalização e mecanismos de punição, como a aplicação de multas e sanções, muitas dessas políticas não surtiriam o efeito desejado, uma vez que seria necessária a criação de um ônus para o produtor rural, uma espécie de desestímulo, no sentido de fazê-lo respeitar tais medidas quando optar pelo uso dos agroquímicos nas lavouras.
Um aspecto complexo e central do problema se refere aos modelos de produção agrária incentivados. A monocultura de grandes extensões, seja ela intensiva em agrotóxicos ou em transgênicos, representa a expansão de sistemas ecológicos artificialmente homogêneos. Atualmente, 90% da produção mundial de alimentos é restrita somente a quinze espécies vegetais e oito animais, e "um sistema ecológico homogêneo é um desastre esperando para acontecer" 9. Ou seja, o incentivo a sistemas alternativos de produção passaria pela reorganização do modelo centrado em monoculturas extensivas, cujas externalidades, principalmente no médio e longo prazo, precisam ser cada vez mais reconhecidas na definição de políticas de incentivo. Sem a definição de limites mais claros à monocultura predatória e o incentivo à agroecologia e à produção familiar, o modelo agrícola permanecerá intensivo no uso de agrotóxicos.
Segarra et al. 10 relacionam nível de bem-estar e degradação ambiental nas áreas de arroz, milho e banana no Equador. Calculam que uma redução de 30% na carga total de uso de agrotóxicos no meio ambiente reduziria em 11% o nível de bem-estar dos agentes, calculado por meio da redução do valor ofertado desses produtos. Entretanto, os autores não avaliam os ganhos monetários e sociais da redução de 30% da carga de agrotóxicos no meio ambiente e na própria saúde humana, ou seja, não levam em conta o custo que o "pacote tecnológico" que acompanha o modelo agrícola convencional acaba impondo à toda sociedade.
Nos grandes lagos da América do Norte, a bioacumulação e a magnificação de compostos clorados causou desaparecimento de grandes predadores, como a águia, e promoveu a mutação de várias espécies de pássaros aquáticos. No Brasil, o Sistema Nacional de Informações Tóxicológicas (SINITOX) registrou em 2000 cerca de 8.000 casos de intoxicações por agrotóxicos, sendo que o Ministério da Saúde estima que, para cada caso notificado, existam hoje outros 50 não notificados, o que elevaria esse número para 400.0006, 11. Em Taiwan, a taxa de casos fatais é de 5,6% de todos os casos de intoxicação. Na Tailândia, durante 1990 e 1995, as morbidades por intoxicação por agrotóxicos tiveram uma incidência de 30 por 100.000 habitantes, com 30 mortes por ano6, 11.
Para avaliarmos de forma global a utilização dos agrotóxicos, é necessário ampliarmos o escopo da análise custo-benefício (ACB), cobrindo todos os efeitos relevantes do seu uso, além de questões éticas incomensuráveis, como os efeitos para a saúde humana, as gerações futuras e o meio ambiente. Entretanto, muitos estudos restringem-se a uma avaliação parcial da ACB dos agrotóxicos devido à dificuldade de se trabalhar com um grande número de ingredientes ativos, que atingem de formas diferenciadas o meio ambiente e a saúde12.
Pingali et al.13 avaliaram o benefício líquido do uso de inseticidas e herbicidas na produção de arroz, encontrando um benefício negativo para o uso dos inseticidas, ou seja, o benefício positivo na produção foi excedido pelos custos com a utilização do produto (gastos com a compra do produto, despesas médicas e custo de oportunidade do trabalhador, referente ao período de convalescença). Para uma aplicação de duas doses, o lucro aumentaria em 492 pesos em relação a nenhuma dose. Em contrapartida, o custo com a saúde aumentaria em 765 pesos, gerando, assim, uma perda líquida de 273 pesos. Esta diferença tende a ser repassada para a sociedade através de externalidades negativas assumidas pelos sistemas de saúde, previdenciário e ambiental.
