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Contudo, 100% dos homens entrevistados, mesmo tendo sido levados às reuniões pela via judicial, manifestaram ter encontrado em Alcoólicos Anônimos - A.A. condições de superação do alcoolismo; afirmaram ter encontrado nesses grupos uma segunda família ou uma "religião" (sic), capaz de lhes dar o suporte necessário para que pudessem encontrar forças de se manterem em abstinência ou o consumo sob controle. Comprovou-se assim que os homens que aderiam ao programa de Alcoólicos Anônimos - A.A. haviam conseguido se fortalecer enquanto sujeitos capazes de superar a dependência do álcool e outras drogas. Fato relevante para a análise deste dado, e que precisa ser levado em consideração, é que, como já afirmado, foram entrevistados apenas os homens que efetivamente haviam cumprido a determinação judicial de freqüência ao A.A., ou aqueles que estavam freqüentando a instituição há mais de três meses. Durante este estudo verificou-se que 56% dos homens encaminhados por via judicial ao Alcoólicos Anônimos - A.A. não cumpriam esta determinação.
Através de declarações, tanto dos homens como das mulheres acompanhadas no NUPS, verificamos que havia ocorrido melhoria em suas relações conflituosas a partir da freqüência do agressor ao Alcoólicos Anônimos -A.A., no entanto, não se pode afirmar de maneira aligeirada, a partir desta constatação, que a violência teria como causa o uso excessivo de álcool. O que se pode avaliar, é que estes homens ao ingressarem ao A.A. encontraram forças para superar o alcoolismo e assim, conseguiram reencontrar certo equilíbrio emocional. Sem o álcool, atuando como desinibidor de suas emoções e diminuindo-lhes o senso crítico, estes homens reassumem o controle de seus atos, o que acaba por refletir, conseqüentemente, em suas relações interpessoais.
Contudo, se o encaminhamento ao Alcoólicos Anônimos - A.A. se revelou um caminho válido para minimizar os conflitos estabelecidos entre homens e mulheres, seria precipitado afirmar que esta seja uma medida eficaz na superação da violência contra a mulher quando tomada isoladamente.
O A.A., por toda sua trajetória de luta, tem se mostrado um mecanismo eficaz na recuperação do alcoolismo, entretanto, constatou-se que este não é um espaço onde os agressores têm encontrado condições para a superação das relações conflituosas estabelecidas com suas vítimas. A violência contra a mulher tem sido naturalizada e reproduzida na sociedade ao longo da história da humanidade. Acreditar que esta possa ser superada através de medidas isoladas seria demasiado precipitado.
A desnaturalização da violência contra a mulher exige que se tome, em especial, o caminho da educação, e é nesta perspectiva que o governo federal elaborou seu Plano Nacional de Segurança Pública.
Este plano, segundo o Diário Legislativo - DLG[1]tem como eixo a integração da segurança pública com políticas sociais e é destinado à prevenção, controle e repressão da criminalidade, atuando em suas raízes socioculturais, articulando ações de segurança pública e das políticas sociais.
Dentre outros objetivos, o programa determina a promoção dos direitos humanos; a criação e fortalecimento de redes sociais e comunitárias; promoção da segurança e da convivência pacífica; modernização das instituições de segurança pública e do sistema prisional; valorização dos profissionais de segurança pública e dos agentes penitenciários. (DLG, 2007)
Em consonância com o Plano Nacional de Segurança Pública, a Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP e o Governo do Estado de Mato Grosso, através da Secretaria de Justiça e Segurança Pública - SEJUSP, celebraram convênio com a Universidade Federal de Mato Grosso para realizar curso de especialização em Políticas de Segurança Pública e Direitos Humanos, coordenado pelo Núcleo Interinstitucional de Estudos da Violência e Cidadania -NIEVCi. Durante seis meses, este curso provocou discussões sobre as políticas de segurança pública adotadas no Brasil, e sobre como estas podem e devem estar em conformidade com a perspectiva dos direitos humanos. Com amplo conteúdo, seu cronograma contemplou temas como o ofício de polícia, as políticas públicas, a justiça, a ética, o conflito, o poder, a violência e suas mais diversas formas de expressões, como a violência motivada pelas diferenças, sejam estas fundamentadas na orientação sexual, na classe social, na raça/etnia ou no gênero, entre outros temas de grande relevância.
O principal objetivo deste curso foi incentivar a produção de estudos na área de segurança pública que contribuam para a efetivação do Sistema Único de Segurança Público (SUSP) e a qualificação dos profissionais desta área, numa tentativa de mudar seu perfil, transformando-o em agente multiplicador de um novo modo de se fazer segurança pública, tornando-o profissional compromissado com a cidadania, os Direitos Humanos e a paz social. Além destes profissionais - Polícia Militar, Polícia Judiciária Civil, Corpo de Bombeiros, Perícia Oficial e Identificação Técnica (POLITEC) e Guarda Municipal - o curso foi oferecido para a sociedade em geral, contemplando profissionais de áreas afins e que fossem potenciais multiplicadores dessa nova mentalidade em segurança pública.
A partir de minha inserção neste curso de especialização me reaproximei do tema: Violência Masculina contra a Mulher e optei por dar continuidade na discussão sobre a vinculação do álcool como determinante da violência masculina contra a mulher, me atentando à questão da compreensão e atuação do Judiciário na condução do processo e julgamento do agressor, após a promulgação da Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha.
Acredito ser imprescindível entender o nexo causal existente entre o álcool e a violência masculina contra a mulher, se é que há nexo entre estes dois fenômenos sociais, pois a tendência histórica de vinculá-los pode estar se constituindo num entrave para a efetivação de uma política pública eficaz na superação da violência contra a mulher.
Parto da premissa de que uma possível vinculação do álcool stricto senso como determinante da violência masculina contra a mulher, pode restringir a compreensão e a atuação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na condução do processo e julgamento do agressor, o que conseqüentemente desencadeará em violação dos direitos humanos destes homens que, tendo sido educados numa sociedade patriarcal e machista, não encontram nos espaços públicos formas de superação tanto do alcoolismo quanto do machismo arraigado em nossa sociedade. E também da mulher, pois esta perspectiva contribui para a perpetuação de medidas paliativas, pontuais e fragmentadas no enfrentamento da violência contra a mulher.
Estabeleço a hipótese que a inexistência de políticas públicas para a reabilitação do agressor tem restringido a atuação das Varas Especializadas em Violência Familiar e Doméstica Contra a Mulher, portanto, é preciso que se busquem novas alternativas que contribuam efetivamente na recuperação daqueles que não conseguem se adequar ao programa desenvolvido pelo Alcoólicos Anônimos - A.A., que se efetivem novos espaços institucionais que atendam ao principal objetivo do encaminhamento - seja este imposto, como quando estava sob a égide dos Juizados Especiais Criminais, ou não impositivos, como tem sido após a Lei 11.340/06.
O que se pretende com este estudo é apontar que, quando se vincula álcool e a violência masculina contra a mulher se está produzindo duas vítimas: homens e mulheres. Daí o tema deste estudo: "O álcool e a violência masculina contra a mulher: procuram-se as vítimas".
Para que possa confirmar ou não esta afirmação é necessária a realização de uma pesquisa cuidadosa, que tenha como objetivo central dar respostas aos questionamentos levantados a partir da realidade, produzindo novos conhecimentos acerca desta.
Assim, parto do conceito de Minayo[2]para a qual, pesquisa "é uma atividade básica da ciência na sua indagação e construção da realidade. É a pesquisa que alimenta a atividade de ensino e a atualiza frente à realidade do mundo. Portanto, embora seja uma prática teórica, a pesquisa vincula pensamento e ação" (2001: pg. 17).
No entanto, para que o conhecimento produzido tenha caráter científico é indispensável que se adote uma metodologia criteriosa, entendendo-se esta, por meio da definição de Minayo, que a compreende como um conjunto de técnicas, que dispõe de "um instrumental claro, coerente, elaborado, capaz de encaminhar os impasses teóricos para o desafio da prática", ou seja, como "o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem". (2001: p. 16).
Assim, para dar embasamento as reflexões, foi elaborado um questionário, respondido por profissionais do judiciário – assistentes sociais, psicólogas e juízas - que atuam diretamente no atendimento aos sujeitos envolvidos na cena da violência doméstica e familiar contra a mulher na comarca de Cuiabá. Tal procedimento buscou identificar se estas profissionais vinculam o uso de álcool à violência contra a mulher, sendo assim como tal vinculação rebate na condução do processo e no julgamento e posterior encaminhamento do agressor.
Estabeleço a hipótese de que embora já exista certa compreensão de que o álcool aja como um predisponente e potencializador da violência masculina contra a mulher e não como seu determinante, esse entendimento não vai além do discurso, pois na prática, continuam sendo dados os mesmos encaminhamentos para enfrentamento desse problema e que a inexistência de política para reabilitação do agressor no município de Cuiabá/MT tem restringido a atuação das 1ª e 2ª Varas Especializadas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Além de verificar qual é a compreensão dos profissionais que atuam nas 1ª e 2ª Varas Especializadas em Violência Familiar e Doméstica Contra a Mulher, sobre a relação existente entre álcool e violência masculina contra a mulher, este estudo tem também como objetivos conhecer os encaminhamentos dados aos agressores destas Varas Especializadas; averiguar o entendimento que tais profissionais têm sobre a eficiência e eficácia dos encaminhamentos dados aos agressores; refletir acerca da definição contida no artigo 35 da Lei 11.340/2006 no que concerne aos mecanismos existentes para reabilitação do agressor no município de Cuiabá/MT e refletir sobre o artigo 30, que estabelece como uma das competências da equipe multidisciplinar o desenvolvimento de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltadas tanto para a ofendida e seus familiares, como para o agressor.
