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Inúmeras são as teorias que tentam conceituar e definir o crime. Elas advêm do distante século XVII, através de lições apontadas por eméritos autores, a exemplo de Carrara, Lombroso, Garófalo, Beccaria (em sua sempre lembrada obra "Dos Delitos e das Penas"), Ferri dentre tantos outros. Em realidade, séculos antes da era cristã já registravam o interesse de filósofos, sociólogos e pensadores gregos e romanos, nesse mister. E, invariavelmente, todos os caminhos de lá para cá traçados indicam dois pontos em comum: o crime como doença individual e como derivado das diferenças que grassam nas sociedades ditas civilizadas.
Mas, para o objetivo deste artigo, o que se deseja é identificar a teoria geral do delito em seu âmago conceitual. "La teoría del delito no estudia los elementos de cada uno de los tipos de delito, sino aquellos componentes del concepto de delito que son comunes a todos los hechos punibles". Esses componentes, segundo Navarrete, são elementos indispensáveis ao conceito de delito, e podem ser assim classificados: a) ação, b) tipicidade, c) antijuridicidade, d) culpabilidade e, segundo alguns, e) a punibilidade; tais seriam os componentes essenciais à integração do conceito de crime.
Araújo Neto aponta, ainda, outro detalhe fundamental na teoria geral do delito: seu caráter estritamente jurídico, e não advindo de fundamentações filosóficas, religiosas ou morais, o que, na prática, acaba desvirtuando a compreensão do que seja o crime. Todavia, vale frisar que andam juntas as duas vertentes que conceituam o delito: as definições materiais e as definições formais. Enquanto as primeiras "utilizam critérios que rompem o limite do direito positivo, lançando-se muitas vezes em uma perspectiva psicológica, filosófica, sociológica etc" – representada por ilustres pensadores como Carrara, Garófalo e Ferri –, as segundas, transitam no terreno do direito penal positivo, com nomes como Mezger e Antolisei à frente desta corrente.
Enfim, o crime, em sua essência conceitual, pode ser entendido como uma ação antijurídica praticada pelo ser humano, passível de punição e culpável em base ao resultado que provoca, independentemente de ser doloso ou culposo.
Adicionalmente, para se tipificar o crime e aplicar-se uma sanção ao seu autor, necessária a existência de uma lei que o especifique, entendendo-se o sentido de lei como cunhado por Montesquieu - "Leis são relações necessárias que decorrem da natureza das coisas" – ou por Aristóteles - "a lei é a razão sem paixão". Ou seja, uma norma que pode ser natural ou jurídica e que vem tutelar o comportamento do indivíduo como ser social.
A norma legal, em tese, deveria atender à necessidade de se tutelar um comportamento considerado inadequado diante das normas sociais, a fim de manter o equilíbrio e o bem-estar do ambiente social. Todavia, nem sempre o legislador está atento a esse relevante detalhe, não raro acabando por impor à sociedade uma lei inócua, ineficaz ou simplesmente inexeqüível. E aí, o escopo maior da lei é subvertido por sua deficiência textual e pela falta do seu alcance sobre aqueles que a infringem.
Os anos 90 (século XX) foram caracterizados por dois aspectos gritantes, em termos de incidência sobre o equilíbrio da sociedade brasileira. O primeiro deles, aparentemente saído do âmbito econômico mundial, foi a constatação da irreversibilidade do processo globalizador da economia no planeta, trazendo em seu cerne o desemprego crescente, a flexibilização das normas trabalhistas, a proliferação das MPEs (Micro e Pequenas Empresas) e o crescimento desmesurado do trabalho informal. Tudo em decorrência da abertura das portas brasileiras a investidores e organizações empresariais estrangeiras, possuidores de maior poder de barganha, em base a tecnologias mais avançadas, mão de obra mais barata e outros quesitos mais que derivam em competitividade maior.
Já o segundo aspecto se refere a um impulso anormal no crescimento da delinqüência em amplo sentido, e, mais especificamente, naqueles crimes tidos como de alto poder ofensivo, a exemplo do seqüestro, como postulante ao primeiro lugar nessa desagradável lista de transgressões penais.
Se o segundo aspecto derivou (ou foi incrementado em decorrência) do primeiro aspecto, não cabe neste momento analisar, vez que não é o escopo deste artigo e, mais do que isso, porque demandaria uma análise longa e exaustiva sobre o cruzamento das variáveis de ambos os setores – econômico e social-criminológico – e em como essas variáveis teriam influenciado no aumento da criminalidade. Contudo, se não derivou, pelo menos pode se dizer que influenciou bastante no segundo aspecto, uma vez que alterações sociais expressivas, quando incidentes no equilíbrio do bem-estar comunitário, costumam trazer em sua esteira resultados nada agradáveis que culminam na prática de crimes de variada espécie.
A época (anos 1990), em suma, mostrava claros sinais de turbulência, com a prática de seqüestros proliferando assustadoramente, em paralelo com outros crimes tão hediondos quanto, o que acabou por motivar o legislador a redigir e aprovar a chamada Lei dos Crimes Hediondos – a Lei n. 8.072/90, cujo fundamento está insculpido no artigo 5º, inciso XLIII, da Magna Carta de 1988.
De imediato, doutos operadores do Direito alteraram a voz em protesto contra "a dureza e o excessivo rigor" da citada norma, principalmente no que concerne a esta poder estar contraditando outros princípios constitucionais – apesar de, como visto, ter se baseado num deles, de histórico e relevante teor. Santos indica, neste sentido, que tais leis denominam-se de leis de afogadilho, por se constituírem de um tipo legislativo que atende a princípios de pânico instalado no seio social e, assim, virem responder à pressão da opinião pública "e às suas paixões ou interesses segmentados", resultando daí leis imperfeitas, a exemplo da ora exposta.
Veiga, por seu turno, reforça a posição de Santos, ao afirmar que: "A Lei de Crimes Hediondos representa uma grande mutação da forma com que o Estado passou a tratar determinados crimes; crimes estes considerados pelos legisladores, como de maior gravidade social. Estes, a partir do início da vigência da Lei de Crimes Hediondos, passaram a ser tratados com uma forma punitiva mais agressiva por parte de um Estado que, na época, já se via acuado por crimes como o seqüestro, por exemplo, que já chocavam a população, que, por sua vez, clamava por punições mais severas para os mesmos".
