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O trabalho se divide em três capítulos. No primeiro faremos uma apresentação dos dois personagens, levando em conta a pertinência do tema. O leitor perceberá que, por vezes, utilizaremos de descrições dramáticas ou até mesmo cruéis das principais HQs (Histórias em Quadrinhos). Tanto Batman quanto Coringa merecem tal tipo de apresentação uma vez que pouco se conhece dos textos em quadrinhos e deles mesmos.
No segundo, os conceitos filosóficos de Nietzsche serão apresentados. Duas obras foram separadas para a análise do tema: Genealogia da Moral e Além do Bem e do Mal. Ambas trazem uma harmonia no pensamento de Nietzsche concernente à moral. O filósofo francês Gilles Deleuze aparecerá como leitor de Nietzsche. Ele fará menção a uma obra póstuma de Nietzsche a Vontade de Potência que, todavia, não foi pesquisada para este trabalho. Com relação à Genealogia da Moral, trabalhamos apenas as duas primeiras dissertações: ["Bom e mau", "bom e ruim"] e ["Culpa", "má consciência" e coisas afins]. Com relação a Além do Bem e do Mal vislumbramos os capítulos 5 e 9, [Contribuição à história natural da moral] e [O que é nobre], respectivamente.
No terceiro capítulo, será feita uma relação entre os conceitos de Nietzsche a respeito da moral e os dois personagens antagônicos Batman e Coringa. Algumas citações, tanto do primeiro quanto do segundo capítulos serão repetidas com o intuito de esboçar melhor as associações entre o pensamento de Nietzsche e a luta dos personagens.
CAPÍTULO I
1.1 Batman: O Cavaleiro das Trevas
Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?...
Nietzsche
Batman: um personagem icônico, complexo e cicatrizado, que traduz as lutas internas mais obscuras e subterrâneas da alma humana. Icônico porque é identificável com milhares de histórias comuns, como às das pessoas que brigam para dar sentido à vida. Complexo, pois, é humano. Cicatrizado, porque teve um encontro intenso, ainda criança, com uma particularidade muito peculiar da vida: a morte.
Seja nas Histórias em Quadrinhos (HQs), nos filmes[1]séries ou desenhos animados, o Batman sempre possui um ar sombrio, obscuro e misterioso. Como se tivesse algo a esconder por trás da máscara. Abordagem direta, poucas palavras, violência, impessoalidade: um tanto paradoxal para um herói que busca trazer a ordem, a paz, o bem comum.
O personagem nasceu pelas mãos dos jovens desenhistas americanos Bob Kane e Bill Finger em 1939[2]da editora de Histórias em Quadrinhos conhecida na época por Detective Comics, hoje DC Comics. No ano anterior, havia surgido outro personagem, também famoso: o Superman. Era a Era de Ouro dos quadrinhos e The Bat-Man (nome inicial do personagem) aparece na publicação de número 27 da editora. Kane se inspirou nos romances policiais (pulps) e no mascarado mexicano, o Zorro, para criar seu herói. (COSTA, 2001, p. 9-10)
Ao contrário do Superman, um herói de outro planeta (Krypton) que possui poderes extra naturais (levantar vôo, visão raio-x, força extrema, raio laser de aquecimento e resfriamento nos olhos e etc.), o Batman (do inglês: homem morcego) se serve de artefatos militares, tecnologia de ponta e treinamento físico e intelectual para combater o crime em Gotham City, a cidade de insanos artistas do crime. (cf. MALLOY, 2008)
E porque combater o crime? Quais as motivações que levam um homem comum chamado Bruce Wayne a vestir um traje militar, dedicar tempo e energia em uma tarefa tão arriscada, tendo uma vida dupla? Seria um sadismo inato? Teria ele um vício por adrenalina? Ou suas brincadeiras de herói na infância se desdobraram na vida adulta como um playground sangrento e real? Todas as alternativas anteriores podem fazer parte da personalidade do jovem Bruce, mas existe uma, que conduz essas e outras motivações: uma promessa [3]
Cabe, agora, uma apresentação das influências que os pais de Batman exerceram em sua vida, assim como uma descrição da gênese do personagem que culminará na questão da promessa que é pertinente ao tema do presente trabalho.
O alter ego de Batman, Bruce Wayne, é filho de Thomas e Martha Wayne. Seu pai é um dos maiores médicos e filantropos da cidade de Gotham. Ele também é dono das Empresas Wayne, uma companhia que fabrica produtos de alta tecnologia, mas não se dedica na administração de sua empresa, pois prefere estar mais disponível para ajudar as pessoas menos favorecidas e, o faz por meio do exercício da medicina e da filantropia: fazendo doações para entidades beneficentes. (NOLAN, 2005)
É em um ambiente de harmonia e alegria que o filho único do casal vive. Nas Histórias em Quadrinhos (HQs) de Batman, isso é exposto. Mostra-se a influência dos pais sob a personalidade de Bruce e o medo que ele mantém de descobrir algo sobre seus pais que venha a decepcioná-lo.
Em A Carta, Bruce, ao refletir sobre a visão que tinha dos pais na infância, comenta: "Nós carregamos nossos sentimentos da infância quando pensamos neles como mais que apenas pais. Eles eram quase... deuses. Pessoas que não fariam nada de errado e resolveriam qualquer problema que tivéssemos" (LIEBERMAN, 2006).
Em Sombras do Passado, Batman investiga uma possível relação de seu pai com a máfia no passado. Suspeitando da conduta do pai, contata um tenente e descobre que em uma festa à fantasia na qual seus pais o levaram, um mafioso chamado Lew Moxon estava com um sobrinho padecendo por conta de um tiro que havia sofrido em um assalto.
Como não havia nenhum médico disponível, Moxon, que também estava na festa, decide chamar o Dr. Wayne que mesmo relutante, pois, se tratava de um criminoso, aceita cuidar do "paciente" seguindo o Juramento de Hipócrates lembrado pelo bandido. Ao terminar a pequena cirurgia de retirada da bala, Wayne recusa o dinheiro oferecido por Moxon e decididamente diz:
Eu salvei a vida desse homem porque é a minha profissão... você mencionou o Juramento de Hipócrates... bem, os médicos também trabalham sob outro juramento... o de obedecer à lei, e isso inclui dar parte dos ferimentos à bala de que tratamos... e é exatamente o que vou fazer. (BRUBAKER, 2001)
Mesmo tendo a família sob ameaça de morte se decidisse dar parte, Thomas Wayne cumpre o juramento que fez e o bandido é preso dias depois. Ao ficar sabendo de tudo isso, Batman se recorda da tal festa na qual sua mãe havia se fantasiado de Cleópatra, seu pai de Zorro e ele, o pequeno Bruce, de Esqueleto da Morte. Recorda-se de um diálogo específico entre ele e sua mãe que parecia atemorizada quando o marido saiu para atender o bandido ferido: "– Porque cê tá [sic] com medo mamãe? – Porque seu pai é muito corajoso, Bruce... e às vezes eu tenho que sentir medo por nós dois". Arrependido de ter duvidado de seu pai, reflete: "Você foi corajoso naquela noite, e fez a coisa certa... apesar das conseqüências... você foi o Zorro... um herói".
Depois de esboçar as influências que Bruce Wayne teve dos pais, entraremos na apresentação de sua origem como Batman. Existem dois momentos decisivos que marcam a gênese e o desenvolvimento fundamental de Batman. O primeiro é o brutal assassinato de seus pais quando ainda era um garoto. Na consagrada HQ de Batman, O Cavaleiro das Trevas, do aclamado roteirista Frank Miller (1986), Bruce Wayne se encontra aposentado do capuz, velho e muito frustrado. Em uma cena, ele está de frente para a televisão, bebendo e trocando de canais quando se depara com o início de um filme: a Marca do Zorro. É então que traz à tona uma forte e viva memória do passado.
A descrição seguinte, presente na HQ citada acima, não apresenta texto, apenas imagens sequenciais. Descreveremos textualmente as cenas em banda desenhada, com o intuito de acentuar o caráter mnemônico[4]do cruel evento testemunhado por Bruce Wayne enquanto criança e que justificará as características elementares do tema a ser estudado neste trabalho.
As cenas mostram um homem e uma mulher saindo de um prédio de cinema cujo cartaz mostra o filme: Zorro. Na frente do casal, um garoto despreocupado brinca alegre imitando o herói mascarado, numa coreografia espadachim enquanto se encaminham para um beco escuro e sujo.
A lúdica fantasia do garoto é interrompida quando olhando para o céu observa um morcego sobrevoar à luz da lua. Em seguida sente a mão de seu pai o segurar pelo ombro, empurrando-o para trás. Logo, outra mão segurando uma pistola aparece: é o anúncio de um assalto. Tentativa de diálogo e confusão. O dedo do bandido puxa o gatilho: um tiro, o pai cai no chão. Cartucho da bala ao chão. Mais confusão e o bandido tenta arrancar o colar de pérolas da mãe, o que faz os óculos dela caírem. Outro tiro, pérolas se espalham pelo chão juntamente com outro cartucho.
Em Ano Um do mesmo Frank Miller (1987), a cena em questão mostra um garoto solitário, ajoelhado em frente aos corpos ensanguentados dos pais, mortos. Um evento perfeitamente comum das grandes metrópoles, familiar aos ouvidos. A origem de Batman se diferencia de tradicionais origens de super heróis, pois não apresenta nem um fator sobrenatural ou algum tipo de acidente químico que o faz se transformar no homem morcego. Ele não ganha nenhum tipo de força sobre humana, mas toma uma decisão.
O catalisador crucial – um assalto que deu errado – é tragicamente comum. E o resto da gênese de Batman é criado a partir de uma promessa extravagante e aparentemente tola feita por um garoto a seus pais assassinados – limpar Gotham City do crime. (JENSEN, 2008 p. 85)
Eis o segundo momento que desenha a gênese de Batman e é responsável por seu desenvolvimento: uma promessa. O pequeno Bruce Wayne, em frente ao túmulo dos pais se dá o encargo de lutar contra criminosos. Em Detective Comics # 33 de Bob Kane e Bill Finger (1939), o garoto declara: "E eu juro, pelo espírito de meus pais, vingar a morte deles e devotar o resto de minha vida combatendo todos os criminosos". (KANE, 1939)
Nas HQs de Batman, não é apresentada uma vingança comumente dita. Bruce nunca tirou a vida de Joe Chill, o bandido que matou seus pais. Apenas no filme Batman Begins de Christopher Nolan (2005), é dada uma tentativa de vingança direta, quando o jovem Bruce, já universitário, tenta assassinar Chill na saída do tribunal. Não consegue, pois, Carmine Falcone, um mafioso italiano, chega à frente e o mata primeiro. No decorrer da história, Nolan tenta fazer uma distinção entre vingança e justiça. A promotora de justiça de Gotham, Rachel Dawes, argumenta dizendo: "Justiça tem haver com harmonia, vingança tem haver com você se sentir melhor. É por isso que temos um sistema imparcial" (Tradução nossa) [5]
Na série O Longo Dia das Bruxas de Jeph Loeb e Tim Sale (1998), o morcego relembra: "Fiz uma promessa no túmulo dos meus pais... Eu jamais descansaria enquanto não limpasse Gotham do mal que tirou suas vidas" (LOEB, 1998, p. 29).