Acredito ser este um estudo importante, pois se a Lei 11.340/06 avança ao reconhecer à necessidade de se voltar às ações no enfrentamento à violência masculina contra a mulher para a reabilitação e educação do agressor, este reconhecimento em si não se basta. É necessário refletir sobre quais medidas estão sendo efetivamente implementadas e executadas neste município neste sentido.
O principal entrave para a realização desta pesquisa foi a dificuldade de acesso ao conjunto de profissionais – sujeitos da pesquisa - seja em razão da atual conjuntura vivenciada no Judiciário mato-grossense[3]seja em razão da relação hierarquizada e de poder assumida pelos operadores de direito; o que dificulta – quando não impossibilita – o acesso de profissionais de outras áreas de conhecimento a juizes e juizas[4]
Inicialmente pretendia entrevistar apenas as profissionais que estavam atuando nas 1° e 2° Varas Especializadas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da comarca de Cuiabá, porém, para viabilizar esta pesquisa diante das já referidas dificuldades, optei por procurar as profissionais que em outro momento tivessem atuado nas varas de Cuiabá e Várzea Grande e que assim, tivessem alguma experiência acumulada.
Como resultado consegui acesso a três assistentes sociais, duas psicólogas e uma juíza. Acredito que embora reduzido o número de profissionais pesquisadas, os dados obtidos através destas sejam suficientes e relevantes para o desenvolvimento deste estudo.
No primeiro capítulo procuro fazer uma reflexão sobe a violência e suas imbricações, para isso percorro autores, como: Arendt; Michaud; Dadoun; Lima, dentre outros - que trazem, cada um, sua contribuição no entendimento deste fenômeno tão complexo. Partindo da premissa de que a violência precisa ser entendida como um fenômeno multifacetado, que possui vários determinantes e múltiplas expressões, trago ainda neste capítulo, considerações sobre a violência contra a mulher, uma das expressões do fenômeno da violência que tem se perpetuado como natural ao longo da história.
No segundo capítulo, por considerar que não se pode encontrar meios de enfrentamento à questão da violência contra a mulher sem se considerar as questões que envolvem os Direitos Humanos dos atores envolvidos, faço o questionamento: DIREITOS HUMANOS: DE QUE SE TRATA? Quem é a pessoa humana portadora de direitos humanos?
Por fim, no terceiro capítulo procuro visualizar a possível existência de nexo causal entre alcoolismo e violência. Afinal, uma visão limitadora que leve ao entendimento do alcoolismo como causa da violência contra a mulher pode restringir a atuação / intervenção dos/das profissionais que atuam no enfrentamento desta questão. Ainda neste capítulo, com base nos depoimentos coletados, faço uma reflexão sobre o saber / fazer profissional das assistentes sociais, psicólogas e juízas que atuam nas 1ª e 2ª Varas Especializadas da Violência Contra a Mulher, para entender como estas compreendem o vínculo entre o álcool e a violência contra a mulher e como atuam neste importante espaço de luta para enfrentamento e superação da violência sofrida pelas mulheres e que se concretizou com a promulgação da Lei Maria da Penha.
CAPÍTULO 1
A violência tem sido fato constante na vida cotidiana de cidadãos e cidadãs, não só brasileiros/as, mas de todo o mundo. Estudos realizados pelo IBGE mostram que nos últimos vinte anos, das quase duas milhões de mortes por causas violentas, dentre elas: homicídios, suicídios, acidentes e outras causas não naturais, seiscentos mil foram resultantes de homicídios.
A Síntese de Indicadores Sociais (2003) constatou que o número de mortes por homicídios aumentou 130% desde a década de 80. Na década de 90, o número de mortes por armas de fogo aumentou em 95% entre os homens de 15 a 24 anos, grupo mais afetado pela violência. Em 1980, o total de homicídios no Brasil foi de 13.910, passou para 31.989 em 1990 e chegou em 45.343 em 2000. Segundo Raymundi e Kavaguti (2003) no Estado de São Paulo a violência aumentou em 51% - 233,95 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes.
Esta violência tem ganhado visibilidade na mídia em geral de forma banal e encarada com naturalidade, tal a freqüência com que estampam as manchetes. Todos os meios de comunicação, mas em especial, a televisão, pois esta atinge a quase 100% dos lares, noticiam fatos violentos com sensacionalismo, com o único intuito de aumentar a audiência.
A violência é transformada assim em uma mercadoria que propicia grandes lucros. E mais ainda, tem a função de moldar mentes, impor pensamentos e conformar comportamentos de acordo com os interesses da classe dominante, que é quem detém os meios de comunicação.
Em seu artigo "Violência, faces e máscaras" CUNHA (2001) ao citar Kahn[5]afirma que "existe uma superexploração dos crimes violentos contra a pessoa, como chacinas, homicídios e seqüestros". Esta superexposição estaria influenciando na relação das pessoas, de todas as camadas sociais, e estimulando mais ações violentas.
Este contexto tem suscitado questionamentos sobre as origens dessa violência e sobre como combatê-la. Juízes, advogados, políticos e a população em geral se dividem em seus posicionamentos: para uns a violência só pode ser combatida através de uma "tolerância zero", partindo do princípio que os altos índices de criminalidade está intrinsecamente relacionado à falta de punição.
No entanto, há que se perguntar: "tolerância zero" diante de que? Para quem? Para Wunderlich[6](2005), quando um conflito chega à justiça, este deve ser solucionado sem que se perca de vista as garantias e direitos previstos na Constituição, sejam os direitos das vítimas ou dos/as autores/as dos fatos. Não é possível que em nome de uma "tolerância zero", se coloque a "defesa social" acima dos direitos e garantias individuais.
Para outros, estes índices têm origem mais complexas. Teria forte vínculo com o nível de desigualdade social, ou seja, um país como o Brasil que detém o título de campeão mundial da desigualdade social, conferido pelo Banco Mundial, que divulgou estudo em 1995, informando que, os 20% mais ricos concentram 32 vezes mais renda do que os 20% mais pobres, cria um terreno propício para o aumento dos índices de violência.
A violência, para Shecaira[7]não pode ser tratada como um caso de polícia. Com uma política repressiva o Estado acaba gerando mais violência. Uma ação violenta geraria conseqüentemente, uma reação violenta.
A violência é um complexo fenômeno social que tem sido estudado por filósofos, sociólogos e pesquisadores da área das ciências humanas ao longo dos tempos e que precisa ser entendido em todas as suas imbricações.
Para refletir sobre este fenômeno podemos nos apropriar da definição dada por Michaud[8]
Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais (1989, p. 11).
A violência tem sido muitas vezes encarada como um fenômeno inerente ao ser humano, como algo natural. Dentro desta ótica de análise, pode-se recorrer a Thomas Hobbes, para o qual, o homem é governado por suas paixões e tem o direito de conquistar tudo o que deseja. Sendo naturalmente egoísta, o homem possui um desejo irrequieto de poder. Como todos os homens têm este mesmo direito e desejo de poder, vivem em um estado de guerra onde a violência se generaliza.
Para poder sobreviver, por puro instinto de conservação da própria vida, o homem busca viver em sociedade, buscando a paz por meio de um contrato social tácito, através do qual elegem um soberano portador de uma autoridade inquestionável, para que este possa assegurar a paz interna e a defesa comum.
Tendo este conceito como referencial, podemos considerar que a violência hoje estabelecida na sociedade trata-se de uma quebra deste contrato, de uma confirmação do estado de natureza antevisto por Thomas Hobbes. Quando o soberano – o Estado – quebra este contrato não cumprindo seu papel protetor, o homem volta ao seu estado natural, que é essencialmente violento.
No entanto, esta conclusão seria muito reducionista, pois, não se pode creditar à natureza humana toda a responsabilidade pela violência. Se o homem fosse, em essência, violento, como explicar que uns são menos violentos que outros, e ainda, como explicar que alguns nos pareçam, por sua docilidade, "naturalmente bons?".
Para Jean-Jacques Rousseau, ao contrário de Hobbes, a natureza do homem não é violenta. A violência seria conseqüência da vida em sociedade, que promove a competição entre os homens, os conduzindo ao conflito. O homem em seu estado de natureza não tinha consciência do "teu" e do "meu", tudo era de todos. Assim sendo, o egoísmo, a vaidade e a ambição eram sentimentos inexistentes.
É só a partir da propriedade privada que o homem desenvolve em si o egoísmo e a ambição, o desejo de ser e ter mais que outros. Quando é criada a propriedade privada os mais fortes passam a dominar os mais fracos, uns passam a trabalhar para outros, desencadeando uma estrutura marcada pela escravidão e pela miséria, onde uns vivem sob o poder de outros.
O Estado, na perspectiva de Rousseau, ao invés de promover a paz como deseja Hobbes, acaba por ameaçá-la, pois promove as desigualdades, privilegia a diferença entre ricos e pobres, poderosos e fracos, entre outros.
Partindo desta perspectiva o homem seria essencialmente bom e a violência fruto do meio, desencadeada pela desigualdade. Porém, ainda seria muito simplista afirmar que a desigualdade é a causa da violência, pois verificamos que mesmo nas classes abastadas, a violência se manifesta movida pela ambição desenfreada, pelo desejo de poder, por mágoas reprimidas, pela paixão, pelo uso desenfreado de substancias psicoativas, por doenças mentais, entre outros fatores.
Roger Dadoun[9](1998) analisa a violência pelo mesmo viés da naturalização. Em sua concepção o "homo violens" é fruto da violência presente desde sua gênese. Para esse autor, o homem é "fundamentalmente, primordialmente, um ser de violência, homo violens" (1998, p.101). Sendo a própria história da humanidade marcada pela violência expressa em extermínios, genocídios, terrorismo, entre outros.
De acordo com este autor violência é reação a uma ação violenta. Assim, a violência é uma reação a outra que a antecedente, como o domínio político, exploração econômica, opressão social e a primeira violência vivida pelo ser humano seria seu próprio nascimento - quando o indivíduo é expulso do meio intra-uterino, quente e protetor, para o meio exterior, que lhe é estranho, e cheio de necessidades - ao que ele chama de violência ontológica.