Para o Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Sepúlveda Pertence, quando da fundamentação do seu voto no julgamento do Habeas Corpus n. 82959 (23.02.06), concedido a Oséas de Campos (condenado a 12 anos e 3 meses de reclusão por atentado violento ao pudor contra três menores de 6 e 8 anos), "esse movimento de exacerbação de penas como solução ou como arma bastante ao combate à criminalidade só tem servido a finalidades retóricas e simbólicas" – referindo-se ao determinado pela Lei dos Crimes Hediondos, em seu art. 2º, parágrafo 1º, que proíbe a progressão de regime de cumprimento de pena dos enquadrados sob o mandamento desta norma legal.
Incontáveis são, enfim, os defensores que pretendem ater-se ao estrito cumprimento do due process of law, enquanto parecem desconsiderar a qualificação dos crimes tutelados pela lei em tela. Cabe, aqui, fazer-se essa ressalva em alto e bom som. Se estes (os defensores da pecha de abusividade dada à Lei dos Crimes Hediondos) atêm-se, estritamente, ao disposto na norma genérica sustentada na individualização da pena – pela qual, então, caberia ao julgador singular determinar o nível da punição estritamente de acordo com cada caso e, por isso, suavizar a reprimenda mesmo em casos de crimes hediondos –, então, para que e por que a existência de uma lei mais dura, cujo escopo vem ao encontro da minimização do incentivo à reincidência? Se toda lei, no momento em que é aplicada, observa as peculiaridades do delinqüente e do seu crime, e, em base a essa observação (algo bastante subjetivo e personalíssimo, diga-se de passo), aplica a pena e o regime de cumprimento desta, então estaremos, sim, sendo permissivos a ponto de facilitar – para aqueles que possuem poder de barganha de alguma espécie – ou dificultar – para os outros não incluídos no rol de apaniguados do Poder Judiciário.
A Lei dos Crimes Hediondos veio, sim, atender a um clamor popular, revoltado contra crimes como seqüestro, tortura, tráfico de entorpecentes e por aí afora. E, por óbvio, o fez com um texto duro e adequado aos níveis de agressividade que esses crimes representam para a sociedade ordeira. Condescender e apegar-se a outras normativas, para tentar minimizar a reprimenda justamente merecida por este tipo de criminoso é, no mínimo, incentivar a que o mesmo repita seus torpes atos, graças à suavização do castigo por estes atribuído.
Em outras palavras, se há que se praticar a lei e o devido processo legal em todos os seus mais ínfimos detalhes, então haverá de se legislar, também, com todo o rigor permitido a fim de punir exemplarmente aqueles que delinqüem, na estrita proporção dos níveis de ofensa dos seus crimes. Ou tudo, ou nada. Ou a norma legal serve para todos – e, neste sentido, entenda-se também o papel particularmente passivo da sociedade submetida à marginalia, cada vez com mais ênfase e com menor defesa por parte do Estado –, ou estaremos diante de uma sociedade de valores invertidos, onde "depende de quem" para saber "o que e como aplicar".
De início, observe-se o que Veiga afirma a respeito do teor excessivamente duro da lei em tela: "Destacamos ainda que se mostra de imensurável importância uma explanação sobre a impossibilidade de progressão de regimes e o livramento condicional extraordinário, pois certamente o objetivo do legislador, ao estabelecer estas sanções de maior intensidade, foi coibir o aumento desenfreado da criminalidade percebida, e, em contra senso, é concreta a não eficácia da mesma em relação a estes objetivos".
Desmerece citar outros ilustres causídicos que chancelam esse tipo de afirmação, pois, pelo visto, é praticamente consensual esta posição, no mínimo, discutível. Mas, apenas para reforçar, veja-se também o que Santos expõe sobre o fundamento constitucional da referida e polêmica lei: "O legislador constituinte de 1988, ao editar a norma do artigo 5º, XLIII, criando a categoria dos ''crimes hediondos'', bem como o legislador ordinário, ao regulamentar esse preceito através da Lei n. 8.072/90, agiram apressada e emocionalmente na linha da ideologia da law and order".
Explicando: a ideologia da lei e da ordem (de cunhagem norte-americana, nos idos da década de 1970) é baseada, como bem destaca Santos, na condição da criminalidade como "uma doença infecciosa a ser combatida e o criminoso um ser daninho. Assim, a sociedade separa-se em pessoas sadias, incapazes de praticar crimes, e pessoas doentes, capazes de executá-los, tendo a justiça o dever de separar estes dois grupos para que não haja contágio dos doentes aos sadios. Foi então declarada guerra contra o grupo nocivo a fim de eliminar crime, criminalidade e criminoso". Em que pese haver certo exagero nesta premissa da law and order, seu fundamento não deixa de possuir um forte senso de equilíbrio social. Aliás, falta-lhe apenas a diferenciação dos diferentes "níveis de doença" do indivíduo criminoso, a fim de aplicar-lhe reprimenda condizente com tais patamares. De resto, há, sim, uma guerra declarada entre a sociedade ordeira e a marginalia. E esta guerra, saliente-se, foi imposta não pela sociedade ordeira, mas por aqueles que optaram por trilhar caminhos obscuros do ilícito penal. Portanto, nada mais justo do que se instalar esse combate, velado ou não, entre aqueles que cultuam a paz e os que realimentam, permanentemente, os horrores da guerra. Daí aquele histórico adágio popular: "Se queres paz, prepara-te para a guerra".
Pois bem. Foi essa potencial "guerra" – que hoje bem se observa nas insólitas cenas televisivas da (ex) Cidade Maravilhosa, no cruento embate entre as forças do Exército Brasileiro e os diversos bandos de traficantes, nas castigadas favelas dessa cidade – que, nos idos dos anos 90 (século XX), fundamentou o legislador no sentido de tentar pôr um basta nos abusos da marginalia contra a sociedade ordeira e trabalhadora.
A Constituição Federal de 1988 é que deu embasamento para a tão decantada Lei dos Crimes Hediondos, ao determinar que "são considerados inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia os crimes definidos como hediondos" (art. 5º, inc. XLIII). A cita lei recebeu o nr. 8.072/90 e, em seu bojo, nomina diversos crimes (latrocínio; extorsão qualificada pela morte; extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada; estupro; atentado violento ao pudor; epidemia com resultado morte; envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte – crime excluído posteriormente, talvez inadvertidamente –; e de genocídio; tentados ou consumados). Posteriormente (Lei n. 8.930/94), acrescentou-se a esses crimes, o homicídio, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, "ainda que cometido por um só agente", e o homicídio qualificado, ademais dos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo.
