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Por outro lado, a cegueira do velho, juntamente com o fato de morar sozinho no meio do mato, acentua a ambiguidade de nosso personagem.
Interpretando a cegueira como uma doença verificamos que o velho cego reune os dois requisitos para que um indivíduo se torne Xamã [curador ou feiticeiro, de acordo com o caráter de suas ações] (Melatti, 1970: 65 à 77). De acordo com Melatti todos os Xamãs Krahó receberam seus poderes (normalmente de um animal ou vegetal) quando estavam doentes e encontravam-se sozinhos (afastados do grupo), reproduzindo a experiência vivida por Tirkre, um dos heróis da mitologia Krahó (Melatti, 1970: 65-77 e 1975: 295ss).
Além disto a cegueira durante a velhice pode ser atribuida à quebra de um tabú alimentar durante a juventude (Melatti, 1975:64), o que por si só já colocaria o "velho cego" numa situação liminar. A propósito, na cultura Krahó, existem alguns rituais que permitem ao indivíduo que se encontra numa situação liminar, por ter infringido alguma norma do grupo, reitegrar-se à sociedade; como exemplo, poderíamos citar o rito de reintegração do assassino, Ramkókuhem (Melatti, 1975:115 à 117). Neste sentido é possível que o velho não tenha realizado nenhum destes ritos (se é que neste caso existe ritual de reintegração previsto pela sociedade) optando pela permanência na liminaridade.
De qualquer forma, o que gostaríamos de acentuar por ora é a situação duplamente liminar (ambígua) em que se encontram o velho e o casal de irmãos (os orfãos) quando se interrelacionam. O quadro abaixo caracteriza bem a identidade que o mito estabelece entre o velho cego e os irmãos.
B) Relações entre irmão e irmã (homem/mulher).
As relações entre irmão e irmã que aparecem no mito estão permeadas por quatro categorias nativas e são duplamente problematizadas: de um lado acentuam a oposição homem/mulher e, de outro, a oposição afins/consanguineos.
Entre os Krahó todas as decisões que dizem respeito ao destino do grupo (da sociedade), da mesma maneira que a iniciativa do contato com estranhos, é de responsabilidade masculina (Cardoso de Oliveira, 1978:2 e 6). Por outro lado, cabe as mulheres a organização das atividades domésticas. Estas qualidades e esta divisão de trabalho são enfatizadas no mito. As iniciativas e as decisões são sempre tomadas pelo menino, tais como: roubar o amendoim do velho, e enganar o velho com o rabo do calango.
Por outro lado as únicas vezes em que a menina toma a iniciativa é sempre mal sucedida; é pega em flagrante quando tenta roubar o amendoim do velho cego e não consegue imobilizar os cachorros para livrar-se do irmão. O fato do cachorro fêmea tomar a iniciativa de ataque contra os animais que se defrontam com o menino não invalida o nosso argumento; pois, em primeiro lugar, a cadela é mais valorizada nas caçadas porque, de acordo com os Krahó, durante o cio o cachorro macho não se dispõe a perseguir a caça com a mesma energia da fêmea (Melatti, 1975:33), e além disto é o cachorro que define todos os combates, matando seus oponentes.
Contudo, para os fins de nossa análise a oposição entre afins e consanguíneos merece maior atenção. No princípio da narrativa a relação de consanguinidade entre os meninos orfãos não apresenta maiores problemas; menino e menina ajudam-se mutuamente e conseguem transpor as barreiras que se antepõe à sua marcha. Todavia, quando passam para o segundo estágio do ciclo de vida4, tornando-se, respectivamente, rapaz e moça, a situação fica insustentável. Agora, a vida em comum fora da aldeia propicia a deflagração do incesto e constitui uma ameaça para a sociedade.
A partir de certo momento, além da narrativa passar a se referir aos irmãos como rapaz e moça, o conto fornece outras indicações de que a passagem de estágios de idade foi efetivada. O fato do menino começar a caçar e o relacionamento da menina com os dois rapazes que aparecem logo depois 5 estão de acordo com a caracterização feita por Melatti (1975:58 e 61) dos indicadores da passagem de criança à jovem.
