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O bullying e a responsabilidade civil do estabelecimento de ensino privado (página 2)


Partes: 1, 2, 3

O bullying faz muitas vítimas. Em 2005, logo após receber alta do tratamento a que tinha se submetido por ter sido vítima de bullying, Daniele criou um blog[2]para divulgar o tema no Brasil. Hoje, ela não atualiza mais seu blog, mas, além de colaborar com a divulgação do assunto, deixou para todos nós um excelente exemplo de superação.

  • Bullying: conceito, características e personagens

A palavra bullying tem origem no termo inglês bully que significa: brigão, mandão, valentão.[3] A educadora e pesquisadora CLÉO FANTE descreve esse fenômeno social da seguinte maneira:

Bullying é um termo utilizado na literatura psicológica anglo-saxônica, para designar comportamentos agressivos e antissociais, nos estudos sobre o problema da violência escolar. Universalmente, o bullying é conceituado como sendo um "conjunto de atitudes agressivas, intencionais e repetitivas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais alunos contra outro(s), causando dor, angústia e sofrimento, e executadas dentro de uma relação desigual de poder, tornando possível a intimidação da vítima." [4]

Acrescenta a educadora que "ridicularizações, intimidações, apelidos pejorativos, ameaças, perseguições, difamações, humilhações, são algumas das condutas empregadas por autores de bullying." [5]

Além dessas condutas comissivas, existe o bullying por omissão, que também pode ser devastador, conforme explica o promotor LÉLIO BRAGA CALHAU:

Ele pode ser produzido com atos de ignorar, "dar um gelo" ou isolar a vítima. Se provocados por um grupo de alunos numa sala de aula podem ser devastadores para a autoestima de uma criança, por exemplo. Em geral, o bullying praticado com omissão é mais afeto ao praticado por meninas e é bem sutil. É quase invisível. Se você analisar o ato isolado ele pode não significar nada, mas são como pequenas agressões, que pouco a pouco vão minando a integridade psicológica da vítima.[6]

O pesquisador norueguês Dan Olweus estabeleceu alguns critérios importantes para que possamos identificar corretamente os casos de bullying escolar. Os três critérios estabelecidos por Dan Olweus são os seguintes:[7]

  • Ações repetitivas contra a mesma vítima num período prolongado de tempo;

  • Desequilíbrio de poder, o que dificulta a defesa da vítima;

  • Ausência de motivos que justifiquem os ataques.

O conhecimento desses critérios, ou características, é fundamental para identificarmos o bullying e para o distinguirmos das outras formas de violência não relacionadas ao fenômeno em estudo. Também não são caracterizadas como bullying aquelas brincadeiras impetuosas próprias dessa faixa etária, provenientes daquela busca natural de autoafirmação.

Sinteticamente, o bullying tem três personagens: o agressor, a vítima e o espectador. Mas, segundo CLÉO FANTE,[8] os estudiosos identificam e classificam os tipos de papéis sociais desempenhados pelos protagonistas de bullying de cinco maneiras:

  • A vítima típica: que serve de bode expiatório para um grupo;

  • A vítima provocadora: que provoca reações que não possui habilidades para lidar;

  • A vítima agressora: que reproduz os maus-tratos sofridos;

  • O agressor: que vitimiza os mais fracos;

  • O espectador: que presencia os maus-tratos.

LÉLIO BRAGA CALHAU acrescenta a esses cinco tipos a figura do:

  • Novato: aluno transferido de escola que fica fragilizado nas situações de bullying.[9]

  • As consequências do bullying

Sobre as possíveis consequências dessas agressões, extraímos da cartilha lançada recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça, Bullying – Projeto Justiça nas Escolas, a seguinte informação: a vítima dessa agressão social pode enfrentar ainda na escola e posteriormente ao longo de sua vida as mais variadas consequências. Tudo vai depender da estrutura da vítima, de suas vivências, da sua predisposição genética e, também, da forma e da intensidade das agressões sofridas. No entanto, todas as vítimas, em maior ou menor proporção, sofrem com os ataques de bullying. Muitas dessas pessoas levarão para a vida adulta marcas profundas e, muito provavelmente, necessitarão de apoio psicológico e/ou psiquiátrico para superar seus traumas.

Após um prolongado período de estresse ao qual a vítima é submetida, o bullying poderá provocar um agravamento de problemas preexistentes ou desencadear as seguintes consequências: desinteresse pela escola, problemas psicossomáticos, transtorno do pânico, depressão, fobia escolar, fobia social, ansiedade generalizada, dentre outros. Em casos mais graves, podem-se observar quadros de esquizofrenia e até homicídio e suicídio.[10]

Segue abaixo alguns casos onde, infelizmente, tivemos um final trágico:

Em 1999, no Instituto Columbine (Colorado, EUA), Eric Harris e Dylan Klebold, vítimas de bullying, entraram na escola e passaram a disparar contra professores e colegas. Após matar doze colegas e um professor, eles se suicidaram. Em 2005, um aluno de 16 anos matou cinco colegas, um professor e um segurança numa escola de Minnesota (EUA). Em 2006, na Alemanha, um ex-aluno abriu fogo numa escola e deixou onze feridos (cometeu suicídio em seguida). Em 2007, um estudante, vítima de bullying, na escola Virginia Tech (EUA) assassinou trinta e duas pessoas e feriu outras quinze. Em novembro de 2007, em Jokela (Finlândia), oito pessoas foram assassinadas por um aluno, que divulgou um vídeo no YouTube, o qual anunciava o massacre. No dia 25 de maio de 2008, um aluno de 22 anos matou nove estudantes e um professor em Kauhajoki (Finlândia). Em seguida se suicidou. - No Brasil, não são incomuns casos de alunos que são flagrados dentro de escolas com armas de fogo. Em 2003, em Taiúva (SP), um ex-aluno voltou à escola e atirou em seis alunos e numa professora, que sobreviveram ao ataque. Era ex-obeso e vítima de bullying, e após o atentado, cometeu suicídio. Em 2004, em Remanso (BA), um adolescente matou dois e feriu três, após sofrer humilhações (era também vítima de bullying).[11]

  • A origem dos estudos sobre bullying

O bullying é tão antigo quanto os estabelecimentos de ensino. Apesar de existir a muito tempo, somente no início dos anos 70 esse fenômeno passou a ser objeto de estudo científico. Tudo começou na Suécia, quando a sociedade, em sua maioria, demonstrou preocupação com a violência entre estudantes e suas consequências no âmbito escolar. Essa onda de interesse social em pouco tempo contagiou os demais países escandinavos.

Na Noruega, pais e professores se utilizaram durante anos dos meios de comunicação para tornar público a sua preocupação com o bullying. No entanto, jamais as autoridades educacionais se pronunciaram oficialmente sobre o assunto. No final de 1982, ocorreu uma tragédia ao norte daquele país que marcou a história do bullying nacional. Três crianças com idade entre 10 e 14 anos se suicidaram. Logo após, as investigações concluíram que elas resolveram se matar porque foram submetidas a situações de maus-tratos pelos colegas da escola onde estudavam. No ano seguinte, em resposta a grande mobilização nacional fruto desse acontecimento, foi realizada uma ampla campanha com o objetivo de combater o bullying escolar. Foi nesse contexto que o pesquisador Dan Olweus iniciou um estudo pioneiro em que participaram aproximadamente 84 mil estudantes, 1000 pais de alunos e 400 professores. O objetivo desse estudo foi avaliar em detalhes como o bullying se apresentava na Noruega. A pesquisa concluiu que um em cada sete alunos entrevistados estava envolvido com o bullying escolar como vítima ou agressor. Essa revelação mobilizou grande parte da sociedade civil daquele país e deu origem a uma campanha nacional antibullying, que recebeu amplo apoio do governo. A iniciativa de Olweus fez tanto sucesso que desencadeou outras campanhas semelhantes em diversos países do mundo.[12]

No Brasil, os primeiros estudos sobre bullying escolar realizados, além de restritos à esfera municipal, apenas refletiam os trabalhos europeus existentes até o momento:

No Brasil, como reflexo dos trabalhos europeus, encontramos alguns estudos sobre BULLYING no ambiente escolar, realizadas recentemente: a) O trabalho realizado pela Prof.ª Marta Canfield e colaboradores (1997), em que as autoras procuraram observar os comportamentos agressivos apresentados pelas crianças em quatro escolas de ensino público em Santa Maria (RS), usando uma forma adaptada pela própria equipe do questionário de Dan Olweus (1989); b) As pesquisas realizadas pelos Profs. Israel Figueira e Carlos Neto, em 2000/2001, para diagnosticar o BULLYING em duas Escolas Municipais do Rio de Janeiro, usando uma forma adaptada do modelo de questionário do TMR; c) As pesquisas realizadas pela Prof.ª Cleodelice Aparecida Zonato Fante, em 2002, em escolas municipais do interior paulista, visando ao combate e à redução de comportamentos agressivos.[13]

Em 2002 e 2003, a ABRAPIA (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência) realizou uma pesquisa em 11 escolas municipais do Rio de Janeiro e um dos dados levantados que surpreendeu a todos foi que as ocorrências de bullying aconteceram, na sua maioria, em sala de aula (60,2%).[14] ARAMIS LOPES NETO, médico do Município do Rio de Janeiro e sócio fundador da ABRAPIA, em artigo científico publicado em 2005, acrescentou que:

O bullying é mais prevalente entre alunos com idades entre 11 e 13 anos, sendo menos frequente na educação infantil e ensino médio. Entre os agressores, observa-se um predomínio do sexo masculino, enquanto que, no papel de vítima, não há diferenças entre gêneros. O fato de os meninos envolverem-se em atos de bullying mais comumente não indica necessariamente que sejam mais agressivos, mas sim que têm maior possibilidade de adotar esse tipo de comportamento. Já a dificuldade em identificar-se o bullying entre as meninas pode estar relacionada ao uso de formas mais sutis. Considerando-se que a maioria dos atos de bullying ocorre fora da visão dos adultos, que grande parte das vítimas não reage ou fala sobre a agressão sofrida, pode-se entender por que professores e pais têm pouca percepção do bullying, subestimam a sua prevalência e atuam de forma insuficiente para a redução e interrupção dessas situações.[15]

  • As pesquisas nacionais sobre bullying

Recentemente, o tema atraiu a atenção de uma Organização Não Governamental de origem inglesa, que atua no Brasil desde 1997 e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em parceria com o Ministério da Saúde. Destacamos a seguir alguns dados que foram coletados por essas pesquisas, que foram considerados por nós, relevantes para este trabalho monográfico:

A PLAN BRASIL realizou em 2009 a pesquisa Bullying no Ambiente Escolar. Esse estudo, que foi o primeiro com abrangência nacional, permitiu conhecer as situações de maus tratos nas relações entre estudantes dentro da escola, nas cinco regiões do País. Para essa pesquisa foram selecionadas cinco escolas de cada uma das cinco regiões geográficas do País onde 5.168 alunos responderam ao questionário apresentado. Os fatos colhidos nesse trabalho foram os seguintes: Presenciaram cenas de agressões entre colegas no ano letivo 70 % dos estudantes pesquisados, enquanto 30% deles vivenciaram ao menos uma situação violenta no mesmo período. O bullying foi praticado e sofrido por 10% do total de alunos pesquisados, sendo mais comum nas regiões Sudeste e Centro-oeste do País. Considerando a idade dos alunos, foi na faixa de 11 a 15 anos de idade onde se observou a maior incidência de bullying e durante esta ocorrência os alunos estavam matriculados na sexta série do ensino fundamental.[16]

O IBGE, em parceria com o Ministério da Saúde, na Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar de 2009, coletou dados importantes junto aos estudantes do 9º ano (8ª série) do ensino fundamental nos Municípios das Capitais Brasileiras e no Distrito Federal. Inicialmente foi levantado que 69,2% dos alunos disseram não ter sofrido bullying. O percentual dos que foram vítimas deste tipo de violência, raramente ou às vezes, foi de 25,4% e a proporção dos que disseram ter sofrido bullying na maior parte das vezes ou sempre foi de 5,4%. O Distrito Federal com (35,6%) seguido por Belo Horizonte com (35,3%) e Curitiba com (35,2 %) foram às capitais com maiores frequências de escolares que declararam ter sofrido esse tipo de violência alguma vez nos últimos 30 dias. Foram observadas diferenças por sexo, sendo mais frequente entre os meninos (32,6%) do que entre as meninas (28,3%). Quando comparada a dependência administrativa das escolas, a ocorrência de bullying foi verificada em maior proporção entre os escolares de escolas privadas (35,9%) do que entre os de escolas públicas (29,5%).[17]

Destacamos nas pesquisas acima relatadas dois importantes dados que determinaram o rumo desta monografia. O primeiro foi a faixa etária da maioria dos alunos envolvidos em casos de bullying, o que nos levou a incluir neste trabalho uma abordagem sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. O segundo foi a maior incidência de bullying nos estabelecimentos de ensino privados, fato esse que nos levou a um exame da responsabilidade civil levando-se em conta o Código de Defesa do Consumidor.

DO BULLYING E DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

  • A criança e o adolescente nos Atos Internacionais

A comunidade mundial tem demonstrado, em vários atos internacionais surgidos no século XX, que "as crianças são titulares de direitos humanos, como quaisquer pessoas. Aliás, em razão de sua condição de pessoa em desenvolvimento, fazem jus a um tratamento diferenciado, sendo correto afirmar, então, que são possuidoras de mais direitos que os próprios adultos (grifo dos autores)." [18]

ROSSATO, LÉPORE e CUNHA acrescentam que:

Essa é a atual compreensão da comunidade internacional sobre os direitos humanos de crianças, comprovada principalmente após vários documentos, entre Declarações e Convenções, surgidos no século XX, que passam a reconhecer a criança como objeto de proteção (Declaração de Genebra) ou sujeitos de direitos (Declaração de Direitos e Convenção sobre os Direitos), tal como todos os seres humanos.[19]

Segue abaixo, em ordem cronológica, o esboço de alguns trechos relevantes desses e de outros atos internacionais onde a criança e o adolescente foram devidamente valorizados:

  • Declaração de Genebra (1924): Art. 1º - A criança deve receber os meios necessários para o seu desenvolvimento normal, tanto material quanto espiritual.[20]

  • Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948): Art. 25º, II - A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social.[21]

  • Declaração dos Direitos da Criança da ONU (1959): Princípios, I - Universalização dos direitos a todas as crianças, sem qualquer discriminação; II - As leis devem considerar a necessidade de atendimento do interesse superior da criança; [...] VII - Direito à educação escolar; VIII - Criança deve figurar entre os primeiros a receber proteção e auxílio.[22]

  • Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966): Art. 24, I - Toda criança terá direito, sem discriminação alguma por motivo de cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, situação econômica ou nascimento, às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte de sua família, da sociedade e do Estado.[23]

  • Convenção sobre os Direitos da Criança (1989): Art. 3º, I - Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.[24]

No Brasil, esses atos internacionais tiveram grande influência na positivação de importantes princípios referentes aos direitos infantojuvenis, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conforme declara o Desembargador ANTÃ"NIO FERNANDO DO AMARAL E SILVA:

O espírito e a letra desses documentos internacionais constituem importante fonte de interpretação de que o exegeta do novo Direito não pode prescindir. Eles serviram como base de sustentação dos principais dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente e fundamentaram juridicamente a campanha Criança e Constituinte, efervescente mobilização nacional de entidades da sociedade civil e milhões de crianças, com o objetivo de inserir no texto constitucional os princípios da Declaração dos Direitos da Criança. (grifo do autor).[25]

Exposto isso, passemos agora a seção seguinte que tratará do bullying e da violação dos diretos fundamentais constitucionais e dos direitos infantojuvenis constantes no Estatuto da Criança e do Adolescente.