Tais crimes, sublinhe-se novamente, são insuscetíveis de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória, "possibilitando-se ao condenado por sentença recorrível apelar em liberdade apenas quando assim o permitir o juiz, em decisão fundamentada, a seu critério", além das características peculiares de: (a) prisão temporária com prazo máximo de 30 dias, prorrogáveis por igual período (desde que comprovada a necessidade de tal); e (b) execução da pena integralmente em regime fechado – sendo permitido o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, só nos casos de ser o agente não-reincidente específico em crime dessa natureza. Como coroamento desta norma, lhe foi atribuída a característica especial de não permitir o regime de progressão da pena – fato que, de pronto, provocou (e continua a provocar) o levantamento de vozes em contrário, dada a sua pretensa arbitrariedade e inconstitucionalidade.
Em que pese não ser, a redação de referida lei, tão prolixa como caberia, ao deixar lacunas inexplicáveis – aliás, não é inusual que isto ocorra, mormente em se tratando de textos legais (como este) elaborados em regime de urgência e sob forte pressão do clamor popular –, a citada Lei dos Crimes Hediondos, como dito anteriormente, veio tentar pôr um freio à desabalada carreira criminal, em crimes de conformação repulsiva. O festejado Alberto Silva Franco, define como hediondo, o delito que mostra características de "asqueroso", "repugnante", "sórdido", "depravado", "abjeto", "horroroso" ou "horrível". Todavia, a lei em tela, cuidadosamente, deixou de conceituar o vocábulo "hediondo", preferindo elencar os crimes que assim deveriam de ser considerados pelo julgador – embora não lhe permitisse (ao julgador), por outro lado e ao arrepio da norma, definir por si próprio a qualificação criminal para então julgá-la como hedionda – o que, convenhamos, se constituiria em flagrante contra-senso e, mais do que isso, atribuiria excessivo poder ao magistrado.
Em tese, destarte, a lei ora em abordagem tenta ser anormalmente punitiva, infligindo ao condenado por um dos crimes considerados hediondos uma reprimenda excepcional e diretamente proporcional à grave lesão cometida contra um direito. E, pelas vozes retumbantes dos assim chamados humanistas, tal reprimenda exacerba o caráter repressor do Estado e fere, dentre outros ditames históricos, o due process of law. Numa época em que a tônica penal reside nos esforços de ressocialização do apenado – no sentido de reintegrá-lo à sociedade, uma vez que medicado e curado da sua sanha criminosa –, a referida lei em tela ofende, segundo substancial coro de indignados causídicos e operadores do Direito em sentido genérico, aquele princípio (de ressocialização), penalizando em demasia aquele que praticou crime tipificado como sórdido, depravado, abjeto e por ai afora.
Em nenhum momento, data máxima vênia, essas vozes alteradas parecem pensar nos danos – não raro, irrecuperáveis – causados às vítimas desse tipo criminal, preferindo privilegiar a ótica do apenado, ora tido como "mais uma vítima da sociedade". Ora, nada mais estapafúrdio e descabido. Poder-se-ia dizer que um criminoso eventual, movido por violenta emoção e em defesa da sua família ou da sua honra, faria jus a tratamento diferenciado – e, aliás, assim deve ser, inquestionavelmente – e com vistas à sua reintegração ao seio social. Agora, dedicar idêntico tratamento àquele que comete crime hediondo, com requintes de crueldade, interesse integralmente ilícito e sem qualquer comiseração pela vítima, é, no mínimo, tornar-se permissivo e, até, conivente com a prática delituosa, mesmo que em base ao devido processo legal.
Há, de uma vez por todas, que se desmistificar esse argumento assaz torpe, sempre que se evocam as diferenças sociais que hoje (e de há milênios, saliente-se) grassam na sociedade. Tais diferenças em absoluto podem fundamentar a prática criminosa, sob pena de se estar a instalar uma sociedade que, a contrario sensu, marginaliza aqueles que, mesmo pobres, paupérrimos, trilham o caminho do bem, da paz, do respeito e do convívio equilibrado em comunidade.
Neste sentido, providencial se constitui a premissa cunhada pelo douto jurista Luiz Flávio Gomes, para quem o aumento do número de escolas e a retirada do menor da rua, dando-lhe emprego, educação e estudo, seriam a solução ideal para o arrefecimento da zaga criminosa. O regime misto (meio expediente escolar e meio expediente laboral) tende a ser excelente solução para a formação cidadã em níveis adequados. Todavia, também neste sentido há vozes que igualmente se erguem em contra, defendendo o não menos torpe argumento de que, em assim agindo, se estaria retirando a juventude do menor, seu lazer, sua diversão, seu aproveitamento integral para aquela fase da sua vida. Em nada lhes acolhe a razão. Há, sim, como concatenar essas três variáveis (educação-estudo, trabalho e lazer). E tanto há que essa prática não é rara em países de cultura mais avançada. Basta, para tanto, que se desenvolvam programas adequados e, principalmente, que haja vontade política para tal.
Continuando a trilhar o caminho da famigerada exclusão social, tem-se que, em nossos dias, não é nada raro interpor-se o argumento das diferenças sociais para minorar a gravidade de crimes cometidos contra a pessoa, o patrimônio ou o Estado. E desse argumento beneficia-se um sem-número de criminosos contumazes, nada alinhados com as características de serem excluídos sociais. Por conta, principalmente, dos partidos ditos de esquerda, tal configuração tem se constituído em níveis de abuso, nos arrazoados defensivos que se interpõem em defesa de criminosos sabidamente renitentes. É, neste caso, o fundamento do princípio da ampla defesa que sustenta tal situação abusiva e que, não raro, está associada à remuneração de elevados honorários que engordam os cofres de causídicos mancomunados com o crime organizado.