De fato, a moça toma a iniciativa de provocar a separação do rapaz por duas vezes, mas fracassa em ambas. A separação só é alcançada quando o rapaz fica desapontado com a sua situação e, resentido com a irmã, resolve partir para tentar a vida sozinho. De resto, reforçando o argumento anterior, a moça nega sistematicamente a instituição de relações de reciprocidade com seu irmão, não permitindo que a relação de consanguinidade que os une se transforme numa relação de afinidade.6
C) Relações entre meninos e sociedade.
As relações entre meninos e sociedade já foram parcialmente assinaladas na discussão da coluna anterior, notadamente no que se refere a ameaça de incesto que a convivência entre o casal de irmãos colocava sobre a sociedade. Porém, a primeira reação da sociedade contra os meninos não engendra exatamente uma oposição entre as partes.
Como vimos anteriormente, embora os Krahó admitam a presença de orfãos na sociedade, o fato dos pais adotivos abandonarem as crianças na mata porque a mãe estava com preguiça de cria-los assinala o plano secundário em que estes indivíduos são postos pela sociedade. Dificilmente uma mulher tentaria livrar-se de seus filhos "legítimos" por estar com preguiça, e não temos conhecimento de outros mitos, ou dados etnográficos, em que esta possibilidade se apresente.
Por outro lado, a estigmatização a que estão sujeitos os orfãos tem implicações que parecem sustentar o nosso argumento. Isto é, a tentativa de eliminação destas crianças pode ser vista como uma medida de caráter preventivo para: a) proteger a sociedade contra um feiticeiro em potencial; e/ou, b) não investir em crianças que, tendo grandes possibilidades de tornarem-se feiticeiros, a sua eliminação pela sociedade seria apenas uma questão de tempo.
Num segundo momento a preocupação da sociedade em relação ao destino das crianças já se prende a um outro aspecto. O fracasso da sociedade em eliminar os meninos na primeira tentativa, pois os meninos conseguem sobreviver ao abandono, coloca em risco a ordem social, na medida em que um casal de crianças inicialmente inofensivas, quando tornam-se jovens (moça e rapaz) tendem a desenvolver uma relação incestuosa 7. Neste sentido, a intenção do velho cego de matar as crianças pode ser interpretada como uma segunda tentativa da sociedade de eliminar o casal de irmãos, agora, com o objetivo de evitar a possibilidade de incesto que se aproxima. Após um período de quatro meses na casa do velho as crianças se desenvolviam rapidamente, principalmente aos olhos do velho que acreditava que o rabo do calango era o dedo do menino8.
Por outro lado, os meninos são salvos por Papam (como é chamado o sol, um dos heróis míticos dos Krahó) que, previnindo-os das intenções do velho cego indica-lhes a maneira de resolverem o problema. Como nos diz Melatti (1972:10), nos mitos de sol e lua, o sol sempre aparece para tirar lua do perigo que lhe aflige e é com ele que os Krahó contam para tira-los de situações críticas. Assim sendo, sua intervenção no mito, a favor das crianças, nos parece natural e esperada. Entretanto ainda poder-se-ia colocar um problema: se Papam é o herói mítico que auxilia o grupo indígena a livrar-se de situações críticas, porque ajudaria crianças cuja sobrevivência ameaça a ordem tribal? A nosso ver, se contextualizar-mos melhor a atuação de sol, notaremos que sua intervenção não é a favor da desordem social nem contraditória com a visão dos Krahó a seu respeito. Papaml não corre em auxílio de um casal de jovens cujas relações são potencialmente incestuosas, mas atua em favor de um menino e de uma menina que se vêem ameaçados pela morte. Como assinalamos acima, quando o velho resolve matar o casal de irmãos estes ainda são crianças e o seu rápido desenvolvimento é apenas aparente, resultante do artifício que o menino utiliza para enganar o velho9.
D) Relações entre índios e brancos.