A promessa aparece como fator indispensável na construção deste personagem. Ela é a condutora da missão que o garoto se deu. Missão que se desdobra ao longo das histórias de Batman, nos encontros com os mais diferentes tipos de inimigos que o morcego enfrenta. Ele não tem meta poderes. Seu poder é sua vontade incorruptível em fazer da corrompida Gotham City um lugar melhor. Em O Palhaço à Meia-Noite de Grant Morrison (2007), a cidade e o morcego são descritos:
Mais uma noite na autoproclamada "cidade mais incrível do mundo". Onde as pessoas vão para admirar a fervilhante intensidade luminosa de suas incansáveis avenidas. Onde vidas humanas são compradas e vendidas e a inocência tem um preço. Onde sonhos se tornam reais e sangram. Onde fantasmas existem e monstros deixam suas pegadas no pó. Onde vive o homem que não tem preço, o homem que não pode ser comprado, vendido ou desviado de seu caminho particular. (MORRISON, 2007, p. 54)
Tal vontade incorruptível é expressa em sua metodologia de combate ao crime: não usar armas de fogo. Seus pais foram mortos por uma e isso o faz ter total aversão a elas. Não usá-las exige um esforço de treinamento físico nas artes marciais, unido a um conhecimento científico. Todo processo estratégico é seguido de meditação para a obtenção de concentração[6]
Batman é um homem devoto a seus princípios. Ele possui uma mansão gigantesca que herdou dos pais. Há uma caverna no subsolo da mansão que veio a calhar para seu empreendimento, sua espera para atacar, seu silêncio, sua meditação, suas memórias. Lá é seu refúgio e fortaleza, sua academia de trabalho corporal e centro de inteligência, pesquisa e análise em vários níveis. Um verdadeiro quartel general privado. Ele ainda conta com a ajuda de seu fiel mordomo, Alfred Pennyworth, que possui experiência em medicina de guerra (cf. Ano Um, 1987).
Uma questão importante: porque, precisamente, escolher um morcego como símbolo? Certamente não é por acaso. A HQ O Cavaleiro das Trevas mostra que, quando criança, Bruce Wayne brincava nas dependências de sua mansão, correndo atrás de um coelho branco. O coelho entra na toca e o garoto, perseguindo o animal, acaba caindo na toca que, na verdade, se revela uma caverna grande e escura. Caído e machucado no chão, Bruce é surpreendido por uma revoada de morcegos assustados que voam por todos os lados. Depois que os morcegos se afastam e se acalmam na caverna, o menino percebe algo diferente. Já adulto conta:
Então algo se move. Oculto... algo que suga o ar viciado e sibila. Planando com graça milenar ele não se afasta como seus outros irmãos. De olhos radiantes, intocados pela alegria ou tristeza... seu hálito é quente e tem o sabor de inimigos vencidos... O odor de coisas mortas, coisas condenadas. Com certeza, ele é o mais feroz sobrevivente... O mais puro guerreiro... brilhando, odiando... tomando o meu ser. Sonhando... Eu tinha seis anos quando isso aconteceu... Quando encontrei a caverna... Imensa, vazia, silenciosa como uma Igreja... Sequiosa como o morcego. (MILLER, 1986)
Mais tarde, já decidido a iniciar seu plano de combate ao submundo de Gotham, Bruce Wayne se detém na problemática do disfarce. Faz-se necessária uma máscara. Em diálogo com Alfred afirma:
As pessoas precisam de exemplos dramáticos para lhes tirarem da apatia. E eu não posso fazer isso como Bruce Wayne. Como homem... Eu sou de carne e osso. Eu posso ser ignorado, posso ser destruído. Mas como um símbolo... Como um símbolo eu posso ser incorruptível. Eu posso ser eterno (...) Algo elementar, algo aterrorizante (tradução nossa).[7]
A idéia do morcego surge de maneira inusitada. Em "diálogo" com a memória de seu pai falecido, Bruce recebe a visita de uma criatura familiar e tem um "insight" criativo:
Como pai? Como devo agir? (...) Eu tenho uma fortuna. A mansão da família está sobre uma caverna... que daria um perfeito quartel general... tenho até um mordomo com treinamento em medicina de guerra... Sim pai, eu tenho tudo... menos paciência (...) Já esperei dezoito anos... dezoito anos desde... Desde Zorro. A Marca do Zorro. Desde aquela caminhada à noite. Desde o homem com olhar vazio e assustado... de voz áspera como vidro se partindo... Desde que minha vida perdeu o sentido. Sem o menor aviso, ele surge... estilhaçando a janela do seu estúdio, agora meu. Já vi esta criatura antes... em algum lugar. Ela me aterrorizou quando criança... me aterrorizou... Sim, pai. Eu me tornarei um morcego. (MILLER, 1987)
Uma justificativa que corrobora com seu trauma de infância, é dada em Batman Begins quando Alfred o interroga sobre o porquê do morcego: "Morcegos me assustam. É hora de meus inimigos compartilharem do meu pavor" (tradução nossa)[8]. Ou seja, causar medo na mesma medida em que possui medo.
Por fim, um fator indispensável no personagem. Fator que se torna via de regra: não matar. Executar um criminoso seria meio fácil de impedir que ele volte a cometer outros crimes, sobretudo quando se trata de criminosos em Gotham City: uma cidade que "serve o melhor do crime" [9]Isso não funciona com o Batman. Ele diria: "Não sou assassino" [10]Seus pais foram mortos por um.
Em Batman Begins, isso fica bem claro, quando ao término de seu treinamento para se tornar membro efetivo da Liga das Sombras, Bruce Wayne é submetido a um último teste: ele precisa executar um criminoso. Segue o diálogo com seu mestre e posterior inimigo Ra"s Al Ghul:
- Mas primeiro, você precisa demonstrar seu comprometimento com a justiça.
- Não. Não sou um executor.
- Sua compaixão é uma fraqueza que seus inimigos não irão compartilhar.
- Por isso ela é tão importante. Ela nos separa deles.
- Você quer lutar contra criminosos? Este homem é um assassino.
- Este homem deveria ser julgado.
- Por quem? Burocratas corruptos? Os criminosos zombam das leis da sociedade. Você sabe disso melhor que a maioria.
- Eu voltarei a Gotham e lutarei contra homens como este... Mas não me tornarei um executor. (tradução nossa)[11]
Esta regra máxima será motivo de muitas discussões, as quais são encontradas em muitas das HQs de Batman. Ela será a incorruptibilidade moral do Morcego, seu não ultrapassar o limite, sua garantia de conseguir conter as forças caóticas da desordem em busca da paz, da justiça e do bem comum. Contudo, será, paradoxalmente, seu ponto mais fraco, sua vulnerabilidade, seu Calcanhar de Aquiles com relação aos que ama. Pois sem esta regra, Batman poderia ter evitado muitas mortes causadas por seu principal antípoda, que não hesita em atacar seu ponto de vulnerabilidade de maneira sádica e cruel: o Coringa.
Coringa: O Homem que Ri
Esta "audácia" das raças nobres, a maneira louca, absurda, repentina como se manifesta o elemento incalculável, improvável, de suas empresas (...), sua indiferença e seu desprezo por segurança, corpo, vida, bem-estar, sua terrível jovialidade e intensidade do prazer no destruir, nas volúpias da vitória e da crueldade.
Nietzsche
Coringa: um personagem explosivo, sádico e totalmente caótico. Explosivo, pois não hesita em explodir o que vê pela frente, deixando sua marca de destruição voluntária. Sádico, uma vez que aprecia causar dor e sofrimento às suas vítimas, tratando-as como brinquedos particulares do terror. Caótico, porque é imprevisível em suas ações e altamente perigoso para a conservação da ordem e da vida.
Some tudo isso a um escárnio constante e se tem o inimigo principal do Batman: o mais forte, o mais pertinente. Um criminoso incomum, que escolheu o crime como forma de expressão artística: tem a aparência de um palhaço. Um palhaço assassino que faz de Gotham City seu picadeiro do medo e do caos. Por isso tentaremos trazer à tona os detalhes principais que formam suas características.
O Coringa foi inventado pelos mesmos criadores de Batman, Bob Kane e Bill Finger, em parceria com Jerry Robinson. A pretensão era criar um vilão para Batman, e Kane se inspirou no personagem do ator Conrad Veidt no filme "O Homem Que Ri" [12]de 1928. Robinson contribuiu com o personagem inspirando-se em sua paixão por cartas de baralho [13]MANN, 2003).
Sua origem, como personagem do universo de Batman, é contada em Detective Comics #168 de Bob Kane, Bill Finger e Jerry Robinson (1951), em A Piada Mortal de Alan Moore (1988) e no filme Batman de Tim Burton (1989).
A primeira obra não dá importância ao passado do Coringa, apenas o apresenta como um criminoso chamado "Capuz Vermelho" que assalta uma fábrica de baralhos e em uma luta contra o Batman, acaba caindo em um tanque que contém uma mistura química. Ele mesmo diz: "O vapor químico... tornou meu cabelo verde, meus lábios, vermelho carmim... e minha pele, esbranquiçada! Pareço um palhaço do mal! Que piada infame!". E segue: "Concluí que minha face poderia aterrorizar as pessoas! E por causa da fábrica de baralhos e à carta que tem a face de um palhaço, decidi me autodenominar o Coringa" (KANE, 1951).
Na segunda obra, Allan Moore apresenta um comediante frustrado que não consegue emprego e sofre por ser fraco e não ter como sustentar a esposa que está esperando um filho. No desespero, se une com bandidos para assaltar a fábrica de baralhos vestido como o Capuz Vermelho. Na manhã do assalto, ele recebe a notícia que sua esposa, ao tentar testar um aquecedor de mamadeiras, provoca um curto circuito e acaba morrendo. Mesmo abatido com o acontecimento ele vai para a fábrica. Lá encontra a polícia e o Batman. Cai no tanque químico e depois de ser levado pela correnteza até as margens de um rio, observa seu reflexo na água. Vendo o rosto modificado, senta-se ponderante e cabisbaixo. Minutos depois, levanta-se e começa a rir compulsivamente a ponto de gargalhar.
