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Ainda assim, a Argentina atenua os efeitos da crise graças a um tratado assinado em 1933 com a Grã-Bretanha, o chamado Tratado de Roca-Runciman, que direcionava as exportações argentinas para aquele país, em troca da entrada de produtos ingleses no mercado argentino. Entretanto, a Argentina ainda sofria com a instabilidade econômica e política.
A crise e o conflito mundial, bem como seu corolário, a Guerra Fria, somado à Guerra Civil Espanhola, a forte presença de imigrantes alemães e italianos, a clássica postura de neutralidade na diplomacia, só quebrada por Carlos Menen repercutiram nos meios que seriam projetados para fazer frente aos problemas herdados de épocas anteriores: a democratização da vida política e social, bem como um projeto de desenvolvimentismo.[5]
A guerra produz o fechamento de mercados essenciais para a economia argentina: a redução das exportações agrícolas e da venda de carne para o governo britânico. E mais, a falta de insumos e de bens de capital se revela como o grande problema para a Argentina durante a guerra. Mas as conseqüências da crise de 29 davam sinais de mais dificuldades e uma restauração remota da economia.
Em 1943 um golpe militar promovido pelos generais Pedro Pablo Ramirez e Edelmiro Farrel, leva à cúpula do poder o então coronel Juan Domingo Perón, que, com sua capacidade de mobilização das massas e carisma pessoal, vence as eleições presidenciais de 1946.[6]
O levante militar de 1943 e a ascensão de Perón dão termo a uma década de fraude conservadora, e coloca em marcha uma transformação profunda na sociedade argentina, que se inicia com uma ordem castradora de direitos e assimilação de uma invertida organização social[7]Como se observa, o peronismo, um rebento do golpe de 1943, será o elemento detonante de grandes mudanças, em especial, a participação das massas operárias, o afastamento das velhas oligarquias, o apoio da Igreja Católica e o distanciamento do governo de Washington, num claro quadro de antiamericanismo.
Antes de Perón, no período compreendido entre o golpe de 43 e as eleições de 46, assolada por agitações políticas e protestos de toda ordem, os militares se empenham em abafar o descontentamento, utilizando uma fórmula que misturava nacionalismo e autoritarismo: dissolveram os partidos políticos, promoveram uma onda de arrestos, o estado de sitio, intervenção nas universidades, banindo os intelectuais de orientação liberal, além, é claro, da censura prévia. Vale lembrar que, diante das medidas citadas, a introdução por decreto do ensino religioso nas escolas aproximou o regime da Igreja Católica.
Vale ressaltar que a popularidade de Perón é alçada por dois fatos que merecem consideração: o primeiro foi a criação do chamado "Aguinaldo", o décimo terceiro salário, pela Secretaria de Trabalho e Previdência, comandada por Perón. E o segundo foi norteado pela onda nacionalista provocada pelo incidente "Braden". Neste, o governo norte americano, por intermédio do Secretário para Assuntos Latino-Americanos dos EUA, liga o governo vigente às manobras do Eixo. Perón promove campanha com o slogan "Braden ou Perón!" O apelo peronista acende a chama nacionalista, acusando a ingerência americana na política argentina, capitalizando votos para o Partido Laborista, e contando com o apoio da Central Geral de Trabalhadores.[8]
Na nova conjuntura, interna e externa, a indústria passa a ter uma diferente dimensão, observada e norteada pelo governo federal, tornando o setor uma prioridade, já que o lugar privilegiado alcançado pelo comércio de bens agropecuários perde importância, definindo novas opções econômicas e políticas diante da nova ordem econômica mundial.[9]
Assim, junto com as indústrias tradicionais, surge uma grande quantidade de pequenas e médias empresas, fomentando a oferta de mão-de-obra industrial, que se alimentava do contingente que migrava do interior e se juntava aos já estabelecidos, principalmente imigrantes europeus.
Em meio ao conflito mundial, concomitante à ascensão de Perón, a Argentina era um país dividido: rural e industrial, com estamentos sociais diferenciados e distantes entre si, que, aliados à organização sindical vão nortear o futuro político daquele país.
A política peronista era de forte inspiração keynesiana, embasada na teoria que corroborava a crise no liberalismo, amparada na intervenção do Estado na regulamentação e condução da economia. A repatriação de forma generalizada de investimentos estrangeiros, em especial os ingleses, revela uma chamada independência financeira, culminada na nacionalização do Banco Central, que passa a conduzir a política monetária e creditícia, bem como o comércio exterior. [10]
O processo de nacionalização da economia era apenas uma das direções tomadas pela intervenção estatal. Seguia-se uma nova relação, contrária as oligarquias, que era direcionada aos trabalhadores, que ansiavam por conquistas sociais, e as propostas chegam à manutenção do emprego e elevação do nível de vida. Assim, por meio de negociações coletivas os salários foram majorados, as férias passaram a ser remuneradas, além de licença por doenças, e criação de sistemas sociais, todos amparados pelas organizações sindicais. E mais: foi promovido o congelamento de aluguéis, estabelecimento de salário mínimo e melhoria na saúde pública, além de planos de habitação, escolas primárias e secundárias, aposentadoria, e tudo mais que estivesse ligado à previdência social.
Como se observa, a Argentina peronista era amparada numa relação estabelecida entre trabalhadores e o Estado.
Fundamental foi a participação dos sindicatos na nova ordem: as organizações operárias eram cooptadas pelo governo federal e funcionavam como longa manus do poder. A pulverização dos sindicatos leva ao enfraquecimento destes, e maior influência por parte do Estado. A sindicalização era ínfima até 1943, mas logo se alarga através de grêmios industriais. A legislação recente garantia a existência de organizações grandes e poderosas, com força de igualdade perante os representantes patronais. Entretanto, tais organizações operárias, inclusive a CGT eram encabeçadas por figuras medianas, responsáveis por receber e transmitir ordens do Estado e controlar os trabalhadores insurgentes.
Ou seja: a função dos sindicatos era controlar, reduzir ou impedir as ações independentes e intervir nas seções insatisfeitas, além de promover negociações nas atividades sociais com o patrocínio do Estado. O sindicalismo argentino se torna parte da administração estatal argentina.