  • O bullying e o Estatuto da Criança e do Adolescente

Antes de analisarmos os artigos referentes ao Estatuto da Criança e do Adolescente, seria suficiente sabermos que, além das garantias internacionais, o bullying viola diversos direitos fundamentais positivados no artigo 5º da Constituição Federal:

Constituição. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III - ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante; [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...] XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; [...] XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado; [...] XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; [...].[26]

No entanto, abordaremos nesta seção a relação da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 com o bullying escolar, pois o infantojuvenil vítima dessa agressão tem também diversas de suas garantias estatutárias violadas.

O Estatuto da Criança e do Adolescente positivou diversas garantias e medidas protetivas com o propósito de afiançar um desenvolvimento sadio aos infantojuvenis.

Tendo em vista o reflexo na vida adulta, é fundamental que se proteja integralmente as nossas crianças e adolescentes, como bem esclarece o Professor SAMUEL PFROMM NETTO:

O que hoje sabemos sobre processos básicos de natureza psicológica nos primeiros anos de vida humana, sobre fatores que contribuem para retardar ou causar danos ao desenvolvimento, sobre riscos, distúrbios, anomalias e dificuldades que geram uma infância infeliz e prenunciam conflitos e problemas sérios na futura pessoa adulta, é mais do que o suficiente para justificar a compreensão do caráter fundamental dos chamados "anos formativos" que, em média, correspondem aos dois primeiros decênios de vida.[27]

Não deve ser por acaso que no art. 205 da Constituição Federal, espelhado pelo artigo 53 do Estatuto, está em primeiro lugar o pleno desenvolvimento da pessoa:

Constituição. Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Estatuto. Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, [...].

Segundo o pedagogo ANTÃ"NIO CARLOS GOMES DA COSTA o caput do artigo 53 do Estatuto "traz as conquistas básicas do estado democrático de direito em favor da infância e da juventude para o interior da instituição escolar." [28]Acrescenta ainda o educador que:

ao tratar do direito à educação, hierarquiza os objetivos da ação educativa, colocando em primeiro lugar o pleno desenvolvimento do educando como pessoa, em segundo lugar o preparo para o exercício da cidadania e em terceiro lugar a qualificação para o trabalho. Este é um ordenamento que não pode e não deve ser, em momento algum, ignorado na interpretação deste artigo. Esta hierarquia estabelece o primado da pessoa sobre as exigências relativas à vida cívica e ao mundo do trabalho, reafirmando o princípio basilar de que a lei foi feita para o homem e não o contrário.[29]

O artigo 227 da Constituição Federal e os artigos 4º e 5º do Estatuto tratam dos direitos fundamentais do infantojuvenil:

Constituição. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Estatuto. Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. [...] Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Esclarecem ROSSATO, LÉPORE e CUNHA que "apesar da ausência da plena capacidade civil, as pessoas em desenvolvimento têm o poder de ostentarem, como titulares, prerrogativas inerentes ao exercício de direitos fundamentais." [30]

Portanto, é dever de todos assegurar prioritariamente à criança e ao adolescente o direito à dignidade e respeito, além de preventivamente colocá-los a salvo de qualquer situação degradante.

O artigo 227 da Constituição Federal e o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente positivaram o princípio da prioridade absoluta que, segundo ANDRÉA RODRIGUES AMIN, "estabelece primazia em favor das crianças e adolescentes em todas as esferas de interesses. Seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo, social ou familiar, o interesse infantojuvenil deve preponderar." [31]

Em relação a esse princípio a mesma autora ressalta que:

a prioridade tem um objetivo bem claro: realizar a proteção integral, assegurando primazia que facilitará a concretização dos direitos fundamentais enumerados [...]. Leva em conta a condição de pessoa em desenvolvimento, pois a criança e o adolescente possuem uma fragilidade peculiar de pessoa em formação, correndo mais riscos que um adulto, por exemplo. A prioridade deve ser assegurada por todos: família, comunidade, sociedade em geral e Poder Público.[32]

Quanto à responsabilidade do Poder Público em garantir a prioridade infantojuvenil, o jurista DALMO DE ABREU DALLARI enfatiza que:

não ficou por conta de cada governante decidir se dará ou não apoio prioritário às crianças e aos adolescentes. Reconhecendo que eles são extremamente importantes para o futuro de qualquer povo, estabeleceu-se como obrigação legal de todos os governantes dispensar-lhes cuidados especiais.[33]

Cuidados especiais esses, que não devem ser negligenciados, para que seja dada a devida proteção aos tutelados por tais garantias.

O comportamento discriminatório e agressivo dos bullies atenta acintosamente contra o respeito e a dignidade de suas vítimas ferindo os direitos estatutários transcritos abaixo:

Estatuto. Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. [...]. Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

A violação de quaisquer desses direitos afeta a dignidade do ofendido, incidindo, portanto, em dano moral. Para melhor compreendermos o conceito contemporâneo de dano moral e a sua relação com a dignidade humana, vejamos o ensinamento de SERGIO CAVALIERI FILHO:

todos os conceitos tradicionais de dano moral terão que ser revistos pela ótica da Constituição de 1988. Assim é porque a atual Carta, na trilha das ademais Constituições elaboradas após a eclosão da chamada questão social, colocou o Homem no vértice do ordenamento jurídico da Nação, fez dele a primeira e decisiva realidade, transformando os seus direitos no fio condutor de todos os ramos jurídicos. [...] Pois bem, logo no seu primeiro artigo, inciso III, a Constituição Federal consagrou a dignidade humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito. Temos hoje o que pode ser chamado de direito subjetivo constitucional à dignidade. Ao assim fazer, a Constituição deu ao dano moral uma nova feição e maior dimensão, porque a dignidade humana nada mais é do que a base de todos os valores morais, a essência de todos os direitos personalíssimos. (grifos do autor).[34]

Sendo assim, caracterizado o dano moral por terem sido ofendidas em sua dignidade, as vítimas de bullying poderão contender judicialmente pelo devido ressarcimento, conforme orienta o Professor FÁBIO MARIA DE MATTIA:

O atentado ao direito à integridade moral gera a configuração de dano moral, que, no caso, será pleiteado pela criança ou adolescente através de seu representante legal. A indenização por dano moral não mais suscita dúvidas, é a consagração do dano moral direto, em face dos termos do princípio constitucional previsto no art. 5º, X, que dispõe: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação." [35]

Mas, antes que o dano moral ao infantojuvenil efetivamente ocorra, temos o dever de comunicar essa iminência ao Conselho Tutelar que é o órgão - administrativo, municipal, permanente e autônomo - encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente.[36]

O artigo 13 do Estatuto trata dessa obrigatoriedade de comunicação à autoridade competente no caso de conhecimento de maus tratos perpetrados contra crianças e adolescentes. Aqueles que não o fizerem incorrerão na pena prevista no art. 245:

Estatuto. Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de maus tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. Art. 245. Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente: Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

Quanto ao contexto em que está inserido o artigo 13 no Estatuto, ROSSATO, LÉPORE e CUNHA comentam:

Vale ressaltar que apesar de alocado em meio a dispositivos que versam sobre o direito à saúde e obrigações dos profissionais dessa área, o dever de comunicação de maus tratos também se estende a outros profissionais, a exemplo de professores, responsáveis por estabelecimentos de ensino, dentre outros, conforme explicita a redação do art. 245 do Estatuto, que considera infração administrativa o descumprimento dessa determinação legal.[37]

Mesmo porque, em se tratando de responsáveis por escolas de ensino fundamental – etapa de ensino onde, conforme pesquisa da PLAN BRASIL, se verificou a maior incidência de bullying - a lei foi específica ao tratar do assunto: "Art. 56. Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de: I - maus-tratos envolvendo seus alunos; [...]."

