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CAPITULO I:
A prática de estágio no Presídio Estadual de Cruz Alta (PECA) possibilitou-nos perceber que entrar em um estabelecimento prisional para trabalhar com os reeducandos é bastante complexo, pois a prisão exerce nos indivíduos um poder disciplinar de vigiar e controlar, poder que se renova e se transforma em cada época, utilizando os mais variados métodos que vão desde a violência física até a aplicação dos princípios de ressocialização. Esta passagem de um método para outro não é apenas a passagem de uma penalidade a outra diferente. É a passagem de uma arte de punir a outra não menos científica que a anterior, uma estratégia para o remanejamento do poder de punir, tendo como finalidade tornar a punição mais eficaz e regular, detalhando seus efeitos e diminuindo o custo político. (FOUCAULT, 1975).
Comprovamos este poder normatizador2 da prisão em nosso primeiro dia de estágio quando não foi permitida nossa entrada na galeria onde ficava a sala do Serviço Social, pelo motivo de o administrador não estar presente no estabelecimento, deixando claro o poder hierárquico exercido inclusive sobre os agentes. Normas também nos foram impostas pela segurança, na maneira de vestir e mais indiretamente na maneira de agirmos junto aos reeducandos, caracterizando assim o princípio de que a prisão deve reconstruir os sujeitos atenuando sobre o intelecto, à vontade e as disposições.
Esta relação normatizante da prisão acabou atenuando também sobre a nossa vontade e as nossas disposições fazendo-nos aproximar do tema família. Quando chegamos ao estabelecimento em um dia para realizarmos o estágio e já estava registrada em ata a proibição de nossa entrada no PECA, sem sequer comunicar a Assistente Social desta medida. Isto se deu devido ao fato do convênio com a Secretaria da Justiça e Segurança do Rio Grande do Sul, através da Superintendência de Serviços Penitenciários (SUSEPE) e a Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ) não ter sido renovado. O administrador do estabelecimento nos informou que a SUSEPE não permitiria nossa entrada enquanto este convênio não fosse renovado alegando que poderíamos criar vínculos empregatícios com a mesma. Procuramos o setor jurídico da UNICRUZ o qual nos informou que o processo do convênio seria bastante demorado. Procuramos nossas supervisoras (de campo e estágio) para juntas pensarmos uma estratégia para não interromper o estágio neste campo. Recebemos então a proposta de nos inserirmos junto ao Projeto Interdisciplinar de Extensão: Segurança alimentar e Nutricional aos Familiares dos Reeducandos do PECA.
A idéia inicial deste projeto surgiu a partir de uma visita domiciliar3 feita por nós, a pedido de uma reeducanda que queria saber sobre o estado de saúde do filho. A prática da visita domiciliar deve contribuir na politização das demandas, na busca da superação da práxis cotidiana através de sua análise fortalecendo os envolvidos no processo.
A Assistente Social após constatar através de informações obtidas na família, que o menino estava desnutrido, perguntou se a família gostaria do acompanhamento de uma nutricionista. Após a família concordar buscou-se junto ao Curso de Nutrição da UNICRUZ o devido atendimento. Através deste contato o Curso de Nutrição propôs o projeto interdisciplinar junto às famílias dos reeducandos objetivando reconhecer as condições de vida e relacionar com o estado nutricional e de saúde dos familiares dos reeducandos através de ações de educação, saúde e orientação alimentar.
Foram convidados a participar do projeto os cursos de Farmácia, Fisioterapia, Enfermagem e Serviço Social, professores e orientadores da Universidade. As reuniões aconteciam no salão nobre da Unicruz. Na primeira foi apresentado o projeto e solicitada a colaboração dos interessados. Na segunda foram discutidos assuntos quanto à operacionalização do projeto.
No PECA os reeducandos foram informados pela Assistente Social sobre o projeto e convidados a participar, sendo que vinte e quatro famílias demonstraram interesse. Os acadêmicos foram divididos em seis grupos para as visitas domiciliares, distribuídos de forma que cada grupo fosse composto por alunos de todos os cursos participantes. Organizou-se o cronograma com a data prevista para as visitas, cada grupo ficou responsável pelo atendimento de quatro famílias. Nas visitas foram realizadas atividades de verificação da pressão arterial, do estado nutricional, realização de coleta de sangue para exames laboratoriais e avaliação de glicemia, além da realização de um questionário para identificar as condições sócio econômicas.
A partir deste projeto, o Serviço Social buscou discutir os limites que as relações de poder e o sistema impõem, através de reuniões e discussões com os participantes do projeto (docentes e discentes). Contudo percebemos que o trabalho interdisciplinar4 gera divergências, devido as práticas de muitos ainda estarem enraizadas nas questões assistencialistas e filantrópicas, onde a família pobre torna-se campo de intervenção direta, pois é generalizada como responsável pela formação de personalidades deformadas.
Esta concepção de família é idealizada pelos valores, crenças, normas e hábitos da classe dominante não levando em conta o universo simbólico que constitui a família pobre. Este conceito hegemônico é utilizado também na prisão visto que a mesma é forma de disciplina para tornar os indivíduos dóceis e úteis. A família não deixa de ser para ela um instrumento completo de dominação, pois através dela pode-se constituir sobre os reeducandos um saber que se acumula e centraliza e assim criar mecanismos de intervenção mais eficazes. Neste sentido percebemos as dificuldades enfrentadas pelo Serviço Social no PECA na desconstrução de certos conceitos e práticas instituídas para a construção de novos modos de intervir levando em conta a multiplicidade dos modos de viver.
Após as visitas domiciliares do projeto de extensão, as quais nos possibilitaram uma maior aproximação à realidade vivida pelos reeducandos5 , surgiu a idéia de realizarmos com as famílias grupos de discussão. Foi elaborado então o projeto: "Pensando os modos de vida dos familiares dos reeducandos do PECA", com o objetivo de pensar como os familiares são marcados pelas práticas prisionais e como estas práticas atravessam suas vidas, a fim de investigar quem são as pessoas que mantêm vínculo com os reeducandos e o que acontece com estas famílias quando um de seus membros está na prisão.
Através da construção de grupos de discussão buscou-se fomentar processos de auto-análise e auto-gestão. A auto-análise propõe que os grupos sejam protagonistas de seus problemas, de suas demandas e que possam adquirir ou readquirir um vocabulário próprio que lhes permita produzir ou reapropriar-se do saber acerca de si mesmos. Este processo de auto-análise é simultâneo ao processo de auto-gestão em que as comunidades, os grupos se articulam, se organizam para construir dispositivos6 necessários a fim de produzir ou conseguir os recursos de que precisam para o melhoramento de sua vida. (BAREMBLITT, l996).
