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O déficit de bem-estar das mulheres, que são postas em segundo plano, sem condição de agente, foi objeto originário e primário dos movimentos feministas[3]Havia duas correntes principais do feminismo:
Feminismo doméstico ou maternal: defende a abnegação silenciosa e moralismo sexual acirrado; superioridade feminina, com base na função maternal; persuasão pacífica, com valorização da capacidade de convencimento; intuição e discurso como substitutivos da razão e da expressão pública; disposição para o sacrifício pessoal; desprezo ao dinheiro; crítica à aparência e sexualização de outras mulheres, obsessão por pureza e perfeição; demonização do homem – agressor, competitivo e violento.
É considerado "feminismo de vítima", pois desconsiderava as potencialidades racionais das mulheres. |
Feminismo do Poder: reconhece potencialidade das mulheres em influenciar pessoas e transformar o mundo; estimula a expressão individual; defende o livre e prazeroso exercício da sexualidade feminina; busca o poder como instrumento de promoção da justiça social; reconhece que dinheiro é importante, pois garante a qualidade de vida; defende a liberdade individual para definir valores quanto à aparência e à vida sexual; despreza o machismo – não os homens; prega inclusão e liberdade de expressão; busca a convergência entre os valores femininos e os atributos masculinos; prega a igualdade absoluta entre homens e mulheres.
Não há espaço para reconhecimento das diferenças, fundamentais para conquistar direito à igualdade perante a lei – isonomia. |
Após a Segunda Guerra Mundial o feminismo ganhou força, com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho e em cursos superiores. Na década de 1980, surge uma nova corrente feminista:
Feminismo da diferença: aceita diferenças entre homem e mulher, reconhecendo que estas não acarretam em superioridade ou inferioridade; renuncia à reprodução acrítica do modelo masculino de poder; valoriza a maternidade e o cuidado com os mais frágeis (não apenas seus filhos, mas deficientes, idosos, pobres); luta pela compatibilização das funções domésticas e maternais com o trabalho remunerado; busca exercício representativo na vida pública e política, aliada ao respeito pela opção individual de permanecer exclusivamente no lar.
Embora os direitos femininos sejam igualmente resguardados com as declarações universais dos direitos humanos que se desenvolveram após a Segunda Guerra Mundial, a condição da mulher sempre foi fragilizada. Em nível de exemplos expomos o Código Civil pátrio, de 1916, bem como o Código Comercial, de 1850, que previam a responsabilidade legal do homem sobre a família, sendo a mulher submissa à sua autorização para exercer profissão e também condicionava a atividade comerciária da mulher à autorização do marido, por escritura pública. A lei nº 4.121/62 – Estatuto da Mulher Casada – é um marco evolutivo na busca da igualdade de gêneros, ao suprimir o papel do homem como chefe absoluto da sociedade conjugal, conferindo alguns direitos às esposas.
Em 1993 foi realizada pela ONU a Convenção Mundial dos Direitos Humanos – Convenção de Viena – onde foi oficializado o caráter de direito humano aos direitos das mulheres. Há ainda outras convenções e pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário e também o art. 5º da Constituição Federal, inciso I, que garantem a igualdade de gêneros.
Ainda assim, no espaço doméstico o feminismo teve poucos resultados: a justiça penal não é suficiente e os fatores econômicos, culturais e psicológicos são indissociáveis a analise da questão[4]
Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica cearense, foi, durante anos, torturada por seu então marido, Marco Antônio Heredia Viveiros. Em 1983, Marco Antônio tentou, por duas vezes, assassinar Maria da Penha, justificando seus atos pelo ciúme que sentia da esposa.
Na primeira tentativa, Marco Antônio baleou Maria da Penha enquanto esta dormia, deixando-a paraplégica. A segunda tentativa era de eletrocussão e afogamento. Após este episódio, Maria da Penha denunciou Marco Antônio. Entretanto, 19 anos se passaram até que ele fosse julgado e condenado em apenas dois anos em regime fechado.
Não se dando por satisfeita com tal pena, Maria Da Penha encaminhou o caso à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres, recomendando, algumas medidas como a finalização do processamento penal do responsável da agressão, investigação a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados no processo, bem como tomar as medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes.
Devido à repercussão internacional do caso, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, encaminhou proposta de lei ao Congresso Nacional, sendo promulgada a lei nº 11.340 em 07 de Agosto de 2006 (anexo I).
O ordenamento jurídico anterior à lei 11.340/06 já havia tentado diferenciar e especificar o crime de violência de gênero. Sobre os institutos, Marcelo Lessa Bastos afirma:
"Nenhum dos antecedentes (Lei nº 10.455/02 e Lei nº 10.866/04) empolgou. A violência doméstica continuou acumulando estatísticas. Isto porque a questão continuava sob o pálio dos Juizados Especiais Criminais e sob a incidência dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 (...) era imperiosa uma autêntica ação afirmativa em favor da mulher vítima de violência doméstica, a desafiar a igualdade formal de gênero, na busca de restabelecer entre os sexos a igualdade material". [5]
Concordam Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchinhi:
"Algumas associações de mulheres, especialmente, sempre protestaram contra a forma de solução dos conflitos "domésticos" (ou seja: da violência doméstica) pelos juizados. Em casos de ação penal pública, a mulher (ou outra vítima qualquer) nem sequer participava da transação penal (o Estado "roubou-lhe o conflito", como diz Louk Hulsman)".
Rodrigo da Silva Perez Araújo, ao se referir à legislação anterior, afirma:
"A evolução legal do tema revela, com o devido respeito, certo descompromisso e assistematicidade legislativa: primeiramente a pena mínima cominada foi aumentada, o que foi desinfluente, pois continuava a incidir a lei nº 9.099/95 e a malsinada pena de cesta-básica que, além de não servir a prevenção, seja geral ou especial, incentiva o desrespeito, haja vista a impunidade decorrente do tratamento da questão como infração de menor potencial ofensivo."