Na prática, há um argumento que é inatacável – e que se contrapõe ao exposto no parágrafo anterior: a reincidência, mormente em se tratando de crime hediondo, ou, ainda, a configuração de crime continuado, quando praticado nesta espécie penal, não se faz merecedora de qualquer atenuante; ao contrário, é só através da restrição de liberdade que se consegue inibir a repetência abusiva desse tipo de criminoso. Todavia, a ostensiva falha que permite a contra-argumentação dos que assim não pensam, reside no crítico, arcaico e inapropriado sistema penitenciário nacional, cujos estabelecimentos mais se comparam a centros de pós-graduação em criminalidade, do que a institutos de reeducação e ressocialização dos apenados. Neste particular caso (assim como em tantos outros, em variados setores do ambiente social), é a sociedade que paga pela incompetência dos programas estatais nesse sentido.
Para todos aqueles (e não são poucos) que defendem a inconstitucionalidade da lei em tela – principalmente, no que concerne à progressão do regime da pena, a exemplo do último entendimento do STF, reproduzido ao início deste artigo – tem-se a contrapor que não lhes cabe razão, pois, sabido é, um erro não justifica o outro. Se o sistema prisional brasileiro é falho, cabe ao Estado cuidar dessa anomalia, e não à sociedade conviver com o incentivo à criminalidade abjeta. Afinal, tal situação, se persistente, se constituiria em penalização de toda a sociedade, em benefício de alguns poucos que optaram por delinqüir em patamares hediondos.
Inexplicável como a própria Corte Suprema do País, apesar de até pouco tempo atrás ter firmado posição no sentido da constitucionalidade da Lei dos Crimes Hediondos, hoje se desdiz e impõe entendimento diverso, acatando argumentação contrária em julgamento de HC em crime de atentado violento ao pudor (veja detalhes no início deste artigo), criando jurisprudência no mínimo perigosa, como precedente para a fragilização crescente da reprimenda dos praticantes de crimes hediondos. Neste sentido, Gomes ensina, magistralmente:
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu uma série de princípios de conteúdo especificamente penalísticos, os quais norteiam a estrutura de nosso sistema penal. Entre eles coexistem: o princípio da individualização da pena, a cargo da lei ordinária, mas adstrita à utilização de penas privativas de liberdade e restritiva de direitos, excluídas as penas cruéis como a de morte, a perpétua, os trabalhos forçados e o banimento, consoante o art. 5º, incisos XLVI e XLVII, da CF; e o princípio do tratamento mais restritivo a determinados crimes reputados mais graves, seja pelo próprio legislador constitucional, que expressamente contempla o racismo, a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, seja pelo legislador ordinário, a quem se delegou a definição dos crimes hediondos (art. 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV).
Portanto, deflui da estrutura do sistema penal pátrio, traçada pela Constituição, que não são incompatíveis as normas infraconstitucionais que tratam da individualização da pena, e aquelas que recrudescem a punição e a execução das penas dos crimes aos quais se dirige tratamento mais gravoso. De modo que, atendidos, ainda, os princípios da legalidade e da culpabilidade, o primeiro a delimitar objetivamente o âmbito da criminalização, e o segundo a conter o alcance subjetivo da punição, legítimas se fazem, em tese, as funções legislativa e jurisdicional que realizam a diferença de tratamento das diversas hipóteses.
Precisamente por esta razão é que o Supremo Tribunal Federal, seguido pela predominante jurisprudência do país, reconheceu a constitucionalidade da Lei dos Crimes Hediondos, ainda mesmo quando esta estabeleceu o regime integralmente fechado de cumprimento de pena, como expressão da conjugação dos princípios de Direito Penal Constitucional: o da individualização da pena e o do tratamento mais restritivo aos crimes hediondos (art. 5º, incisos XLIII e XLVI, da CF).
Ora, se havia esse entendimento firmado por parte do STF, que forças influenciaram os insignes julgadores da Corte Máxima para que, de repente, mudassem tal compreensão, passando a considerar inconstitucional a negativa ao regime de progressão da pena, para aqueles condenados por crimes hediondos? Inexplicável tal postura. Apenas poderia ser entendida se, nos meandros do poder oculto da marginalia, tivessem se erguido forças supremas e ameaçadoras ao instituto máximo da justiça brasileira. De outra forma, difícil compreender tal descabida e insólita mudança na posição jurisprudencial dos Ministros Julgadores.
A quem interessa, em suma, a suavização da penalização original para os crimes hediondos? Se for certo que os "princípios de direito penal constitucional, de conteúdo eminentemente penal, estabelecem a estrutura formal e de garantias do sistema penal constituído" e que, paralelamente, "os princípios e valores constitucionais interferem na própria matéria penal a ser objeto da tutela, indicando, separadamente, as que são passíveis de processo de criminalização e descriminalização, bem como as que devem merecer maior ou menor punição e tratamento mais ou menos gravoso, de acordo com a política criminal, que tem fulcro naqueles princípios, e a oscilação social, no tempo e no espaço, das condutas que perdem e ganham importância para efeitos de punição", então como entender a posição controversa do STF?
O que deve ser entendido, isto sim, é que o legislador, ao cunhar a Lei de Crimes Hediondos, pecou por falta (e não por excesso, como se quer fazer crer) ao deixar de incluir nela outros crimes que igualmente podem ser considerados hediondos, não por sua desvairada violência física, mas por sua inteligente trama intelectual, urdida contra toda a sociedade e, por assim ser, com muito maior poder de destruição, embora sem, necessariamente, o derramamento de sangue. Aí se encontram os crimes praticados pelos supremos chefes do tráfico de entorpecentes – quase nunca alcançados pelo poder punitivo do Estado –; pelos homens públicos mandantes de crimes políticos; pela extorsão nauseante de tributos por parte de um Estado perdulário, mastodôntico, incompetente e ausente em suas obrigações sociais, em busca da estruturação de uma sociedade mais justa e equânime.
Diminuir a incidência severa dos níveis de punição para os crimes hediondos capitulados na Lei n. 8.072/90, ao passo que se permitem crimes de impacto muito maior sobre o seio social – verdadeiros causadores do incremento dos níveis de pobreza, da desigualdade social, do assassínio lento e progressivo do meio ambiente, dentre tantos outros ilícitos penais travestidos do perfumado colarinho branco –, embora estes não ostentem níveis escancarados de sadismo, de violência física, de derramamento de sangue, significa o mesmo que ignorar uma realidade hodierna, onde, lamentavelmente, é o próprio Estado tutelador o criminoso, solapado por uma propaganda enganosa, um marketing extremamente gravoso e um manto protetor por ele mesmo construído para nele se esconder, impune.