Após a aproximação através das visitas domiciliares a partir do Projeto Indisciplinar de Extensão realizamos quinzenalmente grupos de discussão no auditório da 9ª Coordenadoria Regional de Saúde de Cruz Alta. O dispositivo grupal constitui uma ferramenta para a emergência de diferentes assuntos associados aos modos de vida desses grupos e aos atravessamentos das práticas prisionais nesses modos de vida. Neste sentido os temas discutidos eram propostos pelos participantes.
Foram realizados cinco encontros do grupo de discussão nos quais participaram esposas, mães, filhos e até vizinhos dos reeducandos. Caracterizando a adaptabilidade da família na qual as transformações não significam desorganização ou desestruturação, mas sim a organização de forma diferente segundo as necessidades que lhe são peculiares. Esta diversidade está presente tanto na composição quanto no que diz respeito às formas de sociabilidade que vigoram em seu interior. No primeiro grupo discutimos a proposta de trabalho do projeto com as famílias, as quais consideram o espaço interessante, para partilhar experiências vividas e trocar idéias. Neste encontro escolheram o primeiro tema da discussão.
No segundo encontro compareceram quatorze participantes da comunidade, os acadêmicos dos cursos de Nutrição, Farmácia e Serviço Social. Iniciamos através de uma dinâmica de apresentação, na qual cada um dizia o nome, local da residência e o que esperava do grupo. À medida que falavam se formava uma rede com novelo de lã, simbolizando que a partir daquele momento estaríamos juntos para dialogar e trocar experiências. A maioria das pessoas, no início, mostravam-se bastante tímidas. Como havíamos combinado no grupo anterior, as acadêmicas do curso de Nutrição falaram sobre o programa Fome Zero e um representante da Prefeitura Municipal falou sobre o Família Cidadã e Bolsa Escola, todos esses programas de auxílio à população de baixa renda. Os participantes questionaram o método de escolha para a inserção nos mesmos e em relação ao Fome Zero não sabiam de nenhuma ação no município. Percebeu-se que algumas pessoas tinham dificuldade de expor o pensamento, de questionar e até de sugerir os temas para o próximo encontro.
O terceiro encontro do grupo de discussão realizou-se com a presença de oito participantes os quais discutiram as mudanças ocorridas após a prisão do familiar e as expectativas em relação à saída dos mesmos da prisão. Relataram que após o familiar ser preso a vida ficou mais difícil, pois antes os problemas eram compartilhados, agora eram resolvidos sozinhos. Falaram que procuravam nem levar mais problemas até estes já que se mostravam preocupados com a própria situação. Falaram que os filhos, com a prisão dos pais estão mais introspectivos e revoltados, muitos começaram a apresentar vícios. Diante de todas estas situações ainda enfrentam o preconceito em ser familiar de preso, dificultando as possibilidades de emprego e desencadeando assim problemas financeiros. A grande maioria apresenta um sentimento de passividade e esperam em relação à saída do familiar da prisão7 , no sentido de que este resolva a situação econômica, os problemas com os filhos, depositando a vida da família nas mãos dos reeducandos. Sabemos que estes ao saírem não conseguem prover todas essas necessidades. Propusemos que pensássemos juntos como a própria família seria capaz de prover suas necessidades. Recaímos nas questões de qualificação e emprego. Sabemos que a qualificação não resolve o problema do desemprego, mesmo assim a maioria das pessoas acredita nos cursos de qualificação.
No quarto encontro realizamos uma oficina de reaproveitamento de alimentos, porque o trabalho informal mais exercido pelas participantes era o trabalho doméstico. A oficina foi realizada na cozinha experimental do Curso de Nutrição da Unicruz, e orientado pelas acadêmicas do referido curso. Os participantes foram até o Campus Universitário com um ônibus cedido pela universidade e conheceram as dependências da faculdade, as crianças foram levadas até a brinquedoteca, enquanto na cozinha discutíamos questões de higiene ao cozinhar e como reaproveitar cascas, talos e folhas de legumes. Os participantes ganharam um livro de receitas e puderam degustar os pratos feitos por eles. Após alguns dias, uma das participantes relatou-nos que estava fazendo uma receita aprendida na oficina para vender e deste lucro passou a levar o material de higiene para o familiar preso.
No quinto encontro do grupo de discussão realizamos uma técnica na qual cada participante falou uma qualidade e um defeito pessoal. Discutimos a importância dos dons e a dificuldade de conviver com os defeitos dos outros. Realizamos uma retrospectiva dos grupos de discussão anteriores a fim de avaliarmos as atividades até aqui desenvolvidas. Os participantes falaram sobre a importância de se encontrar, pois podem dialogar com pessoas que enfrentam as mesmas dificuldades, trocar experiências e pensar possíveis idéias para administrar os problemas. Pensam que através da participação podem transformar não somente as suas vidas como também as coisas que não acham justas no sistema prisional.
Analisando o que aconteceu nos grupos de discussão, percebemos que grande parte da população está acostumada com as práticas de caridade com o assistencialismo e a filantropia instituídas desde o século XVIII pela igreja católica. Época em que os estabelecimentos sobreviviam a partir de esmolas, donativos e contribuições, significando obediência e dependência aos pobres e para os ricos davam sentido de bondade e religiosidade. A perda de autonomia do pobre reforçava a honra dos ricos, pois ao fornecer consolo aos pobres recebiam em troca o agradecimento do pobre e da sociedade que acreditava solucionar o problema desta forma. ( DONZELOT, 1986).
Nos relatos das pessoas que deixaram de participar ouvíamos sempre que não ganhavam nada no grupo e nem com ele, apenas conversavam. Este discurso materializa o significado de perda de autonomia da população e de dependência da "bondade" dos outros. A vitimação por parte destas pessoas faz com que adotem uma postura inerte frente aos problemas. Numa outra direção ouvimos relatos de muitas pessoas que procuram gerenciar suas vidas sem a presença dos reeducandos ou caridade dos outros. Porém o número destas se apresenta muito pequeno em relação ao grupo das que esperam práticas imediatistas. Outra situação que dificultava o andamento do grupo é que quando os internos ganhavam progressão de regime, os familiares deixavam de participar do grupo de discussão. Percebemos que neste momento o grupo também se fazia importante, já que os reeducandos enfrentam muitas dificuldades no cumprimento do regime externo.