Ao tratar a violência doméstica como infração de maior potencial ofensivo, tornando inaplicáveis os benefícios da Suspensão e Transação penal e retirando a competência dos Juizados Especiais Criminais para julgar tais crimes, o legislador coíbe tal prática. O Núcleo Pró-Mulher aponta as inovações trazidas pela lei:
Tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher;
Estabelece as formas da violência doméstica contra a mulher como física, psicológica e moral;
Determina que a mulher somente poderá renunciar a denuncia perante o juiz;
Determina que a violência doméstica contra a mulher independa de sua orientação sexual;
Proíbe penas pecuniárias;
É vedada a entrega da intimação pela mulher ao agressor;
Determina a notificação da vítima dos atos processuais, em especial quando do ingresso e saída da prisão do agressor;
A mulher deverá estar acompanhada de seu advogado ou defensor em todos os atos processuais;
Retira dos juizados especiais criminais e a competência para julgar os crimes de violência doméstica contra a mulher;
Altera a lei de Execuções Penais para permitir que o juiz determine o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação;
Determina a criação de juizados especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher com competência civil e criminal para abranger questões de família e decorrentes da violência;
Altera o Código de Processo Penal para possibilitar ao juiz a decretação da prisão preventiva quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher;
Caso a violência seja cometida contra mulher com deficiência, a pena será aumentada em 1/3;
O juiz poderá conceder, no prazo de 48 horas, medidas protetivas de urgência (suspensão do porte de armas do agressor, afastamento do agressor do lar, distanciamento da vítima, dentre outras), dependendo da situação, a requerimento do Ministério Público ou da ofendida;
Modifica a ação penal no crime de lesão corporal leve, que passa a ser pública incondicionada;
Aumenta a pena da lesão corporal no caso dela ser praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro com quem conviva ou tenha convivido, ou ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade;
Permite a autoridade policial prender o agressor em flagrante sempre que houver qualquer das formas de violência contra a mulher;
Proíbe a aplicação da lei dos juizados especiais criminais aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher.
3.1 Juizados Especiais Criminais
A lei nº 11.340/06 não cria novos tipos penais, apenas especializa os preexistentes com a característica complementar da violência doméstica ou familiar, ou seja, complementam os tipos pré-estabelecidos. Por opção do legislador, conforme o art. 41 da lei nº 11.340/06 os crimes que tal lei especializa não se submetem à lei nº 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais. Tal opção não significa serem tais tribunais incompetentes, tolerantes ou ineptos, mas sim que as possibilidades despenalizadoras criadas por tal instituto, como a suspensão condicional do processo e a transação penal, são conflitantes com a intenção da lei Maria da Penha, qual seja coibir a prática da violência doméstica e familiar.
"Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995." (grifo nosso).
Da leitura de tal artigo, depreende-se a intenção do legislador de não desprestigiar os Juizados Especiais Criminais, pois este se mantém competente para os demais casos de violência doméstica ou familiar, restando claro o caráter sociológico da decisão, que leva em conta a fragilidade do feminino nas sociedades patriarcais.
Entendendo-se que o legislador buscou afastar as medidas despenalizadoras, afasta-se também a necessidade de representação da vítima para a instauração da ação penal. Ou seja, a exigência de representação em crimes de lesão corporal leve, estabelecida pela lei nº 9.099/95, também não se aplica aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Frisa-se que o condicionamento à representação deste tipo penal foi criado pela supracitada lei.
Entretanto, há outra possibilidade hermenêutica acerca da exigibilidade da representação da vítima, fundamentada nos art. 12, I e 16 da lei Maria da Penha:
"Art. 12". Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;
(...)
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público" (grifo nosso).
Assim, considerando-se uma interpretação sistemática da lei nº 11.340/06, o afastamento da lei nº 9.099/95 é uma determinação genérica, relativa aos institutos despenalizadores (transação e suspensão condicional do processo), continuando exigível a representação, sendo então a vítima quem decide acerca da instauração do processo contra o acusado. Já pela interpretação sociológica, aquela que busca a vontade da lei, a representação não é exigível.
3.2 Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Visando garantir a efetividade do que foi previsto na lei nº 11.340/06, foram criados tais juizados, objetivando-se garantir o tratamento adequado à mulher em situação de agressão, com qualidade e celeridade.
Atualmente, há sete unidades instaladas. A primeira, no Foro Central, localizada no Fórum Ministro Mário Guimarães e, as demais instaladas nas Regiões: Norte, localizada no Foro Regional de Santana, Sul 1, localizada no Foro Regional de Vila Prudente, Sul 2, localizada no Foro Regional do Butantã até a instalação do Foro Regional de Capela do Socorro, Leste 1, localizada no Foro Regional da Penha de França; Leste 2, localizada no Foro Regional de São Miguel Paulista, e, Oeste, localizada no Foro Regional do Butantã.
O Conselho Nacional de Justiça apresenta o seguinte quadro esquemático do procedimento deste órgão (JVDFM):
3.3 Delegacias de Defesa da Mulher – DDM
A prefeitura da cidade de São Paulo, comarca com 09 DDMs, assim as conceitua:
"As Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs), registram ocorrências, investigam e apuram crimes de violência contra a mulher. Também fazem encaminhamento jurídico e para exames no IML (Instituto Médico Legal)".
A primeira Delegacia de Defesa da Mulher foi inaugurada em 1985 e foi o resultado do movimento de mulheres e de um processo de redemocratização do Poder Judiciário e dos Distritos Policiais.
Tais delegacias foram criadas com o escopo de assegurar tranquilidade à população feminina vítima de violência, através das atividades de investigação, prevenção e repressão dos delitos praticados contra a mulher. Frisa-se que as informações prestadas nestas delegacias, são sigilosas e o atendimento às vítimas é feito preferencialmente por mulheres: delegadas, escrivãs, investigadoras e carcereiras[6]
Ao visitar a 04ª DDM de São Paulo, localizada na Freguesia do Ó – Zona Norte, a Dra. Magali Celeghin Vaz, Delegada Titular da referida DDM, concedeu-nos breve explicação acerca destas delegacias:
"As Delegacias de Defesa da Mulher foram criadas pela Lei 5.457/86 e tem como atribuições a investigação e apuração dos delitos contra pessoas do sexo feminino, crianças e adolescentes. O atendimento de pessoas do sexo feminino, criança e adolescentes que procuram auxílio e orientação e seu encaminhamento aos órgãos competentes cumprimento dos mandados de prisão civil por dívida do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.
Aos Delegados Titulares compete dirigir as atividades de sua unidade policial despachar as petições iniciais exercer permanentemente fiscalização, quanto ao aspecto formal, mérito e técnica empregadas sobre as atividades de seus subordinados representar ao superior hierárquico sobre as necessidades da unidade policial, indicando a solução a curto, médio e longo prazo distribuir os serviços, mediante portaria.
Não há treinamento prévio dos policiais, o que há são cursos de aperfeiçoamento realizado pela Academia de Polícia aos policiais das DDM's.
As mulheres são atendidas, a ocorrência é registrada, elas são orientadas quanto à necessidade de representarem nos crimes de ação pública condicionada a representação, orientamos quanto às medidas protetivas de urgência e dos recursos da rede. Tais como CRAS, Casa Brasilândia, Centro de Atendimento às mulheres, CAPS e CREAS. Quando necessário, são encaminhadas ao hospital Pérola Byington ou ao IML". (grifo nosso).
O relato da Dra. Vaz admite o despreparo da equipe policial para prestar o atendimento especializado que é demandado nestas delegacias.