Até aqui vimos como a sociedade indígena se debate para resolver um problema criado por ela mesma, isto é, a impossibilidade (dificuldade) de impedir a concretização de relações incestuosas entre irmãos germanos, decorrente do isolamento compulsório a que as crianças são submetidas quando são abandonadas pelos pais no mato. Entretanto, o problema aparece de forma repentina e sem maiores explicações. Pois, apesar dos possíveis problemas enfrentados pelos orfãos na sociedade Krahó e da discriminação a que estão sujeitos, o padrão cultural não reza que as crianças adotadas sejam eliminadas do grupo.
Por outro lado, o fato dos orfãos serem em número de três, e de que apenas dois (o casal) são abandonados, nos leva a suspeitar que o problema teria sido forjado pela sociedade para que permitisse a reflexão sobre uma situação mais complexa para a qual a sociedade Krahó ainda não teria encontrado uma estratégia adequada de enfrentamento.
Neste sentido o desenrolar da narrativa introduz o problema das relações entre índios e "civilizados" repensando a problemática colocada no mito de Auké (Da Matta, 1973:19-63). Aqui os Krahó já partem da existência do homem branco e complexificam a situação de contato, como mostra a trajetória de nosso personagem principal, que sai da aldeia passa pela casa do velho cego, e prossegue sempre na mesma direção até chegar na cidade.
Mas para entendermos melhor todas as passagens do mito e o percurso do menino se faz necessário alguns esclarecimentos sobre a representação do Universo Krahó.
Segundo Melatti (1975: 88) os Krahó dividem o Universo em três níveis: celeste, intermediário, e subterrâneo. E a leste as três unidades cósmicas se interligam através do pé do céu e do buraco por onde passou o homem que foi ao mundo subterraneo (Melatti 1975:89, 283 e 284). Desta forma a concepção do universo Krahó poderia ser representada da seguinte maneira:
Acreditamos que a passagem para o mundo dos brancos também seja concebida a leste da aldeia e, consequentemente, próxima ao pé do céu e ao buraco que liga a terra ao mundo subterrâneo devido às seguintes informações que Melatti colheu de seus informantes Krahó (1975:86 e 88):
1. "...Os civilizados, outrora, estavam do lado de fora desta cúpula..." (o informante está se referindo a cúpula celeste cujas extremidades delimitam a terra dos índios).
2. "...os índios, que outrora habitavam junto ao pé do céu, migraram para o lugar onde moram atualmente. Rumando sempre para oeste, mudando sempre de aldeia..."
Agrupando as duas informações, podemos supor que as constantes migrações para oeste estejam relacionadas com a penetração dos brancos (que no passado viviam fora da área delimitada pela cúpula celeste) na terra indígena e, se estivermos certos, a ligação entre o mundo dos índios e o mundo dos brancos também estaria a leste.
Mas voltemos ao mito. O primeiro contato de nosso herói com o elmento "civilizado" se dá quando entra na "barroca funda" onde é abandonado por sua irmã que acompanha os dois rapazes, os quais cortaram a corda que seu irmão havia utilizado para descer, mantendo-o preso lá dentro. Embora a estória não diga nada a respeito da origem étnica dos dois rapazes, o contexto em que aparecem, bem como o prosseguimento da ação, indicam a sua identidade "regional" ("civilizado"). Além da irmã, que se une aos rapazes, reaparecer morando numa fazenda e, portanto, no mundo dos branco, os novos companheiros da irmã entram em cena no momento em que uma série de circunstâncias indicam que o casal encontra-se exatamente no ponto de intersecção entre o "pé do céu" e o buraco que liga a terra dos índios ao mundo subterrâneo. Poucos instantes antes dos rapazes aparecerem o irmão da moça que voltava de uma caçada na qual fora obrigado a enfrentar um "bicho feio". Este fato seria o primeiro indício de que os irmãos estariam próximos ao "pé do céu", pois segundo Melatti (1975:89), "bicho feio" é a categoria que os Krahó utilizam para identificar (classificar) todos os animais que habitam esta região. Por outro lado, quando os rapazes encontram a moça seu irmão está apanhando água na "barroca funda" que, devido a sua localização de proximidade ao "pé do céu", simboliza a passagem para o mundo subterrâneo.