Mesmo enfrentando obstáculos, ao desconstruir as práticas assistencialistas percebíamos a importância do grupo na produção de saberes, na troca de experiências e na busca por formas de administrar os problemas. O grupo progredia nas discussões e já começávamos a perceber a autonomia de alguns participantes em relação as suas vidas, suas expectativas, enfim, movimentos que configuram o processo de auto-análise e auto-gestão. Quando este processo estava em andamento o projeto foi interrompido8 . Para retomar os trabalhos elaboramos convites e entregamos para os familiares no dia da visita.
O primeiro grupo de retomada do processo teve duas participantes novas. Então apresentamo-nos e discutimos a proposta de trabalho. Realizamos outra tentativa de retomar o grupo, porém só compareceram as mesmas duas pessoas do grupo anterior. Conversamos sobre as dificuldades enfrentadas após a prisão do familiar, porém não marcamos outro encontro. Percebemos diante dos acontecimentos que a proposta inicial não poderia ser retomada, devido às situações transcorridas havia sofrido transformações e não permanecia mais a mesma, pois um novo grupo de familiares se formava, com novas propostas e novos objetivos.
Sabemos que esta situação também é válida, porque desta forma a proposta de trabalho não fica estática, imutável, mas permeada pelas modificações e transformações da realidade. Entretanto, para nós, a impossibilidade de continuar o projeto com o antigo grupo gerou muitas inquietações e até mesmo um sentimento de fracasso. Temos ciência que o Serviço Social atua em práticas nas quais os sujeitos constroem e reconstroem suas formas de expressão, resistência, submissão, cultura, enfim, seus modos de subjetivação, tornando inviável dar um processo por acabado. As atividades com as famílias dos reeducandos por mais que se modifiquem diante da realidade acontecerão até mesmo porque uma das sugestões da Secretaria de Segurança é favorecer as relações familiares.
Para compreender o projeto "Pensando os modos de vida dos familiares dos reeducandos do PECA" è preciso levar em conta o cotidiano da família. O afastamento de um de seus membros (na maioria dos casos o homem) provoca importantes rearranjos nas relações sociais. Diante da prisão a família se vê em uma nova situação: Como, por exemplo, garantir a sobrevivência dos demais membros, lidar com os problemas de revolta dos filhos, preconceito da sociedade em relação à família de preso e às normas e imposições da própria prisão, visto que a família acaba sendo inserida no jogo de poder das práticas prisionais.
Frente a toda esta problemática percebemos que a família ou acaba depositando nas mãos do reeducando e da sociedade a solução para todos seus problemas, ou então as famílias passam a articular diversas atividades para enfrentar o afastamento do familiar preso, como manter os laços de parentesco e vizinhança estreitos, a fim de "ajudarem-se" mutuamente, ou desenvolverem alguma atividade que lhes proporcione alguma renda, sendo que a maioria das atividades exercidas no mercado de trabalho são empregos mal remunerados e que não exigem formação específica, ou até mesmo inserem-se em programas de auxílio à população de baixa renda.
Além de se adaptar a vida sem um de seus membros, a família tem que se adaptar às normas e regras do presídio: As visitas dos familiares são permitidas nas quartas-feiras e domingos das 14h às 16h, os que não são parentes de 1° grau podem realizar visitas na última quarta de cada mês mediante a apresentação de uma ficha corrida9 . Cada visitante ou familiar deve ter sua carteirinha de identificação10 para poder realizar a visita. Nas visitas as famílias levam erva-mate, gêneros alimentícios, cigarros e materiais de higiene, todos estes devem obedecer às normas da casa para que possam ser repassados aos presos, por exemplo, o xampu deve ser claro e estar contido em um recipiente transparente. Existem muitas normas para estes produtos, para os gêneros alimentícios e inclusive para as vestimentas dos visitantes, os quais não podem realizar a visita se não estiverem segundo as normas da casa.
Percebe-se neste sentido a prisão como forma de disciplina através do poder sobre o corpo não somente dos reeducandos como de seus familiares. Este poder também se faz presente nas visitas íntimas que são realizadas aos sábados. As mulheres que realizam esta visita devem conversar com o chefe da segurança e receberem orientação da Assistente Social sobre as doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e planejamento familiar. Também tinham que apresentar atestado médico comprovando estado saudável, porém esta norma foi abolida em julho de 2004. Considerávamos a obrigatoriedade do atestado médico uma norma hipócrita, pois este atestava o estado saudável naquele dia. Questionávamos sobre isto, pois podia-se adquirir alguma DST, após a saída do consultório ou até mesmo após a realização da visita íntima. Sabemos que as discussões sobre o assunto são importantes, porém discordamos da obrigatoriedade da orientação. Acreditamos que se possa realizar um trabalho de orientação que parta do interesse da população.
As mulheres e outros membros que realizam a visita aos apenados reclamam do tratamento dispensado por alguns agentes penitenciários, inferem que o tipo de tratamento recebido é o mesmo para animais, protestam dizendo que "não são bicho e merecem respeito". Para estas pessoas um tratamento adequado se traduz no respeito à sua condição de mães, esposas e irmãs de cidadãos, por mais que os mesmos estejam em conflito com a lei.
Para as crianças o dia da visita é ao mesmo tempo alegre e triste. Alegre, pois a família se reencontra com o membro apenado, conversa, as crianças brincam, muitos pais entregam presentes fabricados por eles no artesanato. E triste, pois neste cenário também se fazem presentes os cadeados, as grades, os arames que cercam o presídio, a constante vigilância e a certeza da ausência do familiar preso na volta para casa.
Percebe-se que existem inúmeras repercussões negativas em relação ao encarceramento. Dentre elas estão as conseqüências inevitáveis para as crianças, pois o sistema prisional exerce influência, não apenas no reeducando que é privado de liberdade, mas também em toda a família. Revela-se assim a intenção da prática de punir que é impedir a desordem e sua generalização para que os outros não pratiquem e nem tomem como exemplo o crime ou delito praticado. (FOUCAULT, 1975).
Para a prisão a família não deixa de ser um instrumento de dominação, isto se dá pelo fato histórico dela ter se tornado um dos principais eixos de intervenção devido a ser o primeiro, não o único, grupo responsável pela socialização, interiorizando aspectos ideológicos, projetando os modelos criados e recriados dentro de seu interior. Neste sentido a família acaba sendo generalizada como responsável pela formação de personalidades, fato que leva a instituição prisional a investir suas técnicas de normatização e poder para formatar os sujeitos.