Luis Alberto Romero ratifica em sua obra "História Contemporânea da Argentina":
"A relação entre Perón e o sindicalismo – crucial no Estado Peronista – sem dúvida foi complexa, negociada e difícil de reduzir a uma fórmula simples. Apesar da forte pressão do governo sobre os sindicatos e da decisão de controlar sua ação, esses dois elementos nunca deixaram de ser a expressão social e política dos trabalhadores. Sob esse ponto de vista, o Estado não apenas facilitava e estimulava a organização da classe e a cobria de benefícios, mas criava uma situação de comunicação e participação fluida e mesmo familiar, longe de parecer algo estranho. O Estado Peronista, por sua vez, tinha nos trabalhadores sua grande força legitimadora, e reconhecia isso; e não de maneira retórica ou abstrata, mas com referência direta às suas organizações e a seus dirigentes, aos quais concedeu um lugar de destaque." [11]
Ao lado da figura de Juan Domingo Perón, autoritária para alguns e paternalista para outros, estava sua esposa, Eva Perón.
O casal personificava a mitologia criada e amparada pela propaganda que emanava do governo. Apesar da cooptação das massas sindicalizadas, os setores populares, não organizados também receberam atenção do Estado, uma realização de Eva Perón e sua fundação. Amparada por fundos públicos e contribuições nem sempre voluntárias, o fundação realiza obras que cimentam a magnanimidade da primeira dama. Através da fundação, Eva criou escolas, orfanatos, lares para idosos, centros hospitalares, distribuição de alimentos e presentes natalinos, organiza campeonatos esportivos – sempre com o nome do casal em destaque.
Eva recebia pessoalmente uma legião de necessitados, que viam nela a salvação para seus problemas mediatos ou não: uma bicicleta, uma pensão, um emprego. E assim, Eva se consolidava como a "Dama da Esperança", uma figura que pertencia à elite governamental, mas que era acessível a todos. Era o Estado atendendo aos desconsolados.
Intermediada pela Fundação Eva Perón, a massa de humildes não sindicalizados se une à massa trabalhadora organizada para complementar o apoio popular ao governo.
Em que pese a direção peronista no que concerne à economia e assistência ao povo, o regime prezava modelos difundidos no regime fascista italiano e no cardenismo[12]Mister se fazia uma reestruturação das instituições republicanas, minimizando os espaços democráticos, promovendo uma subordinação dos poderes constitucionais ao Executivo, leia-se Perón. Tal arregimentação política era legitimada pela força das massas populares que tornavam as instituições da República um mero coadjuvante. Ou seja, necessário era afirmar a superioridade do Executivo sobre o resto das instituições republicanas.[13]
Um procedimento conhecido era a exigência de Perón para que cada membro do Legislativo assinasse uma renúncia em branco: objeto garantidor de disciplina e lealdade.
O regime era marcado, assim, por obras assistenciais e medidas autoritárias, em clara referência ao fascismo: grandes manifestações populares e forte presença visual do líder. A massa era impactada pelo espírito de participação no regime, que, por sua vez, era usada como demonstração de apoio. E assim, as mobilizações e concentrações eram comuns naqueles tempos, como forma de dominar o imaginário, manter a memória e dar ao povo a crença de que era participante da História. As festas cívicas, que antes se mostravam espontâneas, passaram a integrar o regime, passam a ser convocadas, com o apoio dos sindicados e dos meios de transportes. Comemorava-se o regime e expressavam a unidade da nação, ao mesmo tempo em que desafiava, de maneira metafórica, a oligarquia irritada e o entreguismo.
A justiça social, presente no discurso peronista mesmo antes de sua posse, consolida o "justicialismo" e marca a ideologia da mobilidade social.
"Os trabalhadores se integraram à nação pelas mãos do Estado" assevera Romero.[14]
A política externa na qual surge o Estado peronista começa a se inverter nos idos de 1949. O fim da guerra faz surgir uma nova ordem mundial, e a economia se recupera: os preços dos cereais e das carnes se normalizam e os mercados se contraíram, e, enquanto isso, as reservas acumuladas, consumidas de forma perdulária, se esgotaram.
Perón foi reeleito em 1951, com maciça votação – 64% dos votos, a totalidade dos senadores e 90% dos deputados.
Diante de um iminente caos político, Eva Perón colocou seu prestígio à prova, ao pedir a solidariedade dos ferroviários grevistas. Sem sucesso, viu crescer a rebeldia dos grêmios e deu-se início a uma era de repressão e mobilização militar contra os trabalhadores insurgentes.
A Igreja Católica também se mantinha reticente no apoio ao regime. A antes grande aliada do regime – a Constituição da República determinava inclusive que o Chefe do Executivo deveria pertencer àquela religião[15]– não tolerava mais o culto laico ao casal, em detrimento da cristandade. Além disso, a relação entre o Estado e a Igreja era minada com a interferência cada vez mais ostensiva da Igreja na política, chegando a considerar o Partido Democrata Cristão uma fonte de subversão.
O enfrentamento, cada vez mais acalorado, faz com que o regime proíba procissões, suprima o ensino religioso nas escolas, autorize a reabertura de casas de prostituição, prisão de clérigos, denúncias e comentários, emanados do governo, sobre a moralidade dos integrantes da Igreja, e, finalmente, a lei que permitia o divórcio.[16]
A cúpula católica argentina revida promovendo imensas procissões católicas, com cunho de aberta oposição ao regime.
Além dos trabalhadores, organizados ou não, e da Igreja Católica, o regime enfrentava os militares, incomodados com o flagrante autoritarismo do executivo, e com a interferência de Eva em assuntos de Estado, que chegaram inclusive, a promover uma frustrada intentona, que provocou uma reação do governo, causando a morte de aproximadamente trezentos civis no centro de Buenos Aires.
Em 1952, no dia 26 de julho, Eva sucumbe ao câncer que fora diagnosticado dois anos antes.
Em agosto de 1955, acuado, Perón apresenta sua renúncia com um discurso retumbante na Praça de Maio, culpando a oposição pelo fracasso da sua proposta de reconciliação.
No mês seguinte, em Córdoba, um levante militar organizado pelo General Eduardo Lonardi, apoiado pela Marinha, decreta o fim de uma era. Em 20 de setembro de 1955, Perón pede e recebe refúgio no Paraguai.
Já foi dito que o regime peronista era amparado pela coalizão de massas operárias e sindicais. Como encarregado da Direção Nacional do Trabalho, Péron se esmera para criar vínculos com dirigentes sindicais, se aproximando de todos eles, exceto dos comunistas, que após rechaçarem as propostas do governo, são severamente perseguidos e afastados de seus cargos por ordem do regime.
A aliança que se inicia entre governo e entidades sindicais vai ser fundamental para implementação e manutenção do peronismo. A adesão de tais entidades é ratificada por atos oficiais que beneficiavam os trabalhadores, em atendimentos às intenções dos sindicatos. Assim, é ampliado o regime de aposentadorias, férias remuneradas, acidentes de trabalho, as relações entre patrão e empregados são equilibradas com intervenção estatal e, talvez, a maior inovação: o Estatuto de Peão, abrangendo os benefícios urbanos aos trabalhadores rurais.