Depois disto, dois homens tiram o rapaz de dentro da "barroca funda" (segundo contato com os brancos), julgam-no morto e deixam-no no chão. Os cachorros fazem com que o rapaz reviva e ele sai atrás da irmã, encontrado-a numa fazenda, onde dá-lhe uma surra e parte para a cidade grande sozinho. Na cidade grande o rapaz recebe uma oferta de um homem rico para matar um "bicho ruim" que comia gente na rua. Então ele mata o bicho, ganha muito dinheiro, e fica rico.
A experiência diversa que o rapaz tem com indivíduos da sociedade nacional chama a atenção para a maneira como os índios classificam os brancos. Com os rapazes que levam sua irmã embora nosso personagem estabelece uma relação negativa, e com o homem rico da cidade uma relação positiva. Essa dicotomia entre os brancos de longe e os brancos de perto reflete o conflito permanente entre os Krahó e os fazendeiros que circundam a reserva indígena (Melatti, 1972: 14-20), em oposição a "cordialidade" com que são tratados pelos brancos de cidades grandes, como Rio de Janeiro e São Paulo, com os quais tiveram contato.
"...Nossa concepção das relações entre o mito e a realidade restringe, sem dúvida, a utilização do primeiro como fonte documental. Abre, porém, outras possibilidades, pois, renunciando a encontrar no mito um quadro da realidade etnográfica sempre fiel, ganhamos um meio de chegar, às vezes às categorias inconscientes. "(Lévi-Strauss, 1970:40).
Como sugere Lévi-Strauss tentaremos desvendar as representações (inconscientes) que permeiam as contradições que o mito apresenta. Já dissemos que o mito do Velho Cego é uma reflexão sobre a dependência (subordinação) em que se encontra a sociedade Krahó em decorrência da situação de contato. Isto é, uma reflexão a partir da consciência da perda da autonomia desta sociedade após o aparecimento do homem branco 10. Esta percepção da situação em que se encontra é reforçada na resolução do problema colocado na primeira parte do mito que, como mencionamos acima, serve apenas de introdução ao tema dominante da narrativa, quando a separação definitiva do casal de irmãos - cuja união ameaça a ordem tribal - tem lugar no mundo dos brancos (e portanto, fora do raio de ação dos Krahó) após várias tentativas fracassadas da sociedade indígena de solucioná-lo.
A primeira vista a integração do "rapaz" no mundo dos brancos poderia sugerir que o mito de fato oferece uma alternativa razoável para a resolução do impasse em que se encontram os Krahó. Contudo, uma análise mais profunda das condições que caracterizam a trajetória do "rapaz" não permite tal interpretação. Como nos mostra o gráfico abaixo, o percurso realizado pelo menino aponta para uma série de anormalidades que enfatizam o carater excepcional de sua experiência. Depois de ser abandonado no mato o único indivíduo do grupo tribal com quem se relaciona é o velho cego que, além se ser velho, a sua anomalia coloca-o numa condição duplamente liminar (como vimos anteriormente a própria velhice já lhe asseguraria esta condição) que atesta a sua falta de capacidade como elemento socializador.
Não podendo ser socializado o menino cresce (biologicamente) mas não aprende as normas do grupo e não passa para o estágio seguinte. Em outras palavras, o menino torna-se rapaz mas não atinge o status de "jovem", para utilizar uma categoria nativa.
Esta ambiguidade que caracteriza o "rapaz" é simbolizada em alguns momentos do mito. Nas duas vezes que sai para caçar o "rapaz" mata um par de Jacú que é um animal ambiguo. O Jacú é bom corredor mas vive no mato11, e apesar de ser um animal selvagem é constantemente encontrado no meio da criação (animais domésticos) junto com as galinhas (Melatti, 1975:35). De resto, a tentativa de permanecer ao lado da irmã (o "rapaz" só se separa da irmã após o segundo atentado que ela comete contra ele) demonstra a sua ignorância a respeito das normas do grupo e da ameaça que atinge a ordem tribal.