As determinações históricas que tornaram a família objeto de intervenção se deram no início dos tempos modernos, nos século XVI e XVII, quando os moralistas passaram a preocupar-se com a formação reservada as crianças. Até por volta do século XII a família era uma realidade moral e social, não correspondia a nada além da instalação material do casal na aldeia, fazenda ou casa dos amos e senhores. (ARIÉS, 1981). Porém esses reformadores, esses moralistas lutavam contra o que eles consideravam "anarquia" da sociedade e ensinaram aos pais que eles eram responsáveis pela alma e pelo corpo de seus filhos. A família deixou de ser apenas uma instituição do direito privado para a transmissão dos bens e do nome, assumiu uma função moral e espiritual, passando a formar os corpos e as almas. O cuidado dispensado às crianças passou a inspirar sentimentos novos, exprimindo o sentimento moderno de família.
Com a família burguesa nascida em meados do século XVIII criaram-se novos padrões de relações, caracterizando-se pelo isolamento, privilegiando a privacidade a domesticidade e supervalorizando suas relações emocionais internas, formando indivíduos obedientes e autodisciplinados, tornando-se um agente de reprodução da ordem. Foucault (1979, p. 288) relata como se dá esta nova gestão da família:
Em outras palavras, até o advento da problemática da população a arte de governar só podia ser pensada, a partir do modelo da família, a partir da economia entendida como gestão da família. A partir do momento em que, ao contrário, a população aparece como absolutamente irredutível à família, esta passa para um plano secundário em relação à população, aparece como elemento interno à população, e, portanto não mais como modelo, mas como segmento.
Esta arte de governar11 pensada a partir da família fez com que ela ganhasse lugar de destaque na política social12 pois ela é, ao mesmo tempo, beneficiária e parceira. Beneficiária quando depende do Estado para garantir sua sobrevivência e parceira quando exerce apoio na utilização dos indivíduos. A prisão como o Estado quando exercem seu poder13 sobre as famílias buscam gerenciar a vida da população, controlar suas ações a fim de aumentar sua utilidade econômica e diminuir os inconvenientes e perigos políticos. A arte de gerenciar a vida da população ganha forma no PECA através das normas impostas aos apenados, suas famílias e todos os envolvidos no processo prisional, diminuindo assim a capacidade de resistência às ordens do poder.
CAPITULO II.
No capítulo anterior verificou-se o poder da prisão fora do estabelecimento, exercido sobre a família do preso, para compreendermos suas ramificações vamos analisá-lo no cotidiano dos reeducandos.
O Presídio Estadual de Cruz Alta como todos os estabelecimentos prisionais do Rio Grande do Sul é organizado através da Secretaria da Justiça, e da segurança e regido pela Lei de Execução Penal (LEP) de 1984, através da Superintendência de Serviços Penitenciários (SUSEPE). Pertence a 2ª região penitenciária que é composta por um presídio regional e dez presídios estaduais.
O presídio é composto por vinte e três celas, sendo dezoito masculinas, duas femininas, duas celas para o seguro14 e uma cela para a triagem15 . Possui duas cozinhas, um almoxarifado, uma secretaria, uma biblioteca, um refeitório, uma sala de aula e uma sala para a equipe técnica16 , nesta sala também são realizados os atendimentos médicos.
O PECA possui capacidade para noventa reeducandos, mas atualmente têm mais ou menos duzentos e vinte internos, totalizando cerca de sete reeducandos por cela. Cada cela possui 9m², beliches, a maioria de alvenaria, alguns de madeira, tem uma pia, uma privada17 e um chuveiro. Algumas celas possuem rádio e televisão, sendo os mesmos trazidos pelos internos.
O PECA é considerado de segurança mínima, pois quase não apresenta tentativas de fuga, o interesse da maioria dos reeducandos é cumprir sua pena pacificamente, sabendo que grande parte destes são pobres, desempregados ou trabalhadores do campo, não fugindo à regra dos presídios do Rio Grande do Sul, os quais apresentam um déficit de três mil vagas e são compostos em sua maioria por homens, jovens, adultos, com idade dos dezoito aos trinta e cinco anos, pertencentes à população de baixa renda, os quais cometeram em sua maioria crimes contra o patrimônio (assaltos e furtos). (SANTOS, 2002).
É importante analisarmos neste quadro as condições do encarceramento onde o preso é conduzido ao estreito limite de uma cela, dividida com pessoas até então desconhecidas, as quais ocupam cada espaço concedido. Talvez para nós, pessoas "livres", seja impossível imaginar dividir 9m², um banheiro e muitas vezes a cama (pois alguns têm que dormir no chão) com pessoas com hábitos e manias diferentes, levando em conta o fato de estarmos acostumados a conviver com semelhantes e excluir os diferentes.
Além de se acostumar com o pouco espaço os reeducandos experimentam outra situação espaço-temporal, passam a viver o tempo como se ele fosse a eternidade, onde cada momento é todo sempre, as menores dificuldades tornam-se as maiores. Outra situação experimentada é o isolamento do mundo exterior o qual torna-se um instrumento de reforma, pois suscita reflexão e remorso, garantindo sobre os apenados um poder que não pode ser abalado por nenhuma influência no qual a solidão é condição primeira da submissão total. (FOUCAULT, 1975).
Definindo um esquema cronológico do comportamento são impostos horários para a alimentação, para o pátio, para a aula... Assim conforme Foucault (1975, p. 129) "O tempo penetra o corpo e com ele todos os controles minuciosos do poder".
O trabalho penal, mesmo não sendo obrigatório se utiliza de artimanhas para sua indução e é definido junto com o isolamento como um agente da transformação. No presídio existem frentes de trabalho através do Protocolo de Ação Conjunta (PAC), o qual é um instrumento para possibilitar que as entidades públicas ou privadas ofereçam trabalho remunerando aos reeducandos. Os benefícios ao empresário são a isenção de todos os encargos sociais e custos menores na produção. Ao reeducando o benefício é a remissão de pena18 , a profissionalização e a possibilidade de obter uma renda mensal19 . No PECA existia um PAC com uma empresa de costura de bolas, porém não funcionou muito tempo devido ao desinteresse dos reeducandos porque a remuneração era muito baixa, além disto o presídio precisaria de um funcionário específico para acompanhar esta atividade, não sendo possível, o PAC de costura de bolas foi extinguido. Mas estava surgindo outro de recarga de extintores. Como o PAC, a alimentação e a limpeza do estabelecimento são considerados trabalho penal e realizados pelos reeducandos, os quais são escolhidos pela administração para determinada tarefa. Este "trabalho" é motivado através da remissão de pena, da ocupação do tempo, da aprendizagem de um ofício. A higiene das roupas e da cela é de responsabilidade de cada detento e parte da organização do grupo de cada cela, não sendo este considerado como trabalho penal.