Crissman et al.14 realizaram uma investigação clínica em plantações de batata no Equador. Entre junho de 1991 e maio de 1992, eles diagnosticaram 50 casos de intoxicação por agrotóxicos. A maior parte dos envenenamentos (33/50) foi devida à exposição ocupacional, seguida de exposição acidental (9/50) e intenção suicida (8/50). Dos indivíduos intoxicados ocupacionalmente, 22 agricultores perderam 98 dias de trabalho, ou seja, um absenteísmo de 4,5 dias/indivíduo. O autor estimou uma perda de renda média de 10 dólares/indivíduo, sendo que o custo privado associado ao tratamento foi de 18 dólares/caso.
Rola & Pingali15 investigaram os efeitos líquidos de práticas de combate de pragas no lucro de 42 fazendeiros em Nuva Ecija - Filipinas: controle natural (nenhuma dose de aplicação de inseticida); manejo integrado de pragas - MIP (uma dose recomendada de inseticida), prática do fazendeiro (duas doses recomendadas de inseticidas); e proteção completa (seis doses recomendadas de inseticidas). O uso dos herbicidas foi mantido constante nas quatro práticas de controle acima e os custos com a saúde aumentaram em 74% quando se variou 1% na dose de inseticida. Os resultados mostraram que o benefício líquido esperado para proteção completa decresce de 11.532 para 4.797 pesos quando os custos com a saúde são levados em conta, ou seja, aproximadamente 50%. Quanto às demais práticas, essas diferenças não foram muito significativas: MIP (12.469 para 11.822 pesos); práticas do fazendeiro (13.497 para 12.874 pesos); e controle natural, onde o benefício líquido não se alteraria, pois nenhum custo com tratamento estaria associado (13.498 pesos). Os autores concluem que esse último tratamento geraria maiores benefícios líquidos e seria a estratégia dominante quando os custos com saúde fossem levados em conta na tomada de decisão do agricultor.
A classificação dos municípios segundo o bioma sofre de uma adequação da malha original do bioma; no caso cerrado, que se encontra na escala de 1:15.000.000, e a malha de municípios do IBGE, na escala de 1:2.500.000. Entretanto, foi possível fazer um ajuste na malha de bioma para escala de 1:5.000.000, mas mesmo assim, na interseção das duas malhas, alguns municípios limítrofes que podem ser classificados como bioma cerrado, na verdade podem não o ser, e vice-versa. Nesse caso, o recorte dado deve ser visto com cautela mesmo após a aproximação feita na malha de biomas, uma vez que os limites municipais do bioma cerrado podem não corresponder verdadeiramente.
Os dados deste trabalho foram obtidos por meio da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC/IBGE)16, cujo ano de 2003 veio a campo com um questionário suplementar com questões atinentes às condições ambientais dos municípios no ano de 2002. A MUNIC abrange todo território nacional e traz muitas informações inéditas, por exemplo, sobre o uso de agrotóxico, tipo de descarte das embalagens vazias, presença de posto de recebimento dessas embalagens, fiscalização do uso desses produtos, incentivos a praticas agrícolas alternativas, contaminação no solo e na água por agrotóxicos e fertilizantes.
Entretanto, o questionário é preenchido pelo gestor municipal, o que de certa forma pode depender do grau de comprometimento e conhecimento das questões ambientais. Outro ponto é que os dados pesquisados são de natureza qualitativa e não quantitativa, ou seja, não se avalia o peso do município quanto ao quesito analisado. Por exemplo, isso significa dar pesos iguais ao uso de agrotóxico para o município de Sorriso (Mato Grosso), principal produtor de soja do país, e para o município de Guajará Mirim (Rondônia), com participação agrícola não tão expressiva. Em síntese, o que deve ficar claro é que a pesquisa não avalia a quantidade utilizada de agrotóxico, o grau de contaminação no solo e na água, dentre outros atributos relacionados à intensidade, mas apenas avalia a qualidade de usuário, a de município contaminado por agrotóxico do ponto de vista do gestor municipal, mesmo sendo esse município de pouca importância em termos de volume marginal ou área agrícola do mesmo.