Vale ressaltar que antes de sua eleição, Perón já promovia a função de árbitro do Estado nas relações trabalhistas, em um panorama de controle administrativo e não judiciário. Não haveria litígios já que estes eram resolvidos entre governo e sindicatos.
Em 1943, logo após Perón ser designado para a Diretoria do Departamento Nacional do Trabalho, é criada, via decreto, a Secretaria do Trabalho e Previdência, tendo o mesmo Perón como titular. É neste momento, segundo Murmis e Portantiero, que se inicia a nova fase de relacionamento entre as diferentes forças – governo e massa sindicalizada, com a promoção de uma estratégia que tende a obter um pacto com o sindicalismo. [17]
Além dos sociólogos Murmis e Portantiero, Isidoro Cheresky, no artigo "Sindicatos y fuerzas políticas em La Argentina preperonista", e o historiador Tulio Alperin Donghi, no livro "La democracia de masas", vão atentar para a questão do comportamento do movimento operário como um todo, dentro da conjuntura vigente e pela análise específica da prática das correntes sindicais.
A questão que envolve as massas, as entidades sindicais e a adesão ao peronismo é motivo de controvérsia entre historiadores e sociólogos, já que o fenômeno do peronismo está diretamente ligado ao surgimento de novos grupos sociais no início do século XX.
O pioneiro na explicação da adesão ao peronismo foi o sociólogo Gino Germani, com a tese da transição da sociedade tradicional para a moderna.
A defesa de Germani sobre o tema teve grande impacto na América latina, berço do denominado "populismo".
Maria Helena Capelato, na sua obra "Multidões em Cena", corroborando a tese do sociólogo argentino, expõe:
"Na perspectiva da sociologia da modernização, o populismo foi caracterizado por um momento de transição de uma sociedade tradicional para a moderna (o que implica um deslocamento do campo para a cidade, do agrário para o industrial). No que se refere ao político, a teoria explica o populismo como uma etapa do desenvolvimento de sociedades latino-americanas que não conseguiram consolidar uma organização e uma ideologia autônomas. A ideologia classista deveria substituir a ideologia populista quando o desenvolvimento capitalista tivesse se completado na região. A política populista (mescla de valores tradicionais e modernos) correspondia ao momento de transição da sociedade tradicional para a moderna. Nesse sentido, o populismo foi visto como etapa necessária para uma sociedade desenvolvida e democrática." [18]
Germani explica que a base social do peronismo estava na população rural que se muda para as cidades durante a primeira metade do século XX. Seguindo sua explanação, a classe operária seria dividida entre uma "velha", composta de antigos contingentes urbanos, e outra, "nova", representada pelos migrantes do interior, diferenciadas por tipos de comportamento que variavam em função de fatores de ordem psicológica e social.
Os chamados "velhos" apresentavam uma consciência de sociedade em termos de classes, definindo-se socialmente por uma oposição aos interesses burgueses, além de estarem integrados ao trabalho industrial, com capacitação técnica, experiência profissional e relativa estabilidade empregatícia, numa flagrante vantagem em relação aos "novos".
E mais: possuíam um alto grau de conscientização política, com clara definição do ponto de vista ideológico em relação aos partidos.
Enquanto isso, segundo Beired, os novos contingentes advenientes do campo, marginalizados, inexperientes frente aos desafios da industrialização citadina, com valores sociais diferenciados, tendem a "adotar um sistema de valores orientados para a busca individual de vantagens econômicas e apresentar uma consciência que dividia a sociedade em termos de ricos e pobres e não em termos de classes." [19]
Continuando, vale ressaltar que o Estado e nem as organizações sindicais não amparavam os chamados "novos", sem oferecer condições de integração, deixando-os disponibilizados para serem manipulados por grupos dominantes – o próprio Estado ou uma elite alheia ao grupo marginalizado.
Germani acrescenta que não só a classe operária era dividida: as suas organizações também se encontravam cindidas. Os "velhos" se concentravam nos sindicatos já constituídos e mantinham uma constante oposição à política da Secretaria de Trabalho e Previdência, considerando que nestes aglomerados sindicais era forte a influência de socialistas, comunistas e anarquistas. Enquanto isso os sindicatos "novos", criados por integrantes do grupo marginalizado, omissos no que tange às posturas ideológicas definidas, vão apoiar o Estado e sua política redistributiva, promovida pelo peronismo.
Em suma, o contingente mais recente que se incorpora à indústria argentina nas décadas de 30 e 40, uma massa dita alienada e de fácil manipulação e sem experiência de luta de classes, vai constituir o elemento humano que possibilitará a germinação de idéias de conciliação de classes, defendidas pelo paternalismo de Perón.[20]
Os autores favoráveis ao regime discordam. Julio Mafud, em sua obra "Sociológia del Peronismo", informa o valor de uma chamada "virgindade política", que se verificava nos novos núcleos urbanos, bem como o próprio movimento peronista.
O que Mafud chama de "virgindade política" está diretamente ligado à falta de contato com velhos hábitos das estruturas partidárias e de qualquer compromisso com elas. E, segundo ele, é justamente neste núcleo que vai residir a energia vital para mover o peronismo, corroborado pelo surgimento de um espírito sindical totalmente novo.
Valer lembrar que Perón não estava preso a uma doutrina plenamente definida, o que, segundo ele, seria de todo prejudicial, pois inevitavelmente levaria ao sectarismo e à imobilidade política, quando precisasse lançar mão de recursos não previstos e extraordinários.
Perón teria reconhecido, para o autor citado, esses novos núcleos sindicais, que o apóia, concedendo inúmeras vantagens trabalhistas, o que só depois de muitos embates as classes operárias de outros países teriam conquistado. E mais, teria se tornado passivo e conformista com o regime, haja vista o caráter integracionista do peronismo – era o Estado representando o coordenador da sociedade, neutralizando a luta de classes dentro do sistema. O passo seguinte foi a forma pluralista que se verificava: uma participação heterogênea composta de operários, parte da burguesia industrial, as forças armadas e a igreja católica.
A consolidação das forças sindicais em torno do governo, que tinham em Perón o canal com as classes operárias e suas organizações, na iminência de eleições presidenciais, chega ao seu ápice com a fundação do Partido Trabalhista, de forte inspiração inglesa.
A organização do partido recém criado garantia o predomínio dos dirigentes sindicais na sua cúpula e tinha Perón como seu primeiro filiado e candidato presidencial, com uma tímida oposição e apoio do exército e da Igreja.
Como se observa, a concepção do estado Peronista revela uma complexa relação entre Estado e trabalhadores.