Estas práticas de incentivo ao trabalho penal acabam reforçando o discurso deste como ressocializador, formatando o intelecto dos reeducandos os quais passam a reivindicar o trabalho prisional e declarar que a prisão não reeduca porque não oferece meios de conseguir trabalho como: Cursos profissionalizantes, convênios empregatícios com fábricas e prefeituras. É preciso desmistificar este discurso de trabalho como ressocializador, pois este concebe a criminalidade como um fenômeno tão reduzido que bastaria a profissionalização para resolvê-lo, como se todo crime tivesse por origem a falta de disciplina ou trabalho. O trabalho penal é a constituição de uma relação de poder, de um esquema de submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção. Foucault (1975, p. 203) nos alerta para a concepção de trabalho penal, sua utilidade não está no aprendizado deste ou daquele ofício, mas no aprendizado da própria virtude de trabalhar:
O trabalho penal deve ser concebido como sendo por si mesmo uma maquinaria que transforma o prisioneiro violento, agitado, irrefletido em uma peça que desempenha seu papel com perfeita regularidade. A prisão não é uma oficina; ela é, ela tem que ser em si mesmo uma máquina de que os detentos - operários são ao mesmo tempo as engrenagens e os produtos, ela os "ocupa".
A prisão torna-se uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis correndo o risco de constituir-se em uma oficina qualificadora de mão-de-obra, produzindo indivíduos mecanizados segundo as normas gerais de uma sociedade industrial, mas, porém impossibilitada de eliminar o desemprego, pois dificilmente através da profissionalização os reeducandos, ao sair da prisão, conseguirão emprego, pois carregam consigo o estigma de ex-presidiários, além de que o próprio mercado não absorve os trabalhadores existentes.
Outra imposição disfarçada na prisão é a educação. Por mais que em nossos dias seja de extrema importância que o indivíduo saiba ler, escrever, calcular, as pessoas devem ter garantido o direito de acesso, mas também de escolha, contudo, a prisão (como a sociedade) utiliza instrumentos de indução à educação. A freqüência nas aulas serve como remissão de pena20 . O ensino ministrado é somente o fundamental, gerando reclamações por parte dos apenados que desejam progredir nos estudos, contudo há também os que não se interessam em aprender, mas vão à aula somente pela remissão.
Ao longo do tempo percebemos o poder disciplinar da prisão na maneira de agir e andar dos reeducandos, os quais são obrigados a baixar a cabeça e cruzar os braços, enquanto transitam pelos corredores. Ainda hoje se utiliza o corpo dos condenados como objeto de poder e a disciplina como forma de dominação, sendo este o papel fundamental do administrador e dos agentes. Este poder exercido sobre o corpo não corresponde apenas uma punição corporal. É uma produção diferenciada, um ritual organizado para marcar os sujeitos e manifestar o poder que pune. (FOUCAULT, 1975).
Em muitos relatos de reincidentes esta marcação vem à tona quando falam que, muitas vezes, andando distraídos pela rua se pegam cabisbaixos e de braços cruzados, não sabendo andar de outra forma. A prisão combina as técnicas de vigiar e punir impondo o controle através de regras e leis estabelecidas com os sujeitos envolvidos no processo prisional.
O Serviço Social no presídio também é marcado pelo poder, atravessado por sua maquinaria, enquadrado em suas ordens, contudo busca desconstruir suas práticas e construir outras de modo a levar em conta a multiplicidade e a diferença.
No princípio do estágio a sala do Serviço Social se localizava dentro da galeria do regime fechado permitindo o livre acesso dos reeducandos à assistência social, facilitando o andamento das atividades. Com o passar do tempo, a sala foi transferida para fora da galeria alegando que o espaço físico e a segurança seriam melhores já que o PECA estava superlotado. Porém quando, segundo os agentes, a cadeia estava "agitada", não permitiam a transferência dos reeducandos para a sala do Serviço Social controlando desta forma os atendimentos individuais e os trabalhos em grupo.
Os atendimentos individuais subdividem-se em: pronto atendimento, acompanhamento e entrevistas para fornecer subsídios para classificação em regimes. O pronto atendimento é um momento de escuta que parte da vontade do reeducando de conversar sobre qualquer assunto, no entanto, a demanda mais solicitada é a situação jurídica, alguns procuram por documentação, outros falam sobre a família, sobre o cotidiano da vida carcerária, sobre suas angústias, anseios e projetos. Para os internos este espaço é muito importante. Em seus relatos ressaltam que muitos assuntos não podem conversar com os companheiros de cela, pois estes não entenderiam, gerando gozações ou situações adversas. Além do diálogo, outro ponto positivo é a oportunidade de sair da cela e ir para um ambiente diferente daquele em que se encontram todos os dias. Através deste espaço a assistente social, também, realiza encaminhamentos como, por exemplo, advogado e contato com a família.
Já as práticas de acompanhamento e as entrevistas para fornecer subsídios para classificação em regimes não partem da vontade dos reeducandos, são determinadas pela casa ou pela justiça e caracterizam-se em uma ação investigativa. O reeducando relata sua situação de vida e sua passagem pelo sistema carcerário, possibilitando ao profissional elaborar uma análise a seu respeito. Estas técnicas combinam o poder de vigiar e normalizar através da classificação dos indivíduos, fazendo a individualidade entrar num campo documentário, resultando em um arquivo com detalhes e minúcias, procedimento constituído como peça essencial nas engrenagens da disciplina. (FOUCAULT, 1975).
Este processo de avaliação para progressão de regime, sofreu e vem sofrendo transformações: No princípio a Comissão Técnica de Classificação (CTC)21 era a responsável pelas progressões. Na entrevista o Serviço Social e a Psicologia pontuavam a história-social do apenado, enquanto o administrador e o chefe da segurança pontuavam as questões referentes à situação laboral e ao comportamento do reeducando na prisão. Todos os reeducandos eram obrigados a realizar o exame para a progressão de regime.