Na versão cinematográfica de Tim Burton, o Coringa é Jack Napier, um bandido braço direito do chefão do crime de Gotham. Diferentemente da versão anterior, o personagem já possui predisposição forte e habilidosa para o crime. A queda no tanque de líquido químico, sob as mesmas circunstâncias das versões anteriores, é apenas um catalisador para uma independência com relação à máfia: ele, agora, trabalha por conta própria e se dá o trabalho de fazer do crime um instrumento para sua "nova filosofia":
Eu agora faço o que outras pessoas apenas sonham. Eu faço arte... até alguém morrer. Eu sou o primeiro artista homicida do mundo totalmente em exercício. (tradução nossa) [14]
Com esta frase de autodefinição feita pelo Coringa, e após ter sido elaborada uma apresentação de sua gênese, abriremos caminho para entender a personalidade deste personagem que é moldada de acordo com as histórias mostradas nas HQs de Batman e que serão de suma importância para as pretensões deste trabalho, com relação ao tema proposto.
Ora, o fato de o nome "Coringa" ser atribuído ao personagem, não é por acaso. A carta coringa no baralho abre possibilidade de participação em várias funções dentro do jogo, ela é adequável, substitui outras cartas, é móvel. Essa é uma característica básica do Coringa: a analogia do personagem com a carta do baralho, demonstra não apenas suas características psicológicas mas também sua forma de abordagem nas histórias, seus métodos.
Com relação a métodos, o Coringa trabalha da seguinte forma: ele faz uma aparição pública na qual anuncia uma situação que desestabiliza todo um estado de segurança, paz e ordem. Apresenta uma ameaça direta utilizando-se do medo para instaurar um ambiente de terror deixando suas vítimas vulneráveis para, assim, poder finalmente atacar. Seu "propósito" subsiste em uma "necessidade de romper com uma ordem enfadonha e restritiva. O Estado impõe essa ordem com objetivo mais social que político, e o Coringa reage tentando destruir qualquer ordem" (SPANAKOS, 2008, p. 68).
Sua primeira aparição foi em Batman #1 de 1940. Em versão mais recente, a mesma história é atualizada com mais detalhes por Ed Brubaker em O Homem que ri de 2005. Nela o Coringa se apresenta a Gotham City por meio da televisão, em uma transmissão ao vivo para toda a cidade. Ele ameaça tirar a vida de todos os cidadãos, começando pelos mais famosos, utilizando seu famoso veneno do riso (Smilex) [15]Marca data e hora e declara poeticamente: "Um de cada vez eles vão ouvir meu gemido. E então esta cidade suja irá cair comigo". (BRUBARKER, 2005)
Isso causa um caos total nos cidadãos e coloca as autoridades de segurança em prontidão temerosa, assim como ao próprio Batman. Consegue, estrategicamente, matar a todos os famosos que prometeu. No curso da história, ele invade um centro de reabilitação para doentes mentais e os liberta distribuindo armas para os internos causando mais confusão e mortes nas ruas da cidade. Batman reflete consigo: "Nunca me preparei para isto. Estudei assassinos, ladrões, estupradores... pessoas desesperadas cometendo atos desesperados. Mas nunca imaginei algo como o Coringa". (BRUBAKER, 2005) Depois, o Palhaço do Crime ameaça envenenar toda a cidade com o Smilex, por meio do sistema de distribuição de água. Batman impede sua última empreitada e o coloca na prisão.
Na mesma história, o morcego tenta esboçar uma explicação para os atos do Coringa dizendo:
Quando caiu no tanque de resíduos químicos, ele estava no lugar errado pelo motivo errado, mas ainda assim culpa Gotham. (...) Em sua mente doentia somos culpados apenas por estarmos vivos. Agora entendo tudo. Sua fúria e seu ódio paranóico. Ele pode ser um gênio, mas ódio é tudo que conhece. (BRUBAKER, 2005)
Em outra tentativa de explicação, no filme Batman, O Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan (2008), Alfred Pennyworth, o fiel mordomo de Batman, arrisca: "Alguns homens não estão à procura de algo lógico, como o dinheiro. Eles não podem ser comprados, ameaçados, não são razoáveis ou negociáveis. Alguns homens só querem assistir o mundo pegar fogo". (tradução nossa) [16]
A ideia do jogo de baralho fica bem mais clara em Asilo Arkham de Grant Morrison (1990). Ao ser chamado pelo próprio Coringa ao Asilo Arkham[17]Batman se encontra com a psiquiatra do asilo, Ruth Adams. Em conversa ela se refere ao Coringa nestes termos:
O Coringa é um caso especial. Muitos de nós acreditam que ele está além de qualquer tratamento. Na verdade, não estamos sequer certos de que ele possa ser definido como insano.(...) É bem possível que estejamos diante de um caso de super-sanidade. Uma nova e brilhante modificação da percepção humana. Mais adequada à vida urbana no fim do século vinte.(...) Diferente de você ou de mim, o Coringa não parece ter controle sobre as informações sensoriais que recebe do mundo externo. Por isso, alguns dias ele é um palhaço infantil. Outros, um psicopata assassino. Ele não tem verdadeira personalidade. Ele cria uma diferente por dia. O Coringa se vê como o mestre do desgoverno, e o mundo como um teatro do absurdo. (MORRISON, 1990)
Em O Palhaço à Meia-Noite, Grant Morrison (2007) retoma o tema da psique do Coringa. Em diálogo com Arlequina, a fiel discípula do Coringa, Batman diz: "Ele mudou novamente. Você sabe como ele muda depois de alguns anos. Você escreveu o livro, doutora Quinzel. Ele não tem nenhuma personalidade real, lembre-se, apenas uma série de "superpersonas"". (MORRISON, 2007)
Nesta linha caótica e imprevisível, a crueldade nas ações do Coringa emerge de maneira absurda. Para observarmos isso, veremos uma HQ muito importante, que explora muito bem várias características do Coringa. Em A Piada Mortal de Allan Moore (1990), o príncipe palhaço do crime se propõe um experimento: provar que qualquer um pode tornar-se louco, sob a condição de um dia ruim. Um dia ruim separaria o homem são do insano.
Na história dessa HQ, após de ter fugido do Asilo Arkham, o Coringa toma posse de um antigo e abandonado parque de diversões. Ele vai até a casa do amigo e parceiro de Batman, o Comissário de polícia Jim Gordon, que na ocasião recebe a visita de sua filha, Bárbara Gordon. Quando Bárbara abre a porta é surpreendida pelo Coringa que imediatamente lhe aponta uma arma e atira à queima roupa, deixando-a paraplégica. Seus capangas batem no Comissário e o deixam desacordado. Bárbara, agonizante, ainda questiona o Coringa pelo porque daquilo tudo, ao que ele responde: "Para provar uma coisa". E levantando uma taça, brinda com um sorriso: "Saúde ao crime". (MOORE, 1988)
Depois disso leva o Comissário até o parque de diversões e manda seus capangas anões vestidos de "bailarinas-demônios" retirarem as roupas de Gordon. Completamente nu e puxado por uma coleira em direção ao trem fantasma, Gordon, ainda acordando do desmaio, se dá conta do acontecimento e diz: "Você. Oh, não... eu... eu me lembro!". O Coringa intervém com um discurso sobre a memória e a loucura:
Lembra? Oh, eu não faria isso! Lembrar é perigoso... eu vejo o passado como um lugar cheio de ansiedade. O "pretérito imperfeito", como você chamaria. Ah, ah, ah, ah! As memórias são traiçoeiras! Num momento, você está perdido num carnaval de prazeres, com o aroma da infância, os neons da puberdade... No outro, elas te levam a lugares onde a escuridão e o frio trazem à tona coisas que você gostaria de esquecer! As memórias podem ser vis, repulsivas, brutais... como crianças. Ah, ah, ah! Mas podemos viver sem elas? A razão se sustenta nelas. Não encarar as memórias é o mesmo que negar a razão! Mas e daí? Quem nos obriga a ser racionais? Não há cláusula de sanidade. Assim, quando você estiver dentro de um desagradável trem de recordações, seguindo pra lugares do seu passado onde o riso é insuportável... lembre-se da loucura. Loucura é a saída de emergência! Você só precisa dar um passo pra trás e fechar a porta com todas aquelas coisas horríveis que aconteceram... presas lá dentro... pra sempre. (MOORE, 1990)
Logo após é levado para o interior do trem fantasma. Enquanto vai percorrendo os trilhos, Jim Gordon assiste a cenas de terror: fotos de sua filha nua, baleada e se contorcendo em dores. Tudo isso tendo como fundo musical, um Coringa altamente debochado cantando uma ode à loucura. Segue um trecho: "Quando o mundo está cheio de preocupação e todas as manchetes gritam desespero, quando tudo é estupro, fome e guerra, bem... então, só há uma coisa certa a fazer... você deve sorriiiiir...". (MOORE, 1990)
É possível perceber que o Coringa expressa sua maneira de ver o mundo e deixa bem clara sua repulsa ao tipo de homem contemporâneo do qual a fraqueza perante a realidade trágica da vida é motivo de escárnio, de riso. Constatamos claramente: imediatamente depois de terminar sua tortura psicológica ao comissário Gordon, ele o tranca em uma jaula para animais e o apresenta, em um tom de mestre de cerimônia, nos seguintes termos à sua platéia de bizarros artistas de circo:
Senhoras e senhores! Vocês já o conhecem pelas manchetes dos jornais! Agora, tremam ao ver com seus próprios olhos o mais raro e trágico dos mistérios da natureza! Apresento... o Ho-mem co-muuum! Fisicamente ridículo, ele possui, por outro lado, uma deturpada visão de valores. Observem o seu repugnante senso de humanidade, a disforme consciência social e o asqueroso otimismo. É mesmo de dar náuseas, não? O mais repulsivo de tudo são suas frágeis e inúteis noções de ordem e sanidade. Se for submetido a muita pressão... ele quebra! Então, como ele faz pra viver? Como esse pobre e patético espécime sobrevive ao mundo cruel e irracional de hoje? A triste resposta é... "não muito bem". Frente ao inegável fato de que a existência humana é louca, casual e sem finalidade, um em cada oito deles fica piradinho! E quem pode culpá-los? Num mundo psicótico como este... qualquer outra afirmação seria loucura! (MOORE, 1990)
Ainda vislumbrando o fator cruel nas ações do Coringa, na HQ Morte em Família, o roteirista Jim Starlin (1988), mostra a morte do segundo Robin[18]Jason Todd, pelas mãos do Coringa. O Palhaço do Crime surra o garoto com um pé de cabra: "Prepare-se para uma sova bem sovada, garoto. Mas me deixe dizer logo de cara... isso vai doer mais em você do que em mim" (STARLIN, 1988). As cenas em banda desenhada mostram uma sequência de golpes realizados por um Coringa aos risos de alegria e satisfação, na presença da mãe do garoto. Em seguida, prepara uma bomba relógio que explode, matando Jason Todd e sua mãe juntos. Momentos depois, Batman carrega nos braços o corpo deformado de seu pupilo.
