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Os descendentes dos romanos (página 2)


Estudaremos ainda sucintamente o conceito de latim vulgar, a língua que empregavam efetivamente os romanos que chegaram até as províncias onde floresceriam culturas neolatinas, em contraste com o latim clássico, estudado nas escolas romanas de então. Compará-los equivaleria hoje a defrontar o português de Camões, estudado nas universidades pelos alunos de Letras, ao português efetivamente empregado pelos mesmos. O latim vulgar está na origem das línguas neolatinas.

Da mesma forma, acompanharemos algo da posição específica da mulher na história da civilização moderna. Sua relação com o homem determinará as diretrizes gerais da história da família. Entenderemos porque os romanos pagãos preocupar-se-iam mais com seus amigos e sua prole em determinadas circunstâncias que com suas próprias esposas, e porque não hesitariam em cedê-las a seus patrícios. A primeira vista, isto nos parece incompatível com os valores e a idéia de propriedade familiar atual. Ganhará sentido em contrapartida ao longo de nosso trabalho. Do gineceu, câmara doméstica grega reservada para as mulheres ao celibato religioso cristão, passando pela família aristocrática medieval até o moderno "swing", ou "ménage à trois", veremos como os interesses da sociedade patriarcal como um todo posicionaram a mulher na história, e como a sua recente "libertação" pouco alterou a estrutura familiar geral.

O capítulo final desta monografia tratará da origem etimológica da nomenclatura familiar em geral para as principais línguas neolatinas: português, francês, espanhol e italiano, comparando-as. Este trabalho como um todo, afinal, nos permitirá compreender as diferenças e semelhanças existentes entre as relações de parentesco no seio das famílias do mundo românico ao longo da história e em função dela.

Do Império Romano

1- Uma breve história da ascensão e queda do Império Romano

Ao ser fundada em 753 AEC.[1], Roma era uma pequena povoação do Lácio, situada ao centro da Península Itálica. Roma consolidou seu poder a ponto de assenhorear-se de toda a península através de lutas ou alianças com os sabinos, volscos e equos etruscos. De 343 a 290 AEC., lutaram contra os Samnitas, e de 282 a 272 AEC. contra Pirro, e venceram.

As primeiras conquistas fora da Itália ocorreram durante a primeira guerra púnica. A Sicília tornou-se província romana em 241, seguida pela Córsega e Sardenha em 238 AEC. Data desta época a língua Sarda. A conquista da Ilíria (Dalmácia) e lançamento dos fundamentos do que viria a ser a língua dálmata datam de 229 a 228 AEC. De 225 a 222, é invadida e dominada a Gália Cisalpina (Itália setentrional, correspondente a bacia do Pó), e, em 215, Venecia (Veneza).

A segunda guerra púnica em 206 AEC. engendrou o início da submissão da Hispânia em 197 AEC., que só se concluiria em 19 AEC.

Entre 197 e 146 AEC., foram submetidas a Grécia e a Macedônia, e a Tunísia foi anexada ao império com o nome de África pela terceira guerra púnica, na qual foi destruída a cidade de Cartago.

O sul da Gália foi conquistado entre 120 e 118 AEC (Província Narbonense, gerando a língua que seria posteriormente o provençal), e de entre 58 e 51 AEC Júlio César conclui a conquista do resto da Gália.

Ao conquistar a Trácia, em 46 AEC, o império passou a ter por limites naturais o Reno e o Danúbio, e em 30 AEC é a vez do Egito sucumbir aos exércitos de César.

Augusto César conquista a Récia (Suíça, origem do romance ainda hoje ali falado) em 17 AEC, assim como a Vindelícia e a Nórica (Áustria). Em 9 AEC sucumbe a Panônia (Hungria).

Em 43 DEC[2]foi conquistada a Britânia (Inglaterra), em 50 a Bretanha ("nariz" da França), e em 70, a palestina levando à destruição de templo de Jerusalém. É aproximadamente a partir deste momento que o império outrora pagão começa a cristianizar-se. Em 85 é conquistada a Caledônia (Escócia) e em 107 a Dácia (Romênia). Seguem-se as conquistas da Arábia Petréia, da mesopotâmia (Iraque) e da Armênia. Este seria considerado o apogeu do Império (vide mapa anexo).

Em 395 morreria Teodósio e seus dois filhos menores dividiriam o império em dois: a parte ocidental caberia a Honório, e à Acádio caberia o império oriental. O império do Ocidente, que gerou a maioria dos países de línguas neolatinas existiria até 476 quando sucumbiria à invasão de Odoacro, rei dos Hérulos.

Enquanto o Império Romano do Ocidente se fragmentaria em reinos bárbaros no início da idade média, o Império Romano do Oriente originaria o Império Bizantino que resistiria a todas as investidas até a queda de Constantinopla, que marcaria historicamente o fim da Idade Média.

2- O latim vulgar

O termo vulgus significava "o comum dos homens" em latim. Latim vulgar significa "língua latina efetivamente empregada pelos homens". Assim como o português hoje guarda poucas semelhanças com o português de há dez séculos atrás, a língua latina também evoluiu e se transformou ao longo dos séculos de existência do Império Romano e após a sua queda.

Aproveitando este breve resumo da história da língua portuguesa, teceremos um paralelo entre as línguas portuguesa e latina para entendermos o que era exatamente a "língua empregada pelo povo" naquela época. Na verdade, a história da língua portuguesa é comparável à história da maioria das línguas no mundo, a começar por suas línguas irmãs, as outras línguas latinas. É comparável da mesma maneira à história da língua da qual é oriunda, o latim vulgar.

A língua popular expressa a sabedoria do povo em seu dia a dia, seus costumes e seus dizeres, sua capacidade de interação dentro e fora do grupo. Reflete também a hierarquia social vigente, cabendo a cada núcleo comunicar-se de sua maneira particular, usando o campo semântico que mais lhe convém. O latim popular, ou ainda, o latim vulgar, não era uma língua trabalhada previamente. Era espontânea, e respondia à necessidade de comunicação de todos, dos mais ricos aos mais pobres, dos mais cultos ao menos instruídos. De uso prático e imediato, dispensava pacificamente grandes complicações gramaticais, regras de fonética cristalizadas ou pormenores que poderiam chegar a atrapalhar a comunicação. Pelo contrário, preferia as formas analíticas às formas sintéticas, as preposições às complicadas declinações. A contra-parte lógica do latim vulgar é o latim clássico, língua morta que nos foi legada através de inúmeros textos e escritos. A língua clássica, neste caso, é pensada e repensada, corrigida, trabalhada ao longo do tempo, documentos produzidos já com a intenção de sobreviverem ao tempo e suscitarem a reflexão. Ao contrário da língua vulgar, preferia as formas sintéticas às formas analíticas, por expressarem um máximo de informações em um mínimo de espaço. Preferia as declinações às formas preposicionadas por serem móveis e encaixarem-se em qualquer lugar da frase, onde mais conviesse ao escritor. De fato, os escritores são também poetas a buscar beleza, sonoridade e profundidade. Virgílio, Tito Lívio, Ovídio e tantos outros nos deixaram dezenas de livros belíssimos que testemunham a beleza de seu trabalho.

Assim como o português que falamos hoje no Brasil é dinâmico, eficiente, prático, atende às nossas necessidades de comunicação e denota nossa capacidade de interação com os nossos semelhantes e com o mundo, aquele que herdamos de Camões nos faz remoçar nossa história e a história de nossa língua. Sim, nosso português de hoje está para o português de Camões como o latim vulgar esteve para o latim clássico. Nossa língua é diretamente descendente da língua de Cabral, ou seja, de certa forma a língua que Camões estudou e trabalhou até produzir "os Lusíadas".

A língua portuguesa não nasceu por geração espontânea ou por milagre divino. É ela própria a corruptela de outra língua que existiu nos territórios onde hoje se encontra Portugal, o latim. Após a queda do império romano, ao ser invadida por povos bárbaros, os falantes de latim vulgar foram isolados de sua metrópole. Desta forma, a sua língua passou a evoluir independentemente da língua de Roma, e viria a ser chamada de "romanço". Estes bárbaros, apesar de terem assimilado a língua do povo conquistado, deixaram também suas marcas na línguas da península, como já vimos antes. A península ibérica foi libertada posteriormente por Henry de Bourgogne, e seus soldados franceses, associado a nobres espanhóis, segundo orientação e financiamento do Vaticano. Foi criado então o reino de Portugal, e Henrique foi seu primeiro rei. No decorrer de sua história, Portugal expatriou talvez até mais gente do que recebeu, estendendo um império sem precedentes que chegou a dividir o mundo em dois com a Espanha, assinando o tratado de Tordesilhas. A Espanha, ou ainda, o reino de Castella, chegou a unir-se ao reino de Portugal durante oitenta anos, e, não obstante a ajuda inglesa a Dom João VI, as tropas de Napoleão chegaram a invadir Lisboa e ali ficar por um bom pedaço de tempo.

Já em tempos mais recentes, a partir de meados do séculos 19, definitivamente reconciliado com todos os seus vizinhos europeus, Portugal passa a importar sistematicamente tecnologia da França e da Inglaterra, e inspira-se em seu sistema de ensino para disseminar faculdades e escolas de alto nível na metrópole e em suas colônias.

Podemos observar ao longo destes séculos todos de existência da língua portuguesa que se trata um enorme cabedal dinâmico de informações as mais diversas, testemunha viva de uma parte significativa da história do mundo. Assim como alguns portugueses "em nossas densas matas se perderam e se encontraram", aqui se instalaram e fizeram filhos (nós), e legaram sua língua para a posteridade, há vinte séculos atrás romanos povoaram a península ibérica. E se os portugueses de Cabral se atracaram freqüentemente aos índios, os romanos também o fizeram com antigos lusitanos. Em detrimento de outra parte da história do mundo que já desapareceu com estes povos, impôs-se a história de nossos longínquos antepassados. Pois bem, tanto os romanos quanto os portugueses são povos sobreviventes e vitoriosos, que nos deixaram uma história, que, por mais sangrenta e questionável que seja, é a nossa história.