Depois da vitória nas urnas, essa relação vai se transformando de forma radical. Com a justificativa de que havia uma enorme quantidade de conflitos entre trabalhadores e radicais renovadores, Perón determina a extinção de diversos grupos que o apoiaram, entre eles o próprio Partido Trabalhista, onde velhos dirigentes aspiravam conduzir uma ação política autônoma, solidária com Perón, mas independente.
As mudanças ocorriam quase que sem resistência, e culminaram na criação do Partido peronista.
A ausência de oposição é explicada por Romero[21]pela solidariedade para com aquele com quem tornara realidade tantos benefícios aos trabalhadores, em detrimento de uma autonomia política.
A sindicalização se consolida, chegando ao seu ponto máximo no ano de 1950. A lei de associações profissionais garantia a existência de organizações grandes e poderosas – o regime sindical tido como unitário, no qual existiria um sindicato por ramo de indústria e uma confederação única, com força suficiente para negociar em planos paralelos com os representes patronais.
Em que pese a consolidação da atividade sindical, de maneira quantitativa, vale dizer que o aumento do número de organizações de trabalhadores serviu para pulverizar a atividade das entidades, enfraquecendo-as, e aumentando, como conseqüência, a dependência de tais grupos do aparato estatal.
Romero ainda acrescenta que a função dos sindicatos em relação às organizações de base era de controlar, reduzir o campo da ação independente, intervir nas seções insatisfeitas.
E salienta:
"A relação entre Perón e o sindicalismo – crucial no Estado peronista – sem dúvida foi complexa, negociada e difícil de reduzir a uma fórmula simples. Apesar da forte pressão do governo sobre os sindicatos e da decisão de controlar sua ação, esses dois elementos nunca deixaram de ser a expressão social e política dos trabalhadores. Sob esse ponto de vista, o Estado não apenas facilitava e estimulava a organização de classe e a cobria de benefícios, mas criava uma situação de comunicação e participação fluida e mesmo familiar, longe de parecer algo estranho. O Estado peronista, por sua vez, tinha nos trabalhadores sua grande força legitimadora, e reconhecia isso; e não de maneira retórica ou abstrata, mas com referência direta às suas organizações, aos quais concedeu um lugar de destaque." [22]
A trajetória de Perón não se limitava, obviamente ao apoio dos trabalhadores sindicalizados. Concomitantemente, ampliava seu relacionamento com os setores populares não organizados, mesmo fora da chamada população ativa. O que era feito, em grande parte, por Eva Perón e da fundação homônima.
A Fundação Eva Perón abarcava projetos sociais e incluía idosos, órfãos, entre outros, promovendo campeonatos esportivos e estudantis, realizava obras de cunho popular, como creches, escolas, centros hospitalares, distribuía presentes e alimentos. Tudo com o nome do casal em evidência.
O fim da década de 40 é marcado por uma crise econômica que assola a Argentina: há manifestações de insatisfação dos grupos que apoiavam o regime – os trabalhadores sindicalizados e o exército, e o Estado responde com o fortalecimento do autoritarismo.
As greves se tornam menos freqüentes, porém mais duras e com traços de forte oposição. A cada manifestação de insatisfação era seguida de forte repressão, que chega à prisão dos rebeldes, intervenção no organismo sindical, até a cassação da entidade, e sua declaração de ilegalidade.
A relação das classes trabalhadoras e suas organizações foi complexa, porém depois de consolidada, não era vista como perigosa para o regime. O que não acontecia com a Igreja e as forças militares.
A Igreja Católica teve grande influência nos países de colonização espanhola, haja vista a relação da metrópole com aquela entidade. Mesmo em pleno século XX, o Estado latino-americano que pretendesse se consolidar, neste caso, na Argentina, precisava do apoio da Igreja, já que era responsável espiritualmente por um rebanho considerável. E Perón sabia disso.
Foi celebrado, ainda que tacitamente, um acordo com a Igreja, em troca de apoio eleitoral para o regime. A manutenção do ensino religioso nas escolas e a concessão da direção das universidades a figuras relacionadas ao clero, além de reservar aos altos prelados um lugar de celebridade nos cerimoniais públicos foram moedas de troca para o apoio pretendido.
Mas não tardou em encontrar na Igreja Católica opositores, preocupados com o visível autoritarismo, com o esquecimento do governo no que tangia às propostas nacionalistas, e era vista com muita cautela a política democratizante das relações sociais, como, por exemplo, a equiparação entre filhos "naturais" e "legítimos".
Anos mais tarde, a relação do Estado peronista com a Igreja começa a se deteriorar até chegar a um estágio crítico. Se a equiparação entre filhos havidos dentro e fora do contexto familiar já incomodava, a permissão do divórcio foi um golpe mortal para o conluio, tornando-se uma inimiga em potencial. Antes da legalização do divórcio, já era visível o desagrado dos clérigos com o crescente culto à personalidade promovido pelo Estado. Além disso, eram preocupantes os avanços do governo na Organização dos Estudantes Secundaristas, num contexto de suspeitas de corrupção e, por outro lado, a interferência ostensiva da Igreja na política, que, do ponto de vista do governo, era tida como subversiva.
Em 1954 houve a consolidação da ruptura entre os grupos da Igreja e o governo. Em Córdoba, no dia do Estudante, houve duas manifestações, uma organizada pelos católicos e outra pela UES. Logo depois, novo confronto, uma procissão organizada pela Igreja comemorava do dia da Imaculada Conceição. Para Perón, uma afronta.
O contra-ataque foi imediato. Proibidas as procissões, supressão do ensino religioso e a citada lei que permitia o divórcio. Somam-se a autorização para funcionamento de casas de prostituição, prisão de sacerdotes e jornais ligados ao regime que alimentavam denúncias e comentários sobre a conduta e a moralidade de prelados e sacerdotes.
No que tange à esfera militar era visível o racha entre a Marinha e o Exército. A primeira, mais laica e liberal das forças armadas, chega a promover um levante contra Perón. O movimento fracassa por defeitos na sua execução e pala rápida intervenção do Exército, ainda leal ao Estado. Entretanto, tal lealdade era tida como uma camisa de força para Perón – ele se tornaria refém de seus salvadores.[23]
Incomodado com os ataques freqüentes à Igreja, o exército promove o fim da perseguição.
Diante do quadro de insatisfação das forças que alimentavam o regime a queda de Perón era iminente.
3. A propaganda peronista e a construção do mito
Além do uso da autoridade para a disciplina de forças, opositoras ou não, Perón se ancorava na utilização de sua liderança pessoal e intransferível, que dividia com a esposa Eva, e que foi cuidadosamente alimentada pela máquina propagandística.