Ao homem, criado à imagem e semelhança de Deus, é dado a ordem de dominar e subjugar os peixes domar, as aves do céu. A única ocasião em que a violência parece esquivar-se é no descanso sabático. A não-violência associa-se, pois, à interrupção ou suspensão de toda atividade (REGO, 2004).
Dadoun (1998) refere-se à violência como motora de toda a atividade, deste modo, sua ausência culminaria na inércia, partindo da definição do termo violência defendido por Michaud:
O termo violência vem do latim violentia que deriva da raiz vis, significando força, vigor, potência, emprego da força física. Mais profundamente, a palavra vis significa a força em ação, o recurso de um corpo para exercer sua força e, portanto a potência, o valor, a força vital (MICHAUD, 1989, p. 8, apud REGO).
No entanto é preciso distinguir violência de agressividade, embora essas duas categorias sejam comumente utilizadas como sinônimos. O que movimentaria o homem não seria a violência, pois como define Costa (1986:30), "violência é o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos", mesmo quando manifesta de forma irracional. Portanto, violência não pode ser confundida como força vital. Esta estaria muito mais imbricada na agressividade, que não implica necessariamente num desejo de destruir, trata-se de uma questão de necessidade, tem caráter instintivo, é o que impulsiona o homem à ação, a enfrentar as intempéries da vida, pode ser força criadora dependendo do desejo. Segundo Ana Lila Lejarraga[10]a "[...] agressividade, [...] é quase um equivalente da atividade ou da motilidade da força vital" (2007, p. 95).
Durante o III Congresso Brasileiro de Saúde, Cultura de Paz e Não Violência o professor Jean Marie Muller[11]afirma que:
A agressividade é um esforço de afirmação de si mesmo, de seu direito como pessoa e como cidadão e do senso de justiça. Ela implica no reconhecimento de conflitos, na coragem de confrontar idéias, de reivindicar direitos e de construir justiça, não se resignando à escravidão ou à injustiça. A agressividade é, por isso, uma força positiva. Mas a violência é a perversão da agressividade (MULLER; 2006).
Ainda tecendo considerações sobre o fenômeno da violência, me reporto a LIMA[12]que aceita a tese de que a violência nasceu ao mesmo tempo que o homem, e não com o homem.
Violência, para este autor, "é um sentimento que o homem, o ser humano, traz consigo. Algo congênito, como a capacidade de amar e odiar" (1999, p.15). Ao agredir outra pessoa o homem o faz conscientemente, pois tem o desejo de agredir e até, de certa forma premedita a forma como irá praticar esta agressão.
Tomando como base estas premissas, o homem não poderia alegar ter agido por instinto, já que é um ser racional, o que pressupõe a capacidade e o direito de fazer escolhas.
Ainda nas considerações de LIMA (1999), "toda luta é violenta e é da violência que se vale o homem para manter o poder ou o que talvez julgue ser o seu direito de domínio" (1999, p. 17). Assim, a violência tem por finalidade manter o poder daqueles que dele se julgam detentores.
Ainda, segundo este autor, em todo o mundo se presencia uma violência social- que atinge a todo um grupo social – e que independe do regime ou sistema econômico adotado; haja vista, que também ocorreu ou ocorre em países que intencionam alcançar o sistema comunista, idealizado por Marx.
Em nome da manutenção do poder econômico e do poder político, as elites se utilizam da violência para manter seu status quo, para evitar que sejam atingidas "pelas mazelas que vão sendo criadas do longo processo de produção e de apropriação de riquezas".(1999, p. 40).
Essa violência social é caracterizada particularmente pelo maior ou menor número de oportunidades oferecidas à população e pelo grau de democratização dessas oportunidades. Se são muitas as oportunidades e o acesso a elas é possível para todos os grupos sociais, então não se pode falar em violência. Todavia, se os governos e as elites econômicas deixam de criar oportunidades e quando as criam selecionam os que a elas têm acesso, dificultando por todos os meios esse acesso aos grupos mais pobres, ou os discriminando pela raça ou nacionalidade, então a violência se torna uma realidade (LIMA. 1999, p.39).
Lima faz ainda uma distinção entre poder e violência e sobre o papel desta diante da manutenção e legitimação do poder. A violência, segundo sua concepção, teria a capacidade de manter o poder por algum tempo, ou mesmo de destruí-lo, mas seria incapaz de o legitimar.
É sabido que o poder não precisa de nada que o justifique; precisa, no entanto de medidas que legitimem. O poder, ao valer-se da violência para se manter, perde sua legitimidade e deixa de ser apenas poder, para ser também um instrumento da violência. Em todo poder existe, em maior ou menor quantidade, sementes de violência. Por isso, falar de poder não-violento é uma ilusão. (1999, p. 24)
Este pensamento vai ao encontro do entendimento de Arendt (1994), que a partir da filosofia política, elabora seu referencial teórico sobre violência, distanciando-se do viés natural. Para esta autora, a violência possui um caráter instrumental que a diferencia do poder. Coloca essas duas categorias em posições opostas.
Para definir violência a autora distingue os conceitos de poder, força, vigor e autoridade e da própria violência, que para ela, são conceitos distintos. Em sua concepção, poder "corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto" (ARENDT, 1994, p.36), ou seja, o poder surge quando os indivíduos agem em conjunto.
O poder exige consenso, na medida em que alguém só tem poder sobre "mim" a partir do "meu" consentimento. O poder do Estado só é legítimo a partir do consentimento do povo.
O vigor "designa algo no singular, uma entidade individual" (1994, p.37), o conceito de força não pode ser confundido com poder ou vigor, "deveria indicar a energia liberada por movimento físicos ou sociais" (idem, p.37), conceitua autoridade como "reconhecimento inquestionável" (idem, p.37), que tem relação com a obediência e só é destruído pelo desprezo.
Arendt (1994) defende que nem violência nem o poder são processos naturais. Poder e violência mais que diferentes, são opostos. A violência só aparece quando o poder está em eminência de ser perdido, surge então como último instrumento na tentativa de sua manutenção, a violência seria uma re-ação à impotência, porém ao invés de criar o poder, acaba por destruí-lo.
[...] nas relações internacionais, tanto quanto nos assuntos domésticos, a violência aparece como último recurso para conservar intacto a estrutura de poder contra contestadores individuais – o inimigo externo, o criminoso nativo – de fato é como se a violência fosse o pré-requisito do poder, e o poder nada mais do que uma fachada [...] (ARENDT, 1994. p.38)
Nos dias de hoje, em que vivemos sob a ótica do neoliberalismo, verifica-se um afastamento do Estado de suas responsabilidades quanto à proteção social que é delegada ao setor privado e repassada como benefícios à população. A partir desta constatação, pode-se concluir que o estado de violência atual reflete o pensamento de Arendt. Seria então, a partir deste prisma, uma reação daqueles que já não conseguem suprir suas necessidades básicas nem físicas, como a alimentação, a moradia, etc., nem a espiritual, pois sendo as almas embevecidas pela ânsia do consumir, onde a mídia nos martela, todos os dias, que para "ser" feliz precisamos "ter", criando necessidades novas a cada instante, num momento de nossa história, onde nossos sucessos e fracassos são meros resultados de nossos esforços, aqueles que não conseguem "ser" nem "ter" reagem com violência.
E o que é pior, a sociedade cria certas necessidades e vontades na cabeça dos seus integrantes, resultado de um sistema equivocado. E as pessoas movidas por estas falsas vontades, lutam pela conquista de bens colocados, pela sociedade, como necessários a uma vida digna (PONTAROLLI, 2004).
Em parte estas considerações explicam porque mesmo pessoas das classes médias e altas se envolvem em atos violentos - as necessidades criadas pelo consumismo exagerado fazem com que achemos nunca ter o suficiente, sempre nos parece que o outro tem mais, ou melhor, seja em relação a bens concretos – dinheiro, carro, casa, entre outros ou em relação aos bens subjetivos – amor, amizade, sucesso, poder, etc. Porém, por si só não explicam a violência em sua totalidade, pois, outros fatores estão imbricados no fenômeno da violência, entre eles, os problemas decorrentes dos aspectos biológicos.
O primeiro a desenvolver uma teoria em torno da violência e seus aspectos biológicos, segundo Dráuzio Varella[13]foi o anatomista Franz J. Gall[14]no século XVIII. Em resumo, sua teoria afirmava que características humanas, inclusive o comportamento anti-social, seriam reguladas por regiões específicas do cérebro.
Para Franz J. Gall, as pessoas com tendências criminosas poderiam ser identificadas por suas características físicas, pois os centros cerebrais exerciam pressão contra os ossos da cabeça, deixando neles saliências que poderiam ser vistas ou palpadas
Outro a vincular a violência aos aspectos físicos, foi Cesare Lombroso[15]um italiano especialista em antropologia criminal. Para Lombroso os tipos humanos com testa achatada e assimetria nos ossos da face, por exemplo, seriam criminosos potenciais.
Classificações como estas, serviram de fundamento para a discriminação, especialmente em tribunais de justiça, que viam pessoas com estas características com desconfiança.
A partir de 1970, pesquisas científicas passam a investigar os aspectos biológicos da violência, no entanto, agora desvinculando o comportamento violento da herança hereditária, considerando-o como resultado de interações sutis entre os genes, as condições ambientais e as experiências vividas.
Dráuzio Varella em seu artigo, "Violência: Raízes orgânicas e sociais da violência urbana, divulgado na revista Science"[16], faz uma discussão sobre a bioquímica e os fatores sociais envolvidos na violência. Nesta pesquisa traça o papel do álcool na violência através de experiência desenvolvida com ratos.
Esta experiência mostrou que o rato alcoolizado passa a agir com maior violência, mudando seu comportamento natural, revelando assim, a existência de mediadores químicos envolvidos nos mecanismos que conduzem a agressividade, entre eles a serotonina[17]Têm sido encontrados desarranjos no sistema de produção e metabolismo da serotonina em pacientes psiquiátricos, homens impulsivos e violentos e suicidas.