Desde sua entrada em vigor, a lei nº 11.340/06 é questionada acerca de sua constitucionalidade. Sua aplicabilidade chegou até mesmo a ser afastada por decisão proferida por unanimidade pelo Tribunal de Justiça do estado do Mato Grosso do Sul, em 2007.
Trata-se do recurso n° 2007.023422-4, interposto contra decisão de juiz da cidade de Itaporã (MS), que não aplicou a Lei Maria da Penha ao caso concreto por considerá-la inconstitucional. O recurso foi julgado pela 02ª Turma Criminal do referido Tribunal, no qual, manteve, por unanimidade, a decisão do juiz singular (anexo II):
E M E N T AÂ Â Â Â Â Â Â Â Â Â –Â Â RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER – DECLARAÇÃfO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEIÂ Â N. 11.340/06 – RECURSO MINISTERIAL – PEDIDO DE MODIFICAÇÃfO DA DECISÃfO MONOCRÁTICA QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI N. 11.340/06 – VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE – VIOLAÇÃfO AOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E PROPORCIONALIDADE – DECISÃfO MANTIDA – COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – IMPROVIDO.
A Lei n. 11.340/06 (Lei Maria da Penha) está contaminada por vício de inconstitucionalidade, visto que não atende a um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, IV, da CF), bem como por infringir os princípios da igualdade e da proporcionalidade (art. 5º, II e XLVI, 2ª parte, respectivamente). Assim, provê-se o recurso ministerial, a fim de manter a decisão que declarou a inconstitucionalidade da Lei n. 11.340/2006, determinando-se a competência do Juizado Especial Criminal para processar e julgar o feito.
A C Ó R D Ãf O
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os juízes da Segunda Turma Criminal do Tribunal de Justiça, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade e contra o parecer, negar provimento ao recurso.
Tal posicionamento tornou-se preocupante, pois criava oportunidade de que outros julgadores, baseando-se nesta decisão mantida, deixassem de aplicar a referida lei. Diante disso, o então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, representado pelo Advogado-geral da União, ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC n°19).
4.1 Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19 (ADC/19)
A ADC é meio de controle de adequação das leis infraconstitucionais aos princípios entabulados pela Constituição Federal. Trata-se de meio de transformar a presunção relativa de constitucionalidade do instrumento normativo em presunção absoluta, vez que sua decisão possui efeito vinculante. Possuem legitimidade para propor a ADC as pessoas previstas no art. 103 da C.F.:
"Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)".
I - o Presidente da República;
II - a Mesa do Senado Federal;
III - a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004);
V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004);
VI - o Procurador-Geral da República;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional".
A petição que deu início a ADC n° 19, foi oferecida em 19 de Dezembro de 2007, pelo então Presidente da República, representado pelo Advogado-geral da União[7]
Neste instrumento, verificou-se a constitucionalidade de alguns artigos da lei nº 11.340/06:
Art. 1º - princípio da igualdade, em conformidade com o art. 5ª da CF;
Art. 33 – competência estadual para fixar a organização judiciária, em conformidade com os art. 96, II, "d" e art. 125, § 1º, ambos da CF;
Art. 41 – competência dos juizados especiais para processar e julgar os crimes de menor potencial ofensivo.
Em 09 de Fevereiro de 2012, por votação unânime, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a constitucionalidade dos artigos questionados (anexo III). Tal decisão configura conquista social, por se tratar de direito fundamental. Desta forma, aplica-se o princípio da proibição do retrocesso, ou seja, o direito assegurado por esta decisão do Plenário do STF não poderá ser desconsiderado.
4.2 Princípio da proibição do retrocesso
O princípio da proibição do retrocesso impede que sejam desconstituídas as conquistas alcançadas em matéria social, visto que configuram direitos fundamentais. J. J. Gomes Canotilho diz:
"(...) os direitos sociais e econômicos, uma vez obtidos em determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. (...) O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos já realizados e efetivados através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantidos sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa "anulação", "revogação" ou "aniquilação" pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado". [8]
Desta forma, resta inconstitucional o ato estatal que revoga garantias já conquistadas em temas de direitos sociais, como comenta o Conselheiro Vital Moreira, do Tribunal Constitucional de Lisboa:
"(...) Os direitos sociais traduzem-se para o Estado em obrigação de fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas (sistema escolar, sistema de segurança social, etc.). Enquanto elas não forem criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem; mas após terem sido criadas, a Constituição passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data da Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a cria-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados." [9]
Em outras palavras, a partir do momento em que o Estado cumpre, ainda que parcialmente, as tarefas constitucionalmente impostas em razão de direito social, a obrigação passa a ser positiva e negativa, ao passo que o Estado deve atuar para a satisfação de tal direito, abstendo-se de impedir sua realização.
Esta lei trás conceitos fundamentais para a interpretação e devida aplicação no caso concreto, vez que tal lei não criou nenhum tipo penal, limitando-se à modificação de pontos pré-existentes do Código Penal.
Primeiramente, define-se violência doméstica, no art. 5º:
"Art. 5º Para os efeitos desta Lei configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual".
Já no art. 7º, complementa-se o disposto no art. 5º, pois são apresentados cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher, que constituem rol exemplificativo:
"Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria".
Quanto à coabitação, entende-se que basta a convivência, presente ou passada. Acerca do tema, a terceira seção do STJ assim decidiu[10]
"A Lei Maria da Penha pode ser aplicada a relações de namoro, independentemente de coabitação. No entanto a situação específica de cada caso deve ser analisada, para que o conceito de "relações íntimas de afeto" não seja ampliado para abranger relacionamentos esporádicos, fugazes ou passageiros. A decisão, da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), determinou que a ação contra ex-namorado da suposta vítima tramite na Justiça Comum, e não em juizado especial criminal. Apoiada em doutrina, a ministra Laurita Vaz, relatora do conflito de competência, afirmou que, para caracterização da aplicação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340 /2006), é preciso existir nexo causal entre a conduta criminosa e a relação de intimidade existente entre autor e vítima. Ou seja, a prática violenta deve estar relacionada ao vínculo afetivo existente entre vítima e agressor. No caso específico, após terminar namoro de um ano e dez meses a suposta vítima passou a ser ameaçada pelo ex-namorado. Entre outras perturbações, e mesmo após quatro meses do fim da relação, ele a teria ameaçado de morte, ao tomar conhecimento de seu novo relacionamento" (grifo nosso).