Desta forma, na medida em que o rapaz não consegue tornar-se um "jovem", isto é, não chega a ser considerado um Mehim (índio) pela comunidade Krahó, a sua integração ao mundo dos brancos não pode ser vista como uma alternativa de enfrentamento da situação de contato, mesmo a nível individual. Seguindo este reaciocínio, poderíamos dizer que, de acordo com o mito, mesmo quando a integração ao mundo dos brancos é possível, o sucesso desta integração está na dependência da perda da identidade tribal, ou seja, a integração é possível, mas como brancos e não como índios.
Por outro lado, é interessante notar que o caminho percorrido pelo rapaz segue a direção oposta ao trajeto que vem experimentando a sociedade Krahó.
Quais seriam as implicações desta constatação? Enquanto o "rapaz" se dirige para o leste a procura da salvação e é bem sucedido na integração ao mundo dos brancos, a sociedade caminha para o oeste, em direção a aldeia dos mortos (Melatti, 1975:83), que em última instância simboliza o fim (a morte) dos Krahó como um grupo. Além disto, a indicação de que este deslocamento da sociedade estaria sendo imposto pelos brancos ("civilizados") (ver pags. 12 e 13) fundamenta o caminho seguido pelo reflexão indígena (pelo mito) sobre o contato interétnico, a procura de uma solução para a situação crítica em que a sociedade se encontra desde o aparecimento do homem branco.
Ao longo de nossa análise tentamos demonstrar que o mito do Velho Cego foi elaborado a partir do conhecimento da existência do homem branco e portanto posterior ao Mito de Auké que explica o aparecimento deste personagem no cenário indígena. Vimos como o problema que norteia a primeira parte do mito, a oposição meninos (casal de irmãos)/sociedade, serve para marcar a perda da autonomia indígena (o problema é resolvido fora do âmbito da sociedade tribal, e não seria errado dizer que a solução é dada pelos brancos) e a perda do controle sobre a ordem tribal, introduzindo a problemática central do mito que poderíamos denominar como; a busca de uma solução, ou, a procura de uma alternativa para a sobrevivência da sociedade Krahó. Neste sentido, em relação ao mito de Auké (Da Matta, 1970:77-107), o conto do Velho Cego seria um segundo momento da reflexão indígena sobre a situação do contato interétnico.
Por outro lado, assinalamos também que a alternativa apresentada pelo mito, ainda que ao nível individual (a integração do rapaz no mundo dos brancos), não passa de uma solução aparente para a situação crítica em que a sociedade se encontra, pois, como vimos, o mito expressa exatamente o oposto da solução alternativa que apontamos acima. Isto é, constata a impossibilidade de integração à sociedade nacional paralelamente à proximidade do fim (da morte) da sociedade indígena. Aliás parafraseando Lévi-Strauss (ver epigrafe colocada no início do trabalho) isto "acontecerá sempre que o mito procure exprimir uma verdade negativa". Em outras palavras o mito aponta para uma situação mas a sociedade se recusa a acreditar nela.
Um índio tem três filho. A mulher dêle morreu. A mulher do outro falou que quer criá os menino dele. Falou com o véio e ele deu os dois, um home e uma mocinha. E vai criando os dois menino. Mas muié dele tá com preguiça. Então levou os menino para deixá no mato. E levaram pra tirá abêia com combuca comprida e machado. Só pra enganar!
Andaram muito. Chegaram no meio do mato e pendurou a combuca. Aí andaram mais uma légua e deixou os menino esperando.
—Depois eu venho buscá! —Mas deixou os menino.
Os menino chamaram e combuca respondeu: Uhh!
—Ói, papai tá gritando! —Assustaram, gritou outra vez e combuca respondeu.
Andaram, andaram e acharam combuca.
—E agora? Nois se perdeu!
E foram andando nesse rumo pra achar morador. Caminharam até achar a casa de um véio cego que tinha muito mendoim, sem criação, num tinha galinha nem nada. Mas o véio tava cuidando do mendoim com vara, para espantar passarinho.
Os menino foram ver e viram que era só aquele véio cego. Foram tirando mendoim.
O menino tirava e levava pra irmà dele. E o véio escuitava que remexia, e passava a vara.
Mas o menino era sabido, ia desviando e corria. Aí a irmã queria também buscá o mendoim, mas não sabia bem. E o véio bateu com a vara no braço dela. Gritou logo.