Outro fator importante no personagem, ligado à crueldade e ao escárnio, é o dilema. Entendido aqui como: "situação embaraçosa com duas soluções difíceis ou penosas" [19]Em Batman, O Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan (2008), são apresentados quatro casos de dilemas efetuados pelo Coringa. Os dois primeiros são direcionados especialmente ao Batman, os outros dois, são dirigidos aos cidadãos de Gotham.
Trata-se de colocar em pauta uma tragédia iminente, na qual a decisão no agir depende, em primeira ordem, de um indivíduo e em segunda ordem, de uma comunidade: escolhas que tem proporções coletivas. O Coringa quer que tanto Batman, juntamente com as autoridades de segurança, quanto a cidade participem do que ele chama de "jogo".
No primeiro, ele ameaça matar pessoas se o Batman não revelar sua verdadeira identidade. Em rede nacional ele aterroriza dizendo: "Vocês querem ordem em Gotham... Batman deverá tirar a máscara e se revelar. Oh, e cada dia que não o fizer, pessoas morrerão. Começando esta noite. Eu sou um homem de palavra" [20]Na medida em que Batman não tira a máscara, o Coringa vai eliminando um por um, deixando pistas para as próximas vítimas. Ele consegue matar um homem que se fantasiava de Batman, uma juíza, o então comissário de polícia e outros dois policiais. Pressionado pela situação embaraçosa, Batman decide se entregar, mas é surpreendido pelo promotor de justiça, Harvey Dent [21]que assume ser Batman e é levado preso. Mais tarde, a farsa serviu para atrair o Coringa para uma emboscada com o intuito de prendê-lo.
Na segunda ocasião, o Coringa captura Harvey Dent e Rachel Dawes [22]propondo que Batman escolha um dos dois para salvar, pois, ambos estão amarrados a bombas-relógio cercadas de barris de gasolina, em diferentes localidades. O palhaço diz: "Há apenas minutos restantes. Então você terá que jogar meu joguinho se quiser salvar um deles. (...) Matar é fazer uma escolha. (.) Escolha entre uma vida ou outra: seu amigo da promotoria ou a noivinha ruborizada dele" (tradução nossa).[23] Ao que Batman o espanca tentando arrancar a localização dos dois raptados, o Coringa ri, como alguém que ri da mais engraçada anedota, e diz: "Você não tem nada, nada com o que me ameaçar, nada a fazer com toda a sua força" (tradução nossa) [24]
O Coringa fornece as localizações e Batman escolhe salvar Rachel enquanto o comissário Gordon vai atrás de Harvey Dent. Chegando ao prédio, ao abrir a porta ele se encontra com Harvey ao invés de Rachel: o Coringa deu os endereços trocados. Gordon não chega a tempo: Rachel está morta.
O terceiro dilema se dá quando um funcionário das empresas Wayne chamado Coleman Reese, ao descobrir a identidade secreta de Batman, decide ir até a televisão para entregar o Morcego. O Coringa não gosta da ideia e telefona para a emissora de TV que está fazendo a transmissão e, ao vivo, ameaça:
Eu tive a visão de um mundo sem o Batman. A máfia conseguia um lucrinho e a polícia tentava pegá-los um quarteirão de cada vez. E isso era tão... chato. Eu mudei de ideia. Não quero o Sr. Reese estragando tudo. mas porque eu deveria ter toda a diversão? Vamos dar chance a outros. Se Coleman Reese não estiver morto em 60 minutos... então eu explodo um hospital" (tradução nossa) [25]
O problema é que muitos cidadãos possuem parentes internados nos hospitais, incluindo os policiais. É então que começa uma caça a Reese. O já promovido comissário Gordon, com a ajuda de Batman, consegue evacuar os hospitais a tempo e conservar a vida de Coleman Reese que quase morre pelas mãos de cidadãos com parentes nos hospitais.
Por fim, no quarto dilema, ele convida a cidade para entrar em seu jogo. Quando os cidadãos estão sendo retirados de uma determinada ilha da cidade, são usadas duas embarcações. Na ocasião, uma embarcação carrega prisioneiros perigosos que o promotor Harvey Dent havia prendido, enquanto a outra leva cidadãos comuns. Coloca barris de gasolina nas duas barcas e deixa um detonador remoto para cada uma. Entrando na freqüência de rádio das embarcações, o Coringa se comunica com ambas ao mesmo tempo:
"Esta noite, vocês todos farão parte de um experimento social. Através da magia do combustível diesel e do nitrato de amônia, estou pronto agora pra explodir vocês pro céu. Se alguém tentar sair de sua barca, eu mato todos. Cada um tem um detonador para explodir o outro barco. À meia-noite eu explodo a todos. Se, entretanto, um de vocês apertar o botão, eu deixarei essa barca viver. Então quem vai ser? A coleção dos mais procurados do Harvey Dent ou os doces e inocentes civis? Vocês escolhem! Oh, é bom decidirem logo porque as pessoas no outro barco talvez não sejam tão nobres". (tradução nossa) [26]
Enquanto o relógio corre marcando quinze minutos para a meia noite, a barca com os cidadãos entra em uma discussão para decidir se apertam ou não o botão. O segurança diz que o detonador não será ativado. Um cidadão fala que não cabe a ele decidir. Outra diz que os prisioneiros da outra barca já tiveram as chances deles e não souberam aproveitar e outro propõe uma votação: todos concordam. Ao final da votação os resultados foram 140 contra e 396 a favor da detonação. Ao perceber que ninguém se levanta para apertar o botão, um cidadão diz: "Ninguém quer sujar as mãos. Ótimo. Eu faço. Aqueles homens no outro barco? Eles fizeram suas escolhas. Escolheram matar e roubar. Não faz nenhum sentido termos que morrer também". [27]Ao dizer isso, ele pega o detonador, titubeia, devolve-o e volta a seu lugar sem coragem de fazê-lo.
Na outra barca, a dos criminosos, o segurança também não tem coragem de apertar o botão, mesmo com a maioria dos prisioneiros gritando para que ele o faça e rápido. Até que um dos prisioneiros se dirige para o segurança dizendo: "Você não quer morrer... mas você não sabe como tirar uma vida. Dê isso a mim. Estes homens vão te matar e tomar de qualquer jeito. Dê pra mim. Você pode dizer que eu tomei à força. Me dê e eu farei o que você deveria ter feito a 10 minutos atrás".[28] O segurança entrega para o criminoso, que por sua vez joga o detonador pela janela.
Porque tanta satisfação em estabelecer esses dilemas e se contentar com o sofrimento trágico do outro? Em outra ocasião o Coringa afirma: "Você quer saber porque eu uso uma faca? Armas são muito rápidas. Você não consegue saborear todas as pequenas emoções. Em seus últimos momentos, as pessoas te mostram quem realmente elas são."[29]
Neste filme, o diretor Christopher Nolan não apresenta a cena da queda no tanque de líquido químico que provocou a brancura na pele, o avermelhamento dos lábios, os cabelos verdes e a contração na face em um sorriso constante, o que seria convencional. Aqui, o Coringa mesmo pinta os cabelos de verde, usa maquiagem no rosto e rasga as bochechas em formato de sorriso. E de fato, o produto químico, nas versões anteriores, funciona apenas como explicação para o rosto de palhaço.
Ter o rosto de palhaço simboliza sua postura diante da vida: a saber, diante da tragédia da vida que mesmo sendo cruel e sem sentido, merece um sorriso. Ao se referir às cicatrizes em seu rosto, no formato de um sorriso, ele explica:
Meu pai era um bêbado e um viciado. Certa noite, ele fica mais louco que de costume. Mamãe pega a faca de cozinha para se defender. Ele não gosta disso... nem um pouco. Então, comigo assistindo, ele enfia a faca nela, rindo enquanto faz isso. Ele se vira pra mim e diz: "porque tão sério?". Ele vem até mim com a faca: "Porque tão sério?". Enfia a lâmina na minha boca: "Vamos colocar um sorriso neste rosto". [30]
Em outra ocasião, ainda no filme, ele conta sobre suas cicatrizes:
Eu tinha uma esposa. Ela era linda. (.) Me dizia que eu me preocupava demais. Me dizia que eu tinha que sorrir mais. Ela jogava e se envolveu até o pescoço com agiotas. Um dia retalharam o rosto dela. E não tínhamos dinheiro para cirurgias. Ela não agüenta! Eu só queria vê-la sorrindo outra vez. Eu só queria que ela soubesse que eu não me preocupo com as cicatrizes. Então... eu enfio uma navalha na minha boca e faço isso comigo mesmo. E sabe o que acontece? Ela não agüenta olhar pra mim. Ela vai embora! Agora eu vejo o lado engraçado: agora eu estou sempre sorrindo! [31]
Essas duas explicações trágicas corroboram com a versão de Allan Moore, em "A Piada Mortal", na qual sua esposa grávida morre em um acidente doméstico tolo. Corroboram no sentido de expressarem exemplos comuns que acontecem nos dias atuais: maus tratos a criança, violência contra a mulher, alcoolismo, vício em jogos, abandono, falta de emprego, fracasso profissional, acidente doméstico. São exemplos que causam repulsa, náuseas. E o Coringa pôde superá-los e o demonstra por meio do riso.
Essa postura de deboche perante o trágico e suas investidas para criar situações de dilema mostram as pretensões do Coringa em causar caos a partir do medo, deixando as pessoas vulneráveis e pressionadas a tomarem uma decisão difícil ou simplesmente por diversão. Por mais que sejam situações estratégicas, elas estão longe de serem planejamentos comuns de controle e segurança: é justamente contra o controle, segurança, bem-estar, conservação e estabelecimento que o Coringa opera. Ele se define bem:
Eu realmente pareço um cara com planos? Sabe o que eu sou? Eu sou um cachorro correndo atrás de carros. Eu não saberia o que fazer se eu pegasse um. (...) Eu apenas faço coisas! A mafia tem planos. Os policiais tem planos. Gordon tem planos. Eles são esquematizadores. Esquematizadores tentando controlar seus mundinhos. Eu não sou um esquematizador. Eu tento mostrar aos esquematizadores o quanto suas tentativas de controlar as coisas realmente são patéticas.[32]
O fator simplório e patético dos planejamentos de controle são motivos de zombaria para o Coringa. Ele se diverte com eles. Tudo que é ordenado, regrado e estabelecido, motiva o personagem a impor uma contrapartida. Ele continua:
Olha o que eu fiz a esta cidade com uns barris de gasolina e algumas balas. Sabe o que eu percebi? Ninguém entra em pânico quando as coisas vão de "acordo com os planos". Mesmo que o plano seja terrível. Se amanhã eu digo à imprensa que um arruaceiro vai levar um tiro, ou um caminhão de soldados vai ser explodido... ninguém entra em pânico. Porque isso tudo faz parte do plano. Mas quando eu digo que um velho prefeitinho vai morrer... então todo mundo perde a cabeça. Introduza uma pequena anarquia. Perturbe a ordem estabelecida. e tudo se torna caos. Eu sou um agente do caos. E sabe uma coisa a respeito do caos? Ele é justo.[33]
A justiça no próprio caos: conceber a desordem como justa, cabível, algo dado. Trata-se de uma força desregrada, sem limites, despreocupada. Tal concepção vai de choque à concepção de justiça do restante da sociedade que investe defensivamente ou com inibição: com força reativa. Portanto, o esforço das delegações de segurança do Estado (Gotham), que possuem a função de ordenar o desordenado, entram no "jogo" do Coringa como força de inibição e escudo de defesa que atingem seu grau máximo de força contrária e estabelecedora da ordem, na pessoa do Batman.