Os dados em questão podem, desta forma, sofrer de alguns vieses. Ou seja, o gestor pode desconhecer a magnitude dos problemas ambientais no seu município e também pode até tender a minimizar alguns impactos, tendo em vista que, uma vez pública, esse tipo de informação poderia prejudicar sua imagem ou comprometer um setor econômico importante para o município. Contudo, trabalhamos com a hipótese da direção desse viés subestimar os problemas ambientais realmente existentes, o que de certa forma não prejudica as conclusões analíticas levantadas nesse artigo.
Outra base de dados utilizada no artigo é a Pesquisa Agrícola Municipal (PAM/IBGE)17, cujos dados trazem informações a respeito da área de lavoura temporária dos municípios estudados no ano de 2003, o que de certa forma nos permite verificar o grau de atividade agrícola dos mesmos. Optamos por trabalhar com lavoura temporária, uma vez que esse tipo de atividade é destaque na região do cerrado, cujos plantios de maior importância então concentrados nas lavouras de soja, milho, algodão, arroz sequeiro e sorgo. Quanto à cana-de-açúcar, mesmo possuindo um ciclo que ultrapassa um ano, é classificada como lavoura temporária, se destacando em particular nas regiões de cerrado nos estados de São Paulo e Minas Gerais. Salienta-se que, recentemente, essa cultura passou a ganhar maior expressividade nos estados da região Centro-Oeste.
A análise dos dados está dividida em duas etapas: análise georreferenciada e regressão logística. Primeiramente, por meio de mapas, se analisa espacialmente a atividade agrícola dos municípios do bioma do cerrado brasileiro e a contaminação na água e no solo por esses insumos. Os mapas municipais, por exemplo, permitem focar espacialmente as regiões com elevada pressão no uso de agrotóxicos e fertilizantes, no sentido de apontar essas áreas como prioritárias nas políticas públicas voltadas ao problema dos agrotóxicos.
Na etapa seguinte, um modelo logístico binomial determina as chances de contaminação no solo e/ou na água pelo uso de agrotóxicos segundo diferentes características do município. Pelo fato de se ter controle de algumas variáveis, avalia-se as chances de contaminação no solo e água por agrotóxico de municípios iguais em tudo (possuem as mesmas características referentes às variáveis controladas ou incluídas no modelo), exceto o fato, por exemplo, de possuir ou não secretaria de meio ambiente ou de ter ou não posto de recebimento de embalagens vazias, dentre outro atributo avaliado separadamente.
Nessa etapa, selecionamos a priori algumas variáveis explicativas e, por meio de tabelas de contingência, avaliamos algumas variáveis passíveis de entrada no modelo, ou seja, aquelas com p-valor no teste qui-quadrado de Pearson menor de 0,25. Utilizamos o software SPSS 9.0 para os procedimentos estatísticos e o programa Arc-View 3.1 para feitura dos mapas temáticos.
Análise georreferenciada
Observa-se claramente na Figura 3 que a contaminação da água e do solo encontram-se estritamente relacionadas com o modelo de produção em larga escala adotado pela agricultura brasileira. Há uma concentração de contaminação por esses produtos nos municípios do cerrado onde se emprega a agricultura em grande escala. Por exemplo, no Mato Grosso, observa-se uma concentração na região de Sorriso, Lucas do Rio Verde, grandes produtores de soja e milho, e nos municípios próximos a Rondonópolis, no sudeste do estado. O mesmo se verifica no Mato Grosso do Sul, onde a contaminação se concentra nas principais regiões produtoras de grãos: Dourados e Alcinópolis, essa última no nordeste, divisa com Goiás. Já nesse último estado, a principal região produtora é a de Rio Verde e Jataí, na região Sudoeste, onde se verifica grande concentração de contaminação na água e/ou solo por agrotóxicos. O mesmo se observa no oeste da Bahia, mais precisamente na região de Barreiras e Luiz Eduardo Magalhães, cujo modelo produtor se assemelha ao das regiões citadas acima, isto é, municípios com extensas áreas produtoras de soja, milho e também algodão.