Estas e outras pesquisas científicas vêm demonstrar existir claro vínculo entre o aspecto biológico e a agressividade, no entanto, este não pode ser um fator olhado isoladamente, como único responsável pela violência, como um fatalismo biológico. É preciso considerar que outros fatores vão influenciar o indivíduo durante sua vida além dos aspectos biológicos.
A violência é considerada um problema de saúde pública[18]e freqüentemente o álcool vem sendo apontado pela mídia como responsável pelos elevados índices desta violência, em especial da violência intra-familiar, e sem dúvidas, da violência no transito. Esta tese tem sido aceita/incorporada por diversos segmentos da sociedade, inclusive pelos operadores de direito, sejam eles/as, conciliadores/as, advogados/as ou juizes/as.
Porém, a violência, assim como não pode ser analisada unicamente pelo viés biológico, também não pode ser analisada pela ótica isolada do alcoolismo. Homens e mulheres não alcoolizadas também agridem, e ainda, pessoas mesmo sob o efeito do álcool jamais cometeriam um ato violento.
Há que de se levar em consideração na tentativa de se refletir sobre a violência e suas imbricações, o modelo de produção e acumulação capitalista, que vem contribuindo para elevação e manutenção dos índices de desemprego, do trabalho informal e da desigualdade.
As medidas neoliberais, que relegam ao indivíduo a responsabilidade por seu "sucesso ou fracasso", não conseguem reduzir este problema social, acabando mesmo por acirrar, nos países em desenvolvimento como o Brasil, as desigualdades econômicas e sociais.
Embora se observe que a violência não seja uma característica exclusiva do sistema capitalista, pois atos violentos têm sido observados em todos os períodos da história, em momentos e conjunturas diversas, o que se pode perceber, é que no sistema capitalista ela se intensifica, alcançando níveis intoleráveis.
Partindo da perspectiva marxista, pode-se afirmar que a violência se acentua na sociedade capitalista a partir do desenvolvimento da questão social, esta entendida a partir da concepção de Iamamoto e Carvalho:
A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e repressão (1983, p.77).
Portanto, a questão social se expressa na contradição do modo de produção capitalista, onde a riqueza gerada socialmente é apropriada pelos capitalistas, impedindo que o trabalhador usufrua dessas riquezas, e a violência seria uma das expressões da questão social gerada no seio do capitalismo, assim como a pobreza, o analfabetismo, o desemprego, a fome, etc.
Partindo destas premissas, pode-se considerar que, associado ao fator biológico e ao fenômeno do alcoolismo como causa da violência, está a desigualdade social, a má distribuição de renda, a crise do mercado de trabalho, as dificuldades econômicas, a crise ético-política vivenciada pelo sistema capitalista, a impunidade, a corrupção, a fragilidade do sistema repressivo e a ineficácia das leis, e ainda aspectos culturais.
Assim, o alcoolismo pode ser considerado uma das expressões da violência e não a causa desta violência e o álcool deve ser entendido como seu potencializador e não como determinante das ações violentas. Enfim, a violência precisa ser entendida como um fenômeno multifacetado, que possui vários determinantes e múltiplas expressões.
1.1 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UMA BUSCA DE COMPREENSÃO
A violência contra a mulher sempre esteve presente na sociedade. Assumiu, em cada momento histórico, diferentes conformações e tem sido assimilada conforme a cultura ou grau de maturidade de cada grupo social. No entanto é no mundo contemporâneo que ela começa a ser assumida como um problema social que traz consequências desastrosas às famílias e conseqüentemente à sociedade como um todo.
Segundo pesquisa que trata sobre a discriminação da mulher, realizada com base em estudos da UNICEF, da Anistia Internacional e do Luraw[19]no Canadá uma em cada quatro mulheres será vítima de agressão sexual em algum momento da vida, sendo as mulheres menores de 17 anos de idade as maiores vítimas desta violência. Nos Estados Unidos, um milhão de mulheres é vitimada pela violência por ano, dentro de seu próprio lar. Na Argentina 6 mil mulheres são vítimas de estupro. Estima-se que no Chile 60% das mulheres vivem em situação de violência familiar.
A situação não é diferente entre o primeiro e o terceiro mundo[20]Na Europa a violência fundamentada no gênero atinge 4 milhões de mulheres por ano. Chile, Sudão, Zâmbia, Grã-Bretanha, Dinamarca, Japão Uganda, etc. - países ricos ou pobres, nenhum está livre da violência contra a mulher que se manifesta sobre diferentes formas – violência física, sexual, moral, psicológica ou patrimonial.
No Brasil, denuncias de violências praticadas contra a mulher tem estampado os noticiários, principalmente após o Presidente da República Luis Inácio Lula da Silva ter sancionado a Lei Maria da Penha - 11.340/2006, que combate à violência doméstica e familiar. Retira este delito da relação dos crimes considerados de menor potencial ofensivo. Cria mecanismos para reprimir a violência doméstica e familiar contra a mulher, delibera sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, prevê medidas de prevenção da violência, assim como de proteção e assistência integral à mulher e ainda, a proibição da aplicação de penas como o pagamento de cestas básicas.
No entanto, há bem pouco tempo esta não seria considerada uma notícia relevante ou interessante o suficiente pelos meios de comunicação, pois, a violência contra a mulher sempre foi encarada como algo natural, que faz parte da vida cotidiana. Se essa postura começa a mudar, ainda que a passos lentos, é por causa da luta de mulheres corajosas que não se calaram ante a violência sofrida.
A violência contra as mulheres tem sido vinculada ao uso do álcool e/ou outras drogas, ou à desigualdade econômica. No entanto, Teles e Melo (2003) questionam essa idéia, pois, em qualquer classe social se constata a prática de violência contra a mulher, assim como, nem sempre o "agressor" está alcoolizado no momento do ato violento.
A violência tem sido usada como instrumento de dominação da mulher ao longo da história, no intuito de colocá-la no "lugar" que a sociedade lhe reservou, ou seja, para obrigar que a mulher cumpra com um papel que lhe foi imposto socialmente.
Para entender esse processo e desnaturalizar a violência contra a mulher é preciso conceituá-la:
Violência, em seu significado mais freqüente, quer dizer uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio, é uma violação dos direitos essenciais do ser humano (TELES e MELO, 2003, p. 15).
Importante destacar que a violência contra a mulher tem como sua causa principal a discriminação baseada no preconceito de gênero, entendendo-se este, como preconceito voltado à mulher pelo simples fato desta "ser mulher", como se esta fosse um ser inferior ao homem e como tal, não tivesse os mesmos direitos, o que se constitui numa violação dos direitos humanos da mulher e de sua cidadania.
O conceito de violência de gênero deve ser entendido como uma ralação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Ele demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçada pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos e indica que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas (TELES e MELO, 2003, p. 18).
Este tipo de violência ocorre, segundo a Lei 11.340/2006, tanto nos espaços privados como nos públicos e se dá de formas diversas. Sejam elas, segundo seu Art. 7º :
Violência Física: entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal. Segundo Ballone[21](2003), violência física pode ser entendida como o uso da força com o objetivo de ferir, deixando ou não marcas evidentes;
Violência Psicológica: entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularizarão, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
A Violência Psicológica: pode ser tão ou mais prejudicial que a física. Trata-se de uma agressão que não deixa marcas corporais visíveis, mas emocionalmente causa cicatrizes indeléveis para toda a vida;
Violência Sexual: entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
Violência Patrimonial: entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
Violência Moral: a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
A violência contra a mulher é reproduzida de geração a geração, não apenas por homens, mas pela própria mulher, que também naturaliza os "papéis de homens e de mulheres", construídos e ensinados socialmente. Assim, as meninas são educadas a serem dóceis, a assumirem os cuidados da casa e dos filhos, através de brinquedos e brincadeira, enquanto meninos são educados a serem "fortes", a não chorarem, a serem os provedores do lar e, portanto, o "chefe de família", e como "chefe", aprende que tem o poder sobre a mulher. De acordo com Cynthia Semíramis Vianna[22]
Nossa sociedade tem por hábito insistir na obediência através da agressão, e as mulheres são as principais vítimas disso. Os homens são ensinados desde criancinhas a serem agressivos, não levarem desaforo pra casa nem aceitarem mulheres lhes dando ordens (tanto é que são pouquíssimos os homens que sofrem violência doméstica). Já as mulheres são ensinadas a serem dóceis, conciliadoras e perdoarem agressões pois o/a agressor/a estava fora de si, coitado! (notem que aqui quem agrediu se torna uma vítima), ou então ele/a fez isso para corrigi-la, afinal, só quer o bem dela (o velho argumento da surra como prova de amor). Em parte, essa postura se deve a uma prática que perdurou por muitos séculos, denominada ius corrigendi: o pai ou marido responsável pela mulher poderia agredi-la fisicamente para corrigir seus hábitos. Não só havia previsão legal para essa prática, como também os juízes a consideravam válida e adequada.(2008)
De acordo com a análise de Teles e Melo (2003, p. 114), "a violência contra a mulher pode ser considerada uma doença social provocada por uma sociedade que privilegia as relações patriarcais marcadas pela dominação do sexo masculino sobre o feminino".
Para que possam manter o poder masculino, homens vêm concebendo "a natureza das mulheres de tal forma que a violência sobre elas fosse legítima" (NUNES, 2007. p. 77), ou seja, se a mulher é considerada um ser frágil, incapaz de tomar decisões - a não ser as relacionadas ao interior de seus lares e a criação de seus filhos - então, "precisam" estar sob o domínio dos homens – seres fortes, práticos e dotados de capacidades intelectuais, superiores às mulheres - sendo legítima, então, a violência, no sentido da preservação deste domínio.