Eis também que a língua que falamos hoje no Brasil é o português, trazido por Cabral de navio, junto a escravos capturados na África. Aqui chegando encontraram um sem número de línguas indígenas em uso. Separados da metrópole por um oceano, e freqüentemente unidos aos índios e escravos por amor, sobretudo ao longo do tempo que flexibilizou os costumes. Esta língua, que é a nossa língua, vem diretamente deste português falado com sotaque Banto, Tupi, Angolano, até chegar aos diversos sotaques que temos hoje no Brasil. Ora, a língua oral é transmitida de pai para filho, e faz a história da língua. A língua escrita é objeto cristalizado, representante de um momento preciso da história, legado cultural de valor incalculável a contar-nos partes da história, como uma série de pecinhas que vão se juntando até formarem este gigantesco e intrínseco quebra-cabeças que é a nossa própria história. Assim como a bíblia judaica é dividida em duas partes, uma escrita, a Torá escrita e uma oral, a Torá oral, ou Talmude, nossa história é contada nos escritos que nos foram legados pelo tempo, e na fala do povo, retransmitida de pai para filho, de boca a orelha. Na tradição judaica existe a lei escrita que persiste ao longo do tempo já fazem mais de cinco mil anos, e existe a lei oral, tão importante quanto a escrita, compondo compêndios e compêndios de discussões rabínicas dignas de uma biblioteca como a de Alexandria. Esta lei oral se adapta segundo o tempo e as necessidades das pessoas atendendo impreterivelmente às suas necessidades. Esta lei oral evolui e re-explica sempre de maneira mais completa e atual a lei escrita, esta última imutável e concisa. A primeira, analítica, presta-se a férteis discussões, enquanto a segunda, sintética, contém intrinsecamente uma enorme quantidade de informações subentendidas, inspirando, justamente, as ditas discussões rabínicas.

Assim foi o latim vulgar, a língua falada pelo povo romano e seus soldados, levada aos quatro cantos do império. Assim, hoje falamos sem dúvida a língua que foi a língua do povo de outrora, e estudamos e discutimos nossa história escrita em livros.

Hoje, o Brasil é o país de língua portuguesa mais industrializado, e, para acelerar de modo significativo seu desenvolvimento não hesitou em importar tecnologia: de maquinário pesado a telefones, de calculadoras a liquidificadores. É natural então que esta tecnologia venha apelidada conforme o foi em seu país de origem. Expressões latinas foram substituídas por locuções estrangeiras de toda sorte. Na verdade, assim como todas as línguas do mundo, o português está sujeito à entrada de estrangeirismos e neologismos. O que virá a determinar a perpetuação ou o desaparecimento destas expressões e palavras será a sua utilidade e praticidade. A sua aplicabilidade imediata ou duradoura. A tendência de certas gírias será muitas vezes de ir-se com seus locutores ao longo do tempo, ou mudar com eles. Outras, se tornarão sem dúvida alguma brasileiríssimas, como 'futebol', 'alcool', 'lanche', 'bote', e, quem sabe até, serem exportadas para outras línguas?

3- A influência da cristianização do império na língua latina

Os antigos latinos pagãos não se expressavam de uma maneira precisa, mais ou menos como o francês de hoje, mas genericamente talvez como o inglês atual, guardando as devidas proporções, servindo-se de substantivos genéricos dos quais res é o mais comum. Esta característica do latim antigo que trai nos antigos romanos, segundo alguns historiadores, uma falta de penetração intelectual e de capacidade diacrítica, vem como uma das causas da grande pobreza do vocabulário latino antigo.

No entanto, sabe-se que o latim dos primórdios guardava muitas semelhanças com outras línguas do tronco indo-europeu, como o céltico e outras línguas germânicas também. Isto explica porque muitos povos bárbaros se assimilaram com tanta facilidade ao povo e à cultura romana . A complexidade dos períodos caracteriza o latim, regido por uma lógica ferrenha que empenha totalmente a mente de quem fala ou escreve, assim como a de quem o escuta ou lê.

Este tipo de expressão é próprio às línguas semíticas e do modo primeiro com o qual se expressavam os mesmos gregos e latinos. Acrescente-se secundariamente que na mesma língua literária de Roma as orações aparecem em estreita dependência gramatical lógica entre si, de modo que o período se apresenta como um imenso monumento de lógica e arte gramatical.

Esta característica do latim supera de longe o grego todas as outras línguas de estrutura semelhante. Poderíamos dizer que os romanos antigos fabricavam os períodos assim como fabricaram seu império, ambos mais imponentes que seus equivalentes gregos, já que foram obras de governo mediante leis realmente aplicadas na prática.

Querer supor que a sua língua denotava superficialidade ou falta de penetração intelectual é puro preconceito infundado. Possuíam isto sim, necessidades diferentes das nossas em seu dia a dia, e se expressavam em conseqüência. Assim como Lineu, no início do século, supunha poder classificar arbitrariamente o ser humano em quatro "raças", atribuindo a cada uma delas características específicas, existem ainda historiadores que insistem em qualificar línguas como "superiores" ou "inferiores".

A leitura dos clássicos latinos seria, para quem viesse a estudá-lo, uma palestra mental que proporcionaria o desenvolvimento das faculdades lógicas e construtivas.

Em prosas rítmicas e solenes, chamadas de Carmina, reis pontífices e sacerdotes romanos ditaram normas, teceram tratados e descreveram fatos, convencidos de que a forma oracular solene destes seus escritos convenceria a todos que recebiam inspiração divina do além. A reflexão crítica de pessoas como Títio Lívio foi dilacerando "mano a mano" a veste oracular da prosa pontífica. A prosa passou assim de sacra a profana, tornando-se assim acessível a todos.

O latim clássico estava para a religião pagã romana como o hebraico para a religião judaica, ou o chinês para Confúcio. A língua de um povo reflete o seu inconsciente coletivo, suas necessidades e aspirações. Sabemos assim que não podemos difundir conceitos provenientes de julgamentos ou opiniões, desprovidos que qualquer base científica.

O advento do cristianismo em Roma foi surpreendente em vários aspectos, inclusive no tocante ao comportamento familiar e à terminologia do parentesco. É interessante notar que um império pagão cristianizou-se por completo, gerando a posteriori nações cristãs. Como os pagãos adoravam dezenas de deuses, um a mais não seriam nenhum absurdo.

O cristianismo chegou à Roma trazido pelos gregos, com conceitos profundamente diversos daqueles da religião pagã de outrora. Ao começar a sua difusão, deparou-se com todo um sistema solidamente implantado que chegou a persegui-lo.

Tentar explicar conceitos cristãos à população romana da época deve ter sido o mesmo que tentar ensinar a anatomia de um ornitorrinco a um operador de torre de controle de aeroporto. A única forma de se transmitir estes conhecimentos tão insólitos seria a de empregar o jargão de aeronáutica em outro contexto. Algo improvável do tipo "o alimento chegando ao intestino de um ornitorrinco é como um avião desembarcando passageiros".

Por mais absurdo que possa parecer é mais ou menos o que ocorreu. Usando a linguagem familiar cotidiana dos candidatos a fiéis, os eclesiásticos trouxeram à língua latina uma nova dimensão subjetiva. Ao mesmo tempo, eram descritos os méritos do latim chamado clássico, que logo manifestou insuficiências lexicológicas que respondessem à nova demanda de termos. Para compensá-las, foi submetido ao longo dos séculos de sua história, a transformações de todos os gêneros.

A mais grave destas insuficiências, continuamente lamentada por aqueles que escreviam em latim – Lucrécio, Cicerone, e Quintiliano – era a pobreza de vocabulário. Para suprir esta insuficiência os escritores latinos eram obrigados a recorrer continuamente a perífrases muitas vezes longas e fastidiosas, que certamente não contribuíam com o entendimento sobre o assunto em questão, tão distante de sua realidade. Ainda no século IV, para que se tenha uma idéia, as exposições puristas do latim literário agonizante empobreceriam o latim de S.Agostino, impedindo-o de usar o neologismos como salvator. Mas, apesar das maldições dos puristas, foi empregado o latim cristão, semeado de vivos vulgarismos e de necessários barbarismos, entre os quais aqueles cristãos incorporados em sua língua literária.

O cristianismo penetrado em Roma e nas províncias ocidentais do Império com os seus ideais, oriundos de duas civilizações orientais, a semítica e a helenística advertiram naturalmente da necessidade de um instrumento lingüístico capaz de expressão por si próprio. Ao exprimir-se, não lhe bastaria o mesmo latim falado (sermo vulgaris) ainda que este, sem algemas puristas, se tivesse enriquecido continuamente com novas contribuições análogas.

Os pagãos que, apesar de não terem se cristianizado, transformaram-se todavia de outro modo sem terem se transformado lingüisticamente, não souberam manter-se ao nível da historia e desapareceram, deixando como padrões únicos da latinidade os cristãos.

O cristianismo sentiu desde o início a necessidade de atribuir significados novos a velhas palavras. Para tanto, contou com a contribuição de novas idéias oriundas de todos os povos, usadas inclusive posteriormente por estes mesmos latinos pagãos quando tiveram novas idéias a expressar. Assim, os novos conceitos cristãos de "fé" e de "humildade" apareceram, profundamente diversos e diretamente contrários àqueles expressos em fides e humilitas. Por tal via se alcançou um enriquecimento semântico vistoso das palavras latinas.

Mas aquelas que, majoritariamente levaram ao enriquecimento lingüístico foram as neoformações lexicais, derivadas do mesmo latim literário, do latim falado, e sobretudo do grego, que na era helenística expressava conceitos judaicos que se tornaram depois cristãos e, na era cristã tinha elaborado lingüisticamente os conceitos cristãos mais antecipadamente e abundantemente que o latim. Apareceram assim uma grande quantidade de nomes, muitos dos quais abstratos: compassio, baptimus, sensualitas, impossibilitas, holocaustum, reliquiarium, paradisus, abyssus, salvator, protector etc., e de adjetivos como: spiritualis, carnalis, acceptabilis, superfluus, disciplinatus, insensatus,etc e de verbos como adamplio, abbrevio, approximo, demembro subintroduco, humilio, etc. e tantas outras palavras realistas e pitorescas. Naturalmente, muitos outros neologismos foram criados na idade que seguiu a idade de Prata, pelos mesmos escritores pagãos esquecidos pelo conservadorismo lingüístico como breviarium, (Seneca), aequanimitas (Seneca,Plinium), vaticinium (Plinium), affectatus, possibilis e artificialis (Quintiliano), variabilis (Apuleio), etc. Estes também entraram no "magma" lingüístico tecido pelo cristianismo para enriquecer o vocabulário latino.