CAPÍTULO II
E o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer.
Nietzsche
2.1 Valorações morais
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em suas concepções acerca da Moral, fez uma busca minuciosa até as origens [34]do tipo de valoração moral, tentando entender seu desdobramento e conseqüente repercussão em seu tempo: a saber, o final do século XIX no contexto cultural europeu.
A problemática para ele, e para nós também, é de, simplesmente, entender esta luta histórica que se apresenta ao homem sob as formas de bem e mal que têm se imposto como dilema dramático de escolha. Parece que cabe a filósofos, antes de fazer opções, conhecer os objetos para posicionar-se a favor, contra ou deixá-los. Com isso podemos perguntar, acompanhando Nietzsche:
(...) sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor "bom" e "mau"? e que valores têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro? (GM, p. 09)
Para isso, ele se utilizou de método genealógico, lançando mão de conhecimento histórico, filológico e análises psicológicas profundas no tocante às disposições do homem na formulação de tal valor: "encontrei e arrisquei respostas diversas, diferenciei épocas, povos, hierarquias dos indivíduos, especializei meu problema, das respostas nasceram novas perguntas, indagações, suposições, probabilidades". (GM, p. 09)
Tais análises se encontram, mais sistematizadas, em seu livro Genealogia da Moral no qual Nietzsche frisa bem sua intenção em dissipar preconceitos acerca da moral que até então foram tomados por apenas um ponto de vista. É justamente colocando em questão esse ponto de vista vigente e hegemônico que o filósofo empreenderá sua busca pela origem (surgimento) de tais preconceitos sob o pressuposto de nova exigência:
Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (...), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado. (GM, p. 12)
Faz-se importante salientar que Nietzsche não leva em conta a metafísica como acessório para a empresa de analisar as origens da moral e muito menos pensa em tê-la como fundamento inerente ao próprio homem que justifique o desenvolvimento da moral como opção saudável à vida. Por que para Nietzsche a moral só pode ser conhecida a partir de um nascimento, sob circunstâncias de desenvolvimento e transformação. O próprio valor da moral é colocado como problema. Ele pretende analisar o que é entendido até então como não analisável. É que sua filosofia "se constrói, em medida considerável, em contra-dicção, como um contra discurso em relação tanto à tradição da história da metafísica quanto, numa perspectiva de confronto e crítica cultural, como uma radical oposição à modernidade". (GIACÓIA, 2008, p. 190)
As razões desta crítica podem ser compreendidas observando-se uma corrente filosófica e religiosa que se pretende universal em plano moral. Isso se encontra no platonismo e consequentemente no Cristianismo[35]por serem, ambos, determinadores de "supremas referências axiológicas que determinam o horizonte normativo e a substância ética da modernidade". (GIACÓIA, 1997, p 13)
Esse valor substancial é tido como dado e incontestável. De modo direto: aquilo que é "bom" sendo elevado no valor em relação ao que é "mau" estaria acima de qualquer questionamento, não havendo hesitações ou dúvidas em considerá-lo como tal. Por isso Nietzsche propõe uma troca de perspectiva na consideração:
E se no "bom" houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro? Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor, mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?... (GM, p. 12-13)
Com essa consideração nova, Nietzsche investiga, imediatamente, o surgimento do conceito e juízo "bom" a partir de um espírito histórico. Desconsidera a ideia inglesa[36]de que o conceito "bom" tenha sido criado por aqueles a quem se tenham praticado ações não egoístas, a quem tenham sido úteis, desdobrando-se em louvores e agradecimentos e que com o tempo foram se acostumando em chamar atos altruístas de "bons".
Mas Nietzsche propõe outra coisa: foram os homens superiores, os nobres, os senhores quem criaram o conceito "bom" a partir deles mesmos, tendo eles mesmos como referência. É como se o nome brotasse como extensão de seu próprio brilho, o brilho nobre. Diferentemente da ideia inglesa acima que cria a partir da ação de outro e, por hábito, continuam a atribuir o nome "bom" esquecendo-se de sua origem.
Foram os "bons" mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. (GM I § 2)
Esses homens superiores deram nome ao valor. O que lhes era caro, precioso, querido, desejado, agradável, saboroso, etc., recebeu o nome de "bom" como distintivo. E logo esse "bom" só pode estar em contrapartida ao que é barato, indesejado, desagradável, não precioso, etc. Em contraposição criaram o nome "ruim".
O pathos da nobreza e da distância (...), o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa, com um "sob" – eis a origem da oposição "bom" e "ruim". (O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem "isto é isto", marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas). (GM I § 2)
Para chegar a essa origem o filósofo levou em conta a etimologia do conceito em diversas línguas e verificou que em todas elas, o fator senhorial foi base para o desenvolvimento conceitual e definidor do valor em questão, sempre em crescimento paralelo com o fator contrário, o do escravo:
(...) em toda parte, "nobre", "aristocrático", no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu "bom", no sentido de "espiritualmente nobre", "aristocrático", de "espiritualmente bem- nascido", "espiritualmente privilegiado": um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz "plebeu", "comum", "baixo" transmutar-se finalmente em "ruim". (GM I § 4)
Nietzsche se refere aos senhores de várias formas: poderosos, nobres, fortes, superiores, bem logrados etc. Assim como aos escravos: plebeus, baixos, fracos, malogrados etc. Mas quem são esses senhores? Porque são importantes dentro da compreensão de valoração moral para Nietzsche?
Em sua obra Além do Bem e do Mal, é apresentada as características desse tipo de homem capaz de estabelecer valores, cunhar nomes:
Homens de uma natureza ainda natural, bárbaros em toda terrível acepção da palavra, homens de rapina, ainda possuidores de energias de vontade e ânsias de poder intactas (...) A casta nobre sempre foi, no início, a casta de bárbaros: sua preponderância não estava primariamente na força física, mas na psíquica – eram os homens mais inteiros (o que em qualquer nível significa também "as bestas mais inteiras". (ABM § 257)
Nietzsche observa que houve uma inversão no então conceito de "bom" e, por conseguinte no seu oposto "ruim". É o que ele chama de tresvaloração de valores. Aquilo que inicialmente era tido como bom passa a ser entendido como ruim e vice-versa. Mas, mais que isso: a dupla de antônimos "bom" e "ruim", ganha um terceiro participante, o "mau". Acontece, portanto, uma nova maneira de valorar, baseada em um fator novo: o ressentimento dos fracos.
Os fracos, em sua impotência perante os fortes, assumem para si uma vontade de vingança carregada de ódio embutido: um veneno conservado que espera o momento certo para aniquilar o inimigo. Trata-se de um tipo de valoração que não parte de si mesmo (do fraco) como parâmetro para valorar, mas olha para o outro e o nega.
Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um "fora", um "outro", um "não-eu" – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação no fundo é reação. (GM, I § 10)
A valoração do forte é diferente:
O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o "baixo", "comum", "ruim", é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico, positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, "nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes! (GM I § 10)
As duas citações acima esboçam os modos valorativos do que Nietzsche chama de moral dos senhores e moral dos escravos[37]como dois tipos básicos dentre várias outras morais possíveis. Podemos aventar que elas são acentuadas pelo filósofo pelo fato de serem as mais predominantes na cultura ocidental, aquelas que se cruzam e entram em conflito de perspectiva, que têm gerado guerras.
Com relação ao modo valorativo escravo é, portanto, o ressentimento que gera o novo valor moral em questão. É de um constatar-se impotente perante um potente, fraco perante um forte, que o ódio cresce e toma proporções de vingança. A impotência do fraco, com relação ao forte, cria um novo tipo de valoração: o forte, segundo a perspectiva do fraco, torna-se "mau".
Nietzsche irá salientar a importância de distinguir estes conceitos antagônicos para "bom" que são aparentemente iguais: a saber, o "bom" contrapondo "ruim" e o "bom" contrapondo "mau":
Este "ruim" de origem nobre e aquele "mau" que vem do caldeirão do ódio insatisfeito – o primeiro uma criação posterior, secundária, cor complementar; o segundo, o original, o começo, o autêntico feito na concepção de uma moral escrava – como são diferentes as palavras "mau" e "ruim", ambas aparentemente opostas ao mesmo sentido de "bom": perguntemo-nos quem é propriamente "mau", no sentido da moral do ressentimento. A resposta, com todo o rigor: precisamente o "bom" da outra moral, o nobre, o poderoso, o dominador, apenas pintado de outra cor, interpretado e visto de outro modo pelo olho de veneno do ressentimento.
O filósofo se utilizará de uma pequena fábula para expressar esta tresvaloração escrava. Ele compara o senhor a uma ave de rapina e o escravo a uma ovelha: animais que possuem características similares às apresentadas para cada tipo de valorador moral: o fraco e o forte. As aves de rapina são conhecidas por sua habilidade em caçar suas presas, enquanto as ovelhas são as caças:
Que as ovelhas tenham rancor às grandes aves de rapina não surpreende: mas não é motivo para censurar às aves de rapina o fato de pegarem as ovelhinhas. E se as ovelhas dizem entre si: "essas aves de rapina são más; e quem for o menos possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha – este não deveria ser bom?", não há o que objetar a esse modo de erigir um ideal, exceto talvez que as aves de rapina assistirão a isso com ar zombeteiro, e dirão para si mesmas: "nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada mais delicioso do que uma tenra ovelhinha". (GM I § 13)
A filósofa Maria Cristina Ferraz (2008) caracteriza o discurso das ovelhas e das aves de rapina apontando a perspectiva de Nietzsche na elaboração da fábula:
Como se pode observar, o problema aqui não reside nem na diferença nem nos inevitáveis embates que ela em geral suscita, mas nessa necessidade de censurar, de culpabilizar (...) A postura dos cordeiros, a censura que dirigem às aves de rapina e o próprio ato de julgar já implicam, portanto, a valoração moral. A perspectiva de quem conta a fábula introduz, por sua vez, uma primeira distância em relação ao cordeiro, distância necessária para a avaliação dos valores que este promove (FERRAZ, 2008, p 149).