O pensamento de Chauí percorre este caminho:
A violência é um constrangimento que consiste em fazer com que uma certa realidade opere sob a ação de uma força externa contrária a sua natureza. Ora, se violência é contrariar ou constranger a natureza de alguma coisa ou de alguém pra que atuem ou operem de modo diverso àquele a que estavam destinados, nada impede que se conceba a natureza das coisas e das pessoas de tal maneira que seja possível exercer violência sobre elas sem, no entanto, supor que tal esteja efetivamente ocorrendo. Assim, por exemplo, ao definir a natureza do escravo como "instrumento dotado de voz", um grego poderia considerar a escravidão como não-violência e a rebelião contra ela como ato de violência. Da mesma forma, nada impede a elaboração de idéias sobre a "natureza feminina" de tal sorte que os membros de uma sociedade, por respeitarem essa natureza, não se considerem autores de violência, nem sofredores dela (1985. p. 37).
A mulher ao longo da história, devido à violência a que está submetida, perdeu sua autonomia, sua liberdade e o direito a seu próprio corpo. A suposta inferioridade feminina ante a superioridade masculina – concepção que é fruto da cultura patriarcal - tem naturalizado a violência contra a mulher e se tornado um entrave para sua superação.
Enquanto a violência contra a mulher não for compreendida e assumida como ato que traz conseqüências nefastas ao conjunto da sociedade, desde o interior dos nossos lares até aos demais espaços institucionais, sendo passível de punição como qualquer outro, esta não será banida das relações sociais, e continuará produzindo e reproduzindo novos homens violentos e novas mulheres que se submetem a tal situação.
No entanto este reconhecimento deve ir além do reconhecimento formal, como o faz a Lei Maria da Penha – 11.340/06. Sua promulgação é um avanço. Porém, há que se investir num conjunto de medidas que levem ao reconhecimento, de cada indivíduo e da sociedade como um todo, de que a violência contra a mulher é crime. De outra forma, corre-se o risco de se restringir a atuação sobre tal fenômeno apenas à intervenção do Judiciário para apenar e/ou prender o agressor, num ciclo contínuo de judicialização dos conflitos domésticos decorrentes da naturalização de práticas discriminatórias de gênero.
A punição dos homens agressores, por si só, não será capaz de fazer o enfrentamento à violência praticada contra as mulheres. É preciso que homens e mulheres possam reconhecer que os papéis até então assumidos naturalmente foram papéis socialmente construídos. Segundo MORIGI (UFRGS) e SEMENSATTO (UFRGS)
As representações de gênero são construídas com base nos sistemas de crenças e valores que delimitam o que qualifica ser de um e de outro sexo, e a partir daí se estabelecem os direitos, os espaços, as atividades e as condutas próprias de cada um deles. Percebe-se que o modelo, a estrutura formada a partir do comportamento instituído para os sexos é muito forte na sociedade e está refletida em diversos aspectos da vida social. (2008)
A construção dos papéis de homem e de mulher - sua forma de ser, de pensar, de agir na sociedade - com certeza não estão isentas de interesses e traduzem posições ideológicas e aspirações de grupos sociais marcados por uma história e que se confrontam no campo social. Portanto a desconstrução destes papéis não poderá ser feita apenas com ações pontuais do judiciário, como a prisão do agressor.
É evidente que o agressor deve ser responsabilizado por seus atos como qualquer pessoa que cometa algum crime passível de punição prevista em lei. O que se discute aqui, é que esta punição, de forma isolada, não será capaz de romper com o ciclo da violência contra a mulher, pois esta envolve, como já afirmado, fatores sócio-culturais que para serem mudados necessitam de um conjunto de ações em nível macro ,por parte do Estado, e que intervenham de forma articulada como devem ser as políticas públicas..
Ou seja, é necessária a implementação de políticas públicas capazes de atingir todos os atores envolvidos neste ciclo e capazes de desconstruir estes papéis fundamentados na desigualdade de gênero, para dar lugar a atores sociais resignificados e conscientes de sua autonomia.
CAPÍTULO 2
Muito mais que um conceito ideologizado – direitos humanos - é um ideal a ser alcançado pela sociedade. É o resultado de uma luta histórica de todos os povos pela conquista da liberdade, igualdade, dignidade.
Esta luta dá origem a vários documentos com que vem expressar o desejo de uma sociedade mais justa e humana, como a Declaração de Direitos da Virgínia de 12 de junho de 1776, no processo de Independência Americana; a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa em 1789; a Declaração Universal dos Direitos do Homem feita pela Assembléia das Nações Unidas em 1948, entre outros textos e declarações que reafirmam a busca por uma sociedade livre da exploração do preconceito e da violência.
No entanto, a despeito de toda discussão travada a respeito do tema, muitas dúvidas pairam sobre o que seja "Direitos Humanos". Os questionamentos mais freqüentes são: Direitos Humanos para quem? Quem é a pessoa humana merecedora desses direitos?
Algumas pessoas apontam sem receio para esta ou aquela pessoa dizendo: "Este não é digno de ser considerado humano, portanto não deve ter direitos humanos".
Mas de que se trata a dignidade da pessoa humana? Quem é essa pessoa digna merecedora de respeito e de direitos humanos?
O conceito de pessoa sofre variações de acordo com o momento histórico e com a localização geográfica. Na civilização greco-romana artistas usavam máscaras para representar seus papéis – de velho, mulher, criança, etc. – estas máscaras recebiam o nome de persona (pessoa), que significa ressoar . Assim o conceito de pessoa passou a corresponder ao papel que se representava numa peça teatral (personagem).
Para o Direito Romano o conceito de pessoa estava vinculado àqueles que tinham direitos – sujeitos de direito, capazes de exercer um papel, uma função perante a vida. Porém percebe-se que não se abrangia a todos os seres humanos. Os escravos, por exemplo, eram considerados coisas e não pessoas.
Ingo Wolfgang Sarlet[23]faz algumas considerações sobre a dignidade da pessoa humana – que, se não responde – contribui para uma melhor compreensão deste tema.
Para este autor, embora valiosa, a concepção filosófica sobre a dignidade da Pessoa Humana não esgota todas as dimensões imbricadas em sua compreensão. Sarlet vê a necessidade da contribuição do direito em sua definição, por ser justamente na esfera jurídica que de dá o reconhecimento e a proteção à dignidade da pessoa humana.
Historicamente a dignidade da pessoa humana tem sido compreendida como algo que qualifica o ser humano como tal, como inerente a todo e qualquer ser humano.
Embora apareça como um conceito subjetivo, "a dignidade é algo real, algo vivenciado concretamente por cada ser humano" (SARLET, 2005;p. 17) e assim, como qualidade intrínseca, a dignidade da pessoa humana não pode ser renunciada ou transferida, assim como também não pode ser concedida ou retirada. No entanto, como algo que existe, pode ser (e deve ser) reconhecida, respeitada, promovida e protegida no âmbito do Direito.
O autor alerta ainda, que a dignidade da pessoa humana independentemente desta ser ou não reconhecida juridicamente, preexiste a qualquer experiência. Neste sentido Sarlet, afirma que a dignidade:
[...] independente das circunstancias concretas, já que inerente a toda e qualquer pessoa humana [...] todo – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecido como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna na suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos. (2005, p. 20)
A própria Declaração Universal das Organizações das Nações Unidas - ONU (1948), em seu artigo primeiro, declara que "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direito [...]" coaduna com a idéia de que mesmo as pessoas que cometem ações indignas ou infames, devem ser consideradas como pessoa humana.
A base para uma concepção filosófica contemporânea dos direitos humanos é encontrada nas obras de Immanuel Kant[24]e é nesta linha de pensamento que Jorge Miranda[25]preceitua que é justamente no fato dos seres humanos serem dotados de razão e consciência que se situa a igualdade entre todos. Assim concebe-se, a partir da matriz kantiana, que a dignidade da pessoa humana centra-se na autonomia e no direito a autodeterminação de cada pessoa.
Entretanto, Sarlet faz um alerta de suma importância sobre essa linha de pensamento que vincula a dignidade da pessoa humana a sua capacidade de autodeterminação, pois esta vinculação pode nos levar a uma conclusão errônea de que aqueles que nascem ou se tornam mentalmente incapazes, como os que sofrem de demência, não seriam pessoas humanas e, portanto, não têm sua dignidade assegurada.
Em seu alerta Sarlet afirma que esta autonomia deve ser considerada em sentido abstrato, "como sendo a capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminar sua conduta, não dependendo da sua efetiva realização [...] de tal sorte que o absolutamente incapaz [...] possui exatamente a mesma dignidade que qualquer outro ser humano física e mentalmente capaz [...]" (SARLET, 2005, p. 25).
Sarlet tece ainda, críticas a Niklas Luhmann, para o qual uma pessoa conquista sua dignidade através de uma "conduta autodeterminada e da construção exitosa de sua própria identidade", pois, mesmo aquele que nada "presta" para si ou para o outro continua a ter sua dignidade e tem o direito de tê-la respeitada e protegida.
Partindo-se da premissa de que a dignidade da pessoa humana é condição intrínseca ao indivíduo - portanto ontológica – deve-se levar em consideração que esse indivíduo se insere no mundo através de suas relações sociais, assim possui uma dimensão social e política.
Sarlet se reporta a Jüngen Habermas para o qual "apenas no âmbito do espaço público da comunidade da linguagem, o ser natural se torna indivíduo e pessoa dotada de racionalidade" (2005, p. 26).
Além de uma dimensão social e política, a dignidade possui ainda uma dimensão cultural, pois é fruto de diversas gerações e da humanidade como um todo, e o que pode ser apresentado como digno em determinada sociedade pode não o ser em outra.
A partir do exposto, Sarlet conclui que a dignidade da pessoa humana pode se expressar pela autodeterminação da pessoa, bem como pela necessidade de sua proteção, que seria papel tanto da comunidade como do estado, principalmente nos casos em que a pessoa humana não tenha capacidade de exercer sua autodeterminação.