Na cartilha lançada pelo Conselho Nacional de Justiça encontramos a seguinte orientação dada aos responsáveis pelos estabelecimentos de ensino nos casos de bullying:

A escola é corresponsável nos casos de bullying, pois é lá onde os comportamentos agressivos e transgressores se evidenciam ou se agravam na maioria das vezes. A direção da escola (como autoridade máxima da instituição) deve acionar os pais, os Conselhos Tutelares, os órgãos de proteção à criança e ao adolescente etc. Caso não o faça poderá ser responsabilizada por omissão. Em situações que envolvam atos infracionais (ou ilícitos) a escola também tem o dever de fazer a ocorrência policial. Dessa forma, os fatos podem ser devidamente apurados pelas autoridades competentes e os culpados responsabilizados. Tais procedimentos evitam a impunidade e inibem o crescimento da violência e da criminalidade infantojuvenil.[38]

No entanto, na opinião do Procurador GUILHERME ZANINA SCHELB "a intervenção deve ser ponderada, na medida em que, se, por um lado, deve fazer cessar a humilhação, por outro, deve estimular na vítima do bullying a capacidade de autodefesa, evitando uma superproteção prejudicial." [39]

Considerando o caráter multidisciplinar do tema em questão e a necessidade das escolas estarem preparadas para lidar com a questão, LÉLIO BRAGA CALHAU diz que:

atualmente um grande número de escolas mantém em seus quadros pedagogos e psicólogos, que, em sendo chamados para ajudar, poderão contribuir muito com a solução dos problemas. A orientação deve nortear a ação desses profissionais. Chamar a polícia e o Ministério Público, a meu ver, somente nos casos mais graves. A solução, dentro do possível, deve ser conseguida compartilhando o problema com o grupo de alunos, tendo em vista que os alunos tendem a voltar a praticar os atos de bullying assim que se colocarem sem supervisão.[40]

Sobre a atuação das escolas, também acrescenta o Professor NELSON JOAQUIM:

Cabe, também, às instituições escolares, se necessário, reprimir atos de indisciplina praticados por alunos e aplicar as penalidades pedagógicas nos casos previstos no regimento escolar ou interno. Entretanto, deve esgotar todos os recursos sociopedagógicos a ela inerente, inclusive ter uma equipe especializada de profissionais, como psicopedagogos e profissionais afins, para atuar de forma preventiva nos distúrbios ou problemas de aprendizagem.[41]

Porém, sendo inócua a tentativa de resolver o problema diretamente com os alunos e esgotadas todas as possibilidades pertinentes ao caso concreto "é o caso de acionar o Conselho Tutelar e o Ministério Público." complementa LÉLIO BRAGA CALHAU.[42] Ao final, acrescenta o eminente Promotor que "embora a polícia possa participar hoje com grupos de acompanhamento escolar, chamar a polícia pode assustar demasiadamente os alunos e provocar o retraimento, o que dificultaria qualquer medida negociada."

Finalmente, gostaríamos de destacar que, antes que seja necessário o acionamento das autoridades competentes, a prevenção sempre será o melhor a ser feito pelos estabelecimentos de ensino. As escolas têm feito isso através de programas ou campanhas esclarecedoras sobre o tema.

O professor Dan Olweus criou um programa de intervenção em escolas que é referência internacional. Esse programa tem sido implementado preventivamente em diversas escolas pelo mundo. Resumidamente, o programa tem as seguintes propostas:

Requisitos prévios gerais: Consciência e implicação. Medidas para aplicar na escola: estudo de questionário; jornada escolar com debates sobre os problemas de agressores e vítimas; melhor vigilância durante o recreio e na hora da alimentação; zonas de descanso da escola mais atrativas; telefone para contato; reunião de pais e funcionários da escola; grupos de professores para o desenvolvimento do meio social da escola; círculos de pais. Medidas para aplicar em sala de aula: normas da classe contra agressões: clareza, elogio e sanções; reuniões de classe regulares; jogos de simulação, literatura etc.; aprendizagem cooperativa; atividades de classe comuns positivas; reuniões de professores, pais e alunos da classe. Medidas individuais: falar seriamente com agressores e vítimas; falar seriamente com os pais dos envolvidos; uso de criatividade por parte dos professores e pais; ajuda de alunos "neutros"; ajuda e apoio para os pais (cartilhas para os pais etc.); grupos de debate para pais de agressores e de vítimas; troca de turma ou de escola.[43]

Ao prevenir, os estabelecimentos de ensino estarão em consonância com o prudente artigo 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente que institui: "É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente."

DO BULLYING E DA RESPONSABILIDADE CIVIL

  • As classificações de responsabilidade civil

Segundo a jurista MARIA HELENA DINIZ,[44] a responsabilidade civil admite três classificações. Pode ser classificada quanto ao seu fato gerador, em relação ao seu fundamento e relativamente ao agente:

  • Quanto ao seu fato gerador, a responsabilidade pode ser contratual ou extracontratual. A contratual origina-se no não cumprimento de um contrato. A responsabilidade extracontratual resulta da violação de um dever jurídico geral de abstenção.

  • Em relação ao seu fundamento, a responsabilidade pode ser subjetiva ou objetiva. A subjetiva é fundada na culpa ou dolo por ação ou omissão, lesiva a determinada pessoa. A responsabilidade objetiva encontra a sua justificativa no risco.

  • Relativamente ao agente, a responsabilidade pode ser direta ou indireta. A direta é proveniente da própria pessoa imputada. A responsabilidade indireta vem de ato de terceiro, vinculado ao agente, de fato animal ou de coisa inanimada sob sua guarda.

Diante das classificações quanto ao fundamento de responsabilidade civil, CARLOS ROBERTO GONÇALVES esclarece que "o código civil brasileiro, malgrado regule um grande número de casos especiais de responsabilidade objetiva, filiou-se como regra a teoria "subjetiva". É o que se pode verificar no art. 186, que erigiu o dolo e a culpa como fundamentos para a obrigação de reparar o dano." [45]É o que verificaremos com mais detalhes na próxima seção, ao tratarmos da responsabilidade civil nos casos de bullying sob as normas do novo Código Civil.

  • O bullying e a responsabilidade no Código Civil de 2002

Encontramos em um artigo dos Professores NICOLAU JR. e NICOLAU um interessante esboço histórico da responsabilidade civil:

No início da civilização, a ocorrência de um dano gerava na vítima uma ideia de vingança para com o agressor, ou seja, a justiça era feita pelas próprias mãos. Limitava-se a retribuição do mal pelo mal, como pregava a pena de talião, olho por olho, dente por dente. Esta prática, na realidade, apresentava resultados extremamente negativos, pois acarretava a produção de um outro dano, uma nova lesão, isto é, o dano suportado pelo seu agressor, após sua punição. Posteriormente, surge o período da composição a critério da vítima, ainda sem se discutir a culpa do agente causador do dano. Num estágio mais avançado o Estado toma as rédeas, e proíbe a vítima de fazer justiça pelas próprias mãos, estabelecendo a obrigatoriedade da composição, a partir de uma indenização pecuniária. Durante esse período, cria-se uma espécie de tabela que estabelece o quantum equivalente a um membro amputado, à morte etc. No ano de 572 da fundação de Roma, um tributo do povo, chamado Lúcio Aquílio, propôs e obteve a aprovação e sanção de uma lei de ordem penal, que veio a ficar conhecida como Lex Aquília, [...] O Direito francês aperfeiçoou as ideias românicas [...] Surge o Código de Napoleão e, com ele, a distinção entre culpa delitual e contratual. A partir daí, a definição de que a responsabilidade civil se funda na culpa, propagou-se nas legislações de todo o mundo. Com o advento da Revolução Industrial, multiplicaram-se os danos, e surgiram novas teorias inclinadas sempre a oferecer maior proteção às vítimas. Sem abandonar a Teoria da Culpa, atualmente vem ganhando terreno a Teoria do Risco, que se baseia na ideia de que o exercício de atividade perigosa é fundamento da responsabilidade civil (artigo 927 par. único do Código Civil). Isto significa que a execução de atividade que ofereça perigo possui um risco, o qual deve ser assumido pelo agente, ressarcindo os danos causados a terceiros pelo exercício da atividade perigosa. (grifos dos autores).[46]

O vocábulo "responsabilidade" surgiu do verbo latino respondere, que designava o fato de ter alguém se constituído garantidor de algo. O termo "civil" refere-se ao cidadão, considerado nas suas relações com os demais membros da sociedade, das quais resultam direitos e obrigações a cumprir.[47]

Hoje, o conceito de responsabilidade não é consensual entre os doutrinadores. Enquanto uns conceituam com base na culpabilidade, outros se inclinam para o descumprimento de uma imposição legal. Encontramos na obra de MARIA HELENA DINIZ o conceito de responsabilidade civil mais abrangente:

A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal.[48]

O desembargador SERGIO CAVALIERI FILHO, conceitua responsabilidade mais tecnicamente, sob a ótica do dever jurídico:

Em seu sentido etimológico, responsabilidade exprime a ideia de obrigação, encargo, contraprestação. Em sentido jurídico, o vocábulo não foge dessa ideia. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário.[49]

Essa violação se dá pelo ato ilícito que é "praticado com infração ao dever legal de não violar direito e não lesar a outrem." [50]conforme encontramos no Código Civil:

Código Civil. Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Os bullies, com os seus atos agressivos e danosos, violam os direitos de suas vítimas. Diversos direitos tutelados pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente são atingidos com essa prática lesiva. Em especial, violam-se também os direitos da personalidade como a intimidade e a honra. Os direitos personalíssimos existem desde o nascimento, permanecem por toda a vida e ninguém deve infringi-los.[51] Ao ser violada a sua integridade psíquica e constatando-se o dano, a vítima pode exigir a sua reparação, conforme encontramos disposto no inciso X do art. 5º da Constituição Federal:

Constituição. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]  X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

O dano psíquico experimentado pela vítima de bullying "exsurge tão somente como expressão sinônima de "dano moral", em que a pessoa é atingida na sua parte interior, anímica ou psíquica, através de inúmeras sensações desagradáveis e importunantes, [...]." [52]A 7ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo levou em consideração esse sofrimento ao decidir:

Ementa. O ressarcimento do dano moral é inteiramente cabível, ainda porque albergado na nova Constituição da República, e porque, em rigor, encontra guarida na própria regra geral consagrada no art. 159 do CC [atual art. 186] Na espécie, foram atingidos direitos integrantes da personalidade do apelante, tendo ocorrido o "sofrimento humano", que rende ensejo à obrigação de indenizar. Patente a ofensa não só à integridade física, como também ao sentimento de autoestima da vítima, também merecedor da tutela jurídica. Concretiza-se, em resumo, a hipótese de ofensa a um direito, ainda que dela não decorrido prejuízo material.[53]

Porém, como bem esclarece SERGIO CAVALIERI FILHO, "o dano moral não está necessariamente vinculado a alguma reação psíquica da vítima. Pode haver ofensa à dignidade da pessoa humana sem dor, vexame, sofrimento, assim como pode haver dor, vexame e sofrimento sem violação da dignidade." [54]Encontramos também em sua obra que:

por se tratar de algo imaterial ou ideal, a prova do dano moral não pode ser feita através dos mesmos meios utilizados para a comprovação do dano material. Seria uma demasia, algo até impossível, exigir que a vítima comprove a dor, a tristeza ou a humilhação através de depoimentos, documentos ou perícia; não teria ela como demonstrar o descrédito, o repúdio ou o desprestígio através dos meios probatórios tradicionais, o que acabaria por ensejar o retorno à fase da irreparabilidade do dano moral em razão de fatores instrumentais. Neste ponto a razão se coloca ao lado daqueles que entendem que o dano moral está ínsito na própria ofensa, decorre da gravidade do ilícito em si. Se a ofensa é grave e de repercussão, por si só justifica a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.[55]

Apesar do posicionamento acima exposto, o que nos induz a concluir que, segundo o eminente jurista, não haveria a necessidade de se comprovar a afetação psicológica do dano moral, a parca jurisprudência nacional sobre bullying ainda não se posicionou pacificamente sobre o caso, como se pode observar nos julgados abaixo:

Ementa. Direito civil. Indenização. Danos morais. Abalos psicológicos decorrentes de violência escolar. Bullying. Ofensa ao princípio da dignidade da pessoa. Sentença reformada. Condenação do colégio. Valor módico atendendo-se às peculiaridades do caso. Cuida-se de recurso de apelação interposto de sentença que julgou improcedente pedido de indenização por danos morais por entender que não restou configurado o nexo causal entre a conduta do colégio e eventual dano moral alegado pelo autor. Este pretende receber indenização sob o argumento de haver estudado no estabelecimento de ensino em 2005 e ali teria sido alvo de várias agressões físicas que o deixaram com traumas que refletem em sua conduta e na dificuldade de aprendizado. Na espécie, restou demonstrado nos autos que o recorrente sofreu agressões físicas e verbais de alguns colegas de turma que iam muito além de pequenos atritos entre crianças daquela idade, no interior do estabelecimento réu, durante todo o ano letivo de 2005. É certo que tais agressões, por si só, configuram dano moral cuja responsabilidade de indenização seria do colégio em razão de sua responsabilidade objetiva. Com efeito, o colégio réu tomou algumas medidas na tentativa de contornar a situação, contudo, tais providências foram inócuas para solucionar o problema, tendo em vista que as agressões se perpetuaram pelo ano letivo. Talvez porque o estabelecimento de ensino apelado não atentou para o papel da escola como instrumento de inclusão social, sobretudo no caso de crianças tidas como "diferentes". Nesse ponto, vale registrar que o ingresso no mundo adulto requer a apropriação de conhecimentos socialmente produzidos. A interiorização de tais conhecimentos e experiências vividas se processa, primeiro, no interior da família e do grupo em que este indivíduo se insere, e, depois, em instituições como a escola. No dizer de Helder Baruffi, "neste processo de socialização ou de inserção do indivíduo na sociedade, a educação tem papel estratégico, principalmente na construção da cidadania". (grifo nosso).[56]

Ementa. Agravo de instrumento contra ato do juiz que indeferiu a produção de prova pericial em vítima de assédio moral e bullying, sob o fundamento de que a mesma seria desnecessária ao deslinde do feito. Rejeição da preliminar arguida pelo agravado, vez que o descumprimento da norma do artigo 526 do Código de Processo Civil, não lhes ocasionou prejuízo. Necessidade de realização da prova pericial psicológica e estudo social por perito de confiança do juízo tendo em vista a natureza da lide. Decisão monocrática, com fulcro no artigo 557, §1º, do Código de Processo Civil, dando provimento ao recurso. (grifo nosso).[57]

Sendo assim, é prudente que toda ação indenizatória por bullying seja instruída com documentos médicos e laudos psicológicos comprobatórios da afetação psíquica da vítima, além de todas as provas necessárias que comprovem a ofensa à sua dignidade.

Outra questão que gostaríamos de tratar aqui é a seguinte: diante da incapacidade dos agressores, quem integraria o polo passivo da ação de indenização por dano moral?

Sabemos que, nos casos de bullying escolar, normalmente o aluno é vítima de seus próprios pares que, em sua maioria, têm menos de dezesseis anos de idade. Sendo assim, os responsáveis pela vítima lesada não poderiam propor uma ação de indenização em face desses agressores, pois, por serem absolutamente incapazes, não poderiam integrar o polo passivo desta demanda. Tendo em vista essa impossibilidade jurídica, poderiam ser responsabilizados pelos danos causados à vítima os pais desses agressores ou as pessoas responsáveis pelo estabelecimento de ensino?