Dos três conceitos apresentados, forma-se a ideia de que o sujeito passivo pode ser a mulher, homossexual ou heterossexual, que sofre violências praticadas por homem ou outra mulher, não sendo necessário o casamento dos sujeitos, bastando caracterização do vínculo de relação doméstica, familiar ou afetiva. Frisa-se que o polo passivo desta relação comporta as mulheres (independentemente de orientação sexual), os transgêneros[11]as transexuais[12]e as travestis[13]Nota-se, portanto, que houve ampliação do conceito de família previsto na Constituição Federal e Código Civil, visando o efetivo amparo da mulher vítima de agressões.
É imprescindível que os agentes jurídicos que trabalham com a temática da violência doméstica entendam no que consiste a violência de gênero, tendo como foco as desigualdades enfrentadas[14]
6.1 As formas de atuação da autoridade policial – Providências e Procedimentos
As providências a serem adotadas pela autoridade policial estão arroladas nos incisos do artigo 11 da Lei 11.340/06:
"Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:
I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;
II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;
III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;
IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis".
A garantia prevista no inciso I envolve as demais providências arroladas. O termo "quando necessário" deixa a critério da autoridade policial a análise das providências cabíveis, evidenciando a necessidade de capacitação especial das autoridades que prestam atendimento as mulheres em situação de violência.
O inciso II visa dar cumprimento ao artigo 158 do Código de Processo Penal[15]no que tange à produção de provas. Já o inciso III trata do transporte da vítima e seus dependentes a local seguro, quando houver risco de vida. No entanto, insta salientar que não houve implementação de abrigo em todas as cidades, o que resulta no não cumprimento do previsto pela lei. O inciso IV visa o acompanhamento da vítima para retirada de seus pertences do local da agressão ou domicílio, evitando-se que novas agressões ocorram. Por fim, o inciso V trata de informar a vítima acerca de seus direitos, principalmente no tocante à assistência, que contribuirá para a vítima deixar o ciclo de violência em que se encontra. Segundo Alice Bianchini:
"A implementação de estratégias de empoderamento constitui uma intervenção indispensável para se romper o silêncio, quebrar o medo que paralisa vítimas e, sobretudo, para que encontrem saídas não violentas para por fim ao ciclo de violência que as enreda[16]
A lei, portanto, não se resume a punição do agressor, objetivando também a conscientização da vítima em relação aos seus direitos e garantias proporcionadas pelo estado, para que esta denuncie violências sofridas.
Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, em respeito ao artigo 12 da Lei, feitos o registro da ocorrência e as respectivas orientações, deverá a autoridade policial adotar os procedimentos específicos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
"Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;
II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;
III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;
IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;
V - ouvir o agressor e as testemunhas;
VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;
VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.
§ 1º O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter:
I - qualificação da ofendida e do agressor;
II - nome e idade dos dependentes;
III - descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida.
§ 2º A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1º o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida.
§ 3º Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde".
No supracitado artigo da Lei Maria da Penha, há referência aos procedimentos policiais tradicionais. No entanto, o texto de lei traz consigo novos procedimentos a serem adotados no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo elas o acompanhamento policial à vítima, para possibilitar que esta busque seus bens pessoais e de eventuais dependentes; o encaminhamento destes ao Instituto Médico Legal para realização de atendimento e exames; o transporte da vítima até um local seguro e; proteção da vítima e seus dependentes, com o afastamento do agressor, por exemplo.
Cabe ressaltar, também, que o artigo 41 da referida lei afasta, textualmente, a aplicação da Lei 9.099/95, ou seja, torna incabível a aplicação dos institutos despenalizadores, impossibilitando a lavratura do termo circunstanciado. Quanto à representação da vítima, somente é necessária nos crimes sem violência física, vez que em casos em que a violência física esteja presente, ainda que resulte lesões de natureza leve, a ação penal será pública incondicionada.
6.2 Preparação Policial para atuação nas Delegacias de Defesa da Mulher
A mulher vítima de violência doméstica, em muitos casos, encontra-se em situação de fragilidade emocional, gerando a necessidade de que o atendimento realizado pela autoridade policial seja humanizado, haja vista ser este atendimento o primeiro realizado à vítima, bem como a forma de acesso aos demais níveis de atuação do Estado.
A situação de vulnerabilidade da mulher vítima deve ser observada pela autoridade policial. Para possibilitar tal observância, é necessário que os agentes sejam especialmente capacitados para a atuação nas Delegacias de Defesa da Mulher, visando aperfeiçoamento dos serviços prestados pela polícia às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
A cidade de Sorocaba/SP, através do Núcleo de Direitos Sociais de Sorocaba e Região, criou plano de capacitação especial para os Policiais Civis e Militares que atuam nas DDM"s:
"Ter um atendimento diferenciado e preferencial na polícia para entender a complexa dinâmica de violência na qual aquela mulher está inserida é de suma importância. O (A) policial deve ter sensibilidade de gênero para levar em conta aspectos psicossociais bem como a construção histórica das relações de gênero, possibilitará o (a) policial que faz o atendimento entender quais as medidas mais importantes para serem tomadas".
Tal capacitação tem por objetivo fixar a fragilidade da mulher em situação de violência doméstica ou familiar, bem como sedimentar conceitos relevantes para o devido atendimento da vítima e aplicação da legislação específica, ao ter em sua programação, por exemplo, exposições que tratam dos tipos de violência, vez que o tipo de violência que mais atinge as mulheres em questão é a psicológica.
Os procedimentos adotados pelas autoridades policiais ficam até mesmo em segundo plano, ao tratarmos da preparação destes agentes, vez que, saliente-se, eles são o primeiro ponto de contato entre a vítima e o poder estatal. A vítima tem de sentir confiança e segurança neste primeiro momento.
O preparo policial para atuação em uma Delegacia de Defesa da Mulher, portanto, vai muito além de conhecer os procedimentos e sua forma de execução. As autoridades devem entender a fragilidade das situações e das vítimas, compreender o histórico sexista e paternalista da sociedade, pois é inadmissível que tais agentes corroborem com ideias deturpadas de ser a vítima responsável pela agressão sofrida.
6.2.1 Medidas Integradas de Prevenção
A lei 11.340/06, em seu Título III, Capítulo I, trata das medidas integradas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher. Tais medidas são extrapenais, objetivando a mudança de predefinições culturais de tolerância à violência doméstica.
Art. 8ª A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não governamentais, tendo por diretrizes:
I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação;
II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às consequências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas;
III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1º[17]no inciso IV do art. 3º[18]e no inciso IV do art. 221[19]da Constituição Federal;
IV - a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher;
V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres;
VI - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher;
VII - a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia;
VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia;
IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. (grifos nossos)
Há, portanto, previsão expressa no texto de lei para que o agente policial seja capacitado, de forma permanente, para promover o atendimento especializado às vítimas nas Delegacias de Defesa da Mulher, previsão esta que não poderia deixar de existir, em razão da necessidade do conhecimento das razões e fundamentações da prática da violência, bem como suas implicações na vida da vítima.