[...] a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade. (SARLET, 2005, p. 32)
No que se relaciona ao limite referido acima, Sarlet está levando em consideração que a dignidade da pessoa humana além de não poder ser violada e o ser humano reduzido a objeto, também implica na geração de direitos fundamentais que devem ser garantidos tanto pelo estado como pela comunidade. No que concerne à tarefa, se refere aos deveres concretos de tutela do Estado na proteção e promoção da dignidade para todos.
Ainda tratando sobre a pessoa humana e a sua dignidade, Moura (2002) alerta que são os excessos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial que vêm exercer profundo impacto sobre a consciência da humanidade. Os horrores cometidos e revelados no pós-guerra moldaram uma nova consciência universal, reconhecendo o valor da pessoa humana. Fazendo emergir assim, na sociedade, o reconhecimento de que toda pessoa é revestida de dignidade e dotada de direitos que são inalienáveis e devem ser respeitados.
Para o autor "o conceito de pessoa, de sua dignidade, e seu papel na vida social deve-se em grande parte à contribuição da igreja" (p. 11). Porém, apesar do reconhecimento formal da dignidade da pessoa humana e da necessidade de respeito a esta, ainda insiste em se fazer presente uma grande distância entre o conhecimento e a ação.
Em 1948 a Declaração Universal dos Direitos do Homem vem consagrar e fortalecer o conceito de pessoa humana, de sua dignidade e de seus direitos. Para Moura
[ ...] a Declaração foi aprovada pela necessidade de traçar limites do poder dos Estados diante dos direitos da pessoa humana, para conter a tendência crescente dos Estados de urgir das pessoas obrigações decorrentes de sua pertinência à sociedade civil, da qual são eles a estrutura jurídico-política" (pg. 25 e 26).
São inúmeras as condições sob as quais vive o ser humano e que expressam o desrespeito aos direitos do homem, da mulher e de sua dignidade, mesmo após a Declaração dos Direitos Humanos: a indigência, o analfabetismo – seja ele funcional ou não – a precariedade dos sistemas de saúde pública e de educação, o desamparo aos idosos, crianças e adolescentes, e a ausência de políticas públicas, entre tantas outras.
Moura ao tratar do conceito de pessoa e da dignidade do ser humano afirma que:
[...] o ser humano, por sua natureza de animal racional, dotado de liberdade, é revestido de uma dignidade na qual se fundamentam direitos inalienáveis, cujo reconhecimento se impões ao próprio Estado e devem ser garantidos pela ordem internacional (MOURA, 2002, pag. 27).
A história revela que sempre existiram pessoas e grupos sociais que foram dissociados de seus direitos humanos, por serem considerados inferiores. Na Grécia antiga eram considerados cidadãos, e portanto humanos, os nascidos em Atenas do sexo masculino e que tivessem cumprido o serviço militar.
Os escravos eram tratados como "coisa", portanto não tinham garantidos seus direitos fundamentais ou essenciais.
Há várias concepções de Direitos Humanos, e estas se relacionam diretamente com a concepção político-ideológica que nos orienta. É esta concepção responsável pelo elenco de direitos que consideramos ou não fundamental em diferentes momentos da história.
Para Dornelles[26](2007) [...] os Direitos Humanos podem ser entendidos de diferentes maneiras: provenientes da vontade divina; direitos que nascem com os indivíduos; direitos emanados do poder do Estado; direitos que são produto da luta de classes (p. 12).
No período feudal os valores considerados essenciais estavam estreitamente vinculados à vontade divina. Como afirma Dornelles, "a lei humana e os poderes políticos estavam subordinados ao direito divino" (p.14 e 15).
Essa concepção inaugura a idéia de que os direitos humanos são inerentes aos homens, ou seja, estes já nascem revestidos do direito à vida, à segurança e à liberdade.
É só com a concepção positivista – século XVII – que os direitos fundamentais e essenciais dos homens necessitam ser reconhecidos e legitimados pelo Estado através de leis positivadas, para se efetivarem, rompendo com a idéia de direitos como inerentes aos seres humanos. A partir desse momento, os direitos naturais passam ser explicados a partir da razão humana.
O século XVIII marca o rompimento com o absolutismo e a transição do modo de produção feudal para o capitalismo. As idéias iluministas ganham espaço no cenário europeu dando sustentação ao então movimento revolucionário da burguesia contra o Estado absolutista.
Este é um marco relevante na história, entre outros motivos, porque é a partir das lutas travadas entre a burguesia européia e o estado absolutista que se criaram condições para se elencar aqueles que viriam a ser direitos fundamentais aos seres humanos - direito à liberdade, ao livre comercio, a manifestação da vontade, de liberdade de pensamento e expressão, de liberdade de ir e vir, liberdade política e mão-de-obra livre. Embora, neste contexto histórico, esses direitos atendessem as aspirações da massa popular, sua principal destinação era atender aos interesses da burguesia emergente.
Assim, como afirma Dornelles (2007) "[...] criavam-se as condições da consolidação do modo de produção capitalista" (p. 21).
Estes direitos, frutos da luta travada entre burguesia e os estados absolutistas vão se materializar em direitos civis e políticos do indivíduo.
No século XIX a burguesia se consolida no poder do Estado e abandona seu caráter revolucionário. Sob a égide do liberalismo a burguesia consegue grandes avanços econômicos e político, amplia cada vez mais seu mercado e seus lucros, incorpora ao seu processo produtivo maquinário moderno impulsionando o desenvolvimento da indústria.
Neste contexto emergem as lutas sociais. A classe operária insatisfeita com suas condições de trabalho e de vida se mobiliza a fim de ter garantido seus direitos à "liberdade e fraternidade", os ideais pelos quais lutaram, ao lado da burguesia, na Revolução Francesa.
Karl Max desponta neste cenário conturbado e desenvolve uma teoria crítica sobre o modo de produção capitalista. Evidencia em suas reflexões o caráter individualista dos direitos humanos positivados, desenvolvendo uma nova concepção de Direitos Humanos denominada crítico-materialista.
Esta concepção afirma o caráter histórico e estrutural dos direitos humanos e sua proposta é que esses direitos assumam um caráter universal, e que venham ao encontro dos interesses das classes subalternas.
Quando observamos textos e declarações que defendem a igualdade e a liberdade é importante termos em mente qual a orientação daqueles que redigiram tais textos. Ou seja, devemos nos perguntar liberdade e igualdade para quem, e principalmente, para que?
A igualdade defendida pela Revolução Francesa de 1789 se tratava de uma igualdade formal perante a lei. Assim, todos deveriam ser tratados diante desta de forma igualitária, rico ou pobre, moço ou velho, negro ou branco, etc. No entanto, não leva em consideração as diferenças existentes, não considera que pessoas diferentes necessitam ser tratadas de forma diferente. Ou seja, não há observância ao princípio da equidade.
Quanto à liberdade defendida pela Revolução Francesa, se tratava, para o povo oprimido pelo governo absolutista, de se livrar dos grilhões impostos pelos senhores feudais. Já para a burguesia esta liberdade tem estreita relação com o mercado produtivo, ou seja, deveria ser respeitada a liberdade para que o povo vendesse sua força de trabalho ao capitalista, ter liberdade de ir e vir e de estabelecer o livre comércio.
O direito à liberdade neste momento é [...] a representação do livre exercício das atividades econômicas sem as limitações impostas à produção e à circulação das mercadorias. Neste sentido é que a liberdade estaria ligada ao direito de propriedade (DORNELLES; 2007, pag. 25)
Segundo Dornelles, 2007, Marx identifica que, em nome do direito de cada indivíduo contratar livremente a as condições de sua vida com seu semelhante, se vivenciava uma desigualdade gritante entre burguesia e proletariado, uma contradição, cada vez maior, entre os direitos formais expressos na Declaração de 1789 e a realidade vivida pela maioria da população.
O Estado é chamado pela classe operária a regulamentar as relações trabalhistas, intervindo na vida econômica e social.
Com o desenvolvimento do capitalismo, que deixa sua fase concorrencial para assumir sua face imperialista, estas contradições se acentuam, o que acaba por instigar discussões sobre os Direitos Humanos.
Marx e os pensadores socialistas passam a questionar os Direitos Humanos defendidos pela Revolução Francesa e levantam a questão dos direitos sociais, econômicos e culturais.
O reconhecimento de direitos individuais, inerentes ao ser humano, já não atendia aos anseios de uma classe proletária, submetida à cruel estrutura produtiva da sociedade capitalista.
Organizados em sindicatos e partidos, a classe operária acaba por conseguir – através de árdua luta – a ampliar o conteúdo dos Direitos Humanos. Se antes a garantia de direitos individuais tinha a função de limitar o poder do Estado absolutista do regime feudal agora, os direitos sociais, econômicos, e culturais visam garantir uma intervenção positiva do Estado. Ou seja, o Estado é conclamado a, mais que positivar direitos, garantir e viabilizar o direito ao trabalho, à organização sindical, à previdência social para idosos e inválidos, à aposentadoria, à greve, saúde, educação, entre tantas outras conquistas, fruto da luta empreendida nesse período.
No século XX, após a Segunda Guerra Mundial, novas reivindicações passam a fazer parte do cenário mundial. Há um clamor da sociedade por proteção e garantias do direito à liberdade e à vida, permitindo assim maior discussão sobre os direitos humanos.
A partir do pós-guerra desenvolvem-se os direitos dos povos, [...] a partir de uma classificação que distingue entre os "direitos da liberdade" (os direitos individuais da primeira geração), os "direitos da igualdade" (os direitos sociais, econômicos e culturais da segunda geração) e os "direitos da solidariedade" (novos direitos ou direitos da terceira geração). Assim, os direitos dos povos são ao mesmo tempo "direitos individuais e direitos coletivos" e interessam a toda a humanidade (DORNELLES, p.33).