Vejamos o que diz RUI STOCO sobre a responsabilização dos incapazes:

Se o agente que praticou a ação ou omissão causadora do dano for menor de 16 anos de idade, será considerado absolutamente incapaz ou inimputável (CC, art. 3º, I), sendo certo, contudo, que, nos termos do art. 928 do CC, responderá pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. [...] O novo Código Civil, rompendo com o sistema anterior, estabeleceu a responsabilidade subsidiária ou secundária do incapaz, pois responsáveis imediatos pela reparação serão os pais, tutores e curadores.[58]

O professor ROBERTO SENISE LISBOA também esclarece que "o sistema subjetivista admite a chamada responsabilidade indireta, que é aquela que recai sobre o responsável por conta de ato praticado por outra pessoa, a título de representação ou preposição." [59]Sendo assim, inicialmente poderia haver o entendimento de que os pais seriam os responsáveis pelos atos ilícitos dos filhos. O poder familiar os obriga a orientar e disciplinar devidamente a ponto de que fosse evitado esse comportamento antissocial:

Código Civil. Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores. Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda; [...] VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

O magistério de JOSÉ DE AGUIAR DIAS, ilustra bem a responsabilidade do(s) pai(s) em educar seus filhos no seu mais amplo sentido:

Quando se cogita da responsabilidade paterna, tem-se em vista o inadimplemento real ou presumido dos deveres que ao pai corre em relação ao menor. Esses deveres são de duas ordens: a) assistência, que não é só a material, traduzida na prestação de alimentos e satisfação de necessidades econômicas, mas também moral, compreendendo a instrução e a educação, esta no seu mais amplo sentido; b) vigilância. Na primeira categoria se entende incluída a obrigação de propiciar ao menor, ao lado da prestação de conhecimentos compatíveis com as suas aptidões e situação social e com os recursos do pai, o clima necessário ao seu sadio desenvolvimento moral, inclusive pelo bom exemplo. A vigilância é o complemento da obra educativa, e far-se-á mais ou menos necessária, conforme se desempenhe o pai da primeira ordem de deveres. Esses os motivos por que se presume a responsabilidade do pai. Um filho criado por quem observe à risca esses deveres não pode ser autor de injusto prejuízo para outrem.[60]

Porém, considerando o que dispõe os incisos I e IV do artigo 932 do CC, os donos de estabelecimento de ensino também seriam responsáveis pela reparação civil:

Código Civil. Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; [...] IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos; [...]. Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.

Sobre a transferência da responsabilidade dos pais para o estabelecimento de ensino, nos ensina os professores NICOLAU JR. e NICOLAU:

Durante o período em que o aluno se encontra sob os cuidados da escola e dos educadores ocorre um hiato no efetivo exercício da guarda por parte dos pais, até porque, durante esse tempo, o próprio acesso dos pais ao interior da escola não é permitido com naturalidade e de bom grado. Dessa forma, os atos praticados pelos alunos dos quais venha a resultar danos a outrem ou, até mesmo, a outros alunos, resulta na responsabilidade indenizatória da própria escola.[61]

Com fulcro no inciso I do artigo 932 do Código Civil, entendeu a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul pela responsabilização dos pais num caso de bullying onde o filho menor teria criado, no PC da residência dos pais, uma página na internet para ofender um colega de classe:

Ementa. Apelação. Responsabilidade civil. Internet. Uso de imagem para fim depreciativo. Criação de flog. Página pessoal para fotos na rede mundial de computadores. Responsabilidade dos genitores. Pátrio poder. Bullying. Ato ilícito. Dano moral in re ipsa. Ofensas aos chamados direitos de personalidade. Manutenção da indenização. [...] PC do ofensor. [...] A prática de bullying é ato ilícito, haja vista compreender a intenção de desestabilizar psicologicamente o ofendido, o qual resulta em abalo acima do razoável, respondendo o ofensor pela prática ilegal. Aos pais incumbe o dever de guarda, orientação e zelo pelos filhos menores de idade, respondendo civilmente pelos ilícitos praticados, uma vez ser inerente ao pátrio poder, conforme inteligência do art. 932, do Código Civil. Hipótese em que o filho menor criou página na internet com a finalidade de ofender colega de classe, atrelando fatos e imagens de caráter exclusivamente pejorativo. Incontroversa ofensa aos chamados direitos de personalidade do autor, como à imagem e à honra, restando, ao responsável, o dever de indenizar o ofendido pelo dano moral causado, o qual, no caso, tem natureza in re ipsa. [...] Apelos desprovidos.[62]

No entanto, num julgado da 10ª Câmara Cível no Tribunal do mesmo Estado, encontramos a responsabilização do estabelecimento de ensino e da educadora pela agressão sofrida por um aluno que estava sob os seus cuidados:

Ementa. Apelação civil. Responsabilidade civil. Responsabilidade do estabelecimento do ensino. Agressão entre menores. Falta de cuidado da educadora e da escola. Agravo retido. Denunciação da lide. Tratando de responsabilidade fundada no artigo 932, inciso IV, do código civil, não procede a denunciação da lide, haja vista a inexistência de direito de regresso do estabelecimento de ensino contra os pais do causador do dano. Ilegitimidade passiva da professora. Sendo a educadora responsável pela vigilância aos menores que se envolveram na agressão, tem legitimidade para responder por danos decorrentes do evento. Tendo a educadora e a escola faltada com o cuidado necessário na guarda dos alunos da turma maternal, cujos antecedentes indicavam a presença de um aluno com histórico de brigas, devem responder pelos danos causados pela agressão (e não agressividade) verificada. Dano moral puro. [...] Apelações providas, em parte. Agravo retido desprovido. Decisão unânime.[63]

JOSÉ DE AGUIAR também entendeu que o educador poderá ser responsabilizado solidariamente com o estabelecimento de ensino, malgrado isso não esteja expresso no art. 932 do CC:

No direito francês, cogita-se expressamente da responsabilidade dos professores e mestres de ofício. Ao passo que o nosso art. 932 do Código Civil de 2002, tal qual o revogado art. 1521 do Código Civil de 1916, não faz referência a educadores. Nem por isso se advogará com bom êxito entendimento diferente, porque a nossa fórmula é mais geral: a ideia de vigilância é mais ampla do que a de educação, devendo entender-se que essas pessoas respondem pelos atos dos alunos e aprendizes, durante o tempo que em sobre eles exercem vigilância e autoridade. Os danos por que respondem são, ordinariamente, os sofridos por terceiros, o que não quer dizer que os danos sofridos pelo próprio aluno ou aprendiz não possam acarretar a responsabilidade do mestre ou diretor do estabelecimento.[64]

Sendo assim, tanto o administrador quanto os professores da escola poderão estar sujeitos aos tipos de culpa descritos na doutrina de CARLOS ROBERTO GONÇALVES:

A culpa em eligendo é a que decorre da má escolha do representante ou preposto. In vigilando é a que resulta da ausência de fiscalização sobre pessoa que se encontra sobre a responsabilidade ou guarda do agente. [...] A culpa in omittendo decorre de uma omissão, só tendo relevância para o direito quando haja o dever de não se abster. (grifo do autor).[65]

Infere-se das doutrinas acima expostas que apesar dos pais serem responsáveis pela educação de seus filhos no sentido mais amplo do termo, o dever de vigilância transfere-se para o estabelecimento de ensino a partir do momento em que os infantojuvenis estiverem sob a sua responsabilidade e cuidado. Depreende-se também, que a omissão desses responsáveis foi determinante para a ocorrência de bullying em seu estabelecimento.

No entanto, CARLOS ROBERTO GONÇALVES acrescenta que:

O art. 933 do novo Código Civil dispõe, todavia, que as pessoas mencionadas no art. 932 (pais, tutores, empregadores etc.) "ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos". Não mais se indagará, portanto, para condenar as referidas pessoas a indenizar, se agiram com culpa in vigilando ou in eligendo, pois respondem objetivamente, isto é, independentemente da culpa, pelos atos dos terceiros mencionados. (grifo do autor).

A responsabilidade objetiva observada neste artigo é uma das exceções, considerando a predominância da culpa no Código Civil.

Toda a análise da responsabilidade civil empreendida nesta seção foi feita com base no Código Civil. Na seção seguinte, pautaremos a nossa análise na relação de consumo, existente entre o estabelecimento de ensino privado (fornecedor de serviço) e o aluno (consumidor), através do seu representante, que os submete ao Código de Defesa do Consumidor.

  • O bullying e o Código de Defesa do Consumidor

  • A definição de consumidor e fornecedor

Na lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990, ou Código de Defesa do Consumidor, encontramos as seguintes características de consumidor:

CDC. Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Verifica-se então que, de acordo com o caput do artigo supracitado, ao utilizar como destinatário final a prestação de serviço educacional, o aluno vítima de bullying pode ser considerado consumidor.