—Quem tá aí panhando meu mendoim?
O menino falou:
—Não adianta mais se escondê. Já sabe! Somo nóis! —E disse o nome dêle.
Aí véio disse:
—Não tem nada não, pode comê. —Deu comida pra êles. Botou num quarto fechado e só dava comida.
Passou dois mês e quis espiar como eles tava. Quis vêr o dedo no burado da parede e achou que tava grandinho.
Passou quatro mêis, aí o menino saiu pelo telhado e matou dois lagartixa do rabo mais grosso. Aí o véio foi pedir o dedo e o menino mostrou o rabo de lagartixa e viu que tava grande.
Foi dando de comê. E o menino saiu e matou dois calango e mostrava os rabo pro véio. E aí êle achou que êles tava já bem grande e botou pra fora, e mandou êles rachar muito pau e fazer fornage pra tacho e mandou enchê água.
Aí deus Pápam chegou e perguntou o que tava fazendo. O menino explicou que tava fazendo fogueira grande pra êles brincar, que o véio mandou.
Deus falou, que êle tava enganado, êle ia ensinar:
—Quando o véio mandá vocês dançá em volta do fogo, vocês diz que não sabe, pra êle ensiná primeiro.
De madrugada botaram fogo em baixo do tacho. Deixou ferver bem e avisaram o cego.
—Tá bom.
—Tá? Então vão brincar aí pertinho!
—Nós não sabe, brinca você primeiro!
—Tá bom, vou mostrá.
Então os meino empurraram o cego pro tacho. Êle gritou, pegou na beira do tacho pra saí. O menino pegou num pau e bateu duro nos dedo dêle. O véio caiu dentro da água quente e morreu. Cozinharam muito até que secou água. Pegou fogo no velho, virou cinza.
Aí, deus disse pra fazer dois bolo bem igualzinho da cinza e jogá o resto em cima da casa.
Esperaram que a cinza esfriou. Fizeram os bolos e puzeram o resto em cima da casa. Da cinza do cego saiu galo cantando, muita galinha, pintinho.
Passou uma hora, saiu cachorro balançando rabo, fazendo baruio. A moça falou pra ver o cachorro. Êle saiu, viu dois cachorro grande, muito bonito, um macho, outro fêmea.
Êle foi caçar, falou pra não mexer com os cachorros.
A irmã botou prego nas oreias dos cachorros pra êles não escutar nadinha.
O menino foi andando. Viu Jacu. Atirou! Viu outro. Atirou, e os dois jacu ficaram prêso lá em cima do pau. Êle subiu. Tá chegando lá em cima. Aí veio um bicho feio pra comê. Falou:
—Desce aqui!
—Num desço não!
—Desce, sinão eu derrubo o pau!
—Pode derrubá!
O bicho mordeu o pau e tirou um bocadão:
—Agora desce!
O rapaz disse: —Espera, eu grito, depois eu desço.
O bicho esperou. Gritou. Gritou muito. O cachorro não escutava, que tinha os dois pregos nas oreia. Gritou, gritou muito mesmo, e o cachorro sempre escutou um bocadinho.
Aí veiu correndo. Era cachorro fêmea que veiu. Chegou, brigou muito com bicho feio, até que ficou cansado.
Chegou o macho, e derrubou logo e mataram o bicho. O rapaz desceu e foi embora.
Brigou muito com irmã. Chorou muito. Cozinharam os jacu. Comeram e dormiram. Aí ficaram imaginando pra mudar de lugar, para escolher lugar melhó pra morá. E então foram andando procurando, andando. Mataram frango. Fizeram frito. Pegaram os pinto pra levar pra criar.
Chegaram numa tapera de pousada. Foi caçar e achou jacu otra veis. Atirou. Mas o jacu não caiu, não. Ficou lá em cima no pau. Tinha outro jacu. Atirou outro, e também não caiu. Aí êle subiu no pau e foi buscar. Quando tava lá em cima, veiu outro bicho feio, grande, de cabeça grande. O cachorro fêmea avançou. Logo desceu. Levou o jacu pra irmã cozinhá. Tinha lá nessa pousada uma barroca funda, buracão, pra descê com um cipó até no fundo. Aí que acabaram de comê, rapais foi descê pra buscá água.