6.2.2 Formas de Capacitação do Policial para Atuação nas Delegacias de Defesa da Mulher
Em razão da não facultatividade da capacitação de agentes policiais para atuação em uma delegacia especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher, as entidades federativas devem criar planos de formação de seus agentes, visando garantir as previsões legais contidas na Lei Maria da Penha. O Ministério da Justiça assim afirma sobre o tema:
O atendimento deve ser conduzido por profissionais policiais previamente capacitados em violência de gênero e doméstica contra a mulher. A educação em segurança pública deve se estender a todos os profissionais da segurança pública que, de alguma forma, atendem às mulheres em situação de violência, por meio dos cursos oferecidos na Rede de Ensino a Distância, em cursos presenciais ou pelos cursos de especialização da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública – Renaesp[20]
O RENAESP é um projeto de educação, do Ministério da Justiça, voltado à capacitação dos profissionais da segurança pública, independentemente de cargo ocupado, bem como demais profissionais interessados atuantes na área. Tal Rede desenvolve parceria com Instituições de Ensino Superior que promovem cursos de pós-graduação sobre diferentes temas relacionados à Segurança Pública[21]Este projeto visa promover estudos, pesquisas e indicadores sobre violência, criminalidade e outros assuntos relacionados à segurança pública.
Nas DDMs, ocorre incentivo a uma política meritória, que reconheça e estimule as boas práticas na prevenção e atendimento/acolhimento às mulheres em situação de violência, ou participando dos circuitos de premiações que já existem, inscrevendo experiências, criando incentivos e estímulos permanentes à qualidade na gestão pública. Há, também, atendimento psicológico voltado aos profissionais que atuam nas DDMs, em razão das características da profissão.
No entanto, tais formas de capacitação dependem de iniciativa pessoal do policial, vez que não há "capacitação compulsória" dos agentes, como relatado pela delegada Dra. Vaz. Enquanto obrigatório temos apenas Cursos de Aperfeiçoamento realizado pela Academia de Polícia e não treinamento prévio para que lidem com as situações fáticas que lhes são apresentadas ou previsão de que projetos como o RENAESP sejam aproveitados.
Em consulta a dissertação de mestrado da pesquisadora Beatriz Accioly Lins, da Universidade de São Paulo, deparamo-nos com as queixas de uma escrivã que atua em uma DDM da cidade de São Paulo:
"Na Academia a gente teve uma palestra com uma delegada de DDM, falaram da Lei Maria da Penha, mas foi só isso. Ensinaram a redigir B.O. genérico, mas não ensinaram a fazer pedido de Medida Protetiva, nem a acionar a rede de atendimento (...)".
A afirmação da escrivã apenas nos esclarece a falta de preparação dos agentes que atuam nas DDMs.
6.3 A situação atual das Delegacias de Defesa da Mulher
Desde 1985, nenhuma legislação referente a delegacias da mulher tem feito menção à formação ou capacitação das policiais titulares dessas delegacias. Os poucos cursos de capacitação sob a perspectiva de gênero, oferecidos às policiais pelo Conselho Estadual da Condição Feminina e por algumas ONGs de mulheres, têm sido resultado da vontade política de algumas policiais em postos de coordenação dos trabalhos das delegacias. A Academia de Polícia, responsável pelo curso preparatório de três meses destinado a todos os policiais que ingressam na carreira, jamais integrou em seu curriculum um curso específico sobre violência contra a mulher ou violência de gênero[22]
A Academia Nacional de Polícia, em seu site, traz as seguintes informações acerca da formação policial e sua capacitação:
A matriz curricular engloba diversas disciplinas, algumas tipicamente policiais, como técnicas de investigação policial e planejamento de ações e operações policiais, e outras, embora pertencentes a áreas do conhecimento operacionalizadas por outros profissionais, são abordadas sob a ótica da rotina policial e das estratégias de enfrentamento, como por exemplo, crimes ambientais e desvios de recursos públicos[23]
(...) Ao longo de sua carreira, ao Policial Federal é oportunizada a participação em ações de capacitação transversais, destinadas a todos os policiais federais, v.g., treinamentos com novos equipamentos integrados ao acervo, e em ações específicas, vinculadas à atuação cotidiana do policial, v.g., Curso de Gerenciamento de Crises Envolvendo Comunidades Indígenas para policiais lotados em unidades em que haja histórico de confrontos e conflitos sobre a posse de terras[24]
Em momento algum a Academia de Polícia trata de capacitação sobre violência contra a mulher ou de gênero. Resta evidente o desrespeito ao inciso IV do artigo 8º da Lei 11.340/06. Como reflexo disso, temos a atuação policial despreparada nas DDM"s, que causa insegurança às mulheres vítimas da violência doméstica ou familiar, pois ao buscarem estes locais para denunciarem agressões, não recebem o devido tratamento e atenção.
Entendemos que falta à Lei Maria da Penha, no tocante à capacitação do agente policial – art. 8º, VII – norma programática[25]que crie diretrizes para elaboração de programas de capacitação que sejam eficazes para gerar eficiente atuação policial em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
6.3.1 O atendimento prestado às vítimas nas DDMs
O a seguir exposto baseia-se em pesquisa de campo realizada em DDMs da cidade de São Paulo/SP. As observações aqui expressas tem por base o desempenho observado nestes locais. No entanto, em pesquisas bibliográficas, conversas com vítimas e policiais que atuam nas DDMs, percebe-se que há coincidência entre os problemas apresentados nas unidades visitadas e as demais do estado e país. Trataremos adiante da análise destas visitas.
Infelizmente, é comum nos deparamos com mulheres vítimas de violência doméstica e/ou familiar que relatam descaso e mau atendimento pela autoridade policial quando de seu comparecimento em Delegacias de Defesa da Mulher.
Em Junho de 2012, houve instauração de Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI – para investigar a violência contra mulheres pelos estados de Pernambuco, Santa Catarina, Minas Gerais, Alagoas, do Rio Grande do Sul, Paraná, Espírito Santo e de São Paulo, analisando os equipamentos oferecidos pelos poderes públicos e que são voltados ao atendimento das mulheres vítimas de violência. Sua conclusão (anexo IV) é de que o atendimento é precário:
"De modo geral, podemos afirmar que o atendimento à mulher em situação de violência no país não está bom. Vimos que grande parte dos equipamentos, ou seja, as delegacias especializadas, os centros de referências, os núcleos de atendimento às mulheres em situação de violência e as varas especializadas funcionam de forma ainda muito precária. Muitos desses equipamentos funcionam em espaços públicos inadequados ou [em quantidade] insuficiente, com número de profissionais insuficiente e despreparados para fazer um bom acolhimento à mulher em situação de violência[26]
Poucas mudanças podem ser observadas desde então. O atendimento às vítimas continua precário e despreparado. Durante trabalho de campo, deparamo-nos com atendentes violentas, frias, impacientes, desmotivadas e até mesmo chocadas com as situações que se apresentavam a elas, demonstrando despreparo para o exercício da profissão.