Sabemos também que, nessa relação de consumo, o consumidor é a parte vulnerável e por isso deve ser atendido em suas necessidades.[66] Sobre a vulnerabilidade do consumidor CLAUDIA LIMA MARQUES explica que:

a vulnerabilidade é mais um estado da pessoa, um estado inerente de risco ou um sinal de confrontação excessiva de interesses identificado no mercado, é uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação.[67]

O aluno vítima de bullying se enquadraria também na interpretação jurídica de consumidor mais restritiva e tradicional da doutrina brasileira: a interpretação finalista. O professor BRUNO MIRAGEM esclarece que o elemento característico da interpretação finalista é:

o fato de não haver a finalidade da obtenção de lucro em razão do ato de consumo, nem de implemento a uma determinada atividade negocial, assim como a completa exaustão da função econômica do bem, pela sua retirada do mercado. Nesta visão, o consumidor seria aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço para satisfação de interesse próprio ou de sua família. Seria, portanto, o não profissional, não especialista, a quem o direito deve proteger.[68]

Podemos então concluir, que, sem sombra de dúvida, o aluno se enquadra no que foi caracterizado pela lei e pela doutrina como consumidor.

Vejamos agora como o art. 3º da lei nº 8.078/90 conceitua fornecedor:

CDC. Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. [...] § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Ao lermos o artigo citado acima, perceberemos que conceituar fornecedor é mais simples do que consumidor, "sobretudo porque junto com a noção ampla conferida pelo legislador, a pessoa física ou jurídica que forneça um produto ou um serviço no mercado de consumo na maioria das vezes exercerá uma atividade profissional, habitual e voltada ao lucro." [69]Sendo assim, fica claro que a prestação de serviço mediante remuneração do estabelecimento de ensino privado o caracteriza como fornecedor.

Destacamos aqui que, conforme exigência do § 2º do artigo 3º, a ligação entre o aluno, através do seu representante, e o estabelecimento de ensino deve, necessariamente, se dar mediante remuneração para que fique caracterizada a relação consumerista. Quanto à opção pela expressão "remunerado" no lugar de "oneroso" CLAUDIA LIMA MARQUES esclarece que:

significa uma importante abertura para incluir os serviços de consumo remunerados indiretamente, isto é, quando não é o consumidor individual que paga, mas a coletividade (facilidade diluída no preço de todos, por exemplo, no transporte gratuito de idosos), ou quando ele paga indiretamente o "benefício gratuito" que está recebendo (com a catividade e os bancos de dados positivos de preferências de consumo e de marketing direcionado, que significam as milhas, os cartões de cliente preferencial, descontos e prêmio se indicar um "amigo" ou preencher um formulário).[70]

Mesmo com essa amplitude relativa ao termo escolhido, se o estabelecimento de ensino for remunerado pelo crédito educativo fica descaracterizada a relação de consumo, conforme julgamento encontrado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que pela sua 2ª Turma decidiu:

Ementa. Administrativo. Crédito educativo. Natureza jurídica. Código de Defesa do consumidor. Na relação travada com o estudante que adere ao programa do crédito educativo, não se identifica relação de consumo, porque o objeto do contrato é um programa de governo, em benefício do estudante, sem conotação de serviço bancário, nos termos do art. 3º, § 2º, do CDC. Contrato disciplinado na Lei 8.436/92, em que figura a CEF como mera executora de um programa a cargo do Ministério da Educação, o qual estabelece as normas gerais de regência e os recursos de sustentação do programa. Recurso especial desprovido.[71]

Depois de tratarmos de todos os esses precedentes abordaremos na próxima seção os deveres e direitos pertinentes aos protagonistas da relação de consumo.

  • A segurança e a qualidade como deveres do fornecedor

A disposição normativa constante no artigo 8º do Código de Defesa do Consumidor trata de um dever fundamental do fornecedor, o dever de segurança:

CDC. Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.

Esse dever, que foi estabelecido pelo legislador tendo em conta a sociedade de risco em que nós estamos inseridos, é negligenciado quando o pai (consumidor) percebe que seu filho foi vítima de bullying estando sob os cuidados do estabelecimento de ensino (fornecedor).

O estabelecimento de ensino tem o dever de garantir a segurança esperada de seus serviços sob pena de poder ser responsabilizado pelos danos decorrentes da falha dessa garantia. Sobre essa questão, o magistério de SERGIO CAVALIERI FILHO esclarece:

Que dever impõe a lei ao fornecedor de produtos e serviços? Quando se fala em risco de consumo, o que se tem em mente é a ideia de segurança. O dever jurídico que se contrapõe ao risco é o dever de segurança. Risco e segurança são elementos que atuam reciprocamente no meio do consumo, como vasos comunicantes. Onde houver risco terá que haver segurança. Quanto maior o risco, maior será o dever de segurança. [...] Portanto, para quem se propõe fornecer produtos e serviços no mercado de consumo a lei impõe o dever de segurança; dever de fornecer produtos seguros, sob pena de responder independentemente de culpa (objetivamente) pelos danos que causar ao consumidor. Aí está, em nosso entender, o verdadeiro fundamento da responsabilidade do fornecedor. (grifo do autor).[72]

Para o Ministro ANTÃ"NIO HERMAN BENJAMIN, essa proteção deveria ter como fundamento algo que estivesse um patamar acima dos critérios estabelecidos. Sendo assim, a proteção devida ao consumidor deveria estar alicerçada na Qualidade, e não apenas na segurança. Tal pensamento ensejou na construção da Teoria da Qualidade, descrita assim pelo Ministro:

No direito do consumidor é possível enxergar duas órbitas distintas – embora não absolutamente excludentes – de preocupações. A primeira centraliza suas atenções na garantia na incolumidade físicopsíquica do consumidor, protegendo sua saúde e segurança, ou seja, preservando sua vida e integridade contra os acidentes de consumo provocados pelos riscos de produtos e serviços. A segunda esfera de inquietação, diversamente, busca regrar a incolumidade econômica do consumidor em face dos incidentes (e não acidentes!) de consumo capazes de atingir seu patrimônio. [73]

Considerando que ao possibilitar a ocorrência de bullying em seu estabelecimento o prestador de serviço não cumpriu com o dever de segurança, ou garantia de qualidade, esperada pelo aluno e seu representante, faremos agora uma exposição dos principais pontos referentes à responsabilização pelo fato de serviço prestado ao consumidor.

  • A responsabilidade pelo fato do serviço

O professor BRUNO MIRAGEM conceitua esse tipo de responsabilidade no contexto brasileiro da seguinte forma:

A responsabilidade civil pelo fato do produto ou do serviço consiste no efeito de imputação ao fornecedor, de sua responsabilização em razão dos danos causados, em razão de defeito na concepção ou fornecimento de produto ou serviço, determinando seu dever de indenizar pela violação do dever geral de segurança inerente a sua atuação no mercado de consumo. No direito brasileiro, o regime de responsabilidade distingue-se em razão do dever jurídico violado pelo fornecedor. A responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço decorre da violação de um dever de segurança, ou seja, quando o produto ou serviço não oferece a segurança que o consumidor deveria legitimamente esperar. (grifo do autor).[74]

O caput do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor afirma que o fornecedor responderá, "independentemente da existência de culpa", ou seja, objetivamente, pela reparação dos danos causados ao consumidor.[75]

NICOLAU JR. e NICOLAU discorrem sobre esse fato no seu artigo:

Sabe-se que a responsabilidade do estabelecimento privado de ensino, após a vigência do Código de Defesa do Consumidor, não se apresenta mais como responsabilidade indireta do educando, mas sim, como responsabilidade objetiva direta, com esteio no artigo 14, do CDC. O dever do fornecedor (colégio) de prestar serviços seguros a seus consumidores (alunos) funda-se no fato do serviço o não no fato do preposto ou de outrem, como outrora era entendido. Desse modo, para se aferir a responsabilidade pelos danos sofridos pelo autor, faz-se premente apenas a verificação da existência de conduta, seja ela comissiva ou omissiva, do nexo causal e do dano alegado, sem se perquirir sobre qualquer elemento subjetivo.[76]

Quanto ao nexo causal entre a conduta do responsável pelo defeito do serviço e o dano sofrido pelo aluno, não será exigida em juízo ao representante do aluno nenhuma prova mais elaborada sobre o ocorrido. O ônus da prova é do estabelecimento de ensino e ao consumidor só caberá provar "a chamada prova de primeira aparência, prova de verossimilhança, decorrente das regras da experiência comum, que permita um juízo de probabilidade." [77]

Sobre a importância do nexo causal esclarece SERGIO CAVALIERI FILHO:

Mesmo na responsabilidade objetiva é indispensável o nexo causal. Esta é a regra universal, quase absoluta, só excepcionada nos raríssimos casos em que a responsabilidade é fundada no risco integral, o que não ocorre no Código do consumidor. Inexistindo relação de causa e efeito, ocorre a exoneração da responsabilidade, conforme enfatizado em várias oportunidades.[78]

A irresponsabilidade do fornecedor por não haver nexo causal está prevista no § 3° do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor: "O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro."