Chegaram dois rapais. Viram êsse moça bonita. Conversou pra ir embora mais êles.
E moça foi mesmo. Não se importou com irmão dela lá em baixo da barroca. Aí os rapais cortaram corda pra rapais não subir.
Êle ficou lá em baixo, passou, passou muitos dias, e êle morreu de frio!
Aí chegaram uns home e escutaram os charro e pensaram:
—Aí tem cachorro, cadê o dono dêle? —Vai vê, tá arranchando por aí!
—Vamos bebê água!
Chegaram na barroca, e tava lá o cachorro oiando pra baixo. Aí êles viram o dono lá em baixo.
—Como foi? Vai vê, êle morreu de frio!
Cortaram pau comprido. Fizeram escada pra buscar o rapais. Fizeram cama de paia e subiram o rapais. Cachorro ficaram tudo alegre. O home deixaram lá mesmo e foram embora. Os cachorro começaram a lamber o rapais tudinho. Cachorro começa lambendo cabeça, o macho. E fêmea lambendo o pé, até o embigo. Lamberam tudinho. Daí viraram de costa e começaram outra vez lambendo. Sempre lambendo. O dono abriu os zóio e viu os dois cachorro. Tava procurando irmã.
—Como foi? Irmã sumiu, deixou eu lá na barroca com frio.
Aí ficou muito zangado. Comeram do frito que tava escondido. E foi embora só procurando irmã. Procurando, preguntando prôs moradô se tinha visto a môça com dois rapais.
—Vi, sim, foram nesta estrada mesmo.
Foi andando, até chegar noutro morador. Êsse ensinou casa dela, uma fazenda grande. Aí chegou lá, e tava irmã. Irmã ficou contente, mas irmão tava zangado. Pegou chicote e surrou muito, muito. Deixou lá no chão e foi embora. Andou muito. Chegou numa cidade grande que tinha um bicho que comia gente na rua. Povo todo tá oiando êsse rapais com dois cachorro tão grande, si não queria matá o bicho. Aí rapais encontrou o homem rico da cidade, que queria pagar pra êle matá o bicho ruim. Acertaram o pagamento, muito, muito dinheiro. Aí rapais acertou com êle e perguntou que hora é que o bicho saia.
—De noite!
Chegou de noite. Levaram êle lá na casa que o bicho saia. E êle ficou lá de fronte na outra casa, só esperando, esperando, tudo quietinho. Aí, coisa de oito hora saiu o bicho feio, de boca grande. O rapais mandou o cachorro fêmea. Aí brigou com o bicho até fica cansado. Aí êle botou o outro cachorro grande, o macho pra brigá. Êle chegou e foi pegando logo no pescoço do bicho que tava cansado. Brigou, brigou! Aí rapais saiu com arma e atirou. Matou o bicho feio.
O povo saiu tudinho na rua. E espiaram o bicho feio e os cachorro. E o rapais ganhou todo aquêle dinheirão, ficou rico agora!
CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. 1978. Artesanato Krahó: Divisão de Trabalho Trançado. Relatório apresentado ao CNRC.
CHIARA, Vilma 1961/2 —«Folclore Krahó». Revistas do Museu Paulista, Nova Série, São Paulo.
DA MATTA, Roberto 1970 —«Mito e Antimito entre os Timbira», in Mito e Linguagem Social. Ed. TB. Rio de Janeiro.
__________ 1973 —«Mito e Autoridade Doméstica», in Ensaios de Antropologia Estrutural. Ed. Vozes, Petrópolis.
LÉVI-STRAUSS, Claude 1970 —«A Cesta de Asdiwal», in Mito e Linguagem Social. Ed. Rio de Janeiro.
_________ 1970 —O Pensamento Selvagem. Ed. Cia. Nacional, USP-SP.
_________ 1975 —Antropologia Estrutural, Ed. TB. —RJ.
_________ 1976 —Antropologia Estrutural, nº 2, Ed. TB. —RJ.
MELATTI, J. C. 1970 —«O Mito e o Xamã», in Mito e Linguagem Social. Ed. TB, RJ.