Com isso, Nietzsche criticará a ideia de sujeito atuante na escolha de ser forte ou fraco. Para ele, a ave de rapina não escolhe se vai devorar a ovelha ou não, ela simplesmente tem força para tal e o faz: "Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força" (GM I § 13). Não há justificativa para que o fraco exija do forte uma decisão livre em ser forte ou não, justamente porque não existe um fundamento, uma essência no forte que o "dirija" para exercer a força. Não existe um eu no sentido de sujeito. Nietzsche usa uma metáfora para sustentar isso:
Pois assim como o povo distingue o corisco do clarão, tomando este como ação, operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe "ser" por trás do fazer, do atuar, do devir; o "agente" é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo[38](GM I § 13).
O corisco e o clarão seriam a mesma coisa. O povo, ou a moral do povo, ou a moral escrava (de rebanho) é que faz a distinção e ela é necessária para ter o que culpar. Uma vez que esse sujeito não existe, não há necessidade de culpabilizar: "Só a crença nesse sujeito "por trás" possibilita tanto a atribuição de mérito quanto a condenação moral por aquilo que se fez, ou deixou de fazer" (FERRAZ, 2008, p 153).
Entramos no conceito de vontade de potência, que definirá, explicitamente, caso não se tenha percebido até agora, de que lado Friedrich Nietzsche estará no modo de valoração:
Aqui devemos pensar radicalmente até o fundo, e guardarmo-nos de toda fraqueza sentimental: a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração (...) A "exploração" não é própria de uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive, como função orgânica básica, é uma consequência da própria vontade de poder, que é precisamente vontade de vida. Supondo que isto seja uma inovação como teoria – como realidade é o fato primordial de toda a história: seja-se honesto consigo mesmo até esse ponto! (ABM § 259)
Com relação às aves de rapina, há de se observar que seu discurso se apresenta como afirmador de si mesmo, não tomando o outro como referência, mas verificando sua potência e prazer no "comer". A vontade de potência das aves de rapina, apenas justifica a vida, a "essência do que vive". Somente aqui se possa falar em essência, portanto: vontade de domínio, ação/fazer. Há uma inocência também: sua força dominante é desprovida de culpa, portanto, cabe o riso. O deboche entra como ridicularização da moral porque "trata-se, antes, de uma afirmação direta, sem rodeios ou segundas intenções, que expressa bom humor e ausência de rancor" (FERRAZ, 2008, p 156).
2.2 Rebelião dos escravos e religião
Mesmo que o tipo de valoração senhorial tenha sido a responsável por criar os conceitos originais do que é bom e ruim, o modo de valoração escrava tomou a frente e por meio da tresvaloração dos valores, definiu o que era mau e atribui aos senhores o título de maus. Tal titulação coloca o forte em estado de titubeio perante o fraco e o que antes era força se torna fraqueza e o que era tido como desprezível e baixo se torna digno de louvor, uma virtude a ser alcançada em vista de algo mais, algo além do que se pode ver, tocar, cheirar, ouvir, enfim, sentir. Justamente porque, em seu mais alto grau de criação imaginativa ressentida, inventou ideais.
Estas características do homem fraco são expressas, em Nietzsche, na figura do sacerdote. A casta sacerdotal, em confronto com a casta senhorial guerreira, é derrotada, em termos de constituição física, e a constatação de sua impotência gera uma estratégia de dominação por vias diferentes, não menos subjugadoras. Essas vias consistem em atos de vingança não com a mesma moeda, o que seria impraticável aos sacerdotes, mas em nomear os guerreiros e poderosos como maus.
Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos – por quê? Porque são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes. (GM I § 7)
Este ódio ressentido e entranhado dos escravos, aos pés da potência humilhante dos felizes senhores, encontrará espaço na religião. O sacerdote da religião será o responsável por desdobrar na história da cultura mundial, sua valoração moral em luta contra as forças que denominou como más. Nietzsche enxerga no povo judeu o expoente perfeito que caracteriza e oferece ao mundo as marcas da valoração moral escrava:
Assim convinha a um povo sacerdotal, o povo da mais entranhada sede de vingança sacerdotal. Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a saber: "os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem aventurança – mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!...". (GM I § 7)
Isso inicia o que Nietzsche chama de a revolta/rebelião dos escravos na moral:os judeus e "os seus profetas fundiram "rico", "ateu", "mau", "violento" e "sensual" numa só definição, e pela primeira vez deram cunho vergonhoso à palavra "mundo"" (ABM, p 83). Na inversão percebe-se os fatores econômico, religioso, moral, biológico e sexual: todos tidos naqueles pólos, como maus, pejorativamente do mundo, pagão. O povo judeu se desenvolve e com ele seu modo de valorar cria estruturas e pretensões universais, principalmente com o surgimento de Jesus Cristo e sua Igreja. Ele é um judeu que consegue espalhar os ideais de compaixão e misericórdia, de amor incondicional ao próximo e aos inimigos sob a recompensa de uma futura vida eterna. Jesus é considerado o redentor dos homens e Nietzsche se refere a ele nestes termos:
Esse Jesus de Nazaré, evangelho vivo do amor, esse "redentor" portador da vitória e da bem-aventurança aos pobres, aos doentes e aos pecadores – não era ele a sedução em sua forma mais inquietante e irresistível, a sedução e a via sinuosa para justamente aqueles valores judeus e inovações judaicas do ideal? Não teria Israel alcançado, por via desse "redentor", desse aparente antagonista e desintegrador de Israel, a derradeira meta de sua sublime ânsia de vingança? (GM I § 8)
O Cristianismo, como ramo direto da raiz judaica[39]e, por conseguinte, herdeiro do tipo de valoração entendida por Nietzsche como escrava e fraca, acaba por espalhar, de maneira expansiva[40]os valores sacerdotais e adquire, assim, preeminência cultural na história do homem: "... aquela rebelião que tem atrás de si dois mil anos de história, e que hoje perdemos de vista, porque – foi vitoriosa..." (GM, p 26)
Contudo, no decorrer da história, e apesar da hegemonia escrava, os valores senhoriais parecem não ter desfalecido e impõem guerra. Nietzsche deixa isso bem claro quando evidencia a luta desses dois tipos de valorações e de maneira icônica estabelece os nomes para a batalha dessas duas culturas distintas, essa oposição moral:
(...) um verdadeiro campo de batalha para esses dois opostos. O dístico dessa luta, escrito em caracteres legíveis através de toda a história humana, é "Roma contra Judéia, Judéia contra Roma": – não houve, até agora, acontecimento maior do que essa luta, essa questão, essa oposição moral. Roma enxergou no judeu algo como a própria antinatureza, como que seu monstro antípoda; em Roma os judeus eram tidos por "culpados de ódio a todo gênero humano"(...) Quanto aos judeus, o que sentiam ante os romanos? Percebe-se por mil indícios; mas basta trazer à lembrança o Apocalipse de João, a mais selvagem das invectivas que a vingança tem na consciência. (GM I § 16)
Depois de vistas as características indispensáveis para entender a origem e o desenvolvimento das valorações morais, tendo em vista os dois antípodas valoradores da cultura que persistem em caminhar em um paralelo conflituoso, cabe agora uma observação daquilo que incorpora tal conflito moral, porque tais morais podem coexistir "até mesmo num homem, no interior de uma só alma"(ABM § 259): a saber, o homem que lembra e é capaz de prometer.
2.3 Promessa
A capacidade do homem de prometer, de dar sua palavra, de calcular e projetar suas ações para o futuro por meio de um acordo no presente, o qual durante o fluxo do tempo deve se remeter ao passado fundado em uma lembrança de promessa. A isso, Oswaldo Giacóia Jr. chama de "uma espécie de dilação temporal do querer" [41]ou seja, uma prorrogação da vontade presente, somente possível por meio de uma memorização.
"Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?... O fato de que este problema esteja em grande parte resolvido deve parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua de modo contrário, a do esquecimento". (GM II § 1)
A tarefa se apresenta paradoxal, pois pretende lutar contra a força ativa e voraz do esquecimento. Este, compreendido por Nietzsche como faculdade positiva e saudável à ordem psíquica para que "haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar" (GM II § 1). O esquecimento, aqui, é tratado como instrumento revigorante: "com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento" (GM II § 1).
Ao que Nietzsche chega a comparar aqueles que possuem a faculdade do esquecimento danificada, a dispépticos, que sofrem de má digestão, que obstrui e dificulta um ciclo digestivo tão importante e acrescenta:
Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecimento é uma força, uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos – nos casos em que se deve prometer: não sendo um simples não-mais-poder-livrar-se da impressão uma vez recebida, não a simples indigestão da palavra uma vez empenhada, da qual não conseguimos dar conta, mas sim um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade: de modo que entre o primitivo "quero", "farei", e a verdadeira descarga da vontade, seu ato, todo um mundo de novas e estranhas coisas, circunstâncias, mesmo atos de vontade, pode ser resolutamente interposto, sem que assim se rompa esta longa cadeia do querer. (GM II § 1)
Ou seja: um querer que se sustenta e se mantém mesmo com uma enxurrada de acontecimentos, disposições, vontades, contra-vontades, alegrias e desapontamentos. Não se trata mais de "não poder esquecer" e sim de "não querer esquecer". Note que "não-mais-poder-livar-se da impressão", cede lugar a "não-mais-querer-livrar-se da impressão": o "não poder" dá lugar ao "querer não esquecer". É uma atitude quase que imperativa de querer não esquecer. Eis o que garante a promessa: o não querer livrar-se, o memorizar a vontade inicial e levá-la até o ponto de, finalmente, realizá-la, ou não realizá-la, é o caso da vontade de querer o nada[42]
"Para poder dispor de tal modo do futuro, o quanto não precisou o homem aprender a distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira causal, a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar – para isso, quanto não precisou antes tornar-se ele próprio confiável, constante, necessário, também para si, na sua própria representação, para poder enfim, como faz quem promete, responder por si como porvir!". (GM II § 1)
Em outras palavras: o homem tornou-se complexo e em meio a isso se construiu, trabalhou a si mesmo em um movimento de interiorização. Aos poucos foi moldando a sua confiabilidade, sua constância digna de crédito. Tornou-se confiável a duro processo:
Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade do costume finalmente trazem à luz aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o fruto mais maduro da sua árvore, o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral (pois "autônomo" e "moral" se excluem), em suma, o homem da vontade própria, duradoura e independente, o que pode fazer promessas – e nele encontramos, vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do que foi finalmente alcançado e está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento de realização. Este liberto ao qual é permitido prometer, este senhor do livre-arbítrio, este soberano. (GM II § 2)
Este indivíduo soberano é certamente o homem moderno, aquele com a habilidade de responder por si mesmo, o homem da responsabilidade. No entanto, para que alcançasse tal estado de consciência e consequente capacidade de fazer promessas ele carrega em si toda uma história de desenvolvimento, todo um procedimento para chegar onde está. É aonde entra a pergunta de Nietzsche: "Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento?" (GM II § 3). O filósofo antecipa ao leitor que a resposta para tal problema não é suave. É justamente por meios duros e terríveis que se cria uma memória: pela dor. Trata-se de uma dor que perdura porque "Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória" (GM II § 3). Portanto, a mnemotécnica (técnica de memorização) do homem, é fundamentada em impressões fortes:
Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldades) – tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica. (GM II § 3)
Nietzsche ainda ressalta alguns procedimentos de punição e tortura como o apedrejamento, o empalamento, a roda, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos, a fervura do criminoso em óleo ou vinho, o esfolamento, a excisão da carne do peito e a exposição da pessoa banhada em mel às moscas sob o sol ardente. (Cf. GM II § 3) Tais procedimentos cruéis, segundo o filósofo, têm por objetivo a garantia do convívio social: "Com ajuda de tais imagens e procedimentos, termina-se por reter na memória cinco ou seis "não-quero", com relação aos quais se fez uma promessa, a fim de viver os benefícios da sociedade" (GM II § 3). Desse modo é possível, para Nietzsche, fixar na memória o evento doloroso que ao ser lembrado torna-se fator condicionante da ação presente e que coincide com a promessa dada.