Nos estados de São Paulo e Minas Gerais, verifica-se pontos de contaminação nas áreas produtoras de cana-de-açúcar, ou seja, em São Paulo, na região central e no nordeste do estado, e em Minas Gerais, no triângulo mineiro. Deve-se ressaltar que no mapa foram consideradas apenas as áreas de lavoura temporária e não as de lavoura permanente, como laranja e café, muito comum nesses dois estados, respectivamente. Tal fato deve em parte explicar o grande número de municípios não tão expressivos em área de lavoura temporária que declararam contaminação no solo e/ou na água por agrotóxicos.
Em resumo, os gestores municipais dessas áreas onde a atividade agrícola é mais expressiva tendem a reportar mais contaminação na água e/ou solo por agrotóxicos quando comparados aos municípios situados em regiões onde a agricultura não é muito significativa, e, nesse caso, deve-se salientar que esses municípios requerem uma maior atenção para a questão. Entretanto, observa-se na Figura 4 que tais regiões estão procurando se adequar à recente legislação de descarte das embalagens, tendo em vista que muitos deles possuem posto de coleta ou central de recebimento ou direcionam as embalagens em posto ou central em um município vizinho. A Figura 4 dá uma noção da cobertura de postos ou centrais de recebimento de embalagens vazias de agrotóxicos, uma vez que avalia essas duas variáveis simultaneamente. No Estado de São Paulo, há uma grande cobertura, o que evidencia o grau de comprometimento dos seus municípios para com a legislação específica.
A Tabela 1 traz os resultados do modelo logístico cuja variável endógena é a contaminação no solo e/ou na água por agrotóxicos nos municípios do cerrado brasileiro.
Verifica-se que a cada aumento de 10.000 hectares na área de lavoura temporária de um município no cerrado brasileiro, as chances de contaminação na água e/ou solo aumentam em 6%, o que evidencia a associação da atividade agrícola em escala e a contaminação por agrotóxico. O mesmo acontece com municípios que se queixam de poluição no ar por queimadas e por atividade agropecuária (poeira, pulverização de agrotóxicos), uma vez que as suas chances de contaminação na água e no solo por agrotóxicos são aumentadas em 57% e 7,6 vezes, respectivamente. No primeiro caso, sabe-se que as queimadas estão estreitamente ligadas à atividade agropecuária, tendo em vista que são constantes na abertura de novas áreas de fronteira agrícola e no corte da cana-de-açúcar, embora já exista uma legislação especifica para a redução da "cana queimada" em detrimento a "cana crua" ou colhida mecanicamente. No segundo caso, já era de se esperar grande associação, uma vez que a pulverização de agrotóxico estaria diretamente associada à contaminação.
O atributo "ter atividade agrícola prejudicada por pragas" aumenta as chances de contaminação no solo por agrotóxico em 2,6 vezes, o que sugere que nas áreas cuja atividade agrícola é prejudica por pragas, o agricultor deve intensificar o uso, aumentando, portanto, as chances de contaminação. Ou seja, a experiência de já ter atividade econômica prejudicada por pragas é um dos mais importantes fatores de predição do uso dos agrotóxicos, o que nos remete à importância nesse caso de disponibilizar tecnologias alternativas para combate de pragas e doenças que não nocivas à saúde humana e ao meio-ambiente.
Um outro resultado importante é o incentivo e promoção de programas de educação ambiental, que se mostrou um fator de proteção para a contaminação no solo e na água por agrotóxicos. Municípios com programas de educação ambiental têm 56% a menos de chance de contaminação na água e no solo por agrotóxicos quando comparados com aqueles que não investem em tais medidas.
Quanto aos diferenciais de chances entre as regiões da Federação que apresentam área de cerrado, os municípios da região Sul do país são os que possuem maior chance de contaminação, seguidos dos da região Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e, por último, região Norte. Quando comparados aos municípios da região Nordeste, os da região Sul têm as chances de contaminação no solo e/água por agrotóxico aumentadas em aproximadamente 3 vezes, ao passo que para os da região Sudeste as chances são maiores 2,4 vezes. Uma possível explicação para este fato tem a ver com o tempo e a extensão do cultivo nas regiões mais afetadas. Neste sentido, é de se esperar que a região Centro-Oeste aumente o potencial nos próximos anos.