Em maior escala, os prosélitos cristãos encontraram na vida cotidiana do Império a nomenclatura necessária para expressar os conceitos pregados por sua religião. Mais do que isso: estes novos termos, que já traziam consigo uma história semântica, foram aplicados à interpretação religiosa, e, fomentaram desta forma o que viria a ser o catolicismo apostólico romano[3]

4- Fragmentação do império romano

Em meados do século III, as crises econômicas provocadas pelo desequilíbrio entre a arrecadação fiscal do estado e suas despesas com o aparelho militar e burocrático causaram um colapso do sistema escravista de produção. Seguiu-se a implantação do sistema de produção colonato, e, como conseqüência, os campos foram sendo abandonados. O êxodo de seus habitantes em direção às cidades, insuficientemente abastadas para tanto, cresceria cada vez mais, inversamente proporcional à queda de produção agrícola, causando uma alta de preços vertiginosa. Na área política, em compensação, a coesão político-militar do império foi minada pelos sucessivos golpes de estado e a intervenção sistemática do exército na estrutura do poder. Esta concentração do exército em torno de assuntos internos enfraqueceria a sua estrutura nas fronteiras, notadamente as dos rios Danúbio e Eufrates, cujos sistemas de defesa começavam a apresentar brechas, sob a pressão constante das invasões externas.

Em 295, Dioclesiano realizou uma profunda reforma político-social conhecida por Tetrarquia. Dividindo o império em quatro circunscrições, governadas por quatro governadores: dois Augustos e dois Césares, que os substituiriam em caso de suas mortes.

Constantino I foi proclamado imperador pelo exército reunificando o império após o fracasso da Tetrarquia. Transferiu a capital do império para o oriente, onde a crise ainda não tinha assumido as catastróficas proporções do Ocidente. Em 330, construiu a cidade de Constantinopla.

Posteriormente, em 395, com a morte do imperador Teodósio, o império foi dividido entre seus dois filhos menores: Arcádio, a quem coube o Império do Oriente, e Honório, que recebeu o Império do ocidente.

5-As marés bárbaras e os mouros

Nos séculos IV e V, povos germânicos do além-Reno viriam a ocupar terras fronteiriças, na condição de aliados ou federados. Organizados em geral em comunidades primitivas, seriam encorajados a invadirem as frágeis fronteiras do Império pela chegada dos temíveis hunos às terras da Europa ocidental. Estes últimos não haveriam de estabelecer-se definitivamente, mas proporcionaram uma união de todos os povos bárbaros circunvizinhos.

Finalmente, ante tamanha balbúrdia, Rômulo Augústulo, último imperador do Império romano do Ocidente foi deposto por Odoacro, rei dos hérulos.

Desta forma, os vândalos, que habitavam a Panônia (Hungria) emigraram para os países alpinos, e dali para a Península Ibérica, onde fundaram a cidade de Vandalucia (Andaluzia) e um reino no norte da África, onde sobrevivera,m até a chegada dos visigodos e dos bizantinos que os expulsaram.

Os suevos chagaram até a região noroeste da Península Ibérica, e ocuparam as regiões de Zamora, Leão, Salamanca e Galícia.

Após sistemáticas incursões à Península Itálica, estacionaram ao sul da Gália os visigodos em 411. Expulsos pelos francos em 507, chegaram à Península Ibérica onde criaram um reino Romano-gótico-cristão sediado em Toledo. Este reino sobreviveria até 711, quando da chegada dos árabes.

Os burgúndios, por sua vez, seriam expulsos pelos hunos da região de Worms, fixando-se na região que lhes herdaria o nome, no coração da França de hoje em dia: a Borgonha. Convertendo-se ao cristianismo, seriam incorporados paulatinamente ao reino dos francos.

Os alamanos deixariam seu nome para a Alemanha, e ocuparam inicialmente a Récia, (o norte da Suíça). Não assimilaram nem a religião nem a língua das populações que encontraram no caminho, por estarem apegados a suas raízes e seus ídolos pagãos. O dialeto rético encontra-se hoje dividido em três regiões descontínuas. Isto se explica pelos avanços sucessivos de dialetos alemães de um lado e italianos do outro.

Os ostrogodos invadiram a Itália entre os séculos V e VI, sediando-se no vale do Pó, na região de Verona. Seriam absorvidos posteriormente pela cultura bizantina.

Os anglos e os saxões, aproveitando-se da retirada dos romanos das ilhas britânicas ali se instalaram. Os bretões, celtas não romanizados, passaram das ilhas britânicas para o Noroeste da Gália, onde ocuparam a Armórica.

Os francos, vindos da região de Colônia, conquistaram todo o norte da Gália, até o rio Loire. Derrotando os visigodos em 507, conquistaram também o sul da Gália, estendendo até os Pirineus o seu domínio. Este período da história da França é particularmente interessante, já que, cristianizados, formariam junto à população romanizada um estado franco-galo-romano. Foi um período em que os habitantes da Gália conheciam não raramente os três idiomas fluentemente. Clódover (Clóvis), rei dos francos, compreendera a importância política da nova religião emergente, e, após ter desposado Clotilde, princesa burgunda cristã, fez de sua conversão um estrondoroso evento: seu batismo foi celebrado em grande pompa por Rémi, arcebispo de Reims (Champagne), no dia do natal. Tornou-se assim protetor da Igreja e única autoridade moral de toda a Gália desde o naufrágio do Império Romano do Ocidente. Quando morreu, em 511, Clóvis já havia fundado um reino franco vastíssimo que poupava apenas a Bretanha, a Aquitânia (Sudoeste da França) e a Provença. Neste reino conviviam com uma certa paz populações de língua germânica e de língua românica. Onipresente, a Igreja cuja língua oficial era o latim, multiplica seus monastérios que, com suas escolas de copistas, constituíram importante centro de difusão de cultura greco-latina após a queda do Império. O século VIII, com Carlos Magno, é marcado pela criação do Sacro Império Romano.

No meio tempo, os longobardos atravessaram os Alpes e ocuparam Milão (Mediolanum) na Itália em 568. Foram cristianizados e romanizados ao instalarem-se na planície do rio Pó, ainda sob domínio bizantino, e quando fizeram de Pavia a capital de seu reino, a Longobardia (Lombardia). Derrotados em 774 por Carlos Magno, tiveram seu território incorporado ao Sacro Império Romano.

Os árabes ocuparam todo o Norte da África e chegaram a invadir a França, mas foram detidos em 732 por Carlos Martelo. Atravessaram em 711 o estreito de Gibraltar penetrando da Península Ibérica e conquistando o reino visigótico ali instalado. Mantiveram com os povos conquistados uma cultura peculiar conhecida como cultura "moçárabe". Só viriam a ser expulsos dali em 1492 pelo movimento de reconquista promovido pelo cristianismo.

Estes dados concisos e a duração de cada um dos reinos não românicos que foram tecidos na România deveriam nos dar uma noção clara da importância que exerceram sobre a cultura neolatina. Pode-se assim cogitar no quanto de influência transmitiram ou receberam segundo a região envolvida.

6- O que chamamos de România

O que chamamos de România hoje em dia corresponde ao conjunto de regiões que pertenceram ao Império Romano e nas quais se falam línguas ou dialetos provenientes do latim. Dentro deste âmbito, são levadas em consideração também as respectivas literaturas e cultura de seus povos. Uma língua latina pode não ser a língua oficial de determinado país, mas pode tê-lo sido em épocas remotas e ter deixado literaturas significativas. Considerando as diversas contingências históricas às quais foi submetido o Império, a România não corresponde exatamente ao Império Romano em suas fases de maior estabilidade. Grande parte do que foi o território dantes dominado pelos Césares corresponde hoje a regiões onde não se falam línguas latinas. Fala-se uma língua germânica na antiga Britânia (Inglaterra), apesar da grande influência exercida pelo Latim, notadamente no âmbito familiar. Veremos mais adiante que as palavras father e mother têm origem na língua latina, assim como as palavras uncle ou ant. A Grécia não abriu mão de sua língua ou cultura, assim como a Síria e a África do norte adotaram línguas semíticas. É importante, além do mais, levar em conta que as nações da América Latina, com exceção do Suriname e da Guiana Inglesa falam línguas latinas, e que a estrutura organizacional de suas famílias é, não raro, calcada nos moldes da família romana. O mesmo vale para a parte francófona do Canadá.

A România pode ser dividida em quatro partes, em termos de grau de parentesco lingüístico:

  • 1- O Centro e Sul da Itália, com a Sicília, a Sardenha, a Córsega e a parte sul da Suíça;

  • 2- A Ibero-România, constituída por Portugal, Açores e Madeira, e Espanha e Baleares;

  • 3- A Galo-România, constituída pela França e as ilhas Franco-Normandas, parte da Bélgica e parte da Suíça;

  • 4- A Balcano-România, constituída pela Romênia e suas ilhas lingüísticas nos Bálcãs e na Dalmácia.

Na România, no entanto, também se falam línguas que não são de origem latina. Encontraremos o vasconço nas Províncias Bascas ao nordeste da Espanha e sudoeste da França, o céltico na Bretanha (bretão), o flamengo ao norte e o alemão na Alsácia. Ainda na Itália, encontraremos o Alemão (Tirol), o esloveno, o serbo-croata, o albanês e o grego.

Além do mais, muitas províncias do império romano se perderam. Dentre elas: a Britânia (Inglaterra) e a Caledônia (Escócia). Grande parte da Germânia (Alemanha) e da Récia (Suíça), a Panônia (Hungria), grande parte da Ilíria, a Macedônia, a Trácia (Iugoslávia), a Cólquida (Rússia), a Ásia menor, a Armênia, a Assíria, a Mesopotâmia (Iraque), a Arábia e toda a costa setentrional da África, do Egito a Mauritânia.