A primeira hipótese que exclui a responsabilidade do fornecedor é a comprovação da inexistência de defeito na prestação de serviço. Nos casos de bullying, caso o estabelecimento queira se beneficiar dessa excludente, ele deverá comprovar que à época do incidente ele ofereceu ao consumidor a segurança que era esperada. Para ilustrar esse fato, segue abaixo o julgamento da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

Ementa. Relação de consumo. Estabelecimento de ensino. Prestação de serviço de tutela de menor. Alegação de abalos psicológicos decorrentes de violência escolar. Prática de bullying. Ausência de comprovação do cometimento de agressões no interior do estabelecimento escolar. Adoção das providências adequadas por parte do fornecedor. Observância do dever de guarda. Falha na prestação do serviço não configurada. Fatos constitutivos do direito da autora indemonstrados. Manutenção da sentença. Recurso desprovido.[79]

A outra possibilidade de excludente de responsabilidade do estabelecimento de ensino seria a comprovação da culpa exclusiva da vítima, fato esse que ficou demonstrado numa ação de dano moral julgada pela 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo:

Ementa. Dano moral. Pedido fundado na alegação de que os réus teriam injuriado a autora e a agredido fisicamente. Ausência de prova concreta a esse respeito. Documento subscrito pela diretora do estabelecimento de ensino que sugere haver sido a autora quem iniciou o entrevero. Não caracterização da responsabilidade do instituto de ensino, porquanto agiu de forma diligente quando do desentendimento entre seus alunos. Não configuração de dano moral. Apelo desprovido.[80]

Quanto a não responsabilização por culpa exclusiva de terceiro, devemos observar que "a posição de terceiro, neste sentido, é admitida a todo aquele que, não participando da cadeia de fornecimento, realiza conduta que dá causa ao evento danoso de modo independente da conduta do fornecedor ou do defeito." [81]Essa independência de conduta do fornecedor não se observa quando, sob a guarda e vigilância dos responsáveis pelo estabelecimento de ensino, um aluno é agredido por um terceiro que por qualquer motivo tenha invadido aquelas dependências. É o que foi decidido pela 1ª Turma Recursal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e pela 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo:

Ementa. Responsabilidade civil. Estabelecimento de ensino. Agressão física. Dano moral. Estudante agredido fisicamente no recinto do estabelecimento escolar. Quebra do dever de vigilância sobre o acesso de elementos estranhos ao corpo discente. Dever também de velar pela preservação de integridade física dos alunos, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo, sob pena de incidir em responsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasionados. Sentença de primeiro grau mantida por seus próprios fundamentos. Recurso improvido.[82]

Ementa. Responsabilidade civil. Aluno matriculado em estabelecimento de ensino oficial, morto por indivíduos que invadiram a escola no período de aulas. Danos morais e patrimoniais. Verbas devidas. Omissão do Estado em zelar pela segurança dos alunos. Prejudicando o recurso da Fazenda. Recurso dos autores parcialmente provido. Ao receber o estudante, confiado ao estabelecimento de ensino da rede oficial ou da rede particular para as atividades curriculares, recreação, aprendizado e formação escolar, a entidade de ensino fica investida no dever de guarda e preservação da integridade física do aluno, com a obrigação de empregar a mais diligente vigilância para prevenir e evitar qualquer ofensa ou dano aos seus pupilos, que possa resultar do convívio escolar.[83]

Apesar das excludentes por caso fortuito e força maior não estarem previstas no Código de Defesa do Consumidor, BRUNO MIRAGEM esclarece que boa parte da doutrina consumerista e da jurisprudência tem entendido que

só é considerada excludente da responsabilidade do fornecedor o chamado caso fortuito externo, ou seja, quando o evento que dá causa ao dano é estranho à atividade típica, profissional, do fornecedor. Apenas nesta condição estará apta a promover o rompimento do nexo de causalidade, afastando totalmente a conduta do fornecedor como causadora do dano sofrido pelo consumidor.[84]

Depois de tratarmos das excludentes de responsabilidade do fornecedor, verificaremos como o Código de Defesa do Consumidor disciplina a proteção contratual do consumidor, proibindo a "cláusula de não indenizar", tendo em vista o vínculo contratual existente entre o aluno e a escola.

O contrato de prestação de serviço educacional, em regra, é por adesão. Isso significa que as cláusulas contratuais são pré-estabelecidas pelo estabelecimento de ensino, não podendo o representante do aluno dispor sobre as mesmas, cabendo a ele aceitá-las ou não no ato da contratação do serviço. Caso o aluno seja lesionado na escola por atos de bullying, as cláusulas contratuais constantes no contrato que impossibilitem, exonerem ou atenuem a obrigação de indenizar do fornecedor são vedadas e, portanto, nulas de pleno direito, conforme verificamos nos artigos 25 e 51 do Código de Defesa do Consumidor:

CDC. Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores. Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis; [...].

Essa vedação legal decorre de interesses públicos e sociais relevantes, é o que inferimos das palavras do Promotor LEONARDO ROSCOE BESSA:

O inciso I do art. 51, ou seja, a vedação de cláusula limitando ou excluindo o dever de indenizar nas relações de consumo, decorre naturalmente do fato de as normas do Código de defesa do consumidor serem "de ordem pública e interesse social" (art. 1º) e, portanto, inafastáveis por disposição contratual. O dispositivo abrange tanto os direitos e indenizações decorrentes dos vícios do produto e do serviço (arts. 18 a 25), como as hipóteses indenizatórias relativas ao fato do produto e do serviço (acidentes de consumo), previstas nos arts. 12 a 17. O art. 25 do CDC reforça, mais uma vez, a vedação de qualquer estipulação contratual que exonere ou diminua a obrigação de indenizar decorrente de fato ou de vícios dos produtos e serviços, [...].[85]

Sendo assim, não resta dúvida de que "a indenização derivada do fato do produto ou do serviço não pode ser excluída contratualmente. [...] Não vale, portanto, a "cláusula de não indenizar".[86]

Para encerrar devidamente essa análise da responsabilidade civil na relação de consumo, não poderíamos esquecer de abordar o instituto da prescrição, onde "o direito da parte fica privado da ação que o assegura." [87]

A prescrição está regulada no artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor:

CDC. Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria. (grifo nosso).

Esse é o prazo que o representante do aluno vítima de bullying tem para ingressar no judiciário a fim pleitear uma indenização pelas agressões sofridas pelo infantojuvenil. Depois desse prazo, essa pretensão à reparação pelos danos sofridos prescreve.

Sobre o início da contagem do prazo, BRUNO MIRAGEM esclarece que:

a norma brasileira foi clara ao estabelecer que o termo inicial se dá quando houver o conhecimento do dano e de sua autoria. Trata-se, portanto, do conhecimento efetivo, não o suposto ou exigível em dadas e incertas circunstâncias. Da mesma forma, note-se que não basta ter conhecimento do dano, mas é necessário também que conheça a sua autoria, o que importa saber para efeito de determinar contra quem exercerá sua pretensão reparatória. A prescrição como fenômeno extintivo da pretensão sustenta-se no conhecido adágio romano, dormientibus ius non sucurrit (o direito não socorre aos que dormem). No caso, tratou o legislador do CDC de estabelecer a certeza da possibilidade real de exercício da pretensão (consciência do dano e de sua autoria), para então estabelecer critério de início da fluência do prazo prescricional. (grifos do autor).[88]

Partes: 1, 2, 3


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