Esse texto contém reflexões iniciais sobre nossa compreensão da dinâmica geográfica do trabalho no âmbito da Reforma Agrária e da Soberania Alimentar, sendo, pois, essas formulações entendidas como produto da construção da autonomia da classe trabalhadora para decidir o que produzir de alimento, como, quantidade, qualidade, onde, sob quais condições, etc. Essa construção pode sim catalisar as ações dos movimentos sociais e demais setores organizados em direção à edificação de novos referenciais de sociedade, produto do embate de classe, das disputas ideológicas, partidárias e acadêmicas. Somente como questões dos movimentos sociais e da classe trabalhadora, a Reforma Agrária e a Soberania Alimentar poderão efetivamente anunciar significados emancipatórios.Palavras-chave: trabalho, movimentos sociais, reforma agrária, soberania alimentar, luta de classes, emancipação social
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O homem resiste em seguir uma verdade enquanto não
a crê absoluta e suprema. É inútil recomendar-lhe
a excelência da fé e do mito
J. C. Mariátegui
A idéia de que a produção agropecuária tem que servir ao mercado é difundida pelas transnacionais agro-químico-alimentares, exatamente para manterem sob seu controle direto e decisório não somente as relações de troca, mas toda a cadeia produtiva dos alimentos que inclui a produção imediata, a distribuição, a circulação, o consumo e, conseqüentemente, expressivas parcelas da classe trabalhadora, desde os campos até os diversos setores urbanos do processamento agroindustrial.
O que é imprescindível para o conjunto da sociedade é objeto de controle de poucas empresas que ao seu sabor decidem não somente o perfil dos alimentos, mas também redefinem hábitos alimentares aos moldes do que já definimos de macdonaldização[1] e impõem novos mecanismos para engrossar as fileiras dos famintos com a iminente destruição da estrutura produtiva familiar e camponesa em todo o planeta. Todavia, isso se dá com mais intensidade nas periferias do sistema, alargando os 70% de pobres que vivem nos campos à monta de 3,2 bilhões de pessoas, das quais somente 2% têm acesso às máquinas e implementos, enquanto a maioria, 75% lavra a terra com as próprias mãos. Segundo a (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) há no mundo aproximadamente 1 bilhão de pessoas que são acometidas por desnutrição crônica, sendo que 75% vivem na zona rural, das quais 220 milhões estão na África subsaariana.
É o caso de ponderarmos, considerando os principais pesquisadores e estudiosos sobre fome, desnutrição, pobreza, que o problema da fome não se deve exclusivamente à pouca disponibilidade de alimentos, isso, aliás, pode até fazer sentido em alguns momentos e lugares, mas via de regra, e esse é o caso particular do Brasil, a fome está associada ao elevado patamar de pobreza da população. Já na década passada Hoffmann (1994) advertia enfaticamente que as políticas de combate à fome deveriam ter como referência o fortalecimento dos direitos dos pobres. O autor estava querendo dizer que o problema da fome no Brasil não é, primordialmente, uma questão de oferta, mas, essencialmente, de demanda, tendo em vista a enorme desigualdade existente no país e a conseqüente marginalização e pobreza de grande parte da população.
Eis um expediente interessante para colocarmos em discussão a Soberania Alimentar[2] dos povos, como uma bandeira de todos os trabalhadores e trabalhadoras, ou em essência uma questão de classe, pois os camponeses têm a ilusão de que devem produzir para o mercado mundial, quando poderiam produzir para satisfazer suas próprias necessidades e abastecer os mercados locais. Por sua vez os demais trabalhadores acreditam que vivenciar um mundo globalizado requer a aceitação da prevalência da eficiência somente para aqueles que conseguem se manter no ambiente da concorrência e na amplitude dos grandes conglomerados, das grandes plantas de supermercados, etc. Seria responsável de nossa parte adiantar o fato de que o mercado internacional existe em função dos excedentes e está controlado pelos grandes conglomerados empresariais, em detrimento da produção camponesa e familiar .