O Gráfico 1 mostra as probabilidades de contaminação no solo segundo a área plantada de lavoura temporária dos municípios. O modelo estima as probabilidades quando todos os fatores de risco estão presentes, isto é, para municípios que se queixaram de poluição no ar por queimadas, poluição no ar por atividade agropecuária (pulverização de agrotóxico, poeira etc.), com histórico de atividade agropecuária prejudicada por pragas, que não promove a educação ambiental e que se localiza na região Sul do Brasil. Verifica-se que a probabilidade de contaminação para municípios com 10.000 ha de área de lavoura temporária e com todas essas características é de 93%, ao passo que municípios da região Nordeste do país, com a mesma área plantada, mas com essas características ausentes, apresentam probabilidade de contaminação de apenas 6%. Observa-se no gráfico que o crescimento das probabilidades de contaminação na água e no solo por agrotóxicos é muito mais lento quando os fatores de risco estão todos ausentes, resultado esse que aponta para a importância de se adotarem políticas que minimizem os fatores de risco verificados e que incentivem a promoção de fatores de proteção, como é o caso da promoção a programas de educação ambiental.
No presente artigo, são apontados alguns fatores de predição da contaminação na água e no solo por agrotóxicos nos municípios do cerrado brasileiro. Ele serve como referência para os formuladores de políticas no sentido de auxiliar o desenho dos instrumentos de regulação e o diagnóstico das áreas em que essas ações devem ser tomadas como prioritárias. Como exemplo, algumas soluções simples e de baixo custo podem ser utilizadas e ter grande eficiência, reduzindo de modo considerável os riscos, como é o caso daquelas tomadas no campo da educação ambiental, como a divulgação através de jornais locais, rádios comunitárias e cartilhas didáticas. Tais instrumentos visam esclarecer agricultores e a população como um todo sobre os riscos relacionados ao uso dos agrotóxicos, bem como difundir informações sobre medidas de controle que reduzem os impactos à saúde e ao meio ambiente.
Embora o presente estudo não tenha se proposto a valorar as externalidades provenientes do uso dos agrotóxicos, de modo geral o artigo vem ressaltar a importância da elaboração de estudos econômicos de maior escopo, que integrem múltiplas dimensões deste problema complexo e avaliem os reais benefícios, custos e conflitos de interesses associados ao uso de agrotóxicos no país. Tais estudos devem servir de base para apontar alternativas de produção ao modelo agrícola dominante, voltado às monoculturas (em especial de exportação) e ao uso intensivo de agrotóxicos. Se levarmos em consideração as externalidades relacionadas à saúde humana e ao meio ambiente e os cenários futuros, ou seja, os impactos de curto, médio e longo prazos, poderemos verificar que opções de desenvolvimento agrário e tecnologias agrícolas consideradas mais eficientes podem ser, em realidade, insustentáveis. Além de questões éticas fundamentais ligadas ao direito à vida das atuais e futuras gerações, muitas alternativas consideradas menos produtivas economicamente, como a agroecologia, deveriam ser levadas em conta na avaliação do produtor rural, bem como incentivadas pelos formuladores de políticas com propósito de reduzir os danos causados pelo uso, muitas vezes indiscriminado, dos agroquímicos. Deve-se tomar como referência alguns estudos13, 14 importantes realizados em países em desenvolvimento, como Filipinas, El Salvador e Equador, que incorporam as variáveis ambientais e da saúde humana no cálculo dos custos do uso dos agrotóxicos.
No Brasil, os estudos dessa natureza ainda são incipientes, apesar do país já sinalizar com um programa específico para a racionalização do uso de agrotóxicos. Espera-se que esse programa, que representa um avanço na agenda de pesquisa brasileira, venha efetivar as medidas necessárias de uso, manejo e de informação sobre os seus riscos ambientais e na saúde humana. Entretanto, medidas pontuais e incrementais não são suficientes sem uma avaliação mais global. A discussão sobre a sustentabilidade do modelo de desenvolvimento agrícola do país deveria passar por uma discussão mais profunda acerca dos efeitos de médio e longo prazo para a saúde tanto humana quanto dos ecossistemas, bem como das várias alternativas de produção. O reconhecimento e explicitação de externalidades negativas atualmente invisíveis no debate público é condição sine qua non para que os efeitos atualmente reconhecidos do modelo agrícola exportador para o PIB e a balança de pagamentos se aproximem da realidade da nação.