Atualmente o Regimento Disciplinar Penitenciário, estabelece em conformidade com a LEP e alterações na lei nº 10792 de 2003, transformações no processo de exame: Deve ser emitido um documento que comprove o comportamento do apenado com a manifestação formal, sucinta e individual de pelo menos três dos seguintes servidores indicados pelo administrador: Membro do Conselho Disciplinar, Responsável pela Segurança e Disciplina, Responsável pela Atividade Laboral, Responsável pela Atividade de Ensino e Assistente Social. Desta forma o administrador poderá ou não escolher o Serviço Social para fornecer subsídios para a classificação. Se escolhido, deve manifestar-se de forma sucinta a fim de compor o relatório de conduta carcerária. Analisamos que estas transformações causaram mudança na escrita, nos sujeitos que compõe o processo e quanto a obrigatoriedade, pois com as modificações somente os reeducandos considerados pela justiça como "casos especiais" é que são obrigados a realizar o exame. Esta prática continua investigativa e classificatória.
Além destas práticas instituídas pelo sistema, o Serviço Social no PECA busca construir espaços que possibilitem aos reeducandos o diálogo, a revalorização do seu vocabulário e do seu saber espontâneo através dos trabalhos em grupo.
No grupo de acolhimento destinado aos reeducandos que estão chegando no estabelecimento prisional são discutidos assuntos referentes aos medos, anseios e questionamentos sobre o sistema carcerário. Já no grupo de preparação para a liberdade destinado aos reeducandos que estão em progressão de regime são realizadas dinâmicas a fim de discutir assuntos sugeridos por eles próprios e pela assistente social. As temáticas apresentadas pelos internos são a situação jurídica no sentido de que mesmo pagando sua pena saem da prisão com o estigma de ex-presidiários através da "ficha suja". A questão da qualificação e do trabalho prisional, a reincidência e a falta de oportunidades de melhorar de vida também são aspectos discutidos neste espaço.
No grupo de artesanato os reeducandos confeccionam trabalhos em madeira, couro, jornal, bordado em telas etc. A proposta do Serviço Social, além das instituídas pela casa, é criar espaços de discussão sobre a divisão social do trabalho e o lugar que se ocupa na sociedade em relação às atividades desenvolvidas. Porém o interesse da maioria dos reeducandos é a ocupação do tempo, a aprendizagem de uma habilidade, a remissão de pena pelo trabalho e a necessidade de provar para a sociedade que eles não são vagabundos, mas trabalhadores.
As visitas domiciliares possibilitam uma maior aproximação à realidade vivida pelos familiares dos apenados, além de garantir o contato com aqueles familiares que não vão até o presídio. Esta prática deve contribuir na politização das demandas apresentadas, articulando processos que permitam voltar-se não só às questões do delito e da pena, mas também para o conjunto de atravessamentos que constituem a prisão.
Analisando a prática do Serviço Social no PECA percebemos que a mesma busca não reproduzir o que é instituído22 pelas formas de controle da prisão. Para isso são formados grupos de discussão nos quais os reeducandos e seus familiares são convidados a enunciar e compreender seus problemas e necessidades. O profissional assistente social entra em contato direto com a realidade vivida por esses coletivos para juntos articularem processos que permitam o melhoramento de suas vidas. Porém também sabemos que dentro da ordem vigente na sociedade capitalista é impossível haver auto-gestão "pura" e muitas das práticas do Serviço Social acabam tendo que funcionar sob leis e normas estabelecidas e gestadas de cima para baixo, uniformizando e homogeneizando os modos de vida dos grupos populares.
Como o campo de intervenção pressupõe análise, buscamos não nos limitarmos em compreender unicamente o PECA, mas estudar o processo histórico de implantação da Instituição Prisão e de seus mecanismos de poder. Tendo em vista que historiar não é apenas a reconstrução do que já aconteceu e que está morto, definido, mas que a história consiste em localizar o que teve início no passado, mas que está vivo, presente e pode determinar ou já estar determinando o futuro. (BAREMBLITT, 1996).
Desta forma procuramos compreender a história da prisão através das pesquisas feitas por Michel Foucault nos anos setenta, quando ele escreveu um artigo sobre saber e poder, que mais tarde daria origem a um de seus livros mais difundidos "Vigiar e Punir". Ao mesmo tempo fundou o Grupo de Informações sobre as Prisões, como forma de intervenção específica sobre a realidade.
Em seus estudos, relata que, muito antes do aparecimento da prisão já existiam diversas formas de punição: a deportação, a humilhação, o trabalho forçado, a pena de Talião23 . Em meados do século XVIII a punição aplicada era denominada como suplício. O suplício consistia no desmembramento dos corpos humanos por cavalos, queima com fogo de enxofre, óleo fervente, piche em fogo, fogueiras, forca, coleiras de ferro onde homens, mulheres eram sacrificados em público para exibimento de poder. (FOUCAULT, 1975).
Segundo Foucault (1975, p. 32) o poder através do suplício é uma produção diferenciada de sofrimentos:
O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos um ritual organizado para a marcação das vítimas e manifestação do poder que pune; não é absolutamente a exasperação de uma justiça que esquecendo seus princípios perdesse todo o controle. Nos "excessos" dos suplícios se investe toda a economia de poder.
Esse tipo de punição acontecia porque se acreditava que o homem somente se tornaria obediente se tivesse seu corpo castigado, uma vez que sua alma seria objeto de Deus e este se encarregaria de julgá-la. No suplício o povo era chamado como espectador: era convocado para assistir às exposições, às confissões públicas, às forcas, os cadáveres dos supliciados muitas vezes, eram colocados em evidência, perto do local de seus crimes. As pessoas somente tinham que saber e ver com seus próprios olhos, porque era necessário que tivessem medo, mas também porque deviam ser testemunhas e garantias da punição e até certo ponto deviam tomar parte dela.
Assim o corpo dos condenados tornava-se um bem social útil à medida que servia como lição, como exemplo para os outros. Neste cenário o povo servia de testemunha e garantia da punição. Mas esta intervenção popular no suplício trouxe um problema político, pois o povo reivindicava e protestava, alguns condenados acabavam tornando-se heróis, santos, de memória venerada.