Nas décadas de 30 e 40 a propaganda política adquire enorme importância e efetiva aplicação em âmbito mundial, com o avanço considerável dos meios de comunicação. O regime peronista, assim como o de Getúlio Vargas no Brasil, vai se utilizar desse meio, consolidado pelos nazistas na Europa.
"A propaganda política vale-se de idéias e conceitos, mas os transforma em imagens e símbolos; os marcos da cultura são também incorporados ao imaginário que é transmitido pelos meios de comunicação. A referência básica da propaganda é a sedução, elemento de ordem emocional de grande eficácia na atração das massas. Nesse terreno em que política em cultura se mesclam com idéias, imagens e símbolos, define-se o objeto da propaganda política como um estudo de representações políticas".[24]
O uso da propaganda política é exacerbado nos regimes autoritários, graças ao monopólio dos meios de comunicação, uma vez que exerce o controle rigoroso sobre as informações veiculadas, manipula as massas no intuito de obstar qualquer atividade espontânea, além de promover uma massificação da opinião política vigente.
A questão da manipulação das massas pela propaganda já foi analisada por diversos pensadores. Mas foi na Escola de Frankfurt, nas figuras de Theodor Adorno e Max Horkheimer, e também de Herbert Marcuse que o assunto foi mais destacado. Os filósofos analisam os efeitos da política de massas conduzidas, tendo a frente um líder carismático, e à sua disposição os meios de comunicação para manipulação política e da produção cultural, como forma de promover a alienação, a repressão individual e a criação de falsas necessidades.
Alessandra Aldé, em sua obra "A Construção da Política", trata da questão da alienação como um dos resultados da propaganda política:
"Alienação é um conceito clássico da filosofia política, que designa um processo de perda da própria identidade individual e coletiva, relacionada com uma situação negativa de dependência ou falta de autonomia".[25]
Aldé continua destacando que o conceito de anomia, elaborado por Durkheim, tem na idéia de alienação uma de suas vertentes mais importantes. As normas sociais que vão regular o comportamento, seja individual ou coletivo, deixam de ser reconhecidos como válidas, já que ausente o preceito ético da política. Ou seja, é uma alienação conduzida, orientada, e não mais espontânea. Por conseguinte, a anomia e seu desdobramento, a alienação, passam a ser a causa e não a conseqüência dos conflitos sociais, já que impede o bom funcionamento da sociedade, na sua forma coesa e ordenada. [26]
A propaganda política peronista se constituía na construção de imagens, frases, datas comemorativas, construção do imaginário, eventos de grande magnitude, execração dos inimigos do sistema, entre outros mecanismos.
O exercício do poder através de Perón, e suas práticas, coadunavam com a propaganda que produzia: ele teria, finalmente, livrado os argentinos da penúria após a crise mundial, do comunismo, do imperialismo, das oligarquias e dos velhos padrões de política.
A propaganda foi um importante instrumento de consolidação do regime, que dada a sua estratégia, cerceava a oposição, amparando os mais pobres, com um discurso paternalista, obras assistenciais, slogans confeccionados para a consecução do aparato peronista. A leitura obrigatória nas escolas elevava o casal Perón quase à sacralidade.
Enfim, a propaganda como forma de manutenção do regime estava presente nos rádios, no cinema, jornais, panfletos, cartazes, festas, discursos para multidões, e até mesmo em livros escolares. Um rol de representações, mitos e símbolos foram criados ou adaptados.
Entretanto, cumpre ressaltar que a propaganda somente vai surtir o efeito desejado, se encontrar uma massa disposta a ampará-la, a ser manipulada e orientada, ainda que inconscientemente. O que equivale dizer que discurso peronista não há de ser explicado somente pela manutenção e do controle social. O sucesso da ideologia dependeu da capacidade de se associar às perspectivas e experiências dos trabalhadores argentinos. Ou seja, o discurso era direcionado e dizia o que o povo queria ouvir.[27]
No caso da Argentina, a década infame, como ficou conhecida a época de atuação das velhas oligarquias, pelo domínio britânico, pelas fraudes eleitorais, criou em amplos setores da sociedade civil descontentamentos e uma ansiedade de solução dos problemas. O peronismo veio ao encontro dessas pretensões.[28]
A própria figura do povo argentino foi manipulada com uma reconstrução do Estado: Era a ele dirigido o discurso, e identificado com o trabalhador, gerava a expectativa de construtor de uma nova Argentina, responsável pela história e de grande importância para o trabalho do líder Perón.
Ao mesmo tempo em que o povo se identifica com o regime, a figura de Perón é construída no sentido de conferir a ele a aura de líder carismático que as massas devem seguir.
Os primeiros afetados pela censura política peronista foram os jornais. Eleito, Perón, não mediu esforços para exterminar a imprensa opositora. De fato, não havia espaço para periódicos que expressassem oposição ao regime, mas só para aqueles que pertencessem à máquina paraestatal de produção e controle da propaganda, ou que estivessem in totum coadunados com o novo regime.[29]
Vale ressaltar que a pressão para desarmar a imprensa escrita era exercida, principalmente, através do controle do fornecimento de papel. Jornais de grande status como "La Prensa" e "La Nación" tiveram suas páginas reduzidas enquanto outros, de claro apoio ao regime, aumentavam de tamanho e circulação.
Outra forma de pressionar os periódicos opositores era o exercício de fiscalização ferrenha de órgãos do governo. Foi o caso de "La Nación" em 1949. O jornal havia denunciado tortura, exercício arbitrário do poder de polícia e presos detidos sem provas. Foi o bastante para que a contabilidade do jornal fosse vasculhada, multada severamente, além de mais limitação de papel. O resultado foi o apoio do jornal já no segundo mandato de Perón.[30]
O rádio estava no auge nos anos quarenta e alcançava as populações mais distantes, independente, muitas vezes, da renda do cidadão. E foi devidamente utilizado pela propaganda do regime, tal qual o fora na Alemanha e na Itália de Hitler e Mussolini.
O controle político do rádio não tardou. Já em 1943, as rádios só veiculavam com orientações ditadas pelo regime, com regulação da propaganda, eliminação de expressões que pudessem macular a imagem do governo e suas obras. A ordem era mostrar a Argentina feliz, próspera e com um grande futuro pela frente.
E mais, a nova diretriz política obrigava um cadastramento rígido de jornalistas artistas e escritores.
No que tange ao rádio, cumpre ressaltar o papel de Eva Perón neste meio de comunicação de massa. Eva era atriz de radioteatro e sabia como se utilizar do instrumento. Criou seus próprios programas e escrevia seus próprios textos: "Para nós, ele é Deus (...) não podemos conceber o céu sem Perón. Ele é nosso sol, nosso ar, nossa água, nossa vida" eram frases comuns em seus programas.[31]
A cultura, como bem comum, segundo o próprio Perón estava resumida aos seguintes elementos: história, idioma, culto a família, poesia popular, folclore, danças do povo e devoção à pátria e aos seus elementos ditados pelo regime.