Colaboradores
WL Soares e MF Porto participaram igualmente de todas as etapas da elaboração do artigo.
1. Porto MFS. Saúde do trabalhador e o desafio ambiental: contribuições do enfoque ecossocial, da ecologia política e do movimento pela justiça ambiental. Rev C S Col 2005; 10(4): 829-839. [ Links ]
2. Lei nº 9.974, de 06 de junho de 2000. Altera a Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989. Disponível em: http://www.pr.gov.br/seab/agrotoxico/legislação.html [ Links ]
3. Decreto nº 4.074, de 4 de janeiro de 2002. Regulamenta a Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989. Disponível em: http://www.gov.br/seab/agrotoxico/legislação.html [ Links ]
4. Pearce D, Crowards T. Assessing the health cost of particulate ais pollution in the UK. London: University College London; 1996. [ Links ]
5. Cocco P. On the rumors about the silent spring: reviw of the scientific evidence linking occupacitional and enviromental pesticide exposure to endocrine disruption health effects. Cad. Saúde Pública 2002; 18(2): 379-402. [ Links ]
6. Peres F, Moreira JC, organizadores. É veneno ou é remedio? Agrotóxicos, saúde e ambiente. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. [ Links ]
7. Paschoal AD. Pragas, praguicidas e a crise ambiental: problemas e soluções. Rio de Janeiro: FGV; 1979. [ Links ]
8. Zebarth B. Improved manure, fertilizer and pesticide management for reduced surface and groundwater. Canadá: The Pacific Agri-Food Research Centre, 1999. Disponivel em: http://res.agr.ca/agassiz/studies/zebasdb.htm [ Links ]
9. Giampietro M. The precautionary principle and ecological hazards of genetically modified organisms. Ambio 2002; 31(6):466-70. [ Links ]
10. Segarra E, Ugarte D, Malaga J. Social Welfare an Enviromental Degradation in Agriculture: The Case of Ecuador. Anais da XXV Conferência Internacional de Economia Agrícola. Duban, África do Sul, agosto 2003. [ Links ]
11. Sistema Nacional de Informações Toxico-Farmacológicas (SINITOX). Estatística anual de casos de intoxicação e envenenamento: Brasil - 2000. Rio de Janeiro: Centro de Informações Científicas e Tecnológica, Fiocruz; 2003. [ Links ]
12. Bowles RG, Webster JPG. Some problems associated with the analysis of the costs and benefits of pesticides. Crop Protection 1995; 14(7):593-600. [ Links ]
13. Pingali PL, Marquez CB, Palis FG. Pesticides and Philippine Rice Farmer Health: A Medical and Economic Analysis. Amer J Agr Econ 1994; 76:587-592. [ Links ]
14. Crissman CC, Cole CD, Carpio F. Pesticide Use and Farm Worker Health in Ecuadorian Potato Production. American Agricultural Economics Association 1994; 76:593-597. [ Links ]
15. Rola AC, Pingali PL. Pesticides, rice productivity, and farmers' health: an economic assessment. Manila: In-ternational Rice Research Institute; 1993. [ Links ]
16. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) [CD-ROM]. Pesquisa de Informações Básicas Municipais. Meio Ambiente, 2002. [ Links ]
17. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Agrícola Municipal. 2003. Disponível em: http://www.sidra.ibge.gov.br [ Links ]
Wagner Lopes SoaresI;
Marcelo Firpo PortoII
IEconomista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), doutorando do Programa de Saúde Pública e Meio Ambiente da Escola Nacional de Saúde Pública. Av. Republica do Chile 500/7º andar, Centro. 20031-170 Rio de Janeiro RJ.
IICentro de Estudos de Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|