A família romana

1- A família romana

a) Considerações iniciais

O Império Romano existiu por mais de dez séculos, e dez séculos de existência são verdadeiramente um longo tempo. Podemos considerar que a cada 10 anos uma nova geração vem ao mundo, e que a esperança de vida da época podia variar de cinqüenta a sessenta anos, salvo os soldados. De um ponto de vista "macro-cósmico", é possível estabelecer uma seqüência de fatos mais pertinentes e listá-los disciplinadamente. A visão distante de um historiador nos permite acompanhar a história do Homem como um todo. A nível "micro-cósmico", entretanto, percebe-se que o poder de ação do indivíduo se limita a seu âmbito, ou seja, literalmente ao espaço que ocupa na vida, modesto, na enorme maioria dos casos. Em outras palavras, dentro do contexto que nos interessa, isto significa que o homem comum passa a maior parte de seu tempo em torno das questões existenciais que o envolvem, e ele é geralmente mais submetido aos fatos históricos do que autor da história propriamente dita. Como as transformações mais significativas da história do mundo ocorrem em média com cinqüenta anos de intervalo entre si, ele vê o decorrer de sua vida com relativa tranqüilidade. O que hoje é sua cidade o será em geral dez ou vinte anos mais tarde, salvo em casos de catástrofes maiores. Assim também se passa com a humanidade nos dias de hoje, que existe em vários "níveis" por assim dizer: enquanto indivíduos e enquanto todo. Apesar do todo ser constituído pela história dos indivíduos, estes vivem separados do todo. No máximo, procuram estudá-lo e tentam apreendê-lo. Nasce daí a dificuldade de se estudar o Homem dentro de seu contexto e em função dele, sem menosprezá-lo ou mitificá-lo. De fato, tentar estudar o Homem de Roma através de uma sucessão de datas equivale a tentar lidar com a efemeridade de uma borboleta. O que é um dia de nossas vidas, um entre os milhares que se sucedem sem trégua, representa um ciclo vital completo de um lepidóptero. Se por um lado esta existência improvável nos parece exageradamente curta, não podemos esquecer que nosso amigo inseto terá conhecido sua infância, adolescência, juventude (transviada, quem sabe, para o desgosto da senhora "braboleta", sua mãe), maturidade, reprodução, velhice, decrepitude e decesso. O tempo é um conceito discutido e estudado até hoje, e ainda muito mal compreendido. De fato, eis que ao estudar a sua história, o Homem deve lidar com a própria efemeridade, sem jamais incorrer no erro de menosprezar o próprio Homem.

b) Para tentar compreender o cotidiano de uma família romana típica

O Império que deve ter contido uma importante porcentagem da população mundial da época orbitava em torno de Roma, sua capital. Vislumbrar algo semelhante não é tão simples quanto possa parecer. Imaginar dezenas de vias e bulevares repletos de gente de tudo quanto é tipo e de tudo o quanto é procedência caminhando apressadamente para todos os lados, instituições com horários de abertura e fechamento, sedes governamentais e não governamentais, escolas, comércios e albergues, viajantes... Sim, Roma deve ter sido de fato a "Big Apple" da época, e durante vários séculos. Estrangeiros de todos os cantos do mundo conhecido em busca de uma vida melhor. Provincianos (os caipiras da época), pessoas idosas sentadas em praças lembrando dos "velhos tempos" e dos bons costumes que àquela "altura do campeonato" já haviam de estar ultrapassados. Aqui, jovens descabelados de toga portando tábuas de mármore correndo atrasados para a aula de arquitetura ou retórica. Ali, outros discutindo o que haveriam de fazer na semana seguinte, e os incríveis lances perpetrados por seus gladiadores favoritos no Coliseu. Acolá, uma mãe repreende sua filha por ter-se apaixonado por um escravo. Esta mesma filha desejando adquirir a toga da moda, não quer freqüentar um pretendente apresentado por sua mãe só porque possui uma biga de última geração.

De fato, de Tito Lívio a Ovídio, quanto da história das pessoas não foi contado... ou deixado para trás. Quantas vidas inteiras não se sucederam, como as borboletas que todo dia nascem e morrem sem que lhes testemunhemos as histórias. Nascimento, infância, adolescência, juventude transviada e maturidade, casamentos e separações, expectativas, gravidez e partos, velhice, decrepitude rodeada de entes amados e decesso...

2- O núcleo familiar básico

a) A união

A organização estatal de Roma era invejável e funcionava razoavelmente bem. Sua economia girava em torno da guerra, e, portanto, em torno do soldado, o elemento masculino. As prolongadas campanhas militares afastavam o homem de sua família e o ocupavam durante grande parte de sua vida. O serviço militar poderia durar 25 anos. Nestas duras condições, a mulher era relegada a um plano secundário, mas necessário. Ela geraria os novos homens, aqueles que haveriam de tornar-se soldados quando sua vez chegasse.

Muito do que ocorre na transformação da terminologia familiar começa pelo elemento feminino. Realmente, o fato dos homens saírem cedo do lar e passarem a maior parte do tempo defendendo o reino proporcionou a aparição de lares essencialmente femininos. Os primeiros contatos dos garotos, futuros homens, era efetivamente com essas mulheres.

Apesar dos romanos terem herdado em grande parte a cultura e a organização social dos gregos, como veremos mais adiante, eles determinaram uma doutrina jurídica e um conjunto de leis que situavam a situação familiar dentro do marco da sociedade. No século II foram codificadas práticas de higiene relativas ao parto e à maternidade: dois corpos de preceitos indiscutidos até a idade das Luzes.

O direito romano, objeto de estudo até o século XX é essencialmente patriarcal: institui na família o poder do pater familias sobre os filhos. Mas até muito recentemente, o vínculo biológico entre um homem e seu filho carecia de evidência: pater semper incertus. Para transformar um cidadão romano em pater, a lei lhe reconhecia autoridade plena e completa sobre os filhos que criava como seus. Não era em benefício próprio, mas para servir a sua gens, sua família, sua linhagem, assim como a sua cidade. Cada cidadão deveria produzir futuros cidadãos de boa qualidade e isto haveria de lhe constituir um dever cívico, uma espécie de magistratura. O pater familias é o patriarca incontestado da típica família romana, a exemplo do "macho dominante" reinante entre as mais diversas espécies de animais, que aparece na Espanha e em todas as suas colônias ostentando o título de "padre". Em Portugal e em todas as suas colônias, com o título de "pai", na França, "père" e na Itália "padre". Em todos estes lugares e em todos os casos, o apelido carinhoso ganho pelo patriarca, constando não menos freqüentemente entre as primeiras palavras balbuciadas por suas respectivas proles é "papa".

"Papa" lembra também comer, como "papinha", ou em italiano "pappare", e em francês "popote". Este sentido denota a obrigação principal do patriarca no que tange a sua família em geral, e sua prole em particular: provê-los.

A mater familias é vista por muitos historiadores como não mais que a esposa do pater familias. Ela poderia receber tanto este título quanto o de matrona, dependendo das características do casamento, depois da noite de bodas, de maneira a dar sentido a sua função reprodutora. Existe ainda hoje em francês o termo "matronne" e seu homólogo italiano "matròna". Se seu "cargo" na família romana fosse assim tão modesto quanto o colocado, será que "matronne" hoje não significaria outra coisa que "chefe de família mafiosa" (matronne de la mafia), assim como "matròna" talvez não viesse a significar "mulher alta, imponente"? De fato, existe também em francês como em português o termo patronne, a verdadeira "patroa", a dona de um estabelecimento. Seja como for, tanto a mater francesa, a "mère", quanto a "madre" italiana ou espanhola, e nossa "mãe" receberam como carinhoso apelido o "maman", "mamma", "mamá" e "mamãe" respectivamente. Este termo é tão difundido que até na China chamam sua genitora de "mama". Esta apelação denota diretamente a função principal exercida pela mater familias no contexto de família: a de dar de mamar, de alimentar a prole, realmente uma "mamma italiana", com um "coração de mãe", que não deixa jamais de alimentar.

A mulher romana se casava cedo em relação a nossos padrões, entre os doze e quinze anos. Os romanos acreditaram durante muito tempo que o coito favorecia a vinda da menstruação, e, com ela, a fertilidade. A educação da esposa haveria de completar-se no seio da família do marido. Isto coincide curiosamente com hábitos do interior do Nordeste brasileiro em que a jovem esposa muda-se para a casa da família do marido logo após o casamento, ou ainda da família do sul da Itália, quando a recém casada chega a adotar até a religião do marido.

O cidadão romano poderia inclusive adotar o filho de outro cidadão e tratá-lo como herdeiro predileto. As mulheres, que não transmitiam diretamente nem o nome e nem os bens, não poderiam adotar ou serem adotadas. Pode-se dizer sem embargo que o direito romano, em sua sabedoria, deixava as portas abertas para a afetividade: nenhuma lei proibia que se distinguisse (sem adotá-lo) um filho que não fosse da família. Um filho que se pudesse mimar e encher de presentes... em troca de afeto apenas. Esta criança seria chamada de alumna ou alumno. Muitas mulheres pleitearam este direito com sucesso. Uma inscrição emotiva expressa o duelo de uma mulher que viu falecer a sua alumna: a jovem não ia poder cuidar de sua mamma na velhice. E o texto diz claramente mamma e não mater como seria de se esperar. Isto evoca um mundo à margem de conceitos de linhagem, um mundo de intimidade e ternura.

Caberia unicamente ao pai integrar um filho à família. A parteira depositaria o recém nascido no solo, e, caso aprovado pelo pai, seria apresentado ao restante da família. Caso contrário, o pequeno haveria de ser "exposto" em um lugar previsto para tal efeito, à mercê dos deuses. O pai poderia tranqüilamente rechaçar um filho enfermo ou uma filha excedente, para alijar-se das cargas familiares envolvidas. Esta possibilidade universalmente aceita explica porque não existem nos anais da história romana nem meninas-mãe nem filhos bastardos. Estes hábitos eram também comuns na idade média, sobretudo em momentos de maior escassez, quando uma menina ou um aleijão se tornaria um fardo para o grupo, bocas a mais a serem alimentadas. Não esqueçamos que pouquíssimas espécies de animais na natureza cuidam de indivíduos aleijados. Muitas os eliminam logo ao nascerem, como os gatos, por exemplo. Assim também foi com o Homem ao longo da história. A evolução da sociedade como um todo e a abundância proporcionada pelo progresso nos levou a apegarmo-nos aos indivíduos mais desprovidos desde seu nascimento. Para alguns deles inclusive poder-se-ia achar utilidade na sociedade romana: o circo. O imperador Cômodo, afeito ao espetáculo de gladiadores[4]sacrificaria pessoalmente vários deles nas arenas, para o delírio das gerais.