Ou seja, a arte é recusada na sua forma mais pura, assim como a existência individual do artista e seu trabalho. O processo de submissão da cultura e dos artistas se justificava pelos valores nacionais. Para Perón, o naufrágio da cultura de um povo acarretava na perda da identidade nacional.[32]
A produção cinematográfica do regime peronista não se diferenciou de outros segmentos produtores de propaganda já citados. O cinema já exibia certo êxito nos anos 30. Os mesmo espectadores do rádio, ou seja, as classes menos abastadas, eram fiéis freqüentadores das salas de cinema que exibiam filmes nacionais, já que as classes superiores consideravam o cinema "criollo" uma expressão pobre da indústria. Sendo assim, o cinema nacional foi abarcado pela política, obrigando a exibição de películas argentinas, de cunho nacionalista, em todas as salas de projeção. Ainda assim, a censura atuava no cinema. Argumentos eram recusados ou modificados, como foi o caso de "Deshonra", que tratava das prisões femininas. Não era permitida a veiculação de cenas que mostrassem pessoas desamparadas ou sofredoras, e tinham que exibir um mundo argentino repleto de felicidade.[33]
O apoio financeiro do regime às produções nacionais não promoveu uma alavancada no cinema argentino. Aumentava a quantidade de filmes nacionais, mas a qualidade caía consideravelmente. E o cinema sem público não se sustentou, fazendo quebrar muitos estúdios.
A justiça social foi a tônica da propaganda peronista. Já foi dito que Perón nas suas atividades como secretário de Trabalho se empenhou na política trabalhista, alcançando imensa popularidade entre os trabalhadores, garantindo sua vitoria nas urnas. No seu primeiro mandato consolidou as bases da chamada "doutrina justicialista".
A doutrina justicialista tinha preocupação em delinear um novo rumo, a despeito do momento internacional, consolidando-se na conhecida "terceira via": uma alternativa para o embate entre capitalismo e comunismo. Perón defendia essa concepção sob a alegação de que representava a combinação harmônica e equilibrada das forças do Estado moderno. De forma a não vê-las ruir, tinha como proposta um Estado no qual o capital e o trabalho se combinariam para alçar a construção de um destino comum.
Neste diapasão, as representações da "Terceira Posição" associada à "Doutrina Justicialista" são inúmeras e significativas no material da propaganda política, em especial o emanado do serviço gráfico estatal.
Nos cartazes, livros, cartões produzidos pelas gráficas do governo, eram comuns figuras tendo ao fundo montanhas, pontes, trabalhadores, símbolos religiosos, objetos que irradiam a justiça social. E mais, frases com dizeres que enfatizavam a doutrina: justiça, solidariedade, confiança, patriotismo, igualdade e muitas outras.
Tudo tinha uma explicação.
Capelato informa em sua obra:
"Perón, ao enfrentar o desafio de transpor as montanhas, iniciou o processo de condução do povo argentino à ascensão que tinha como ponto culminante a realização de uma "Grande Argentina".[34]
E mais:
"A Terceira Posição, sinônimo de justicialismo, além de proporcionar a felicidade do povo argentino, constituía uma esperança de salvação para o mundo, quando imitasse o original modelo peronista. A hegemonia do país dependia, pois, da obra de justiça social".[35]
O peronismo se utiliza da mitificação do líder e sua esposa para alcançar as emoções das massas, que via o casal como "pais da pátria", os "salvadores" e condutores de um mundo melhor, sem injustiças.
A construção do mito foi estrategicamente utilizada pelo regime e que permanece até hoje no imaginário coletivo argentino.
A massificação da propaganda, desde a idade mais tenra, consolida o mito e o alça, como pretendiam, a uma esfera sagrada, de louvação e adoração.
A morte de Eva Perón, em 1952, foi o ápice da desolação de um povo que se tornara órfão. O funeral dura semanas, com centenas de milhares de seguidores do féretro, que obriga o governo a acionar a saúde publica para providenciar roupas de frio, alimentos e material de higiene. Deixa marcas extremas na memória, seja pelo luto oficial, seja por manifestações espontâneas.
O governo se aproveita ao máximo da perda de Eva, chegando a colocar à disposição da população caixas postais para que se depositasse cartas a Eva, já falecida.
A cartilha "Privilegiados" [36]apresenta a nova face de Eva, que alcança a imortalidade:
"Día de duelo.
El 26 de Julio murió Eva Perón.
El mundo entero lamento su muerte.
La Jefa espiritual pasó a la inmortalidad.
Jamás será olvidada. "[37]
3.1. A didática na propaganda peronista
O regime tinha outro alvo além dos trabalhadores adultos: as crianças mesmo que em processo de alfabetização.
Para explicar de maneira didática o justicialismo aos menores, os textos escolares, organizados em cartilhas emanadas do governo, abusavam ainda mais das metáforas.
Nas cartilhas de alfabetização, os trabalhos mais comuns eram os que mostravam uma família, pais e filhos, trabalhando no cultivo de um jardim e com os dizeres: "Todos trabalham. Deus mandou trabalhar. Perón trabalha. Papai trabalha. Eu trabalho. Todos trabalham. Nosso presidente é o primeiro trabalhador."
Os professores eram doutrinados pelo regime, os padrões de ensino deveriam seguir ordens da Secretaria de Educação, que escolhia inclusive os livros a serem lidos. "La razón de mi vida", autobiografia de Eva Perón, tornou-se leitura obrigatória em 1952.
Vale ressaltar que o apelo dirigido às crianças em fase escolar foi crucial para o aumento da alfabetização, além da absorção da proposta nacionalista.
De fato, além de aprenderem as primeiras letras, as crianças eram abarcadas por um sentimento de integralismo nacional, amor á pátria e ao seu líder, jamais visto em outra era.
As cartilhas preparadas pelos órgãos responsáveis tinham a preocupação de aliar o aprendizado ao justicialismo. As cartilhas representavam o ideal de uma nova Argentina, e, com aparência de escritas à mão, figuras que encantavam eram ansiosamente esperadas pelas crianças.
Não só aprendiam a ler e escrever, mas eram influenciados a entender os números do país, num espetacular exercício de multidisciplinaridade, aliando matemática, geografia, história, entre outras. E assim, tinham informações sobre as horas trabalhadas, número de beneficiários por determinada obra pública, valores referentes à exportação, número de transfusões de sangue, entre outros. E, não menos importante, campanhas de saúde pública e regras de higiene.