Os movimentos sociais se mobilizam a fim de reivindicar pelo direito à paz, ao desenvolvimento e o direito à autodeterminação dos povos, direito a um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, e o direito à utilização do patrimônio comum da humanidade como o alto-mar, o fundo do mar e do espaço, etc.
As organizações internacionais como a Organização das Nações Unidas- ONU, a Organização Internacional do Trabalho - OIT, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, entre outras, passam a aprovar inúmeros textos e declarações que têm o propósito de difundir e proteger os direitos humanos.
Dornelles aponta o conceito irrestrito de soberania nacional como um entrave para uma ação efetiva da comunidade internacional na defesa dos direitos humanos. A não-intervenção em assuntos de interesse interno de cada Estado se choca com os mecanismos de controle das ações violadoras desses direitos.
No entanto, este entrave não impossibilitou que a temática Direitos Humanos passasse a ocupar papel de destaque nos dias atuais, sendo universalmente discutido e defendido.
Ainda, segundo este autor, estamos vivendo num campo de intensa luta ideológica. Interessa a determinados setores da sociedade estabelecer um vínculo entre a garantia dos Direitos Humanos com os índices de violência presenciado. Estes setores conservadores manipulam as informações e desinformações da maior parcela da sociedade e "[...] identificam a democracia e a verdadeira defesa aos Direitos Humanos com a violência criminal, ao caos social, a impunidade e o "império do crime"" (p. 57) criando, em suas palavras:
[...] uma falsa imagem (alimentada pela imprensa) entre dois mundos: por um lado, a ordem, a moralidade, os bons costumes, a honestidade, a vida regrada e religiosa, o bem e por outro, o caos, a degeneração moral, a promiscuidade, a desonestidade, a maldade, a violência, a marginalia e bandidagem que infesta e suja as ruas de nossas cidades". [...] Essa visão maniqueísta da realidade social causa terror à população, acabando por estimular atitudes violentas em todas as pessoas, e contribuindo para legitimar práticas autoritárias por parte da polícia, ou, o que é pior, para justificar as ações de pistoleiros e esquadrões da morte que atuam "ao arrepio da lei". (DORNELLES; 2007. p.57)
Mas quem são as verdadeiras vítimas dessa violência? Seguindo as reflexões de Dornelles, para os defensores da ordem as vítimas desta violência são as pessoas das classes mais privilegiadas, que são atingidas pela violência – em especial atentada contra seu patrimônio – excluindo do rol das vítimas as pessoas vitimadas por acidentes de trabalho, de crimes ecológicos e nucleares, as vítimas do salário-mínimo, do sistema penitenciário ou da violência policial, entre tantas outras que aqui se poderia apontar.
A massa social manipulada pela elite através da imprensa – não só, mas principalmente por ela – incorpora a idéia de que a proteção dos Direitos individuais e coletivos é um estímulo à criminalidade. Incorpora a idéia de que a garantia dos Direitos Humanos é sinônimo de garantia de privilégios a bandido e de boa vida a presos.
É evidente que esta desinformação sobre os princípios dos Direitos Humanos e sobre as raízes da violência - propositalmente implantada na sociedade em geral e que tem servido de instrumento nas mãos de determinados setores conservadores - acabam por estimular mais violência. Legitimando práticas autoritárias por parte da polícia ou por aqueles que assumem o papel de exercer a "justiça" com as próprias mãos.
Devemos entender que "as pessoas detidas ou presas não deixam de ser seres humanos, independentemente da gravidade do crime pelo qual foram acusadas ou condenadas. O tribunal ou órgão judicial (...) decretou que devem ser privadas de sua liberdade, não que devem perder sua humanidade" (COYLE apud FELIX).
Mais um autor que trabalha na perspectiva de que todos os seres humanos independentes de seus atos são dignos de respeito é FELIX[27]para o qual
No âmbito do combate à violência e à criminalidade, devemos entender que o indivíduo, ao cometer um crime, comete um fato típico descrito na Lei Penal e deve sofrer a sanção cabível, porém continua sendo um ser humano e merece ser tratado como tal, em qualquer circunstância. Isto é garantido pelos direitos impressos na Constituição Federal, artigo 5º, inciso III e vários outros, que estabelecem os direitos fundamentais da pessoa humana (2005).
Esta visão fragmentada do ser humano e a desinformação sobre os verdadeiros princípios dos Direitos Humanos atende apenas a interesses particulares de uma pequena, mas poderosa elite que tenta desmerecer a luta pelos Direitos Humanos, que é uma luta pensada e realizada de forma integral a partir de uma visão global da realidade vivida.
A luta pelos Direitos Humanos é uma luta contra todas as violações, ocorridas em todos os níveis e que diz respeito a todo ser humano, seja ele branco ou negro, rico ou pobre, desta ou daquela religião, ou que tenha ou não cometido algum tipo de crime.
Tomando como base as considerações de Dornelles e de outros estudiosos referidos, considero que os encaminhamentos atualmente dados aos "agressores" não levam em conta a necessidade de vislumbrar tais sujeitos como constructo social, conseqüentemente tornaram-se mais uma vítima da cultura patriarcal, da educação sexista recebida ao longo da história. O desafio a ser colocado deve pautar-se no reconhecimento destes como portadores de Direitos Humanos.
Tal argumento não deve ser traduzido como defesa cega dos agressores, muito menos como demérito dos esforços que têm sido feitos, em especial pelo Judiciário, para a pretendida superação da violência contra a mulher.
Há que se requisitar com urgência o estabelecimento de uma nova cultura que encare a violência contra a mulher como crime passível de punição, isso é ponto consensual – ou pelo menos deveria ser. Não se pode minimizar a gravidade deste problema social que tem assolado nossos lares. Mas trata-se de uma constatação de que estes esforços têm se mostrado insuficientes por se ter polarizado a questão da violência contra a mulher em dois atores: de um lado a mulher - vítima indefesa e que necessita de proteção do Estado e da sociedade e de outro o homem – agressor que deverá invariavelmente ser punido, de preferência com a prisão.
CAPÍTULO 3
Segundo Antônio Escohotado[28]registros arqueólogos revelam que o consumo de bebidas alcoólicas data de mais de oito mil anos. Desde a Pré - história, mais precisamente no período Neolítico, que compreende aproximadamente 26.000 a.C. até por volta de 5.000a.C - quando os homens tornaram-se agricultores, pastores e sedentários - começa-se a produzir bebidas alcoólicas como resultado da fermentação natural de raízes, frutas e cereais. Os celtas, gregos, romanos, egípcios e babilônios registraram de alguma forma o consumo e a produção de bebidas alcoólicas. Papiros do Egito Antigo revelam as etapas de fabricação de vinho e cerveja. Documentos que datam de 22000 a.C mostram que mulheres em fase de aleitamento eram incentivadas a consumirem cerveja. Destilarias egípcias datam de 6.000 anos.
No século XII, com a descoberta do processo de destilação pelos árabes, tornou possível a produção de bebidas com maior teor alcoólico, sendo comercializada por toda Europa. É a partir do século XVII que o comércio e o consumo dos destilados se expandem, atingindo seu ápice a partir do século XIX.
O álcool sempre teve funções diferentes ao longo da história, tanto em âmbito social como religioso. Antigas civilizações realizavam cultos que vinculavam o vinho a deuses, como Dionísio da Grécia e Baco de Roma, vinculando o consumo de álcool e religião.
O álcool foi ainda utilizado como facilitador das relações interpessoais por diversas civilizações, e ainda hoje, é usado como meio de promover a socialização, esta compreendida, segundo Boaventura de Sousa Santos:
[.] um processo de aprendizagem através do qual nos tornamos pessoas e membros de uma dada sociedade. Ele é vital, tanto para os indivíduos, como para a sociedade. É através dela que se procede a transmissão da cultura e se faz a aprendizagem de papéis, expectativas e estatutos sociais. Ao mesmo tempo em que, os indivíduos interiorizam as normas e os valores sociais, reforçam-nos o que contribui para a coesão da sociedade (BOAVENTURA. In Oliveira et.al., 2001, p. 141).
Assim sendo, o ato de beber tem um valor simbólico que ultrapassa a dimensão gastronômica, alcançando uma dimensão social. Enquanto o ato de beber é condenável culturalmente para as mulheres, desde muito cedo homens são incentivados a beber, sendo este ato vinculado à virilidade.
No século XXI, o álcool é consumido em larga escala – de acordo com a Organização Mundial da Saúde - OMS, entre 1961 e 2000 o consumo de bebidas alcoólicas cresceu 154,8% per capita. Na Europa este consumo representa o dobro da média mundial, aumentando também a incidência de doenças relacionadas ao álcool, pois, 6,3% de todas as causas de morte na região européia estão relacionadas ao uso de álcool.
O Brasil, nesta mesma pesquisa, figura entre os 25 países do mundo que mais aumentaram o consumo de álcool no mundo.
Levantamento[29]realizado em 2001, pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas – CEBRID nas 107 maiores cidades do país revelou que 68,7% da população já consumiram bebidas alcoólicas durante a vida. Um dado importante demonstrado por esta pesquisa é que 48,3% da população entre 12 e 17 anos já consumiram bebida alcoólica. Quanto à dependência do álcool, a pesquisa revela que 11,2% daqueles que consomem bebidas alcoólicas são dependentes do álcool.
Estes números expõem um aumento expressivo no processo de dependência do álcool na população de todo o mundo.
O alcoolismo é considerado uma doença caracterizada pela dependência de álcool, ou seja, pelo uso excessivo e continuado de álcool, e por todas as conseqüências decorrentes desse uso, podendo estas conseqüências, ser relacionadas à saúde física e mental do usuário que pode ser acometido de diversas doenças como a cirrose, ou mesmo relacionadas ao social. Pois, o uso excessivo do álcool pode desencadear dificuldades de relacionamento com membros da família ou com a rede de amigos, a perda de emprego, entre outros.
O elevado índice de violência no Brasil, constantemente veiculado na mídia, em geral tem estreita relação com a dependência ou uso abusivo[30]do álcool.