Ao firmarem-se os conceitos essenciais de família cristã no seio do Império pagão, cresceu em importância e influência a célula familiar, alicerce da sociedade religiosa, assim como o alcance de sua nomenclatura. Em outras palavras, nomes que até então se aplicaram tão somente ao núcleo familiar passaram a designar conceitos que excediam os limites dos lares. Sabe-se que o latim pagão apresentava um léxico incompatível com as necessidades de expressão da questão religiosa cristã. O fato de uma mesma palavra poder apresentar vários significados no latim pagão, sintético e conciso, levaria a interpretações diversas da lei religiosa, absolutista por natureza, que poderiam ir de encontro a seus preceitos. A linguagem litúrgica religiosa romana preconizava definições específicas, tais como "céu", "alma" ou "cristo", que justificassem sua ideologia. Assim, para que até os cidadãos mais simplórios pudessem entender, aceitar e relacionar-se convenientemente com os papéis precisos desempenhados pelas entidades eclesiásticas e espirituais propostas pelo cristianismo romano, seria necessário mudar a natureza de uma parte do léxico da língua pagã. Primeiramente, o emprego de termos familiares de uso geral, otimizaria o alcance das pregações, recorrendo-se inclusive ao latim vulgar[5]em detrimento do latim clássico, este último ainda vigente à época, usado nas pregações pagãs. Analítico, passando-se de firulas lingüísticas literárias desnecessárias e aberto a neologismos, serviu à religião como que uma luva a uma mão. A linguagem descomplicada e objetiva do dia a dia ajudaria a estabelecer o padrão de raciocínio exigido pela nova identidade religiosa sem maiores problemas. Estes são os fatores que explicam a presença da nomenclatura familiar essencial no jargão religioso romano.

b) a família divina

De fato, o "Criador" da religião judaica era denominado originalmente por sete nomes próprios, tais como "A.donai", "J.eová", "E.l", mas jamais seria chamado de "pai" (aba). Em grego, o "Criador" era chamado de "Theos", proveniente de "Zeus", principal deus pagão do Olimpo, assim como a própria palavra "D.eus". Para que se entendessem os preceitos desta nova religião, os romanos usariam metáforas em geral que, apesar de facilitarem a compreensão de conceitos complexos, haveriam de corrompê-los, fomentando, com o tempo, os alicerces de uma nova religião: o catolicismo romano. Assim como a religião pagã considerava seus deuses em famílias, como Saturno, pai de todos, ou Júpiter, seu filho que tomou seu lugar, diferentemente das outras culturas monoteístas vigentes e emergentes, "o Criador" para eles haveria de ser chamado de "D.eus pai", verdadeiro pater familias em gigantesca proporção. Assim como Júpiter, o D.eus único romano engendrara o Homem, haveria de provê-lo, protegê-lo, e até mesmo puni-lo. De fato, assim como o patriarca romano tinha a liberdade de desfazer-se de seus filhos indesejados ou rejeitados, selecionando esmeradamente a sua prole, o "D.eus pai" também haveria de ser exigente com o mundo. Descartaria seus parias para toda a eternidade. Assim como os rejeitões romanos pagãos eram abandonados à mercê dos deuses em lugares especialmente preparados para este fim, para os deixarem somente com a própria vida, os excluídos da humanidade haveriam de ser abandonados por sua vez em um lugar de onde jamais sairiam, a mercê de entidades espirituais que ali habitassem. Nasceriam então os conceitos de "inferno" e "diabo" católicos, inexistentes na única religião monoteísta da época: a religião judaica. Na verdade, os conceitos existenciais judaicos da época assemelhavam-se mais aos dos pagãos romanos que aos dos cristãos romanos[6]Assim como o pater familias tinha autoridade para integrar livremente crianças que não eram suas e fazer delas parte de seu clã, "D.eus pai" o faria com todos os pagãos que desejassem ser seus "filhos".

Em menor escala que a de "D.eus pai", a autoridade exercida pelo patriarca romano é igualmente legada aos responsáveis da entidade religiosa, o "padre" cristão, apostólico romano. Podendo interceder a favor ou contra o homem junto ao criador, patriarca maior, não é raro vê-lo punindo ou excomungando.

A mater familias tampouco era deixada para trás quando se tratava da família celeste propagandeada pela religião emergente. Qual pater familias não teria sido ele próprio engendrado uma mater familias? Nem o patriarca do universo haveria de ser uma exceção. Contrariamente ao "Criador" dos hebreus, sem "família" na terra, a "mãe" de D.eus romana incorporava a maioria dos novos preceitos de comportamento que regeriam a vida sob a égide do catolicismo.

Intercedendo junto ao patriarca em favor de seus filhos amados, capaz de perdoar o mais atroz dos pecados, verdadeira mater que se recusa a separar-se de sua prole, Maria (Miriam) não deixou de ter um filho perfeito e favorito, apesar de amar a todos da mesma forma. Se a virgindade não era um tabu até então, passaria a ser. Qual é o filho que apreciaria ver sua mãe com outro homem que seu pai? Nem o "filho da mãe", eufemismo para o pior xingamento que existe nas línguas latinas, o da maculação da genitora por ato sexual libidinoso. "D.eus filho" certamente não teve este desgosto nem de perto afinal, nem seu próprio pai teve intercurso com sua mãe. Ademais, Uma verdadeira mater abster-se-ia prazerosamente de todo e qualquer ato de desonra para o filho, especialmente um filho unigênito seu como o pater familias do universo, seu favorito. Um ótimo filho, diga-se de passagem, que tampouco incorreria nas faltas comuns a todos os homens na juventude: o filho da "mãe de D.eus" não freqüentaria jamais mulheres que a sua mãe e pai não tivessem aprovado, e, aliás, se dependesse da mãe, como é mais ou menos o caso de muitas mater "corujas", ele não sairia com mulher alguma. Foi o caso de seu abnegado filho. Não teria perambulado com más companhias, e sem dúvida, salvo uma ovelha negra, as companhias com quem perambulava "D.eus filho" eram excelentes. Uma grande mãe tem ainda sem dúvida filhos perfeitos, em boa saúde e aparência. Maria não foi uma exceção à regra.

Uma análise simplória das orações do "Pai-Nosso" e "Ave-Maria" sob ótica da semântica familiar romana revela a importância da terminologia familiar na religião emergente.

"Ave Maria, cheia de graça, o senhor é convosco e bendito sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre Jesus. Sta Maria, mãe de D.eus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte."

Eis ressaltadas as noções do "ventre", como veremos no capítulo que segue, presente em todos os tratados do direito romano, e a noção da maternidade, atributo principal da mulher romana. Ela nada pode fazer por ninguém a não ser rogar pelo bem alheio.

"Pai-Nosso que estás no céu, santificado seja o vosso nome. Venha a nós o vosso reino e seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, e perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos de todo mal, agora e na hora de nossa morte." Entenda-se esta família como a família do mundo vindouro.

A família divina era portanto uma família perfeita, exemplo a ser seguido pelo povo

romano cuja sociedade se estruturaria em torno destes mesmos moldes familiares.

c) o divórcio

A sociedade pagã romana não via inconvenientes maiores na prática do divórcio, e este não era tão raro. Muitas vezes originado pelo marido que esperava por meio de novas alianças incrementar o poder de sua linhagem, a ruptura era rápida e sem maiores formalidades, bastando para tanto uma carta. Os filhos permaneceriam na residência onde tinham nascido. Como a lei e os costumes protegiam os laços sangüíneos, a mãe não deixaria de vê-los regularmente. A instauração posterior definitiva do cristianismo trouxe ao sistema romano novas complicações, como a proibição do divórcio, o celibato no sacerdócio e outras tantas mudanças. Mas hoje em dia, no seio de um mundo moderno que distingue cada vez mais a organização política das nações das organizações de cunho religioso, o casamento civil proporciona a um casal justamente o direito de separar-se de uma forma razoavelmente simples, e ao cônjuge que não permanecer com a guarda dos filhos de visitá-los regularmente, baseado nos laços sangüíneos. Ainda assim, os romanos iriam mais longe. Não seria excepcional que um cidadão se divorciasse de uma esposa fértil em benefício de um amigo privado de descendência. O caso mais conhecido foi o de Catão de Útica, que se separara de Márcia, grávida dele, para que ela pudesse casar-se com Hortensius, privado de herdeiros até ali. Tratava-se de uma forma de adoção pré-natal. Estes acordos não eram segredo para ninguém, e todos sabiam que o filho de Hortensius havia sido engendrado por Catão. Desconhece-se apenas os sentimentos de Márcia.

E se por acaso o pai morresse durante a gravidez de sua mulher, o feto teria garantido o seu lugar como herdeiro de seu pater. O jargão jurídico designava o garoto como "ventre", e assim era tratada a mãe juridicamente: um "ventre".

d) A ótica científica da época

Desde os seus primórdios, Roma foi uma cidade guerreira, e a função das mães era sobretudo a de repovoar as legiões. A sua fertilidade estava ligada às glórias e às provações pelas quais a pátria teria de passar. Até nos tempos mais remotos, quando a sua função era "cuidar da casa e fiar lã", aceitavam serenamente, e, segundo alguns historiadores, com grande orgulho a perda de seus filhos na guerra. Mais tarde, no século II AEC., o modelo acabado de mãe virtuosa foi Cornélia. Patrícia de um meio culto, filha do grande Scipião, vencedor de Aníbal, casou-se com Tibério Semprônio Graco, trinta anos mais velho do que ela, cônsul de origem plebéia. Dos doze filhos que tiveram, apenas três sobreviveram. Viúva aos trinta e seis anos, confiou a educação dois de seus filhos aos melhores mestres gregos. Preparou então seus filhos para ação política, para a conquista do poder. Sua ambição era ser "a mãe dos Gracos". Ambos faleceram de morte violenta durante as guerras civis, Tibério em 133 e Caio em 121 AEC. Retirou-se então para sua vila em cabo de Missena, onde recebia muitas visitas, tinha um salão literário e celebrava o culto de seu pai, seu marido e seus filhos. Um século mais tarde, consolidou-se a sua lenda. Seu exemplo de abnegação e amor à família constituiu um excelente exemplo para os moralistas conservadores até a metade do século XX.