Com a máquina de enforcamento aperfeiçoada e adotada em 1783 objetivou-se evitar a lenta agonia dos suplícios. Em 1971 entra em cena o carrasco da guilhotina, todo o condenado teria a cabeça decepada fazendo com que a morte fosse igual para todos os condenados, um acontecimento visível, mas instantâneo, onde o contato físico era reduzido. Conforme Foucault (1975, p. 13) a punição vai se transformando deixando o campo da percepção visual para se utilizar de outras artimanhas:
A punição vai se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias conseqüências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens.
Metade do século XVIII filósofos, teóricos do Direito, juristas e magistrados protestam pelo movimento de reforma. Há necessidade de punir de outra forma, era preciso eliminar o confronto físico. Foucault (1975, p. 14) afirma que o castigo visaria outros objetivos:
O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, fará a distância, propriamente segundo regras rígidas e visando um objetivo bem mais elevado.
Este afrouxamento da penalidade deu-se concomitantemente à diminuição dos crimes de sangue e das agressões físicas, prevalecendo o roubo e os crimes de fraude, fato este desencadeado pelo desenvolvimento da produção, pelo aumento das riquezas, pela valorização da propriedade privada e pelo forte crescimento demográfico.
A reforma do direito criminal deve ser tida como uma estratégia para o remanejamento do poder de punir. A punição através da privação de liberdade surgiu no final do século XVIII e início do século XIX, tendo como finalidade tornar mais eficaz, regular e detalhado seus efeitos, diminuindo o custo econômico e político. Entretanto, o poder sobre o corpo não deixou de existir, apenas não se centralizou mais nos suplícios, mas nos castigos como racionamento alimentar, fossas onde eram colocados os prisioneiros, afastamento do convívio social, privação sexual e exposição à humilhação.
Esta passagem dos suplícios à prisão não é apenas a passagem de uma penalidade a outra diferente. É a passagem de uma arte de punir a outra não menos científica que a anterior, pois a partir da prisão criam-se diferentes sistemas de punição que conseguem tornar natural e legítimo o poder de punir, entre eles o tratamento humanitário criado pela forma de trabalho remunerado, que supriu os castigos corporais e sua funcionalidade.
Em 1946 surge um novo sistema prisional denominado progressivo, este dependia da boa conduta do preso, permitia três períodos no cumprimento de sua condenação. A partir deste surge outro, de preparação para a vida livre, através das prisões intermediárias, onde a vigilância era suave e se tinha trabalho externo no campo objetivando o preparo para o retorno à vida em sociedade. A utilidade do trabalho penal não está em preparar o indivíduo para o retorno à sociedade, nem num aprendizado de este ou daquele ofício, mas sim no aprendizado da própria virtude de trabalhar. O trabalho penal é a constituição de uma relação de poder, de um esquema de submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção. (FOUCAULT, 1975).
Estas mudanças ocasionaram transformação da denominação prisão para penitenciária, no sentido em que esta substituiu o sofrimento da dor física pela dor da alma, visando através desta a reconstrução do homem, um castigo que atenue profundamente sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. (FOUCAULT, 1975). A prisão tornou-se uma instituição punitiva com caráter ressocializador, no entanto, não conseguiu alcançar este propósito, pois sua força se perdeu através da punição.
Foucault (1975, p. 230) traduz o objetivo da prisão da seguinte maneira:
A prisão ao aparentemente "fracassar", não erra seu objetivo; ao contrário, ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade, que ela permite separar, por em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado, mas penetrável. Ela contribui para estabelecer uma ilegalidade visível, marcada, irredutível a um certo nível e secretamente útil – rebelde e dócil ao mesmo tempo; ela desenha, isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras, mas que permite deixar as que se quer ou deve tolerar.
Este atestado de que a prisão fracassa em reduzir os crimes deve ser substituído pela hipótese de que a prisão conseguiu produzir a criminalidade forma política e economicamente menos perigosa e até utilizável pelo fato de que é possível controlá-la, orientá-la para formas menos perigosas, tornando-a um agente para a ilegalidade dos grupos dominantes.
Percebemos, assim que a produção e as estratégias do poder ao longo da história utilizaram como instrumento os mais variados métodos de punição. É importante ressaltarmos que as técnicas utilizadas para o remanejamento do poder de punir servem para aprimorar e adestrar o corpo humano. Portanto, o que interessa realmente para o poder não é expulsar os homens do convívio social ou impedir que roubem ou matem, mas sim gerir suas vidas aproveitando suas potencialidades, diminuindo sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, para assim utilizá-los, pois a delinqüência controlada apresenta suas vantagens, é possível orientá-la para que seja um agente em beneficio dos grupos dominantes.
O poder que nos referimos não é algo que se detêm como uma coisa, uma propriedade, mas o que o define são suas formas heterogêneas e em transformação, manifestações e práticas de poder que gerenciam a vida não somente dos reeducandos do PECA e de seus familiares como também dos profissionais envolvidos no sistema prisional e todas as pessoas da sociedade em geral. Portanto não existe de um lado os que têm poder e de outro os sujeitados, não se trata de vitimizar os apenados e crucificar os agentes/administradores, mas analisar que todos, os envolvidos nas práticas prisionais, estão inseridos nesta maquinaria sem perceber suas técnicas, suas táticas, enfim, sua mecânica.
Neste trabalho nos propusemos a estudar o contexto do sistema prisional, analisando as diversas práticas de poder que atravessam o cotidiano do apenado, como aquelas que ultrapassam os muros do presídio e se fazem presentes na família do preso. Assim, buscamos compreender o que já estava instituído e o movimento do instituinte, porque como observamos tanto as práticas como as relações não são estáticas, estão sempre em movimento, se construindo e se desconstruindo ao longo da história, se manifestando nos discursos produzidos, nas regras estabelecidas, nas concepções das pessoas, nos seus modos de agir, andar e viver.
Propomos retomar alguns pontos que emergiram do processo de estágio, das experimentações e aprendizagens voltadas ao trabalho profissional e da própria análise sócio-histórica da instituição prisional bem como as implicações que o aprisionamento provoca, tanto no indivíduo apenado como em seus familiares.
A análise sócio-histórica da prisão faz-nos compreender as estratégias do poder, os instrumentos utilizados em seu remanejamento. Foi a partir dos séculos XVII e XVIII que as monarquias desenvolveram os grandes aparelhos de produtividade do poder – o exército, a polícia, os hospitais e os métodos de punição, isto é, instrumentos que permitiram e permitem até hoje fazer circular os efeitos do poder de forma contínua, ininterrupta e natural.