(...) com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente "à razão"! – Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as "coisas boas"! (GM II § 3)
2.4 Relação credor/devedor, castigo e má consciência
Assim, Nietzsche parte diretamente para a origem da consciência da culpa encontrando sua gênese na relação entre credor e devedor. Ele afirma que por longo período da história, o castigo era praticado como desafogo de raiva sob aquele que causou dano. Quem sofre o dano é tomado por sentimento de raiva e castiga. No entanto, o sentimento de raiva vai sendo mantido, com o tempo, em certos limites e posteriormente se transmuta na ideia de que todo dano sofrido pode ter um equivalente compensador.
Torna-se vantajoso cobrar por um dano sofrido. Assim é estabelecida a relação entre credor e devedor: por meio de contrato o devedor assume pagar o dano sofrido com terras, dinheiro, bens e etc. Para dar garantias de sua palavra e fixar em sua própria consciência o dever da restituição, o devedor coloca garantias caso falte com a palavra. Essas garantias aparecem na forma de posses como sua mulher, sua liberdade, seu corpo ou até mesmo sua própria vida. Nietzsche ainda percebe que o credor podia submeter seu devedor a tipos de humilhações e torturas. Ele cita o fator cruel da lei das Doze Tábuas da antiga Roma e acrescenta:
Tornemos clara para nós mesmos a estranha lógica dessa forma de compensação [43]A equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao dano (uma compensação em dinheiro, terra, bens de algum tipo) por uma espécie de satisfação íntima, concedida ao credor como reparação e recompensa – a satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre um impotente, a volúpia de "faire le mal pour le plaisir de le faire", o prazer de ultrajar (...) Através da "punição" ao devedor, o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como "inferior" – ou então, no caso em que o poder de execução da pena já passou à "autoridade", poder ao menos vê-lo desprezado e maltratado. A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade [44](GM II § 5)
A questão da crueldade, aqui, emerge como satisfação para o credor. Uma vez que o seu dano, ou sua dor, pode ser compensado, porque não compensá-lo de maneira prazerosa? Nietzsche apresenta a crueldade de acordo com o contexto da era antiga, na qual a alegria de uma festa dependia de sofrimento e derramamento de sangue:
(...) "como pode fazer-sofrer ser uma satisfação?" (...) Parece-me que repugna à delicadeza, mais ainda à tartufice dos mansos animais domésticos (isto é, os homens modernos, isto é, nós), imaginar com todo vigor até que ponto a crueldade constituía o grande prazer festivo da humanidade antiga, como era um ingrediente de quase todas as suas alegrias; e com que ingenuidade se apresentava a sua exigência de crueldade, quão radicalmente a "maldade desinteressada" (ou, na expressão de Espinoza, a sympatia malevolens [simpatia malévola] era vista como atributo normal do homem – : logo, como algo a que a consciência diz Sim de coração!. (GM II § 6)
Com o tempo, afirma Nietzsche, o homem passou a ter vergonha de si mesmo, especificamente: vergonha de seus instintos, de suas tendências à crueldade, ao prazer em fazer sofrer, em causar dor. Vergonha, até mesmo, de seu cheiro, de sua secreção, de sua urina, de seu excremento. (GM II § 7) O sofrimento, hoje, diz Nietzsche, é argumento contra a existência, mas "é bom recordar as épocas em que se julgava o contrário, porque não se prescindia do fazer-sofrer; e via-se nele um encanto de primeira ordem, um verdadeiro chamariz à vida". (GM II § 7) Todavia, tal "ingrediente" feliz e chamativo ainda parece persistir, mesmo com o "amolecimento" do animal-homem.
Talvez possamos admitir que o prazer na crueldade não esteja realmente extinto: apenas necessitaria, pelo fato de agora doer mais a dor, de alguma sublimação e sutilização, isto é, deveria aparecer transposto para o plano imaginativo e psíquico, e ornado de nomes tão inofensivos que não despertassem suspeita nem mesmo na mais delicada e hipócrita consciência (a "compaixão trágica" é um desses nomes; um outro é "les nostalgies de la croix" [as nostalgias da cruz]. (GM II § 7)
Tendo isso em vista, as relações básicas entre credor e devedor ocupam toda a dimensão da gênese de conceitos morais como culpa, consciência, dever, sacralidade do dever (cf. GM II § 6), e dessa forma é possível acompanhar a metodologia genealógica de Nietzsche. Entraremos, imediatamente, no estudo da má consciência, justamente sob a mesma perspectiva da relação entre credor e devedor que se desdobra na ideia de comunidade, donde o sentimento de culpa tem sua origem e se apresenta na cultura ocidental. Veremos como Nietzsche sustenta tal origem.
A relação entre credor e devedor, segundo Nietzsche, ocupa os mais variados espaços das relações pessoais, porque ela faz o animal-homem, transpô-la para o âmbito social, ou seja, a comunidade mantém essa mesma relação com seus membros. O membro que comete falta contra a comunidade é afastado dos benefícios dela e é cobrado. A comunidade (credor) perante o criminoso (devedor) passa a ter o direito de compensação:
O "castigo", nesse nível dos costumes, é simplesmente a cópia, mimus [reprodução] do comportamento normal perante o inimigo odiado, desarmado, prostrado, que perdeu não só qualquer direito e proteção, mas também qualquer esperança de graça; ou seja, é o direito de guerra e a celebração do Vae victus! [ai dos vencidos!] em toda a sua dureza e crueldade – o que explica por que a própria guerra (incluindo o sacrifício ritual guerreiro) forneceu todas as formas sob as quais o castigo aparece na história. (GM II § 9)
É preciso distinguir dois aspectos no castigo, a saber, o que é duradouro e o que é fluido. O que dura é "o costume, o ato, o "drama", uma certa sequência rigorosa de procedimentos" (GM II § 13). Aquilo que é fluido é o "sentido, o fim, a expectativa ligada à realização desses procedimentos" (GM II § 13). Vejamos alguns sentidos para o castigo elencados por Nietzsche, que são pertinentes à proposta do presente trabalho:
Castigo como neutralização, como impedimento de novos danos (...) Castigo como isolamento de uma perturbação do equilíbrio, para impedir o alastramento da perturbação. Castigo como inspiração de temor àqueles que determinam e executam o castigo (...) Castigo como festa, ou seja, como ultraje e escárnio de um inimigo finalmente vencido. Castigo como criação de memória, seja para aquele que sofre o castigo – a chamada correção – , seja para aqueles que o testemunham (GM II § 13).
Além dos sentidos para castigo apontados acima, Nietzsche acrescenta e dá atenção a um, que comumente é tomado de maneira errônea. Segundo o filósofo, atribui-se ao castigo o sentido de despertar no castigado um sentimento de culpa – castiga-se para que o condenado sinta remorso, má consciência – e o que segue é precisamente o contrário: o castigo detém o sentimento de culpa, o impede. O castigo, portanto, não faz o criminoso se sentir culpado, ele não é instrumento de sentimento de culpa. Não é por ser castigado que sentirá peso na consciência e "de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar lidando com um "culpado". Mas sim com um causador de danos, com um irresponsável fragmento do destino" (GM II § 14).
O castigo, de acordo com Nietzsche, provoca outras coisas:
Falando de modo geral, o castigo endurece e torna frio; concentra; aguça o sentimento de distância; aumenta a força de resistência. Quando sucede de ele quebrar a energia e produzir miserável prostração e auto-rebaixamento, um tal sucesso é sem dúvida ainda menos agradável que o seu efeito habitual: que se caracteriza por uma seca e sombria seriedade. (GM II § 14).
E ainda:
O que em geral se consegue com o castigo, em homens e animais, é o acréscimo do medo, a intensificação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo doma o homem, mas não o torna "melhor" – com maior razão se afirmaria o contrário. ("O prejuízo torna prudente", diz o povo: tornando prudente, torna também ruim. Mas felizmente torna muitas vezes tolo. (GM II § 15).
Mas o que viria a provocar a má consciência, o sentimento de culpa então? Nietzsche, ao ver a má consciência como uma profunda doença, atribui sua origem a uma transformação radical à qual o homem se submeteu: a origem se encontra no momento em que "ele se viu encerrado no âmbito da sociedade e da paz" (GM, II § 16). Quando o homem deixa para trás suas aventuras selvagens no contato com a natureza e com a guerra na qual extravasava sua energia instintiva, passando a suspender esses mesmos instintos e desvalorizá-los, inutilizá-los, acontece uma redução de sua qualidade vital.
Ora, suspender os instintos não significa anulá-los, extirpá-los. Eles se mantêm, só que de maneira diferente, em movimento interiorizado, não mais colocados para fora em atos de extravaso: "Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua "alma"" (GM II § 16).
A inibição, esse campo de força que impede a descarga do instinto para fora, gera um universo interior (alma) dentro do qual vive uma força (instinto) que precisa atacar algo. Neste caso, o ataque é feito à própria consciência:
Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência. Esse homem que por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem "amansar", que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata – esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da "má consciência" (GM II § 16).