Em 10 de Julho de 2015, sexta-feira após feriado municipal de São Paulo, deparamo-nos com a 01ª DDM – Sé – fechada, em virtude do feriado do dia anterior. O mesmo se deu com a 05ª DDM – Tatuapé – em 05 de Junho de 2015 e com a 07ª DDM – Itaquera – em 20 de Abril de 2015. As Delegacias da Mulher da cidade de São Paulo prestam serviços somente em dias úteis, das 9h às 19h, em geral.
Tal conduta vai contra o recomendado pela Norma Técnica de Padronização das Delegacias de Atendimento à Mulher – DEAMs (anexo V). A recomendação técnica é de que as DDMs funcionem todos os dias, 24 horas por dia, pois, conforme reconhecido pelos formuladores da Norma, o horário de atendimento das DDMs não contempla os momentos em que mais se pratica a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Durante as visitas às DDMs, inúmeras vezes ouvimos das vítimas, em seus relatos, a mesma frase: "Tive de esperar a segunda-feira para poder denunciar a violência". Os fatos geradores das denúncias se dão, em sua maioria, durante os finais de semana e/ou feriados, mas as vítimas precisam esperar até a abertura da DDM no dia útil subsequente para que tenham possibilidade de ação nas unidades especializadas. Uma funcionária da 02ª DDM – Saúde – ao ser questionada acerca deste problema, respondeu-nos que "nada impede que a mulher vá registrar sua queixa em qualquer DP comum". Esta também foi a resposta obtida em outras DDMs, quando questionadas acerca desta questão.
Apesar da queixa poder se dar em qualquer Distrito Policial, não apenas nos especializados, muitas vítimas que buscam esta solução são encaminhadas às DDMs, sem que seja tomada nenhuma medida pelos policiais da DP comum em relação ao seu problema. Tal se dá por falta de preparo dos policiais que atuam nas Delegacias ditas comuns, ou seja, aquelas não especializadas, bem como pelo preconceito a que está submetida a DDM dentro do próprio ambiente policial. O policial Rodrigo, que atua em uma DDM da capital, nos informou que antes de prestar serviços nesta delegacia especializada, também pensava desta forma: "Eu nem considerava os policiais que trabalhavam na Delegacia da Mulher como policiais", afirmou. A corporação policial ainda vê os crimes de competência da DDM, violência doméstica e familiar de gênero, como "de menor potencial ofensivo", ainda que este termo tenha sido retirado do ordenamento jurídico pela Lei Maria da Penha.
Aqui encontra-se mais um dos problemas enfrentados hoje pelas DDMs: o desinteresse policial para atuação nestas. O processo seletivo desta delegacia especializada não contém nenhum conteúdo programático próprio ou seleção específica, tratando-se apenas do concurso público com posterior treinamento na Academia de Polícia. Desta feita, comum é o profissional da DDM que desconhece a profundidade do problema social enfrentado pelas mulheres em razão das desigualdades de gênero que motivam a violência doméstica e familiar.
Acerca desta problemática, Maria Amélia de Almeida Teles – Amelinha – fundadora da ONG feminista União de Mulheres de São Paulo, é enfática no seu entendimento: "Os profissionais atuantes em Delegacias de Defesa da Mulher deveriam ser feministas", diz ela. Tal não se dá na situação fática, o que apenas corrobora para que as mulheres não tenham o tratamento devido quando procuram o atendimento policial.
Clara Averbuck, expoente feminista, que escreve no blog "Lugar de Mulher" publicou uma série de textos tratando da falta de preparo das autoridades policiais para atenderem uma vítima que esta acompanhava. Segundo Averbuck, o trabalho das policiais é "orientado por concepções tradicionais de gênero e família, impedindo a aplicação formal da lei e influenciando diretamente no resultado dos processos jurídico-policiais"[27]. O que se vê em larga escala é a tentativa de conciliação dos conflitos apresentados em razão da ainda predominante visão machista paternalista da sociedade, que se prende à estrutura familiar, ainda que destrutiva à mulher. Nas palavras do policial entrevistado em visita à 04ª DDM:
"A gente não costuma desagregar as famílias. No primeiro momento, a gente olha o que tá (sic) acontecendo. De repente, é um desentendimento que dá pra concertar".
Em seus textos, Averbuck descreve o tratamento grosseiro e frio dado à sua amiga, que foi vítima de violência doméstica. Em decorrência da publicação deste relato, Averbuck recebeu inúmeros outros relatos de mulheres vítimas que foram submetidas a tratamento degradante no interior da DDM. A realidade com a qual nos deparamos é assustadora: os relatos de atendimento violento e hostil são frequentes; O ambiente criado para amparar as vítimas lhes é tão hostil quanto a sociedade que tolera a agressão e justifica a atitude do agressor!
O atendimento prestado às vítimas é, salvo exceções, preconceituoso e despreparado. Com isto, as mulheres se sentem desencorajadas em procurar o serviço das DDMs, o que causa menos coibição aos agressores, fazendo com que estes se sintam seguros de que a mulher não conseguirá denunciá-lo.
6.3.2 Análise das Visitas às DDMs
Em visita às DDMs da Capital de São Paulo, foram-nos concedidas algumas entrevistas pelos funcionários destas delegacias, bem como pelas vítimas que as procuraram. Não é cabível aqui a reprodução de seus inteiros conteúdos, fazendo-se necessária apenas apresentação de impressões causadas em virtude das referidas falas.
Alguns relatos, ainda que de forma sutil, buscam inocentar ou justificar a conduta do agressor, culpabilizando o comportamento das mulheres que não se adequam ao local que o machista lhes impõe, ou seja, fogem dos padrões tradicionais de "dona de casa", "mãe" ou "esposa (de um único homem)". Frases como "tem mulher que gosta de apanhar" ou "ela estava pedindo" são recorrentes nesses relatos. Também ouvimos "mulher decente" em muitos discursos. Isso comprova a visão machista e discriminatória para com as mulheres, onde os funcionários das DDMs se prendem a conceitos tradicionais e valores conservadores, desvalorizando o avanço feminino na conquista de direitos e prestígio social, ou seja, legitimam o controle masculino sobre a sociedade e sobre as mulheres.