Certas verdades, enfim, incomodam as elites governantes e o próprio legislador, subvertido pelo seu envolvimento em toda essa sórdida trama estatal. Há, no dizer comum de um empirismo inquestionável, um verdadeiro "teatro" de marionetes, tendo como manipulador dos atores-títeres, o próprio Estado opressor, no conjunto mancomunado dos seus três poderes constituídos.
Em tese – mas solidamente fundamentado no que se observa –, é a este, o Estado, que interessa a manutenção do atual status quo, com suas medidas populistas, torpes, mentirosas. E no âmago desta celeuma, ressurge a figura inocente e, ao mesmo tempo, trágica do menor infrator – esse cancro social criado pela inoperância e miopia estatal, filho bastardo dos interesses cultuados por uma elite leviana, nociva, hedionda, da qual seu principal mentor e tutor é o próprio Estado.
Eis ai um desafio à compreensão de sociólogos, filósofos, jurisconsultos e interessados em geral no estudo das iniqüidades humanas.
Saliente-se, antes de ingressar ao último ponto – âmago complementar deste artigo –, que a maior vítima (e ao mesmo tempo, o maior agressor, paradoxalmente) de todo esse descaso estatal é o menor infrator, desamparado em decorrência da inoperância dos órgãos públicos, pela miopia impositora e ditatorial da Igreja Católica (quanto à sua posição contrária ao controle da natalidade), pela leviandade das massas ignaras (que procriam descontroladamente) e por toda a sociedade constituída, propositadamente ausente e desconhecedora de uma sociedade marginalizada paralela, criada aquém dos limites da decência e dos princípios mais primários e fundamentais da (dita racional) espécie humana.
Enganam-se aqueles que, ao se falar em menor delinqüente, imediatamente associam tal conceito com um perfil clássico, atribuído pela sociedade brasileira de maneira flagrantemente errônea: pobreza, migrantes de regiões mais carentes do País, meninos de rua e de favelas, negros, analfabetos, sem atividade profissional. Os noticiários veiculados pelos meios de comunicação de massa – cada vez, com maior freqüência – dão conta de inúmeros crimes cometidos por jovens da classe média e média alta, que nada têm a ver com aquele perfil desvirtuado de que se fala acima.
O problema que causa esse desfoque reside, lamentavelmente, no pré-julgamento que a sociedade arbitra em fazer, nos casos de violência juvenil, associando-a com indicadores sócio-econômicos que, em tese, fundamentariam o comportamento agressivo do jovem delinqüente. Um estudo realizado por Melhem, com base nos registros do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (SP), pesquisou 130 processos nas Varas Especiais (usando como ano-base 1988, para poder dar um espaço temporal adequado ao andamento dos processos em curso), indica os seguintes números emblemáticos (hoje, seguramente alterados, mas que provavelmente seguem uma linha estrutural semelhante, apenas maximizados):
- crimes com maior incidência: roubos, com porte ilegal de armas (40,7%);
- crimes com maior teor de violência: agressões a tiros e homicídios (45,3%);
- réus primários de roubos: apenas 6,15% (os restantes eram reincidentes);
- faixa etária de início da delinqüência juvenil: a partir dos quatorze anos;
- maior freqüência de ilícitos penais: a partir dos dezessete anos (31,5%);
- sexo majoritário dos delinqüentes juvenis: masculino (93,8%);
- cor predominante entre os delinqüentes juvenis: mais de 50%;
- delinqüentes juvenis que não vivem com as famílias: apenas 2,3%;
- delinqüentes juvenis que não possuem qualquer escolaridade: apenas 3,1%;
Portanto, segundo o referido estudo realizado na cidade mais populosa do País e onde os índices de criminalidade e de miscigenação de origens são elevados substancialmente, o perfil usualmente atribuído ao menor infrator não parece condizer com a realidade. É claro que, com o passar do tempo, há alterações nesse quadro, mas, em seu âmago, as características parecem seguir um padrão mais ou menos equilibrado.
Tais levantamentos identificaram também outro aspecto muito importante para a análise da delinqüência juvenil: a predominância dos ilícitos penais praticados em grupos. Segundo Melhem, este dado (ação em grupo) reforça a tese "da importância fundamental do ambiente social e das companhias na decisão de delinqüir, por criminalidade também é um aprendizado". Nada mais correto e acertado a qualquer época da história – antiga ou moderna.
É justamente essa necessidade de "aprendizado" que, ao longo do tempo, foi formando "escolas de pós-graduação" (as tão decantadas e questionáveis FEBEM’s e institutos afins), onde, à par de não se instituírem programas efetivamente reformadores e preparadores para a ressocialização dos jovens delinqüentes, pratica-se a violência como usual – seja por parte dos próprios menores (uns contra os outros), seja pelas mãos dos administradores, controladores e guardas de tais entidades reformatórias. Tal situação, como dito, acaba por derivar em revolta maior por parte dos "reformandos", não raro daí saindo com maior ânsia delituosa, melhor preparados e mais destemidos em suas ações – o que redunda, naturalmente, em maior violência praticada.
Em base a esse cenário dramático, que envolve o uso e tráfico de entorpecentes, o abuso da violência, a exacerbação dos requintes de crueldade, em todo e qualquer tipo de crime – mas, mais enfaticamente, nos crimes considerados hediondos – é que se iniciou um amplo e polêmico debate cujo cerne é a alteração da maioridade penal. Paralelamente, outro tema passou a ocupar os espaços especializados da discussão criminal, igualmente direcionado ao menor infrator: o abolicionismo penal. Ambos, saliente-se, movimentam forças pró e contra suas respectivas intenções, como não poderia deixar de ser. Afinal, a sociedade – principal vítima das atrocidades que a toda hora se constatam, em qualquer parte do País, por conta de crimes hediondos – já não suporta mais ser refém da inoperância estatal, em razão da sua incompetência na formulação de políticas públicas que visem inibir e até minorar o ilícito penal perpetrado por delinqüentes, notadamente os menores.
O primeiro tema – a diminuição da maioridade penal – é exigência antiga que deriva de dois fundamentos assaz pertinentes: (a) o direito ao voto, para o menor de 18 anos; e (b) a forte pressão que hoje vem sendo imposta ao legislador, para se conceder CNH ao menor de 16 anos. Ora – aduzem os que se levantam contra a mantença da maioridade penal aos 18 anos –, se o menor pode votar e dirigir aos 16 anos, por que ele seria imputável na prática de crimes apenas a partir dos 18 anos? Com toda razão, diga-se de passo, essa argumentação é mais do que cabida.