O caráter didático não se reservava aos menores, mas também a toda a população, que se inteirava, através da propaganda, da construção do Estado.
Eduardo Lópes, na obra "Perón Mediante", ratifica:
"Una atención especial debiera prestarse a la didáctica infográfica del régimen. A diferencia de la retórica persuasiva de carteles y avisos, se desarrolló (...) un verdadero sistema de mapas visuales de información para los trabajadores sobre la marcha de la gestión del Estado. La lectura habitual por parte de éstos del sistema infográfico, de um importante grado de arbitraridad formal, fue consecuencia – possiblemente – del alto grado de alfabetización alcanzado durante el gobierno peronista. La intención de las infografías era la de transmitir conocimiento sobre los progresos del período, reduciendo las posibilidades interpretativas, através de un lenguaje verbal-visual, que se basaba em la jerarquización de la información y una relativa abstracción em su representación." [38]
Perón considerava a educação uma determinante de felicidade para o povo. Um povo instruído, não enganado, não é abandonado à própria sorte, dá preparo físico e moral para o embate do cotidiano.
O discurso do líder argentino deixava claro que a educação deveria ser pautada nos princípios do justicialismo, tendo com ênfase a justiça social, altruísmo, verdade, bem comum, tradição, patriotismo, cuidado com a saúde, educação sanitária, física, moral, artística, obedecendo aos parâmetros regionais.[39]
3.2. O sistema da dádiva e a construção do mito
A construção e manutenção do mito estão fixadas na cultura e no imaginário social ligada às figuras de dívida e gratidão. Seria pífio argumentar que tal admiração do líder fosse produto, tão-somente, da propaganda oficial. A posição que o peronismo ocupa na história argentina ultrapassa os limites do posicionamento oficial apresentado pela propaganda.
A literatura antropológica, em especial a elaborada por Marcel Mauss, destaca o "regime da dádiva", que observara em sociedades ditas arcaicas. O antropólogo destaca que a "coisa dada" tem um espírito[40]e que com ela vai parte do doador. Nas sociedades estudadas verificou a existência de um tripé: a doação, a aceitação e a retribuição.
A transmissão da coisa cria um vínculo jurídico que alcança a teoria geral das obrigações. Mas, no caso em tela, não se trata de obrigação de direito subjetivo, mas sim de ordem moral, o vínculo das almas.
Mauss destaca em sua obra "Sociologia e Antropologia":
"Compreende-se logicamente, nesse sistema de idéias, que seja preciso retribuir a outrem o que na realidade é parcela de sua natureza e substância; pois, aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma; a conservação dessa coisa seria perigosa e mortal, e não simplesmente porque seria ilícita, mas também porque essa coisa vem da pessoa, não apenas moralmente, mas fisicamente e espiritualmente, essa essência, esse alimento, esses bens, moveis ou imóveis, essas mulheres ou esses descendentes, esses ritos ou essas comunhões, têm poder mágico e religioso sobre nós. Enfim, a coisa dada não é uma coisa inerte" [41]
E como tal, animada a coisa, deve retornar ao seu lar de origem, ou que se produza um equivalente que a substitua. E mais, deve-se retribuir além do que foi recebido. O retorno é sempre mais caro que a doação.
Neste diapasão, o "sistema da dádiva" se apresenta na política, e em especial nos regimes com consolidação mítica, como no caso do peronismo.
Na obra "Prisioneiros do Mito", Jorge Ferreira, aponta:
"Mesmo que o processo de racionalização do mundo tenha transformado tudo em mercadoria, passível de compra e venda no mercado livre, o "regime da dádiva" ainda sobrevive nos dias atuais. As relações pessoais de amizade, amorosas e, sobretudo, familiares são regidas predominantemente pela dádiva e não pelas regras do mercado dessacralizado. Mais ainda, inúmeros movimentos políticos no mundo contemporâneo recorreram à lógica das antigas sociedades para o estabelecimento de pactos sociais e compromissos políticos.[42]
Obviamente com adaptações, o sistema citado, subtraindo-se a espontaneidade da doação, característica da relação arcaica estudada por Mauss, o peronismo, deu, foi aceito e retribuído.
Tal retribuição foi vista no apoio dado nas urnas, no funeral de Eva, na sua legitimação como senhor do governo, nas medidas autoritárias tomadas e acatadas em nome do regime.
Conclusão
A pesquisa sobre qualquer regime político não se faz por generalização. A idéia de taxar como populista, socialista ou democrata encerra uma tarefa de alocar fatores que englobem as dinâmicas social, política e econômica, de forma a evitar uma limitação provocada pelo rótulo de uma ideologia.
A proposta política de um governo, ainda que se utilize da coerção, esmagamento da oposição e de uma máquina propagandística que veicule sua ideologia com claro intuito de alienação não tem caráter efêmero, mas também não se sustenta por muito tempo.
Na década de 40, com o mundo em guerra, as doutrinas nazifascistas e comunistas gerando adeptos e opositores ferrenhos, haja vista a crise do capitalismo, a Argentina encontrou em Juan Perón a figura que apresentava uma terceira posição, uma proposta de salvação, justiça, direitos para as classes menos favorecidas em detrimento das oligarquias que dominavam o país na chamada década infame, proporcionada pelo conluio entre o governo de Buenos Aires e o de Londres.
Ainda que com admiração dos regimes ditados por Hitler e Mussolini, depois de 1945 Perón disfarça o tom fascista, sem se aproximar de Stálin e mantendo distância dos EUA. Mas a conjuntura econômica da década de 50 vai aproximá-lo timidamente de Washington.
O discurso de Perón, atacando as classes superiores compostas por grupos oligarcas, é direcionado aos trabalhadores e carentes de bens que durante décadas foram assolados pelos governos que o antecedeu.
A presença de "duas Argentinas", como explicação sociológica para o fenômeno peronista é de grande aceitação. Uma, advinda do campo, sem experiência industrial e muito menos de organização, discriminada por outra, já sindicalizada e consciente de direitos e garantias sociais, formam a massa que vai atender aos preceitos do peronismo.
Além dos trabalhadores, as mulheres e crianças vão ter papel fundamental na adesão do regime. O trabalhador é alçado a grande empreendedor, co-responsável pela "Nova Argentina" que vai surgir com o novo governo, e Perón se coloca como o grande salvador da pátria.
Ao lado de seu discurso pessoal, um grande carisma e uma fantástica máquina de propaganda oficial trataram de consolidar o regime, baseado no massacre da oposição, censura e alienação.
O trabalho da propaganda, a criação do mito, a sustentação do casal "Perón e Eva" como alegoria humana encarregada da nova Argentina foram de grande importância para manipulação das massas que apoiavam o regime.