O extravasamento da vontade de poder acontece não a outro, mas a si, o "eu" [45]é o alvo de toda descarga de crueldade. Verifica-se, ainda, o prazer no fazer sofrer, só que, aqui, voltado contra si. Trata-se de uma sublimação: "Em sentido psicológico, a má-consciência é constituída pela vontade de causar dano a si mesmo, de afligir-se de modo permanente e, dessa maneira, criar condições "subterrâneas" para a descarga dos impulsos hostis" (GIACÓIA, 2008, p. 217).
Eis que se forma um paradoxo: existe um prazer no fazer sofrer a si mesmo. Toda abnegação, sacrifício, desprendimento de si, altruísmo, doação e seus sinônimos, são satisfações em fazer sofrer, nesse caso, a si mesmo, àquele "sujeito" criado pela valoração escrava.
Isso ao menos tornará menos enigmático o enigma de como se pôde insinuar um ideal, uma beleza, em noções contraditórias como ausência de si, abnegação, sacrifício; e uma coisa sabemos doravante, não tenho dúvida – de que espécie é, desde o início, o prazer que sente o desinteressado, o abnegado, o que se sacrifica: este prazer vem da crueldade (...) Somente a má consciência, somente a vontade de maltratar-se fornece a condição primeira para o valor do não-egoísmo. (GM, II §18)
Com isso, Nietzsche promete apresentar aonde esta má consciência culminará, mas antes retoma a relação entre credor e devedor para verificar sua aplicação na relação entre os vivos e seus antepassados. Ele percebe que a devoção das comunidades tribais primitivas aos seus antepassados, é uma extensão dessa relação entre credor e devedor. Aos antepassados eram oferecidos sacrifícios para que mantivessem o sustento da comunidade, uma vez que foram eles, os antepassados, que iniciaram e ergueram o que no presente subsiste:
A geração que vive sempre reconhece para com a anterior, e em especial para com a primeira, fundadora da estirpe, uma obrigação jurídica (...) A convicção prevalece de que a comunidade subsiste apenas graças aos sacrifícios e às realizações dos antepassados – e de que é preciso lhes pagar isso com sacrifícios e realizações: reconhece-se uma dívida [Schuld], que cresce permanentemente, pelo fato de que os antepassados não cessam, em sua sobrevida como espíritos poderosos, de conceder à estirpe novas vantagens e adiantamentos a partir de sua força. (GM II § 19)
De acordo com Nietzsche, esta mesma lógica de dívida é aplicada em dimensões mais amplas, nas quais as figuras divinas ocupam o lugar do credor. Na medida em que a comunidade cresce e com ela sua força de dominação e poder, os ícones divinos vão tomando proporções universais, assim como o sentimento de culpa para com eles: quanto maior o poder da divindade, maior dívida terá de ser paga pelo devedor.
O sentimento de culpa em relação à divindade não parou de crescer durante milênios, e sempre na mesma razão em que nesse mundo cresceram e foram levados às alturas o conceito e o sentimento de Deus (...) o progresso em direção a impérios universais é também o progresso em direção a divindades universais; o despotismo, com seu triunfo sobre a nobreza independente, sempre abre o caminho para algum monoteísmo (...) O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa. (GM, II § 20).
Uma vez que ao Deus cristão é atribuído o valor absoluto, a dívida, também absoluta, torna-se impagável pelos devedores:
até que subitamente nos achamos ante o expediente paradoxal e horrível no qual a humanidade atormentada encontrou um alívio momentâneo, aquele golpe de gênio do cristianismo: o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!... (GM II § 22)
Logo se percebe que ao tratar pormenorizadamente os conceitos de bom e ruim, bom e mau, ressentimento, tresvaloração de valores, moral dos senhores e moral dos escravos, revolta dos escravos na moral, promessa, relação entre credor e devedor, castigo, sentimento de culpa, vontade de potência, crueldade e má consciência, Nietzsche pretende desenhar um quadro de tudo aquilo que tem se remetido ao tema da moral e que aparece e se desenvolve na história do homem, de modo especial, na cultura ocidental: seu campo de pesquisa e elaboração filosófica.
Com o intuito de canalizar e deixar clara a pretensão do presente trabalho, que aqui encontra seu ponto culminante, é preciso dizer que todos os conceitos acima citados e que tomaram forma no corpo deste capítulo serão relacionados, imediatamente, no capítulo seguinte, com os personagens Batman e Coringa, no intuito de estabelecer um diálogo entre a obra artística dos fenômenos Batman e Coringa e a filosofia nitzscheana sobre, especificamente, a moral.
CAPÍTULO III
Os dois valores contrapostos, "bom" e "ruim", "bom" e "mau", travaram na terra uma luta terrível, milenar; e embora o segundo valor há muito predomine, ainda agora não faltam lugares em que a luta não foi decidida.
Nietzsche
3.1 Promessas e cargas
O ponto decisivo da gênese e da contínua recriação do personagem Batman se dá, como já visto, a partir de uma promessa. A lembrança do cruel assassinato de seus pais o impele a comprometer-se em combater o crime em Gotham City. Essa será a motivação primária do mito de Batman sem a qual o personagem não possui sustento. O que se tem, a partir desta promessa, são histórias de um homem que luta na defesa de seus princípios, utilizando-se de meios violentos e polêmicos, que de modo paradoxal, colocam em questão sua finalidade: a possibilidade de Gotham como um lugar melhor.
O filósofo Friedrich Nietzsche entendeu que a promessa retira a vontade de seu tempo presente e transporta-a para o futuro sob a influência de uma memória. A palavra dada sempre será lembrada por um ato de vontade, uma adesão ao querer lembrar-se. Contudo, Nietzsche atribui à força contrária a da memória, o esquecimento, uma qualidade saudável, ativa, positiva. (GM II § 1)
Como primeira provocação, oferecemos uma observação atenta sobre o fenômeno Batman e a ideia de Nietzsche em perceber a dispepsia que ocorre naqueles que fazem promessas. (cf. GM II § 1) A metáfora fisiológica consiste em inferir que a má digestão é fator degenerativo da saúde: o que implica dizer que a promessa carrega em si um peso que resulta no mau funcionamento do organismo psíquico.
Quando o pequeno Bruce decide dedicar-se na luta contra criminosos, ele está imprimindo em si mesmo o peso de dar uma resposta constante a uma promessa feita à memória de seus pais. A promessa de Batman torna-se sua tarefa primordial, a qual nada poderá atrapalhá-la, contrapô-la, vencê-la: "Fiz uma promessa no túmulo dos meus pais... Eu jamais descansaria enquanto não limpasse Gotham do mal que tirou suas vidas". (LOEB, 1998, p.29)
A saúde encontrada no esquecimento do qual Nietzsche se refere consiste em:
Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: como o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue "dar conta"... (GM II § 1)
De certa forma Batman é um dispéptico. Sua promessa é carregada como alimento não digerido, donde se percebe os sintomas de uma doença por ele mesmo querida. Não vemos cores vivas em Batman. Seu traje é apresentado nos quadrinhos e nos filmes em variações de cinza, azul escuro e preto [46]A caverna na qual treina e planeja suas missões, além de ser por si um lugar afastado e subterrâneo, é escura: o homem morcego é sombrio. Ele aparenta ser marcado por um passado que gostaria de não ter vivido, no qual uma criança se encontra solitária, sem sorriso no rosto, apenas com a morte em sua frente. Tal imagem o toma em todos os momentos, está arraigada em sua memória.
Nietzsche afirma que para se obter uma memória que garanta e sustente uma promessa é necessário atravessar a dor: ""Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória"– eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra". (GM II § 3)
O fator doloroso na memória de Batman é bem expresso na HQ O Cavaleiro das Trevas (1986), na qual os detalhes do assassinato de seus pais aparecem de maneira terrível em suas lembranças: o colar de sua mãe espatifa-se no chão espalhando as pequenas e lindas pérolas pelo chão sujo e úmido. Mais tarde em Ano Um (1987), o garoto ajoelhado contempla os corpos dos pais ensanguentados sem poder fazer nada. Em poucas situações se vê Batman com um sorriso no rosto.
Pode-se mesmo dizer que em toda parte onde, na vida de um homem e de um povo, existem ainda solenidade, gravidade, segredo, cores sombrias, persiste algo do terror com que outrora se prometia, se empenhava a palavra, se jurava: é o passado, o mais distante, duro, profundo passado, que nos alcança e que reflui dentro de nós, quando nos tornamos "sérios". Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória. (GM II § 3)
A memória da perda de seus pais acoplada à crueldade do acontecimento dá um tom dramático à promessa e se expressa na personalidade do personagem. Pouco se fala da promessa nos meios em que Batman é tratado como estrela[47]As atitudes heróicas, sua destreza em resolver problemas, sua inteligência em operar acessórios tecnológicos, sua imponência estética ao plainar por sobre os prédios: são muito mais apreciados e louvados. Assim como a razão de um homem é apreciada e louvada: "Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as "coisas boas"!...". (GM II § 3)
Em Inimigos Públicos (2009), após um dia inteiro de luta contra Lex Luthor, Superman e Batman se encontram no alto de um prédio enquanto Louis Lane se aproxima de helicóptero. A simples menção de uma possível comemoração da vitória, entre amigos, já coloca Batman em estado defensivo, afirmando que já era tarde e precisava voltar para casa[48]mesmo que este em nada recorde um lar. Até mesmo seu parceiro Robin reclama a falta de senso de humor no Batman. Apenas Hollywood, como sempre, é a exceção[49]
Desde sua juventude, quando ele viveu a dramática e horrível experiência de testemunhar o assassinato de seus pais, ele se dedicou de corpo e alma ao mais severo regime de autodesenvolvimento e à mais centrada missão de combater o crime. Ele é o último paradigma de um homem em uma missão, e nada pode desviá-lo dela. Seu preparo para tal missão, e a execução dela, criou um espírito independente, um enfoque austero ao extremo e um senso de alienada solidão, sem igual entre seus colegas combatentes fantasiados do crime. Ele é obscuro, ameaçador, apático e até assustador. Esse não é o sujeito com que você gostaria de sair para jogar boliche ou comer pizza. (MORRIS, 2009, p. 108)
É o que Nietzsche chamou de indivíduo/homem soberano, aquele capaz de fazer promessas, senhor do livre arbítrio, confiável, constante, uniforme, necessário. Fruto maduro da moralidade do costume e da camisa de força social. (cf. GM II § 3)
O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante – como chamará ele a esse instinto dominante, supondo que necessite de uma palavra para ele? Mas não há dúvida: este homem soberano o chama de sua consciência... (GM II § 2)
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