"O Velho Cego" é a versão Krahó do conto de João e Maria, dos irmãos Grimm, publicado em várias línguas e muito difundido no mundo ocidental como um todo. Embora a pesquisadora que publicou a estória afirme que esta versão se caracterizaria pela ausência de contribuição indígena (Chiara, 1961:356), o que nos chamou atenção no texto foi exatamente a articulação original de problemas indígenas com temas ocidentais, através da qual os Krahó procuram pensar a sua experiência. O que se segue é um exercício de análise estrutural onde, como em outras oportunidades, esta estratégia de análise revela grande rentabilidade para o desvelamento de dimensões significativas das relações sociais. Neste caso, aspectos importantes da visão nativa sobre o contato interétnico. Entretanto, ao invés de proceder a análise através da comparação da estória Krahó com as versões ocidentais do conto, privilegiando a unidade entre as diversas versões, optamos por tentar abstrair a estória do Velho Cego de suas congeneres ocidentais procurando fazer uma análise mais colada na mitologia do grupo e no contexto etnográfico.1
Assim como o mito de Auké, analisado por Da Matta (1973:63), a estória do Velho Cego também pode ser dividida em duas partes. Na primeira, que vai do abandono das crianças pelos pais adotivos até o isolamento do rapaz na "barroca funda", a estória retrata uma situação que se desenvolve no âmbito da sociedade Krahó. Enquanto na outra, que vai do aparecimento dos rapazes que separam o casal de irmãos até a integração do menino (rapaz) no mundo dos brancos, há uma reflexão sobre o contato interétnico onde os Krahó procuram uma alternativa para controlar uma situação que põe em perigo a "ordem tribal".
Seguindo o método proposto por Lévi-Strauss (1975:243ss), começaremos nossa análise resumindo o mito2 ao menor número possível de orações para depois montarmos os mitemas, ou feixes de relações que contém a estrutura do mito:
1. Mulher morre deixando meninos orfãos.
2. Os meninos são abandonados pelos pais adotivos.
3. Os meninos encontram o velho cego (que mora no meio do mato e tem muito amendoim em casa mas não tem criação de espécie alguma).
4. O menino é bem sucedido nas suas ações (consegue enganar o velho, mata o bicho feio, e fica rico).
5. A menina é pega em flagrante tentando roubar o velho cego.
6. O velho cego tenta matar os meninos.
7. Os meninos matam o velho.
8. A menina (moça) tenta livrar-se (separar-se) de seu irmão (primeiro põe prego nas orelhas dos cachorros para que não ouvissem o chamado de seu irmão e depois abandona o menino (rapaz) na barroca funda).
9. Dois civilizados tentam matar o rapaz com o consentimento da irmã.
10. Dois homens tiram o rapaz do buraco (barroca funda).
11. O rapaz vai para a cidade grande (mata o bicho ruim e fica rico).
Montando os mitemas, teríamos o seguinte quadro:
Passaremos agora a examinar as relações contidas em cada coluna para depois analisar-mos o significado do conto a partir da relação entre as colunas.
A) Relações entre meninos e velho.
Para que se tenha um bom entendimento das ações dos personagens no mito é necessário contextualizá-los nas categorias a que pertencem na sociedade Krahó. Deste modo não podemos deixar de mencionar alguns aspectos sobre as categorias nativas de "crianças" e "velho", bem como o seu papel na organização social do grupo.
As crianças Timbira, grupo linguístico do qual os Krahó fazem parte, passam a maior parte de seu tempo brincando e há grande tolerância por parte dos adultos em relação ao seu comportamento (Da Matta, 1973:34). Com exceção de um ou outro serviço eventual, as crianças não tem grande participação nas atividades sócio-econômicas do grupo. Em outras palavras, as crianças ainda não estão submetidas as normas do grupo e gozam de ampla liberdade; mesmo quando cometem alguma gafe não lhes é cobrado o comportamento correto e, normalmente provocam muitos risos nos adultos (Melatti, 1975:57). Por outro lado, o desconhecimento do código do grupo e a falta de controle da sociedade sobre suas ações colocam as crianças num estado de certa ambiguidade que, em determinadas circunstâncias, lhes permite desempenhar o papel de mediadores entre a sociedade e a natureza (Da Matta, 1973:34 e 35).
As crianças do mito além de se enquadrarem no quadro pintado acima têm a qualidade de serem orfãs. De fato não há nenhuma incompatibilidade entre a orfandade e a vida em sociedade. Esta possibilidade é, inclusive, prevista pela cultura indígena e normalmente as ciranças que se encontram nesta situação devem ser criadas pela tia paterna ou pela avó paterna (Melatti, 1975: 55). Entretanto, isto não evita que os orfãos sejam estigmatizados. Se por um lado estes indivíduos podem ser vistos como uma carga a mais para a família elementar e para o grupo doméstico3, por outro, estão sujeitos a acusação de feitiçaria por serem diferentes dos outros. Pois, nestas sociedades a diferença e a mudança costumam ser vistas negativamente, como uma ameaça à ordem tribal, e os indivíduos que possuem estas qualidades são sempre os primeiros suspeitos de feitiçaria.
A situação do velho, mesmo que por razões diversas, tem algumas semelhanças com a das crianças. Como estes, a sua participação nas atividades econômicas do grupo é irrelevante. Além disto, os velhos são afastados das decisões "tanto no plano da vida coletiva como no plano da vida doméstica" (Melatti, 1975:64) e, assim como as crianças passam a maior parte do tempo brincando, os velhos passam a maior parte do dia dormindo. De resto, a liberdade que as crianças têm de desrespeitar as normas do grupo é readiquirida pelos velhos que, a partir de uma certa idade, ficam livres de uma série de tabus que tinham que obedecer durante a juventude (Melatti 1975:64). Pode-se dizer que ao mesmo tempo que os meninos estão num processo de integração à sociedade (as meninas, assim como as mulheres estão sempre numa situação liminar entre a natureza e a sociedade), os velhos caminham em direção inversa.
Página seguinte |
|
|