Antes, porém, é necessário que se faça um aparte de suma relevância, no que concerne ao escopo do texto legal. A lei, em seu âmago, possui o fito de tutelar a vida em sociedade, inibindo as ações que possam ser consideradas como anti-sociais, ferindo o direito de outrem; determinando a punição cabível ao ilícito; identificando quem pode julgar e punir. Por outro lado, não é menos verdadeira a constatação de que a sociedade – notadamente nestes tempos de pós-modernidade – vem sofrendo constantes alterações, cada vez com maior celeridade, em decorrência de fatores como o expressivo avanço tecnológico e, com maior ênfase ainda, aquele direcionado à tecnologia da informação (TI). A Internet, após sua sedimentação como meio virtual de comunicação sem barreiras, trouxe a essa mecânica seu ápice funcional, dispensando comentários a respeito.
Ora, se a sociedade muda, se os seus membros mudam, se os costumes mudam, por que a lei não poderia mudar? Ao contrário, esta deve se adaptar, se adequar a essas mudanças, sob pena de se tornar obsoleta, inócua, e não mais cumprir fielmente seu escopo tutelador. No entanto, há aqueles que assim não pensam e persistem em defender a inércia social, como se – já que estamos a falar em menor – o adolescente do século XVIII fosse o mesmo, em características, formação, cultura, educação, do que o do século XXI. Ou, ainda e para ficar mais próximo, como se o menor da época pré-Internet, fosse o mesmo do que aquele que nasceu e cresce no meio virtual da web. Enganam-se os que não vêem esta insofismável realidade.
Veja-se, por exemplo, o pensamento de um quartanista do curso de Direito da USP (Universidade de São Paulo), em relação à celeuma da diminuição da maioridade penal, expresso em artigo da sua lavra, quando ainda cursava os bancos escolares do estudo jurídico e – como parece ser usual acontecer – sonhava com a salvação do mundo, sem bem saber como funciona o sistema social em que vivemos. Em certo trecho do referido artigo, o então acadêmico de Direito assim se expressa, verbis: "Contudo, não só o Direito positivo vigente proíbe a redução da maioridade penal, como também o contexto social hoje existente a desaconselha. Isso porque a conseqüência lógica da imputabilidade dos adolescentes será um considerável aumento do contingente carcerário, que não está minimamente apto a recebê-los". Vê-se, às claras, que o hoje causídico (assim pensamos que seja) tenta inibir uma realidade hodierna e assaz agressiva (o adolescente delinqüente), apelando para uma deficiência estatal de ordem estrutural (a falência do sistema penitenciário nacional), e não a defesa em si do porquê de não ser interessante a diminuição da maioridade penal.
Em seu arrazoado, ainda, Queiroz (o então quartanista) chama a atenção para o texto maior constitucional, que, em seu art. 228, garante o tratamento legal diferenciado aos menores de idade, quando autores de ilícito penal. Cita, ainda, o Pacto de San José de Costa Rica (do qual Brasil é signatário), no sentido "da irredutibilidade da maioridade penal, reiterando, assim, os direitos e garantias individuais dos menores de idade no tocante ao caráter diferenciado das represálias estatais que venham a sofrer". Reforça, adiante e a teor do art. 227 da Magna Carta, a obrigatoriedade da família, da sociedade e do Estado no concernente a propiciar à criança e ao adolescente: saúde, educação, vida, alimentação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária, a fim de colocá-los a salvo de toda forma de discriminação, negligência, exploração, violência, crueldade e opressão. Ora, em tese, excepcionalmente positivo. Na prática, o primeiro e maior propiciador de situação diametralmente contrária é o próprio Estado. E se o Estado falha com a família e com a sociedade em geral, como é que ele (e estas) irá, então, atender ao ditame constitucional? Utopia difícil de compreender e de se fazê-la realizável.
Há que se considerar, em suma, que existe um Estado a quem cabe reprimir, ordenar, punir, perdoar. E se há um Estado, é porque assim se convencionou que fosse, ao arrepio dos antigos defensores da anarquia, da liberdade e auto-regulação do indivíduo por ele mesmo. Portanto, a questão não é o a existência de um Estado tutelador, que pune e perdoa, mas sim, a ineficácia das suas normas e a ineficiência do seu desempenho no papel que lhe cabe atuar. Não há de se confundir, portanto, as deficiências operacionais estatais, com a necessidade de se regular, inibir e diminuir ao máximo o elevado índice de criminalidade (principalmente do tipo hediondo), mormente quando em se tratando de um delinqüente juvenil.
Os programas e políticas ineficazes, implementados pelo governo federal na área da segurança pública, associados a variáveis outras (concentração excessiva de renda, educação deficiente e de difícil alcance para as massas excluídas, desagregação familiar, práticas impunes e exemplificadora do ilícito por parte dos próprios poderes constituídos, dentre outras), têm propiciado o crescimento dos crimes praticados por menores de idade, via de regra em base ao uso e tráfico de substâncias tóxicas que causam dependência física e psíquica – como o ilícito de maior incidência, em nossos dias, e em crescimento exponencial, às raias já do incontrolável.
No tocante ao menor infrator e, como já mencionado, em base à norma constitucional, estruturou-se legislação específica de tutela para estes, através do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 1990), substitutivo do superado Código de Menores. Pois bem, o ECA considera ato infracional "a conduta descrita como crime ou contravenção penal (art. 103), e o penaliza de maneira variada (arts. 101 e 112), com penas que vão desde a orientação, a advertência, a obrigação de reparar o dano, até a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a semiliberdade e a internação (esta última, em caráter excepcional).
Tentou-se, mediante esta norma especial penal, atender aos ditames da Magna Carta no sentido de se poupar os menores infratores, sob o argumento da necessidade de reformar suas condutas atípicas a fim de formar o cidadão do amanhã, afastando-os, assim, do infernal sistema penitenciário brasileiro, exclusivo de criminosos adultos. Todavia, na prática, a miopia estatal acabou falhando mais uma vez, ao criar os famigerados institutos cognominados de FEBEM (Fundação Educacional do Bem Estar do Menor) e afins, constituídos em verdadeiros antros do crime, escolas de incentivo e especialização criminal, ao contrário do seu verdadeiro escopo, qual seja a reeducação e o reingresso do infrator à sociedade.