O que se sabe da higiene das damas romanas remonta essencialmente a um médico grego, Soranos de Éfesos, que fez uma brilhante carreira na Roma de Trajano e Adriano. Verdadeira bíblia para seu tempo, a sua obra As enfermidades das mulheres[7], perdeu-se com o tempo, mas seu conteúdo foi transmitido de boca a orelha. Sua modernidade é tão surpreendente que uma leitora de hoje poderia identificar-se com ele. Soranos deixava entrever que as mulheres se portariam melhor se as deixassem viver suas fantasias, sem obrigá-las a casar-se ou terem filhos. O alcance desta obra denota a liberdade relativa com a qual estas idéias circularam naquela época e as discussões que suscitavam então. O grito de liberdade feminina atualmente é não raro exatamente este.

A obra destinava-se essencialmente a parteiras, visando convertê-las em especialistas, para que conhecessem as ciências fundamentais, como anatomia, embriologia, ginecologia e obstetria, além de todos os meios terapêuticos disponíveis, da dietética à cirurgia. Esta mulher perfeita, dotada de saberes, experiência e tato, compaixão e sangue frio não atrairia a atenção de qualquer homem dos dias de hoje? Que se lhe acrescente a toga e o penteado da moda, e temos aí a mulher ideal.

Desprovido da noção cristã posterior que assimilaria o aborto e a contracepção ao suicídio, Soranos prescrevia métodos de uma mulher evitar a gravidez indesejada. Se ele compartilhava a opinião de outros médicos a respeito de aborto, que deveria ser evitado, era mais para proteger a saúde da mãe que por razões morais.

As leis de natalidade de Augusto prescreviam que cada cidadão deveria possuir pelo menos três filhos. Assim, mesmo que mantivesse outros hábitos, um homem deveria fecundar a sua esposa. Soranos prescrevia aos homens mulheres de boa saúde. Quanto à "outros hábitos", referia-se provavelmente à homossexualidade masculina, largamente praticada no Império Romano pagão. Herança da cultura grega helênica, que não via restrição alguma no amor entre seres do mesmo sexo, pelo contrário, valorizava-o, o homossexualismo latino poderia ser explicado por Freud. Uma sociedade patriarcal que girava em torno da figura masculina em busca da perfeição, protegida por soldados que também eram cidadãos, e, sobretudo, na qual os homens viviam durante longos intervalos de tempo longe de qualquer mulher, imprimia no inconsciente coletivo uma imagem masculina a ser desejada. Os atletas apresentavam-se desnudos nos ginásios, a exemplo dos atletas helênicos, e, para que atingissem o máximo da beleza masculina, seus genitais recebiam cuidados especiais na mais tenra das idades: Soranos prescrevia que se estirasse diariamente o prepúcio e se rodeasse o escroto do bebê com lã.

Tudo isto não impediria os homens que admirassem outros homens de terem esposas e filhos. O bissexualismo moderno (entre homens casados que desejem permanecer casados) só difere do romano por não poder ser assumido publicamente.

As dietas prescritas por Soranos para as mulheres grávidas fariam corar os nossos nutricionistas. Seriam necessários tantos séculos para darem-se conta que a dieta baseada em carne branca de ave e legumes cozidos constituem refeições leves e balanceadas? Óleo de oliva e mirra evitariam estrias, não se sabe como. Mas esta receita equivale certamente às tão milagrosas quanto inúteis pomadas antiestrias vendidas pela televisão. Que as mulheres, no entanto, acreditassem nestes milagres caseiros àquela época é perfeitamente compreensível. Banhos mornos contribuiriam com a tranqüilidade das futuras mães de outrora, e exercícios vocais estimulariam a respiração. Creio que as donzelas da época não precisassem de termômetros para descobrir que a água estava tépida.

Os cuidados de puericultura de Soranos, foram retransmitidos e respeitados durante dezesseis séculos. Consistem essencialmente em modelar o pequeno para que se consolide como ser humano. De massagens no rosto ao cuidado com cada membro do bebê, as mães poderiam gabar-se de moldar os novos guerreiros de Roma.

Para esvaziar o nariz e as orelhas do bebê, poderíamos supor que as mães do interior do Brasil leram Soranos: a receita é a aspiração.

Não se pretendia de modo algum que as clientes de nosso médico dessem de mamar, e os moralistas as acusariam de querer preservar a beleza dos próprios seios. Supõe-se ainda que as mães mais sensíveis quisessem evitar um apego mais profundo a crianças cuja sobrevivência parecesse aleatória. Outra razão plausível é a de que o pai queria assegurar a sua linhagem, e não necessariamente a da sua esposa. E acreditou-se até pouco tempo atrás que o leite, assim como o sangue, também transmitia caracteres hereditários.

Ainda hoje existem campanhas que incentivam as mães a amamentarem, assim como Soranos recomendava o leite materno, mas não reprovava amas-de-leite. Aliás, seus conselhos sobre como eleger e tratar uma ama-de-leite foram seguidos e transmitidos por médicos até meados do século dezenove.

Como já vimos, a civilização romana foi destruída no século V, mas o direito romano como um todo foi redescoberto no século XI na Península Itálica, e preferido em detrimento dos costumes das nações bárbaras. Seu prestígio e autoridade se incrementaram a partir do século XIII até o XVI. As obras de medicina, conservadas e copiadas em monastérios foram a principal fonte de saber dos médicos ocidentais até a idade clássica, e, em certos casos, até a época de Pasteur.

As heranças grega helênica e judaica

Falar de algo complexo como a herança grega ou judaica na cultura romana é o objeto de um trabalho gigantesco que ultrapassaria em muito a proposta atual. Estes parágrafos não serão mais que resumos simplificados de um ou outro aspecto destas complexas culturas que poderão nos acrescentar algumas informações interessantes.

1- A influência helênica

a) os gregos

A mensagem dos gregos expressava-se essencialmente de duas formas: pela ciência e pelo mito. O pensamento mítico traduzia em imagens, relatos e metáforas aquilo que a razão não poderia apreender. A dimensão simbólica da maternidade, força da vida e da renovação da espécie era tão forte quanto a veemência dos sentimentos e emoções. Por outro lado, a medicina, a biologia e a filosofia se esforçaram por explicar o papel específico do homem em sua própria perpetuação.

Esta foi a primeira fonte cultural da qual beberam nossos antepassados distantes. Dos deuses do olimpo que só mudaram os nomes para entrar livremente na religião romana, à filosofia e questionamento existencial. Vale salientar que o grego era a língua franca antes da ascensão de Roma, falado e respeitado em todo o oriente e norte do continente Africano. Muitos romanos dominavam fluentemente o idioma que foi a segunda língua do império durante muitos anos.

b) A língua grega no ocidente latino.

A aristocracia romana falava e escrevia grego até o século II AC. Fabio Pittore, P. Cornélio Scipione, Apostumio Albino, C. Acílio e outros nobres romanos, para rebater historiografias como as de Filino, e até mesmo de Aníbal, compostas com o intento de denegrir os romanos, escreveram em grego para demonstrar que as conquistas romanas não eram determinadas pelo espírito de pilhagem e pela violência brutal, mas simplesmente por uma civilização superior destinada fatalmente a expandir-se.

Dali em diante, o conhecimento da língua grega foi estendendo-se mais e mais entre os mais variados setores da população romana, inclusive nas províncias ocidentais que recebiam sempre em maior números falantes e escritores de grego das províncias orientais. Cicerone chegou a constatar: Graeca leguntur in omnibus fere gentibus, latina suis finibus, exiguis sane, continentur(pro Archia).

Da Grécia, da Ásia, da Síria, do Egito, vinham para o ocidente multidões de escravos, mercadores, artesãos, magos, adivinhos, poetas e filósofos, todos falantes e freqüentemente escritores da língua grega. Na Itália, Gália, África, Espanha, se falava tanto grego que poderia ter-se reivindicado o título de centro propulsor do helenismo ecumênico.

No início da era cristã, portanto, o conhecimento da língua grega ia muito além das cercas dos aristocratas. Conferências, epigramas e charadas circulavam em grego de Roma a Cártaga. Autores latinos como Suetonio e Apuleio, além do imperador Marco Aurélio, compunham e divulgavam obras literárias em grego. O grego era na época o que seria hoje o inglês ou o francês nos países da África e da Ásia, apesar destes últimos terem freqüentemente adotado o Árabe como língua oficial.

c) As mulheres

A organização familiar grega incluía um cômodo à parte na casa chamado gineceu. Viviam aí confinadas as mulheres, consideradas desinteressantes pelos homens. Privadas de educação, sequer eram consideradas cidadãs. Cresciam aprendendo a costurar e fiar, e despertavam assim pouquíssimo interesse em seus maridos, que as consideravam ignorantes e fúteis. É fato conhecido que os gregos helênicos admiravam infinitamente mais os outros homens, com quem passavam a maior parte do tempo. Os romanos herdaram desta cultura, como já vimos, mas mudaram ao longo do tempo, inclusive devido à influência do cristianismo e de suas pregações morais específicas que condenavam o homossexualismo.

d) Os espartanos

A relação dos espartanos com suas famílias eram no mínimo insólitas. Plutarco conta em Vidas, na página 6, que eles casavam raptando suas esposas não quando pequenas e imaturas, mas já em plena idade e amaduradas. A chamada "ninfêutria" encarregar-se-ia da raptada, tosando-lhe o cabelo rente. Vestia-lhe manto e calçado masculinos deitando-a só, sobre um leito de palhas, no escuro. O noivo jantava, como sempre, na fitídia, e depois, sóbrio e não embriagado numa patuscada, vinha ter com ela, desatava-lhe o cinto, tomava-a nos braços e levava para o leito. Passava com ela um breve lapso de tempo e saía, bem composto, para ir dormir no lugar de costume, na companhia de outros jovens.