Pesquisa realizada em 1996, pelo Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli[31]realizada no Hospital Miguel Couto, do Rio de Janeiro, tendo como objetivo identificar o peso da violência no atendimento de emergência mostra que dos 2.736 atendimentos relacionados a algum tipo de violência, 343 envolviam o uso de substancias psicoativas. Das 176 agressões atendidas neste hospital, 33% tinham o envolvimento de algum tipo de drogas.
Nos casos de acidentes de transito, atendidos no Hospital Miguel Couto - RJ, 40,5% dos 149 envolviam o uso de entorpecentes. Segundo Niewiadomski[32]em seu artigo "Violências e Alcoolismo: Abordagem Biográfica em Alcoologia e Hermenêutica do Sujeito", o álcool está envolvido em 30% dos acidentes de tráfego, em 10 a 20% dos acidentes de trabalho, em torno de dois terços dos homicídios voluntários e em mais de um quarto dos suicídios.
Estudos realizados em São Paulo[33]por Kahn e Zanect (2005), mostra que entre os crimes cometidos por arma de fogo, nesta cidade, 41,0% das vítimas tinham feito uso de álcool, enquanto que nos crimes cometidos através de armas brancas, objetos contundentes e outros, esse percentual pode chegar a 58,9%.
Estes números, por si só, mostram a estreita relação entre álcool e violência, no entanto não é possível afirmar que o álcool seja a causa da violência, pois nem todos que bebem são violentos, assim como nem todos aqueles que praticam atos violentos bebem.
Em uma matéria de Santos (2004), publicada no Jornal do Commércio Melo[34]declara não haver nenhuma relação química entre o álcool e a agressividade. O álcool atuaria como um desinibidor, diminuindo a censura do indivíduo e ressaltando uma agressividade já latente.
Minayo[35]e Deslandes[36]em consonância com esse pensamento afirmam que, "muitas vezes as substâncias são utilizadas como desculpas para violência, para diminuir a responsabilidade pessoal. Outros as usam para simplesmente atingirem um estado emocional que lhes facilite cometer crimes" (1998).
Esta violência generalizada e potencializada pelo uso de álcool atinge a burgueses e proletários, ricos e pobres, homens, mulheres e crianças indiscriminadamente. Porém, neste momento, uma das expressões desta violência tem chamado mais a atenção e suscitado árduos debates, tanto em âmbito público como privado: a violência contra a mulher[37]
Segundo a Organização Mundial da Saúde - OMS, em estudo realizado em 2002, quase metade das mulheres assassinadas é morta pelo (ex) marido/companheiro ou (ex) namorado. Sendo que, a violência responde por aproximadamente 7% de todas as mortes de mulheres entre 15 a 44 anos no mundo todo. Em alguns países, até 69% das mulheres relatam terem sido agredidas fisicamente e até 47% declaram que sua primeira relação sexual foi forçada.
O uso de álcool parece estar envolvido em até 50% dos casos de agressão sexual. Homens casados violentos possuem índices mais altos de alcoolismo em comparação àqueles não violentos. Estudos relatam índices de alcoolismo de 67% e 93% entre maridos que espancam suas esposas. Entre homens alcoolistas em tratamento, 20 a 33% relataram ter atacado suas mulheres pelo menos uma vez no ano anterior ao estudo, ao passo que suas esposas relatam índices ainda mais elevados. A Associação medica americana relata que o estupro representa 54% dos casos de violência marital. [...]. (ZIlBERMAN; BLUME. 2005.)
Ao longo de séculos, a mulher tem sido tratada como ser inferior que deveria curvar-se sob o domínio do homem a quem deve obediência. No pensamento coletivo, social e culturalmente construído, o sentido da existência desta mulher sempre esteve no seu papel de mãe zelosa e esposa servil. No entanto, com acelerado processo de industrialização e o avanço do capitalismo, onde novas necessidades são criadas a cada instante, e impulsionadas pelos períodos de guerras, as mulheres se vêm obrigadas a sair do interior de seus "palácios" - onde nunca foram rainhas, mas sim servas submissas - para construir artefatos de guerra ou para substituir os homens, onde quer que fosse necessário, a fim de prover o sustento de seus lares.
Quando a guerra acabou, os homens regressaram e reivindicaram seus empregos de volta. Foram então, criadas estratégias para que essas mulheres retornassem aos seus lares.
Estas estratégias ressaltavam o "papel de mãe e de rainha do lar" dessa mulher. Porém, estas estratégias fracassaram, pois elas já haviam encontrado um novo sentido em suas vidas, descobriram que podiam ser tão capazes quanto os homens, promovendo assim, transformações significativas nas relações sociais e especificamente, nas relações entre homens e mulheres.
Para Arendt (1994) a violência se instala onde o poder perde espaço. Seria a violência então, o último instrumento utilizado na tentativa de manutenção do poder que nos escapa das mãos. Assim, onde um domina, o outro está necessariamente ausente.
Se fizermos um paralelo entre o pensamento de Arendt com o contexto no qual o homem proclamado pela sociedade, provedor e senhor de seu lar, perde seu espaço até então legítimo, podemos constatar que a violência contra a mulher pode ser encarada como uma reação desse homem diante dessa perda ou diminuição de seu poder sobre esta mulher. Agora menos subserviente e mais senhora de si.
Se para muitos, na atualidade, o ideal de mulher "Amélia" – frágil e submissa - está superado, em grande parte do imaginário masculino, e porque não dizer também, feminino, esta é ainda uma verdade inexorável.
Se hoje já se esboça a construção de uma cultura onde a mulher possa ser tratada como um ser de direito, é porque esta mulher submissa encontrou condições históricas e psicológicas para reivindicar seu espaço na sociedade, não como um ser inferior, mas como pessoa humana portadora de dignidade e merecedora de respeito.
Expressivo exemplo das conquistas das mulheres nos últimos anos é a promulgação da Lei nº 11.340/2006 - Lei Maria da Penha que reconhece a violência masculina contra a mulher como um crime passível de punição, não mais o enquadrando no rol dos crimes de menor potencial ofensivo, como ocorria quando esta prática violenta era orientada pela Lei 9.099/95[38]e conduzida pelos Juizados Especiais Criminais.
A partir desta lei o inquérito é suprimido e substituído pelo Termo Circunstanciado, que é mais simplificado, acelerando a movimentação processual da Justiça penal, onde setenta por cento dos processos se referiam à violência contra mulher e à violência doméstica.
No entanto, verificava-se que, entre outros entraves para uma efetiva superação da violência masculina contra a mulher, um problema recorrente nos Juizados Especiais Criminais era a insatisfação das mulheres vítimas da violência masculina com o andamento dado aos seus conflitos, reproduzindo-se um sentimento de impunidade, pois em geral as únicas sanções impostas aos agressores eram: doação de cestas básicas e encaminhamento daqueles que faziam uso de álcool e/ou outras drogas para Alcoólicos Anônimos – A.A.
A imposição de doação de cestas básicas se constituía em um problema porque, em geral, penalizava duplamente a mulher, pois quando o agressor era seu companheiro, o numerário gasto na obtenção destas cestas fazia falta na aquisição de sua própria alimentação e de seus filhos, já a imposição judicial de freqüência ao A.A. – que era pautada no entendimento do álcool como causa da violência - acabava por se apresentar ineficaz, já que, mesmo sob a ameaça de prisão muitos dos "encaminhados" deixavam de freqüentar os Grupos, e quando os freqüentavam, não participavam das reuniões e não se envolviam em suas atividades, deixando de assimilar o programa trabalhado nestes. Assim o cumprimento se resumia na mera entrega de assinatura das "folhas de freqüência", criadas para controlar a assiduidade destes homens, sem na verdade atingir seu principal objetivo que era pelo menos, atenuar as práticas violentas contra as mulheres.
A Lei Maria da Penha surge como uma promessa de superação desses problemas propondo medidas de prevenção da violência, assim como de proteção e assistência integral à mulher agredida física, psicológica e/ou moralmente. Delibera, ainda, sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Entre as medidas de proteção que o juiz pode tomar, sem a necessidade de um processo civil ou judicial, a partir da promulgação da Lei Maria da Penha estão:
O afastamento imediato do agressor do domicílio e de outros lugares de convivência com a mulher agredida, garantindo a permanência da mulher no seu ambiente familiar, comunitário e de trabalho;
Suspender ou restringir o porte e a posse de armas;
Fixar limite mínimo de distância entre a mulher, seus filhos e o agressor;
Restringir ou suspender visitas aos dependentes menores em casos de risco de homicídio.
Porém há de se ficar atento, pois a construção de um "novo homem e mulher" exige uma reeducação e não se pode fazer isso apenas com medidas punitivas aos homens agressores e medidas protetivas voltadas às mulheres vítimas de violência.
É preciso encará-los – seja homem agressor ou mulher vitimizada - como fruto de meio, e como tal, passível de transformação, ainda que esta seja lenta.
O primeiro passo para que isso possa ocorrer é o reconhecimento de que todos os seres humanos são portadores de dignidade e, portanto, merecedores de respeito aos seus direitos humanos.
Medidas paliativas ou punitivas não são eficazes no combate ao crime. É preciso que haja boa vontade política para implementar uma política de segurança pública que vise mais do que isolar os infratores em presídios infectos, sejam quais forem os atos por estes praticados. Uma política que se volte para a reeducação dos sujeitos, que devem ser vistos de forma integral.
Como afirma Dornelles, "em um país com tantas desigualdades, é impossível conter a criminalidade sem uma política social de médio e longo prazo, que resolva alguns problemas crônicos da nossa organização social" (2007, p.60). Assim, acreditar que a solução da criminalidade está em isolar da sociedade os "criminosos" é mera ilusão, pois as prisões têm se tornando verdadeiras escolas do crime, e mais cedo ou mais tarde, estes indivíduos retornarão ao convívio social. Podemos encontrar respaldo a essa idéia em FELIX, para o qual:
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