O crescimento desmesurado do ilícito penal praticado por menores (alguns, já a partir de tenra idade, como os 12 anos), deflagrou um alerta geral da sociedade organizada, impondo tomada de decisão mais dura no sentido de inibir, minorar e até extinguir (utópico, novamente) este tipo criminal. Daí, então, iniciou-se outro movimento ainda mais forte: o da diminuição da maioridade penal. "Se um plebiscito fosse realizado hoje (novembro de 2005), a redução de maioridade penal venceria com larga vantagem. Foi o que projetou pesquisa realizada no ano passado em 396 municípios, abrangendo todos os estados. A mudança na legislação foi defendida, na ocasião, por 84% dos entrevistados". Esse índice, necessário sublinhar, logo subiu aos 90% de entrevistados, mostrando ostensivo descontentamento da população com as normas penais aplicadas aos menores infratores.
Se remontarmos à história brasileira, veremos que o Código Penal de 1890 estipulava dois limites de idade para menores infratores: 09 e 14 anos. Até os nove anos, era certa a imputabilidade. Entre essa idade e os 14 anos, cabia ao juiz verificar se o infrator, ao delinqüir, o fizera com discernimento, daí derivando sua condenação como criminoso ou não. Já em 1927, o então Código de Menores ampliou essa faixa para três limites de idade: até 14 anos, vogava a imputabilidade; desta idade aos 16 anos, embora persistindo a consideração do menor como irresponsável, instaurava-se um processo para apurar os fatos, havendo possibilidade de cerceamento de liberdade para o infrator; por fim, entre 16 e 18 anos, o menor corria o risco de ser considerado responsável, sendo penalizado. Foi apenas em 1979, por força da Lei Federal 6.691 (Código de Menores), que se determinou a idade de 18 anos para a imputabilidade do menor infrator.
Eis alguns exemplos de maioridade penal, em países do nosso e de outros continentes, hoje vigentes:
PAÍS |
IDADE |
Austrália, Egito, Kuwait, Suíça, Trinidad e Tobago |
07 anos |
Líbia |
08 anos |
Iraque |
09 anos |
Malásia |
10 anos |
Equador, Israel e Líbano |
12 anos |
Espanha |
13 anos |
Armênia, Áustria, China, Alemanha, Itália, Japão e Coréia do Sul |
14 anos |
Dinamarca, Finlândia e Noruega |
15 anos |
Argentina, Chile e Cuba |
16 anos |
Polônia |
17 anos |
Colômbia, Luxemburgo e Brasil |
18 anos |
Fonte: D. L. Célico, 2005.
Observando-se os exemplos de maioridade penal, expostos na tabela acima, percebe-se que há uma mescla de nações desenvolvidas (cultural e economicamente), subdesenvolvidas e em desenvolvimento, bem como também países de cultura ocidental e oriental, o que, de pronto, não permite que se aplique uma eventual pecha de "subdesenvolvimento" ou de "extremismo" àqueles que defendem e praticam a maioridade penal em idade bem inferior à que hoje se pratica no Brasil.
No ano passado – quando se comemoravam os 15 anos do ECA –, a situação criminal do nosso País era (e continua a ser, só que bem pior) insustentável, havendo uma verdadeira inversão de valores: o cidadão honesto e trabalhador, refém do criminoso (menor ou maior de idade) e instado a se encastelar nos limites da sua residência onde, mesmo assim, está sujeito à agressão indiscriminada, violenta e, não raro, com requintes de crueldade. Em outras palavras, o recrudescimento da criminalidade mostrou a inépcia do Estado, dos seus órgãos de segurança pública e dos argumentos torpes daqueles que, mesmo assim, ainda desejam poupar criminosos contumazes que iniciaram a delinqüir com 11, 12 anos e assim continuam hoje, com 16 anos, já experientes e cada vez mais sádicos em suas ações.
Nos próprios órgãos judiciais – a exemplo do Ministério Público –, o entendimento, embora ainda não consensual, é pela penalização mais dura para o menor infrator e, conseqüentemente, pela redução da maioridade penal. "O que vemos no dia-a-dia é que a prática de crimes por menores tem aumentado muito. O ECA tem penas muito brandas. Ele encara o adolescente como pessoa em desenvolvimento e no caso de infração, precisa de ressocialização e reeducação. Ia ser muito bom, se a Febem funcionasse", ressalta uma representante do MP. A referida promotora pública destaca, ainda, que o problema em si não é o ECA (um estatuto de primeiro mundo, para um país de terceiro mundo), mas a sua impossibilidade de implementação em sua plenitude de escopo, a falta de estrutura de centros de recuperação e ressocialização de menores infratores e a própria desagregação familiar. Ou seja, quando o menor retorna ao convívio da sua família (se é que a tem), esta em nada mudou e, então, as mudanças que eventualmente tenham sido transmitidas ao menor passarão a ser inócuas, uma vez que impraticáveis por falta de apoio da própria família.
Diferente não é o entendimento de outro representante do MP, para quem a pena atribuída ao menor infrator, em caso de crime gravíssimo ou hediondo, deveria ser condizente com seus níveis de reeducação e ressocialização, sendo que estes trabalhos poderiam levar 3, 5, 10 anos, durante os quais o menor deveria ser mantido na instituição competente – o caso é que, em nosso País, não há instituição competente, a exemplo do que sucede também nos próprios presídios, verdadeiras escolas do crime, tanto de graduação, como de pós-graduação.
O outro enfoque previsto é o que se refere à defesa do abolicionismo penal para os menores infratores. Partindo da premissa consubstanciada na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (dados pela Revolução Francesa, no século XVIII), Silva rotula o sistema penal como sendo lastreado no que se convencionou chamar de "prevenção geral", querendo significar com isso que a prisão inibiria a prática dos crimes – no que este autor em absoluto não concorda, afirmando: "Ao invés de privilegiar o diálogo, o convencimento, a argumentação, ele busca educar através do medo, pretendendo impor um hábito, padronizar condutas. Ora, ao revelar sua incapacidade de persuadir pelo argumento, impõe a violência e mostra sua primeira fraqueza".