Na prisão o poder se manifesta através da disciplina, das regras, das limitações, proibições e obrigações. O corpo humano entra em uma espécie de máquina que modifica seus gestos, seu comportamento, fabricando indivíduos submissos. A transformação dos indivíduos na instituição punitiva adotou caráter ressocializador através do trabalho penal, da progressão de regime, do controle técnico e da educação penitenciária. Estes mecanismos servem para treinar os indivíduos, para gerir suas vidas, controlar suas ações para que assim seja possível utilizá-los, aproveitar suas potencialidades, torná-los força de trabalho, diminuindo sua capacidade de revolta e de resistência contra as ordens de poder.
Através do contato com a realidade familiar no PECA verificamos que estes mecanismos de poder são projetados para fora da prisão atingindo a família dos apenados, a qual é inserida nestas práticas, tornando-se também um instrumento completo de dominação, pois através dela é possível constituir um saber sobre a vida dos reeducandos, saber este utilizado para criar formas mais eficazes de intervenção. Além disto, a família tende a ser o primeiro, não o único, grupo responsável pela socialização e formação de personalidades já que esta, além de interiorizar aspectos ideológicos, projeta nos indivíduos e nos outros grupos os modelos criados e recriados pelos conceitos hegemônicos.
A família acaba sendo focalizada como geradora de sujeitos, elemento essencial para disciplinar e orientar as aspirações dos indivíduos e é devido a estes conceitos que a prisão investe todos os seus mecanismos de poder não só no corpo dos condenados como também nos seus familiares.
Todos sabemos que existem inúmeras repercussões negativas com o encarceramento, pois o sistema prisional exerce influência não apenas no reeducando que é privado de liberdade, mas também em toda a família. Contudo, é importante percebermos que, apesar de toda a problemática enfrentada com o aprisionamento, a família busca estratégias para se adaptar à nova situação, portanto estas transformações tanto em sua composição quanto em seu cotidiano não significam desestruturação, mas sim a organização de forma diferente segundo as suas necessidades. E que apesar de grande parte da população estar acostumada com as práticas de caridade e assistencialismo é possível oferecer uma intervenção diferenciada, pois analisando a realidade percebemos que a população demanda o que lhes é oferecido, se a oferta for caridade e filantropia é isto que a população vai desejar, porém se a proposta for diferente e de interesse da população esta passará a demandá-la.
Neste sentido é que buscamos através do projeto de intervenção "Pensando os Modos de Vida dos Familiares dos Reeducando do PECA" apresentar uma proposta diferenciada à população, fomentando junto à família do preso processos de auto-análise e auto-gestão, propiciando a esses coletivos enunciar, compreender seus problemas, suas necessidades e não que técnicos ou pessoas de fora digam-lhes quem são, o que necessitam ou o que devem pedir, conseguir ou fazer. A partir da discussão a comunidade passa a se articular, se organizar para produzir ou conseguir ela mesma, os recursos de que precisa para o melhoramento de sua vida. Observamos na avaliação do projeto feita pelos participantes, que estes acreditavam através da participação transformar suas vidas e também o sistema prisional. E percebíamos através das discussões, da troca de experiências, possíveis idéias para melhor administrar seus problemas. Idéias essas que partiram deles, não dos técnicos.
Ao analisarmos os entrecruzamentos do poder prisional percebemos que o Serviço Social também é marcado e enquadrado por suas regras e pode reproduzir o que é instituído ou então buscar desconstruir essas práticas levando em conta os modos de vida e subjetivação da população. Sabemos, porém, que não é fácil, pois a própria história do Serviço Social penitenciário teve inicialmente forte cunho assistencial frente à "ressocialização" do sujeito apenado, incorporando-se o caráter adaptador da instituição. Somente após sucessivas crises no sistema prisional que o Serviço Social passou a repensar suas estratégias de intervenção questionando como se desprender das ações de ajustamento social e da lógica de ressocialização em uma instituição com caráter punitivo.
Porém percebemos que com a LEP estas discussões se desarticularam já que esta determina que os profissionais do Serviço Social e Psicologia acompanhem os presos por intermédio de um programa individualizado, denominado tratamento penal, no qual as práticas combinam técnicas de normatização e classificação dos indivíduos. Um poder constituído como peça essencial na disciplina, formatando os indivíduos.
Não queremos aqui criticar esta lei, pois sabemos que apesar de alguns pontos negativos esta representa um avanço em termos de legislação quanto ao acesso aos direitos humanos e sociais do apenado, queremos sim, analisar o contexto histórico e institucional que se insere a trajetória do Serviço Social. Enfatizando que apesar de o sistema exigir a mera função de classificação, triagem, assistência e amparo ao preso e seus familiares, os profissionais assistentes sociais são capacitados para pesquisar, conhecer, analisar a realidade, elaborar e executar políticas sociais, planos, programas e projetos que levem em conta a multiplicidade e as diferenças da população.
Ao finalizarmos este trabalho, e não a discussão do tema, que consideramos inacabada e com possibilidades de ampliação de aprofundamento, gostaríamos de retomar o eixo principal a fim de tecermos mais considerações referentes a ele.
Entendemos que as análises relacionadas à produção de poder não o consideram como uma realidade que possua natureza, portanto, não existe algo unitário, um objeto, uma coisa ou pessoa que represente ou que seja o poder, o que existem são formas diferentes, em transformação, manifestações, práticas e relações de poder. O que significa dizer que não existe de um lado os que têm poder e de outro os oprimidos, portanto, mais uma vez queremos enfatizar que nosso trabalho não passa em vitimizar os apenados e seus familiares e condenar os agentes ou administradores, mas sim procuramos analisar as práticas de poder que se cruzam, que atravessam todos os que estão inseridos de uma forma ou de outra no sistema prisional, inclusive o Serviço Social.
O poder possui uma eficácia, uma estratégia que não o caracteriza como repressor, mas sim como gerenciador da vida humana, isto explica o fato de seu alvo ser o corpo humano, não para supliciá-lo, ou mutilá-lo, mas para adestrá-lo, aproveitando suas potencialidades, suas capacidades, a fim de tornar os homens força de trabalho e diminuir sua capacidade de revolta, de resistência, de luta contra a ordem do poder. O poder é como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social produzindo discurso, induzindo ao prazer. Portanto, todos nós, de uma forma ou de outra, em nossas práticas o exercemos, efetuamos ou fazemos com que ele funcione e muitas vezes sem perceber suas técnicas.
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Fernanda Bortolini Klein
asmaribortoli[arroba]yahoo.com.br
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