A mulher era obrigada a maldizer a própria origem e prometer fidelidade ao marido. Este só seria capaz de ter com ela se ela estivesse literalmente vestida como um homem. Hoje, algumas esposas se queixam que seus maridos preferem ficar na rua com os amigos do que com elas.

e) O "Theíos"

A palavra latina thius apareceu no latim tardio, significando "irmão dos pais em relação aos filhos destes". Este helenismo é de uso comum exceto em francês e em alguns outros falares, como o catalão, o occitano ou o romeno, que permaneceram fiel ao latim, avunculus que, como veremos mais tarde, viria a gerar a palavra oncle. O Sardo manteve ambas as formas. Derivado do Grego theíos, a palavra thius em latim era inicialmente empregada unicamente no feminino thia, como muitas quando da sua aparição. As mulheres eram sem dúvida mais acessíveis a transformações, inclusive pelo fato de não terem participado diretamente das guerras que marcaram a vida do império do início ao fim de sua história. Permanecendo mais tempo nas cidades e nos círculos sociais, tinham tempo para modismos. Algo que evidencia isto é o fato do dialeto occitano não apresentar vocábulo algum proveniente da palavra thius no masculino em benefício do vocábulo oncle, mas empregar correntemente a palavra tia.

Amita, "tia do lado paterno" em latim perdurou apenas em Francês como tante, rético e alguns outros dialetos vizinhos.

2- A herança judaica

a) Abraão e os primeiros judeus

Tendo nascido em época remota nas regiões da mesopotâmia e no oriente médio, presumivelmente em uma cidade denominada Ur, mais antigo núcleo de civilização encontrado na região, entre os rios Tigre e Eufrates, Abraão foi o patriarca do povo hebreu e do povo árabe, perpetuando profundas mudanças no mundo antigo. Fundador da religião judaica, está na origem da religião muçulmana, tendo engendrado dois filhos, um patriarca de cada religião respectivamente. Isaque, patriarca do povo hebreu, e Ismael do povo árabe.

O conhecido episódio do sacrifício de Isaque, desencorajado por D.eus, segundo a mitologia, na origem do hábito da circuncisão, é tido, segundo alguns historiadores, como a abolição do canibalismo no mundo ocidental. Costumavam alimentar-se da carne oferecida em holocausto.

A lei mosaica viria a prescrever posteriormente os elementos chave que lhes permitiriam sobreviver nas condições mais extremas. As primeiras noções de higiene foram codificadas, como a da própria circuncisão, considerando que naquela época e naquelas condições morrer-se-ia facilmente de uma fimose. A carne de porco fora eliminada do cardápio definitivamente. Sabe-se hoje que, bem cozida, não deveria apresentar maiores problemas. Foram declarados "impuros" os portadores de lepra, assim como aqueles que porventura encostassem em cadáveres. A lavagem das mãos tornou-se um ritual, sem o qual seria improvável persuadir os mais ignorantes a lavarem-se as mãos antes de comer.

Da mesma forma, entre os dez mandamentos, encontra-se o de não adulterar. Seguindo a mesma filosofia, historiadores propuseram a teoria de que, por detrás deste mandamento escondem-se doenças venéreas fatais (na época), evitadas por aqueles que se mantivessem dentro do círculo familiar. Pior. Uma traição no seio desta sociedade solidamente estabelecida poderia significar a contração de uma doença venérea, e a sua transmissão para a esposa e a sua prole, ameaçando todo o frágil equilíbrio social, tão duramente conquistado. É provavelmente nesta altura da história que aparecem as proibições explícitas que envolvem a bestialidade, o homossexualismo, a dissecação de cadáveres e o consumo de carnes que não tenham sido primeiramente sangradas.

O advento da AIDS nos dias de hoje nos revela uma triste realidade. A de que aproximadamente quarenta por cento das mulheres contaminadas pelo HIV são casadas, e foram contaminadas pelos próprios maridos.

A única forma de retirar as pessoas da total selvageria que freqüentemente reinava no oriente médio a cinco mil anos atrás foi o total enquadramento dos indivíduos e o estabelecimento de um código "universal" que, se seguido à risca, asseguraria a perpetuação da espécie, qual gigantesco manual de instruções e cuidados necessários para fazer funcionar esta complexa máquina em evolução constante que é a sociedade humana.

Neste contexto de regras em que um observava o outro como meio de encorajamento sistemático, em meio a uma liturgia constante e presente que obrigava as pessoas a recordar sem cessar os seus deveres, o núcleo familiar desempenhava o papel de célula base deste novo exército que se criava, chamado Homem civilizado.

Esta célula básica familiar só funcionaria caso se estendesse a todos na tribo. Um sistema social qualquer que seja naturalmente não admite indigência de qualquer espécie sob risco de entrar em colapso. A indigência no mundo moderno está tomando proporções alarmantes, e é provavelmente o que o levará ao colapso. É nesta época que o casamento adquire uma importância primordial entre os hebreus, em detrimento da perambulação inadvertida do nômade do deserto. Temos aí o aparecimento dos primórdios do casamento judaico da antiguidade, quando o grupo se preocupava em encontrar um par para todos.

A mulher passa a ocupar uma posição de importância considerável na vida sob a égide dos reinos de Saul, Salomão e David. Alicerce da vida do antigo peregrino agora sedentário, ela passa a ser diariamente venerada e admirada na liturgia religiosa para que o homem nunca esqueça do que "mais conta em sua vida", ou seja "D.eus, sua família e seus filhos", afinal ele passaria a compartilhar a sua vida esta pessoa.

Ao contrário da cultura cristã que tem sua origem em uma mulher virgem, a virgindade em si não constituía um tabu entre os hebreus. A mulher desejada era a mulher fértil, mãe de um sem número de filhos, possivelmente até mãe de seu próprio marido no sentido freudiano.

b) O "aba"

O pai da família hebréia era denominado aba. e a mãe de em. O primeiro está possivelmente na origem da palavra avis, do latim, que significava "avô", ou ainda antepassado, como veremos mais adiante. Na verdade, a letra bet em hebraico pode ser lida tanto como [b] quanto [v]. É possível que o aba dos hebreus desempenhasse uma função semelhante a do aviuolo, que já não era o pater familias. Com uma influência não desprezível, naturalmente, mas algo diferente da do pater, contando diariamente histórias às crianças, e a ocupando-se de perto de sua educação, o avô romano parece aproximar-se do pai judeu de então. Ao fim da vida, já aposentado, seus últimos anos de vida orbitavam em torno do núcle familiar Apegado ao núcleo familiar e ao clã, lembra também o avô das famílias siciliana ou nordestina.

Da terminologia familiar

Enfim, tomando todas as famílias de palavras existentes oriundas da terminologia familiar romana e relacionando-as com a sua palavra de origem, poderemos perceber em um nível maior as funções ocupadas por cada um de seus membros.

O pater familias podia ser associado a diversas qualidades, segundo os vários substantivos dele provenientes, e tudo o mais que a ele foi associado ao longo da história:

PATER pai, o patriarca, genitor, possui autoridade para julgar, está na origem inclusive do padre religioso, portador simbólico destas qualidades todas, e, em maior escala, D.eus pai.

PATRASTER segundo pai, desposa a mãe e cria seus filhos. Lembremos que não raro, um Romano poderia educar um filho que não tivesse o mesmo sangue. (pt padrasto, fr beau-père) "meio pai".

PATRINUS pai por afinidade, assume a responsabilidade de criar os filhos de seus

Patrícios em caso de decesso deste último. (Pt padrinho, fr parrain esp padrinho).

PATRONUS protetor, defensor, proprietário, "manda-chuva" (it padrone, fr patron, pt patrão).

Modelo a ser imitado (pt padrão, fr patron, it padrone).

PATRÍCIO da mesma Patria, relativo ao pai descendência patrilianear.

PATRIMONIO Tudo aquilo que possui um pater familias que se preze (fr patrimoine).

COMPATER Quando dois pater familias se entendem. (Con = juntamente)

PETRA (fr.Perron, it petrone) base sólida de pedra, banco seguro sobre o qual pode-se sentar.

e ainda O PARRICÍDIO assassínio de um entre querido (-cídio vem de caedere, matar)

E sabemos que certamente o pater familias era isto tudo e mais um pouco. Em língua castelhana, um Padrejón é uma histeria que acomete os homens, que também têm seu lado vulnerável.

Para a Mater familias:

MATER-TRIS (pt mãe, fr mère, it e cast madre) mulher que deu à luz um ou mais filhos, possui uma autoridade religiosa (Madre). Só não se perpetuou em romeno.

MATRASTA (pt madrasta, fr belle-mère) novo casamento do patriarca, mulher do pai, educará os filhos deste como se fossem seus. "Meia-mãe".

MATRINA diminutivo de mater. (pt madrinha, cast madrina, fr marraine) substitui a mater na criação das crianças em caso de decesso da Mater

MATRONA Mulher alta, elegante (it matrona), chefe de família (fr matronne) mulher do PATRONUS. "Madrona" existiu mas apenas como nome próprio de mulher. Madronale it, é adjetivo significando enorme, garrafal.

COMMATER Comadre, pt,ou ainda fofocas desinteressantes (comérage fr), duas mães que se entendem.

COMADRONA Parteira, em Cuba e Espanha.

MATERNITAS Materno, maternal, maternidade

MATRIMONIO O ato do casamento.

MATRIX Matriz, casa-mãe, maison mère fr, origem.

MATRÍCULA -úcula, diminutivo feminino, pequena matriz, entrar para a família como filho menor.

METROPOLIS emprestado ao grego é formado com madre e cidade. Cidade-mãe

Aliás, um dos xingamentos mais vulgares do mundo envolve diretamente a linhagem do xingado. Quem não se revolta ao ter sua mater familias depreciada publicamente?

A palavra irmão tem duas vertentes principais em língua latina.

FRATER Pt frade, fr frère, it fratello. Filhos dos mesmos pais, ou ainda membros de uma mesma confraria. Religioso que possui uma pequena autoridade, com o sentido de poder aconselhar. Está ao mesmo nível que o consulente, qual verdadeiro irmão.

FRATERNO Relativo a irmão, bons sentimentos, fr fraternel, como um irmão. Fraternidade, grupo de pessoas com interesses afins, confraria.

FRATICÍDIO assassínio de um irmão.