Data vênia, não podemos concordar com a exposição do preclaro professor de Direito da PUC/SP. O criminoso contumaz, aquele que é reincidente, useiro e vezeiro das celas prisionais, desconhece o que seja argumentação, persuasão, convencimento, diálogo. Ele apenas conhece a violência – e em níveis cada vez mais grotescos e hediondos. Destarte, como instaurar um diálogo com ele? Independentemente da sua idade (menor ou maior), a deterioração de valores e de hábitos comportamentais, na medida em que vai se sedimentando no indivíduo, vai criando raízes tão fortes que dificilmente lhe permitirão retornar ao estado de pacificação social. Aliás, o que se observa, num ambiente econômico tão díspar como o é o nosso, é a revolta do indivíduo que partiu para a delinqüência como "meio de vida"(sic) e, obtendo resultados positivos – mesmo a despeito do permanente risco de uma prisão –, persiste nesse cômodo meio de vida, diante da impossibilidade de conseguir outro que esteja inserido dentro das normas da legalidade e da normalidade. Noutras palavras, o problema é eminentemente sócio-econômico, e sempre foi assim.
Outro causídico e professor de Filosofia, em corrente diversa à ora exposta, assim se expressa: "No seio do povo, não desapareceu, ainda, a crença segundo a qual a prisão é, ainda, a melhor resposta que a coletividade pode dar aos comportamentos selecionados como criminosos". Este autor procede a uma análise acurada das condições que cercam a revolta da vítima e aquelas impostas ao apenado, como castigo por sua infringência a um direito alheio. Nestes casos, nos sublinhamos, a situação se agrava quando o agressor é um menor de idade, sabendo-se que, pela tutela legal específica, o mesmo será penalizado de maneira leve, propiciando a reincidência criminal.
Todos, enfim, sabemos das mazelas que o sistema prisional brasileiro contém, constituído num conjunto de "casas de horrores" que, em hipótese alguma, consegue ressocializar alguém, reeducá-lo e puni-lo de maneira a inibir seu recidivo. Mas essas mazelas, frise-se, são responsabilidade do Estado e não da sociedade refém dos altos níveis de criminalidade. Se por um lado, reconhece-se que o caráter vingativo do Estado em nada colabora para minorar os ímpetos criminais de alguns indivíduos, por outro também se valoriza a necessidade de haver algo que imponha restrições ao cometimento de ilícitos penais, de maneira eficaz e eficiente. Se for o aprisionamento do indivíduo (neste particular caso, do menor infrator) ou se é seu desterro a longínquas fazendas de trabalho forçado ou, ainda, se é qualquer outra medida, o certo é que há de se ter freios eficazes para desestimular o menor infrator a continuar a delinqüir.
Os crimes hediondos, como a própria denominação já o diz, são de alto teor asqueroso, execrável, grotesco e, por isso, devem – a exemplo dos demais ilícitos penais – ser reprimidos, de uma maneira ou de outra.
Quando os crimes hediondos são, então, cometidos por menores infratores, o impacto do ilícito é ainda maior, uma vez que há essa figura paradoxal, bizarra, de um menor de idade procedendo, não raro, com requintes de crueldade, inaceitáveis numa sociedade dita civilizada.
A conexão dos altos índices de criminalidade – notadamente por menores infratores – tem muito a ver com a situação sócio-econômica de uma sociedade capitalista, onde os meios de comunicação de massa (com ênfase para a televisão) são cada vez mais fortes nos apelos de marketing rumo ao consumo desenfreado da população. Nesse processo, a impossibilidade de aquisição de supérfluos (pois a maioria dos produtos o é) por parte de menores com menor poder aquisitivo, causam natural revolta e incitam-no a delinqüir com o fim inicialmente específico de poder ser também um adquirente daqueles supérfluos.
A punição pouco severa, a posteriori, imprime nova ânsia no menor infrator, instando-o a reincidir, pois que pouco ou quase nada lhe custou o cometimento do delito anterior. E aí se forma, então, o círculo vicioso fatal, praticamente irreversível, que estrutura um menor impúbere e delinqüente por acaso, a se transformar no marginal do amanhã, no assassino, estuprador, latrocida, torturador. Mas não é só isso. Incita-o também – caso esse pequeno marginal consiga seguir por outras vias, que não a da criminalidade ostensiva – a se formar no cidadão do amanhã sem ética ou moral, travestido de profissional (em qualquer área) inescrupuloso, em político espertalhão, em criminoso de colarinho branco.
Eis a grande questão a elucidar: como fazer para que todos os cidadãos recebam formação adequada e condizente com os parâmetros necessários a um convívio social em total paz, em elevados níveis de ética e de moral, em patamares construtivos (e não destrutivos) com o seu semelhante (e, neste caso, não só o seu semelhante, mas o seu meio ambiente natural, aí incluídos os outros seres vivos, animais ou vegetais)? A solução parece estar apenas com o Estado e toda sua parafernália de programas e políticas que visam à formação de uma sociedade justa, eqüitativa, humana. Em o Estado não fazendo seu dever de casa, dificilmente será o indivíduo que irá se autoconstruir, se autopunir, se autotutelar, o que remete a questão para um impasse insolúvel, pois o ser humano foi, é e sempre será o eterno insatisfeito que prefere esperar do Estado as soluções para sua vida.
Para nós, a solução está no próprio ser humano. Na sua reconstrução como ser pensante, racional, inteligente, mas que, não raro, não ostenta nenhum desses predicados em suas práticas diuturnas. O que se observa é, ao contrário, a deterioração dos valores; a desagregação crescente da família; o aumento desmesurado de sentimentos negativos como a inveja, o egoísmo, o desejo de vingança e o individualismo autofágico. E enquanto persistirem esses falsos atributos, nada haverá a se fazer, salvo se tentar minorar as mazelas que o próprio indivíduo causa para si e para os seus próprios semelhantes.
Em outras palavras, a sociedade humana está enferma – talvez em fase terminal –, agonizante, mas faz questão de desconhecer essa realidade e, ao contrário do que se possa esperar de um doente terminal, ela se esmera em continuar a se auto-destruir, o que, em termos genéricos da teoria médica, significa o mesmo que o suicídio progressivo e lento, mas com final certo, irreversível e fatal.
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Autor:
Isolde Inês Lemfers
Advogada Criminalista - Especialista em Direito Penal e Processual Penal.
Professora Universitária.
Juan Ygnacio Koffler Anazco
Cientista Social em Comportamento Humano, Criminologia e Política.
Escritor
Consultor
Blumenau – Brasil.
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