MELATTI, J. C. 1972 —O Messianismo Krahó, Ed. Herder, USP-SP.
_________ 1975 —Ritos de Uma Tribo Timbira, Brasília —DF.
ROMERO, Sílvio 9711 —João Mais Maria, in L.C. Cascudo Antropologida do Folclore Brasileiro. The Grimm's German Folk Tales —Hansel and Gretel, Southern Illinois University Press —1960.
1. Neste sentido, a única versão a ser analisada será aquela publicada por Vilma Chiara (1961:352—355). Para melhor compreensão do leitor, reproduzimos a estória no apendice ao final do texto.
2. Daqui em diante utilizaremos, indiferentemente, os termos mito e conto para nos referirmos à estória do Velho Cego, pois, segundo Lévi-Strauss (1976:136) "... Os contos são mitos em miniatura, onde as mesmas oposições estão transpostas em pequena escala..."
3. Como o grupo doméstico é composto pelos parentes da mãe (normalmente são grupos de irmãs que moram juntas com os seus maridos), e as crianças são adotadas pelos parentes do pai, a mudança de grupo doméstico parece ser inevitável.
4. Para maiores informações sobre o ciclo de vida dos Krahó, consultar Melatti (1975: 55-71).
5. A maneira como os rapazes se dirigem à menina (moça) reproduz a verbalização da "cantada" Krahó. De acordo com informações que obtive no campo, quando um homem quer "abaini" (copular) com uma mulher fica olhando para ela até que tendo passado um determinado período de tempo faz a abordagem: "vamos mais eu ali?". A utilização dos mesmos termos e o contexto em que a ação se desenrola não deixam sombra de dúvida quanto a relação entre a moça e os dois rapazes.
6. Segundo Melatti, um indivíduo pode transformar um afim em consanguineo e vice-versa, bastando para isto mudar o tipo de relacionamento que mantém com ele (1975:45).
7. Embora os casos de incesto na sociedade Krahó não sejam tão raros e, de acordo com Melatti, as punições previstas para estes casos sejam "puramente sociológicas", ["...Assim, se, por exemplo, um homem deflora uma parenta, a indenização que deve dar é superior a que normalmente se espera por este ato..." (1975:45)] a categoria "irmã" encontra-se no grupo de parentes com os quais este tipo de relação não é permitida em hipótese alguma, a saber, as mulheres do mesmo segmento residencial do rapaz.
8. Poderia-se dizer que a intenção do velho sempre foi de matar as crianças e, desta forma, a decisão teria sido tomada anteriormente ao crescimento das mesmas —fato que seria confirmado nas versões ocidentais do conto (Romero, 1971: 300 a 303) e The Grimm's German Folk Tales, 1960:57 a 63). Contudo, com exceção da prisão no quarto a que os meninos são submetidos, parece que o velho trata bem as crianças e que elas lhe são gratas. Pois, enquanto nas versões ocidentais o menino engana a velha com um rabo de lagartixa (Romero, 1971: 301), com objetivo de aparentar-se magro e sub-nutrido (consciente de que o seu desenvolvimento significaria a morte), na versão indígena o menino mostra um rabo de calango com a intenção de demonstrar o crescimento que ele e a irmã estavam tendo, ignorando as segundas intenções do velho. O fato dos meninos só tomarem conhecimento da intenção do velho após o aviso de Papam, parece reforçar o nosso argumento.
9. O fato do menino ser bem sucedido em relação a imagem que transmite ao velho não significa que também tenha enganado Papam.
10. Ver a análise de Da Matta sobre o mito de Auké que já citamos neste trabalho.
11. Os Krahó classificam os animais, de acordo com a sua velocidade, entre os que habitam o campo e a mata. O mito de Witi que conta como os animais se dividiram entre o campo e a mata assinala que o Jacú, como corredor, deveria ficar no campo, mas preferiu a mata (Melatti, 1975:30).
Luís Roberto Cardoso de Oliveira
lcardoso[arroba]unb.br
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