Há, também, agentes que se manifestam no sentido de resguardar a mulher no exercício de seus direitos, como não se submeter às vontades de um homem. Tais relatos, que em primeiro momento se demonstram compreensivos, também denotam revolta quando a vítima retira a queixa contra seu agressor. Notamos que na maioria dos casos, a revolta é gerada pelo seu entendimento de que a ação foi perda de tempo e de trabalho, ou seja, não há revolta em razão do agressor continuar impune, mas sim pelo interesse da vítima em retirar a queixa. Essa atitude dos agentes policiais corrobora à hostilidade no tratamento às vítimas, pois após acontecimentos reiterados deste tipo, os agentes passam a entender que a impunidade é a regra, sendo a instauração do inquérito uma mera exceção.
A discriminação contra a vítima também encontra terreno fértil em relação à sua classe social. Quando os agentes policiais se referiam a mulheres de classe média à alta, dão a entender que estas vítimas reagem aos primeiros sinais de agressão, buscando na delegacia especializada orientações, sem, contudo, registrarem a ocorrência, por sentirem vergonha do fato. Já a mulher de classe média baixa ou baixa é tida como aquela que não se defende às primeiras agressões e, em razão disso e do medo que sentem, retiram a queixa ou nem mesmo denunciam as agressões sofridas.
Como resultado geral das entrevistas, tivemos a noção de que os agentes policiais não entendem serem as mulheres vítimas de violência a maioria, pois ainda há distinção entre violência de fato e pequenas agressões, vez que por mais que tal conceito, menor potencial ofensivo, tenha sido afastado pela lei Maria da Penha, não foi afastado da visão androcêntrica da sociedade, que ainda gera mulheres que devem estar no "seu lugar" e dá ao homem poder para repreendê-la caso se desloque.
6.4 Proposta de formas de melhoria
Evidente resta a necessidade de melhoria no atendimento prestado às mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar. Identificamos como principais causas de precariedade de atendimento a falta de preparo dos policiais, pois entendemos o desconhecimento da situação feminina como causa das atitudes machistas e opressoras que visam justificar a atitude dos agressores, e a falta de motivação dos agentes policiais, que veem seu trabalho como "perda de tempo" quando a vítima decide por retirar a queixa contra o agressor.
Entendemos que a melhor preparação e especialização dos agentes que são selecionados para atuar em DDMs é a forma de tornar o atendimento na delegacia especializada mais efetivo, em respeito a Lei Maria da Penha. Tal preparação deveria se dar em duas fases, a saber:
Primeira fase: A primeira fase desta preparação pode se dar através de cursos voltados a estes agentes que já atuam nas DDMS, a exemplo do Projeto de Capacitação sobre a Violência Doméstica para a Polícia Militar e Civil elaborado pelo Núcleo de Direitos Sociais de Sorocaba e Região (anexo VI) que visa dar cumprimento ao previsto no Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (anexo VII):
"a) Difusão do conteúdo dos tratados internacionais e garantia de sua aplicação.
b) Articulação e acompanhamento junto aos Poderes Judiciário e Legislativo e ao Ministério Público quanto à execução e aplicabilidade da Lei Maria da Penha.
c) Incorporar a temática do enfrentamento à violência contra as mulheres e a Lei Maria da Penha nos conteúdos programáticos de cursos, concursos públicos, principalmente no processo de formação dos operadores do direito.
d) Realização de campanhas, mobilizações e ações educativas sobre a Lei Maria da Penha.
2 – Implementação da Lei Maria da Penha
a) Ampliação do número de juizados e varas especializadas de violência doméstica e familiar a mulher.
b) Ampliação do número de Defensorias Públicas Especializadas/ Núcleos da Mulher e da Assistência Judiciária Gratuita para o atendimento às mulheres em situação de violência.
c) Ampliação do número de promotorias públicas especializadas e dos núcleo de gênero nos Ministérios Públicos Estaduais.
d) Elaboração da Norma Técnica dos Serviços".
Neste sentido, as ações propostas para esta fase de melhoria objetivam fortalecer a rede já existente de atendimento à mulher por meio de aprimoramento e aperfeiçoamento dos serviços prestados, pois é imprescindível que os agentes que trabalham com esta temática entendam no que consiste a violência doméstica baseada no gênero, bem como as desigualdades enfrentadas pelas mulheres que dela são vítimas.
Com base no que é desenvolvido no município de Sorocaba, sugere-se que esta fase consista em Curso de Capacitação para policiais, com o seguinte conteúdo programático:
Discussão breve de alguns conceitos: Concepção de Gênero, Violência, Ciclo da Violência;
Aspectos históricos de elaboração da Lei Maria da Penha;
Aspectos jurídicos da Lei Maria da Penha;
Apresentação da rede de serviços de atendimento a mulheres vítimas de violência doméstica.
Sugere-se que as explanações sejam feitas por especialistas em suas áreas, não sendo necessário que atuem em DDMs, por exemplo técnicos que atuam na rede de serviço local, como Conselho Municipal da Mulher e Conselho Tutelar.
Segunda fase: A segunda fase é voltada aos que pretendem ingressar no exercício da polícia, mais precisamente na atuação na delegacia especializada na defesa da mulher. Entendemos ser necessária fase de processo seletivo em que se exija conhecimento específico acerca de violência de gênero. Este procedimento visa que os candidatos tenham pleno conhecimento da legislação vigente que rege a atuação nas DDMs, bem como da situação sociocultural da mulher em nossa sociedade.
Esta fase envolve procedimentos administrativos, como a inclusão de fase teórica em concurso para admissão em cargo público ou até mesmo inserção de questões específicas em fase teórica única. Entendemos ser necessária a existência de sistema de seleção dos agentes que atuarão nas DDMs, mesmo que já sejam policiais, aplicando-se então esta fase após a fase preparatória proposta anteriormente.
As ações propostas para esta fase de melhoria objetivam garantir que o agente ingressante na delegacia especializada seja detentor de conhecimento suficiente acerca do tema de violência de gênero que garanta a qualidade de sua atuação prática.
Infelizmente, inegável é a situação de violência de gênero ainda existente em nosso país. Medidas importantíssimas como a Lei nº 11.340/06 – Lei Maria da Penha – foram tomadas para coibir tal situação, mas, ao analisarmos os motivos de sua outorga, novamente nos deparamos com a situação alarmante que vivenciamos. O projeto de lei foi resultado de atuação internacional, não iniciativa pátria para findar a violência de gênero.