Para distinguir o irmão de sangue do meio-irmão, os romanos apelidavam-no de FRATER GERMANUS

GERMEN-IS germe, semente, descendência, prole.

GERMANUS do mesmo germe, verdadeiro, puro e referia-se a tudo "germano asinus, germana ironia". Rapidamente passou para o léxico da nomenclatura familiar para diferenciar o parentesco de primeiro grau da família carnal. O termo "primo irmão" mantêm-se até hoje em português, espanhol, e francês: cousin germain. Na idade de ouro do latim, dizia-se frater germanus para significar o irmão por parte do pai e da mãe, por oposição ao meio irmão, ou hermanastro. Em Veneto e na lombardia ocidental, esta palavra indica primo.

HERMANASTRO meio-irmão, irmão por consideração.

IRMANDADE equivale a fraternidade

Em baixo latim este uso ganhou terreno, onde era largamente privilegiado em detrimento de frater e soror. Produziu-se na Itália, no entanto, uma reação que conduziu ao predomínio completo de fratello e sorella no idioma literário. Na França, todavia, o uso de frère e soeur manteve-se firmemente enraizado, com exceção de uma ou outra forma de germano em dialeto occitano, ilhado. O termo "irmão" ou "hermano" só triunfou completamente na península ibérica desde os mais antigos documentos literários.

Substituir frater por irmão evitava confundir o primeiro com monges e religiosos, mas isto não explica completamente esta preferência, já que em francês também se emprega comumente frère e soeur para os religiosos e até hoje e não se faz confusão, mesmo porque costuma-se acrescentar um nome próprio logo depois do título: "frère Jean". É uma idéia sugestiva. Sugere também que a preocupação com o fato de ser genuinamente filho tenha tido importância durante o domínio dos Árabes, que não se misturavam tanto, visto que entre eles também havia esta preocupação.

A "irmã" era chamada de soror, em latim, no caso nominativo.

SOROR Irmã, engendrada pelos mesmos genitores. Irmã religiosa (da mesma ideologia) fr soeur, it sorella (diminutivo de soror).

CONSOEUR fr, mulher de uma mesma confraria, feminino de confrère (confraria)

SORORIUS Cunhado, marido da irmã.

Sobrinhos e netos, em latim clássico, eram chamados de Nipote, da palavra Nepos-otis tanto.

Vêm daí as palavras pt neto, fr neveu e nièce (sobrinho apenas), it nipote (sobrinho ou neto) e cast nieto. O fato de serem empregados os mesmos termos para todas as crianças da família que não eram filhos diretos indica que apenas estes últimos eram diferenciados, e, junto ao pater familias, gozavam do mesmo estatuto. Mas o emprego destes termos como este sentido não durou.

Como os lares romanos eram essencialmente compostos por mulheres, os nomes de família iam aparecendo inicialmente no feminino. Assim, o primeiro filho da irmã seria chamado de Sobrinos. Esta mesma palavra vem de sors, irmã no acusativo. Con-sors-primus , "o primeiro juntamente com a irmã", e evoluiu para consobrinos, e para sobrinos.

CONSOBRINUS Denominava depois todos os primos carnais. É o que explica que em pt moderno chama-se de primo de segundo grau o filho do primo, que, no entanto, são de gerações diferentes.

SOBRINUS filho de irmão ou irmã, cunhado ou cunhada. Inicialmente, não designava o mesmo grau de parentesco que consobrinos.

PRIMO primeiro, o que antecede os outros quanto a tempo, lugar, série ou

classe. Filho do tio ou da tia.

PRIMOR delicadeza, gentileza, de primeira qualidade.

PRIMEIRIÇA Mulher que pare pela primeira vez, que se antecipa.

CONSOBRINUS PRIMUS primo irmão, ou ainda, primo primeiro, que, por oposição

gerou o primo segundo, terceiro... Primo sobrinho: inovações do castelhano e do português, no séc XII.

PRINCEPS primo caput, primeira cabeça, principal, ou seja, literalmente o príncipe, fr prince.

As formas do It cugino, e do fr cousin são de origem autóctone. Seria lícito suspeitar, segundo este dicionário que a forma consobrinus primus se tenha transformado em consoprimus e posteriormente em cosimprimo (sul da Itália), analisada em cosin primo. Faltam provas, no entanto.

"Primo" em espanhol de cuba significa tonto, que pode ser enrolado, sentido figurado provavelmente do primo que vem do campo, facilmente ludibriado.

NEPOS descendente vide nepotismo.

NEPTA Latim clássico. A forma masculina, nepto seria corruptela do latim vulgar.

THIUS irmão dos pais em relação aos filhos destes. Do latim tardio, thius, é derivado do Gergo THEÎOS. Este helenismo é de uso comum exceto em francês e em alguns outros falares, como o catalão, o occitano ou o romeno. Que permaneceram fiel ao latim AVUNCULUS > oncle.

O Sardo manteve ambas as formas. Thia foi um estrangeirismo na moda que inicialmente também só se aplicava às mulheres, aparentemente mais acessíveis a transformações. No occitano dizem oncle, mas tia! Amita, "tia" em latim perdurou apenas em Francês, rético e algum outro dialeto vizinho.

RETIO Tio de segundo grau, conceito inexistente em português.

No Brasil chama-se de tio o professor, provavelmente da época da ditadura militar, para mudar a natureza da relação professor-aluno. (A um tio não se paga salário). Crianças que mendigam nas ruas chamam a todos de tios e tias, para alguém de mais idade.

Na Espanha, "aquel tío" designa depreciativamente qualquer sujeito. "No hay tu tía", para dizer que algo ruim é inevitável,ou algo bom impossível, é típico de Aragão (na forma feminina, como o era em geral em latim).

COGNATOS irmão de um dos cônjuges e vice-versa, cunhadio, parentesco entre cunhados. it Cognato

Significava "parente político" e vem de "con- nato", parente consangüíneo. Natus = nascido con =juntamente. Em baixo latim, significava parente de qualquer classe. Ao fim do séc. XIII a primera cronica general "emprega cunhado" no sentido de parente por afinidade.

A forma francesa beau-frère (cunhado) apareceu no séc XIV, primeiro registro, seguido de belle-soeur (cunhada) belle-mère (madrasta) beau-père (padrastro), belle-fille (nora) , beau-fils(genro), oriundos de termos franceses de respeito e de afeição, como beau sire, beau dous ami... e eliminaram os termos tradicionais latinos de radicais variados.

No séc XV estas formas de beau-père e belle-mère, eliminaram marâtre e parâtre, que assumiram por sua vez um sentido pejorativo, vide a madrasta má de "Branca de neve". Bru (nora), tende a desaparecer, dando lugar a belle-fille

gendre (genro) se perpetuou no léxico familiar francês.

FILIUS Herdeiro. It figlio, fr fils, port filho.

FILIASTER Filho de um primeiro casamento, afilhado.

FILIUOLO it. Figliuolo, fr filleuil, diminutivo especializado pelo cristianismo, "filho querido".

AFFILIARE Termo jurídico latino, tomar como filho.

AVUNCULUS fr aïeul (antepassado) e oncle (tio). Referia-se a todos os antepassados. É o que explica que em português digamos "meus avós" no sentido de "meus antepassados".

AVIOLA pt avó, cast habuela. Do latim vulgar, e diminutivo de avia do latim clássico, e emprestado à línguas semíticas como o hebraico aba. esp avuela (avozinha). Aviola está documentado em latim como apelido de alguém de pouco vigor físico, de uma forma irônica.

BISAVIOLA duas vezes avó, como bis significa duas vezes.

TRANSAVIA trans, (mais além) é o prefixo que está na origem de "tataravô", cuja nasalização se teria perdido com o tempo. Assim teríamos a palavra "atrás", "detrás", "atrasar" entre outras como "trasmontano". A palavra "trasnieto" aparece na história do castelhano como aquele que é anterior ao "biznieto", de onde "tranieto". Dai, teria surgido o "tra-tranieto", ou ainda, o "tataraneto", e, por analogia, o tataravô. "tátara" chegou a ser empregado como "muito": "Tátara lindo" (BJ Gallardo), e "Tátara malo" (moreto). Atrás em Bilbao significa "de novo": "que te dean un cuarto atrás" (novamente).

A forma francesa para "avós", grand-père e grand-mère, substituiu aïeul por eufemismo, e explica também que era o aviolo, um "grande pater familias".

O masculino veio provavelmente do feminino, pois os diminutivos em –olus só poderiam ser formados a partir de palavras que terminassem em –ius ou –eus. O masculino correspondente a AVIA era AVUS em latim. Em outras línguas românicas o masculino também é oriundo do feminino. De fato, as crianças sempre mantiveram um contato mais estreito com o lado feminino do lar, da mãe e da avó.

Bibliografia

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. Ed. Nova Fronteira, 1982.

COROMINAS, J. Diccionario Critico Etimologico De La Lengua Castellana. Editorial Griedos S.A.

Nouveau Dictionaire étymologique et historique Larousse, 1964, librairie Paris VI

"Dedico este trabalho ao privilégio de ter cursado com tranqüilidade cinco anos de uma universidade pública em meio às convulsões políticas e sociais que assolam nosso país."

Agradecimentos

Agradeço a todos os professores e colegas de estrada que participaram da minha vida nestes últimos anos. Agradeço ainda o apoio recebido em casa por parte de minha mãe, Marie-Constance Fischbach, e às mulheres que suportaram resignadamente meus desequilíbrios emocionais, e ainda ao Rabino Yaacov Israel Blumenfeld.

 

 

Autor:

Bruno Benjamin Scialom

benjaminscialom[arroba]gmail.com

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Rio de janeiro, dezembro 2002

Trabalho elaborado sob a orientação do professor José Carlos de Azeredo, do Departamento de Letras, pelo aluno Bruno Scialom, do curso de letras, Português -Italiano, oitavo período.


[1] Antes da Era Comum

[2] Depois da Era Comum

[3]

[4] Vide o filme O gladiador, de Scoot

[5] Vide o parágrafo "O latim vulgar" no capítulo "a expressão latina"

[6] Vide o capítulo "A herança judaica"

[7] Danielle Gourévitch, Le mal d'être femme et la médecine dans la Rome antique,Paris, Les belles lettres,1984



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