Se o estranhamento impossibilita ou dificulta a passagem dos flash de luz que poderiam iluminar as contradições e o nefasto quadro de destruição das experiências de vida comunitárias e das organizações camponesas, também encobre o caos que se instala nos setores mais dinâmicos da economia, que tanto nos campos quanto nas cidades vivenciam casos de aguda exclusão e de desrealização do trabalho. Sem nos esquecermos que, em alguns países, esse movimento de desmonte do trabalho nas cidades está possibilitando a ruptura das blindagens que até então se faziam mais resistentes em respeito aos códigos de leis (CLT[3] e o enquadramento sindical, Constituição Federal) e seus correspondentes subjetivos da divisão técnica do trabalho. O esgarçamento dos significados deste previamente definidos desde o ponto de vista da identidade sindical, diante da constante migração do trabalhador, do ser operário, por diferentes experiências laborativas (via de regra na ambiência informal) de alguma forma está encurtando as distâncias entre a realidade social do trabalho desrealizado e aproximando-o da luta pela terra que em algum momento se junta aos significados do ser camponês[4].
No Brasil, vive-se intensamente esse processo, todavia não seria o caso de atestarmos ocorrer uma desurbanização, mas esse expediente se territorializa com muita intensidade em algumas regiões do país, tais como Pontal do Paranapanema e demais áreas de assentamentos do estado de São Paulo e outros regiões, sendo que formas de expressão diversas também marcam o cenário político de novos significados para a classe trabalhadora, particularmente pelas explosões detonadas pelos movimentos sociais: sem terras, atingidos por barragens, mulheres camponesas, pequenos agricultores, pescadores e posseiros.
É nesse embate que presenciamos nessa fase de mundialização do capital, bandeiras como a Soberania Alimentar, que estamos sintonizando com os enunciados mais gerais da classe trabalhadora, ou seja, a necessidade da alimentação requer que pensemos na produção e desse modo, no esquema, na forma e na estrutura de produção, bem como nos objetivos e nos pressupostos para produzir e consumir com base nas reais necessidades dos consumidores, na qualidade dos produtos, e no abastecimento de mercados consumidores próximos às áreas de produção.
Como já sabemos o modelo de dominação do capital, mais propriamente a comercialização de alimentos no mercado mundial, apesar de recair em somente 10% de tudo o que se produz, influi muito negativamente no que diz respeito à estrutura produtiva familiar camponesa. O modelo de produção que referencia o agronegócio está fundado no desrespeito à biodiversidade, na destruição do meio ambiente, na deturpação dos preços, na sabotagem das políticas de Reforma Agrária e, conseqüentemente, na desmobilização da sociedade e dos trabalhadores em particular, elementos centrais para a edificação da Soberania Alimentar como referência de outro projeto de sociedade.
E o que é central nesse esquema de dominação é que o agronegócio é controlado por empresas, genericamente denominadas de tradings, que dominam o processo produtivo e de diitribuição/comercialização/agroindustrialização de grãos, estando consorciadas à tantas outras empresas processadoras e mesmo do D1, sobretudo quando se põe em destaque os diferentes produtos no arco de abrangência da cadeia agro-químico-alimentar. No entanto, as principais que operam com grãos são: Bunge, Cargill, Archer Daniels Midland (ADM), Syngenta, e Louis Dreyfuss, empresa francesa que no Brasil opera com o nome de Coimbra.
Tem-se ainda o grupo Maggi, de propriedade da família do governador do estado do Mato Grosso, a Caraburu, de Goiás e outros grupos nacionais e internacionais menores. Chama atenção também a expansão da soja para o ecossistema do cerrado, pois o patamar de destruição chegou no limite, pois o desequilíbrio hidrológico entre as chapadas e as veredas tem sido acentuando com o uso indiscriminado dos pivôs centrais e pelo sistema intensivo de aproveitamento das terras para plantio, sem contar a poluição dos mananciais hídricos por conta dos agrotóxicos[5].
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