A título de curiosidade, compilamos dados encontrados na internet acerca de violência decorrente de término de relacionamento. Ao buscarmos as palavras "inconformados com o fim do relacionamento", nos deparamos com aproximadamente 295.000 resultados. Já ao utilizarmos "inconformadas com o fim do relacionamento", o resultado cai para aproximadamente 108.000 resultados, sendo que grande parte destes resultados demonstra que as mulheres inconformadas buscam o suicídio, não violência ao ex-companheiro. Sobre este tema, Jane Felipe de Souza, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em entrevista ao BuzzFeed Brasil[28]explicou:
"Meninos são educados a não terem limites e desta forma têm uma baixa tolerância à frustração. Como também são educados de forma misógina, na vida adulta, se sentem no direito de dominar as mulheres. Primeiro com a violência benévola (violência disfarçada de proteção). Depois isso pode chegar à violência física. (...) Os meninos são criados para não levar desaforo para casa enquanto meninas são criadas para não se meterem em confusão. Meninos aprendem que meninas são menos e que por isso podem ser subjugadas, humilhadas e controladas".
Resta clara a ocorrência de casos de violência doméstica contra a mulher em números ainda alarmantes. Estes números sofreram queda após a implementação da lei nº 11.340/06, que impede a aplicação dos institutos despenalizadores previstos na lei nº 9.099/95. No entanto, a falta de capacitação pela Academia de Polícia afeta a garantia de proteção às mulheres vítimas de violência doméstica.
Há ainda que se considerar a atuação das delegacias especializadas, considerado precário enquanto não funcionam no mesmo período de funcionamento das delegacias comuns, o que força as vítimas a procurarem as delegacias comuns, onde por vezes não conseguem nenhum tipo de respaldo.
O despreparo da autoridade policial aliada à precariedade do funcionamento das delegacias especializadas contribui para que os índices de violência doméstica e familiar contra a mulher mantenham-se altos, pois não conseguem prover a necessária efetividade ao disposto no texto de lei.
Desta forma, identifica-se causa de ineficácia da proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Diante disto, entendemos ser necessária efetiva capacitação dos agentes policiais que atuarão nas delegacias especializadas, como forma de gerar maior confiança das vítimas na atuação estatal, bem como de gerar maior efetividade dos procedimentos previstos pela lei Maria da Penha. Os agentes que atuarão nesta área devem conhecer a situação histórica e fatídica da violência de gênero, conhecer o texto de lei de forma integral e agirem com o devido trato para com as vítimas.
Salienta-se que apenas a efetiva atuação policial não é a solução para a violência de gênero. Necessário faz-se que haja educação para toda a sociedade, sendo a igualdade de gêneros difundida desde escolas até a mídia de massa. O que se pretende é uma sociedade igualitária, em que não seja necessária a implementação de delegacias especializadas em defender mulheres vítimas de violência.
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SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis: violência conjugal e as novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
ROMEIRO, J. . A Lei Maria da Penha e os desafios da institucionalização da violência conjugal no Brasil. In: Moraes, Aparecida Fonseca; Sorj, Bila.. (Org.). Gênero, violência edireitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Letras, 2009.
AGRADECIMENTOS E DEDICATÓRIAS
Agradeço aos meus pais, irmão e avós, por mesmo durante as adversidades terem me guiado pelo caminho reto e justo.
Agradeço ao meu orientador, Luiz Roberto Cicogna Faggioni, pelo apoio ininterrupto desde o momento que pedi que me orientasse em minha monografia até o presente momento.
Agradeço às amigas Leticia Bayon, Natália Salgo e Renata Dias por estarem comigo durante estes anos de graduação, pelo companheirismo e por terem estendido nossos laços para além do ambiente acadêmico.
Dedico este escrito à minha mãe, Margarete Pedik Schuchman, minha mulher exemplo.
Autor:
Michelli Pedik Schuchman
mpschuchman[arroba]outlook.com
Monografia apresentada à banca examinadora da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu, como exigência parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Luiz Roberto Cicogna Faggioni.
Universidade São Judas Tadeu
São Paulo
2015
[1] MURARO, ROSE MARIE. Ponto de Mutação.
[2] TOURAINE, Alain. Critica da Modernidade: Exploração de mulheres - mulheres retiradas de seus países, foragidas da miséria, sendo escravizadas e mantidas na pobreza, por proxenetas que as coagem a práticas sexuais indesejadas, com parceiros indesejados, visando próprio e exclusivo enriquecimento dos exploradores.
[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. Dinâmicas de Violência e Exclusão.
[4] SILVA, Marlise Vinagre. Violência doméstica: a dor que a lei 9.099/95 esqueceu.
[5] BASTOS, Marcelo Lessa.
[6] Portaria DGP nº 11/97: "Às Delegacias de Defesa da Mulher deverão ser designadas, preferencialmente, policiais civis do sexo feminino, principalmente para o exercício das funções relacionadas ao atendimento público".
[7] Este atua na presente causa nos termos do art. 131 da Constituição Federal, ou seja, não como defensor da lei em si, mas como assessor jurídico do Poder Executivo.
[8] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 320/321, item n. 3, 1998, Almedina.
[9] Imprensa Nacional, Lisboa. Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 3/95-131, 117-118, 1984.
[10] GOMES, Luiz Flávio; YOSHIKAWA, Daniella. Lei Maria da Penha: aplica-se ao namoro, mesmo sem coabitação. Disponível em http://www.lfg.com.br. 04 de abril de 2009.
[11] Pessoas cuja expressão de gênero não corresponde ao papel social atribuído ao gênero designado para elas no nascimento.
[12] Convicção do indivíduo de pertencer ao outro sexo, buscando verossimilhança em comportamento e aparência.
[13] Homossexual que se traja como o sexo oposto ao seu.
[14] RECHTMAN & PHEBO, 2006
[15] Código de Processo Penal - Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.
[16] BIANCHINI, Alice. LEI MARIA DA PENHA: comentada em uma perspectiva jurídico-feminina - Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011 - pág. 229.
[17] "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...). III - a dignidade da pessoa humana"
[18] "Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...). IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".
[19] "Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: (...). IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família"
[20] Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP - http://www.justica.gov.br/sua-seguranca/seguranca-publica - Acesso em 06 de Julho de 2015, 12h31.
[21] www.portal.mj.gov.br - Acessado em 06 de Julho de 2015 - 13h.
[22] MACDOWELL, Cecília - Delegacias da Mulher em São Paulo, Percursos e Percalços.
[23] http://www.dpf.gov.br/anp/educacional/formacao/ - Acessado em 16 de Julho de 2015 - 15h20.
[24] http://www.dpf.gov.br/anp/educacional/capacitacao/ - Acessado em 16 de Julho de 2015 - 15h30.
[25] Consubstanciam programas e diretrizes para atuação futura dos órgãos estatais.
[26] Senadora Ana Rita (PT-ES), relatora da CPMI.
[27] AVERBUCK, Clara. A Ineficiência da Delegacia da Mulher.Série de te xtos publicados no blog "Lugar de Mulher".
[28] http://www.buzzfeed.com/alexandreorrico/busca-no-google-expoe-relacao-entre-separacoes-e-violencia-c#.nhepM1krP Acessado em 03 de Setembro de 2015, ás 11h.
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