De fato, o assistencialismo estava presente gerando renda e bens móveis para os mais pobres, mas as extravagâncias do casal e a falta de apoio de grupos internos, muitos obrigados a manter financeiramente o regime, e externos, principalmente norte-americanos, aliados à conjuntura internacional minaram a proposta do justicialismo.
Ainda que se tentasse promover a manipulação do imaginário em torno da proposta peronista desde a alfabetização, o regime não se confirmou já na primeira metade da década de 50.
A propaganda e a coerção funcionaram temporariamente. Mas, como dito anteriormente, é necessária uma adesão, um campo fértil para ascensão e manutenção do regime. Perón encontrou isso, mas não se consolidou.
Os meios de comunicação não são todo-poderosos, e Perón teria admitido em 1955 que, mesmo tendo a totalidade dos meios à sua disposição, foi derrotado. Há de se concluir que a propaganda política só tem o condão de reforçar as tendências já existentes na sociedade, não tendo que se falar na onipotência dos meios de comunicação para manipulação do consciente social. A opinião pública não significa a opinião única, e durante todo o regime Perón teve que lutar contra seus opositores.
Entretanto, não se pode desprezar a importância da propaganda, ainda que sem unanimidade de apoio, já que esta foi, sem dúvida, um dos fatores que sustentavam o poder.
O peronismo foi um fenômeno singular. Só poderia ter ocorrido na Argentina das décadas de 40 e 50, e em nenhum outro lugar. Os fatores que corroboram sua ascensão e manutenção são inerentes ao sistema que vigorou. A sociedade sofria, tinha necessidades, materiais e espirituais, e Perón, juntamente com a outra metade do justicialismo – Eva, alcançou corações e mentes, saciando a sede do povo, fazendo-o ser querido e amparado, em troca da adesão ao regime.
A manobra psicológica promovida pela propaganda, que sacralizava o casal governante foi acatada pela sociedade civil, sem assistência e carente, enquanto era hostilizada pelas elites, pela igreja e por segmentos militares.
Vale ressaltar que a propaganda oficial propiciou um aumento significativo nos índices de alfabetização, levando, através das cartilhas, o amor às letras, ao país, ao líder.
O peronismo ainda se encontra presente na Argentina. Longe daquele propalado por seu criador, é muito mais que uma simples lembrança. Ainda se encontram aqueles que se dizem "peronistas", muito embora o Partido Justicialista, que elegeu a atual presidência, não tenha nenhuma semelhança com a proposta popular de Perón.
A mesma Madonna que foi hostilizada por parte do povo ao interpretar Evita no filme homônimo, na década de 90, foi ovacionada no maior estádio de Buenos Aires interpretando "Don"t cry for me Argentina", do musical de Lloyd e Webber, no fim de 2009.
A sociedade é um sistema complexo de interpretações e reações. A década de 40 proporcionou o surgimento do peronismo e foi ancorado pela propaganda. A mídia que hoje ainda atua de forma contundente, criando mitos, símbolos e heróis, demonizando a oposição, deixando pouco espaço para a uma reflexão política mais crítica por parte do cidadão, deixa lacunas que levam o eleitor à incredulidade e rejeição, até chegar a uma concepção madura, que vai permitir a reavaliação da ideologia e demonstrar seu desagrado nas urnas.
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Autor:
Alcemar Oliveira
alcemar.oliveira[arroba]gmail.com
Abril 2010
Trabalho de conclusão do curso de Pós Graduação Lato Sensu em História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense – Turma 2009
Professor Orientador: Norberto Ferreras
[1] Atualmente o Partido Peronista é denominado Partido Justicialista, sendo certo que o chamado "justicialismo" era uma das bandeiras do regime de Perón.
[2] A origem do peronismo é tratada por estudiosos das áreas de História, Sociologia, Antropologia e Política. Entretanto, neste trabalho apresento posições de cunho sociológico, em especial elaboradas por Gino Germani e Miguel Murmis e Portantiero.
[3] Em que pese a farta inclusão do peronismo aos regimes chamados "populistas", este trabalho não pretende adentrar em tal discussão, considerando que não há como concluir que os regimes diversos apreciados na América Latina do século XX, cada um com suas particularidades, relações sociais e internacionais, sejam abarcados com uma simplista denominação.
[4] O "sistema da dádiva" foi a grande colaboração de Marcel Mauss para a Antropologia, que, associada à idéia de mito, levanta a questão sobre "dar, receber e retribuir", nos mais variados segmentos da sociedade, das nucleares aos governos, das ditas primitivas às mais modernas.
[5] POZO, Jose Del. História da America Latina e do Caribe. Petrópolis. Vozes. 2009. p. 163.
[6] ROMERO, Luis Alberto. Historia Contemporânea Argentina. Rio de Janeiro. Jorge Zahar. Rio de Janeiro. p. 91.
[7] CAIMARI, Lila M. "La Era Peronista (1943-1955)" in "Nueva História de la Nación Argentina. Buenos Aires. Planeta. 2000. p. 299.
[8] BEIRED, Jose Luis Bandicho. Movimento Operário Argentino. São Paulo. Brasiliense. 1984. p. 79.
[9] ROMERO. Op. cit. p. 99.
[10] ROMERO. Op. cit. p. 102.
[11] Idem. p. 104.
[12] Referência a Lázaro Cárdenas, governante mexicano que rompia com a concepção liberal de organização estatal.
[13] ROMERO. Op. cit. p. 106.
[14] Idem. p. 112.
[15] DECHANCIE, John. Perón. São Paulo. Nova Cultural. 1987. p. 59.
[16] ROMERO. Op. cit. p. 123.
[17] Murmis e Portantiero. Estudos Sobre as origens do peronismo. Brasiliense. São Paulo. 1973. p.79.
[18] CAPELATO, Maria Helena. Multidões em cena. Rio de Janeiro. Mauad. p. 24.
[19] BEIRED. Op. cit. p. 67
[20] Idem. p. 68
[21] ROMERO. Op. cit. p. 103.
[22] Idem. p. 104.
[23] ROMERO. Op. cit. p. 124
[24] CAPELATO. Op. cit. p. 39.
[25] ALDÉ. Op. cit. p. 53.
[26] ALDÉ. Op. Cit. p. 54
[27] CAPELATO. Op. Cit. P. 214
[28] CAPELATO. Op. Cit. P. 56
[29] Idem. p. 82
[30] Idem. p. 92
[31] DECHANCIE, John. Perón. Os Grandes Líderes. São Paulo. Nova Cultural. 1987. P. 50-52
[32] CAPELATO. Op.Cit. p. 102-103
[33] Idem. pp. 110-111.
[34] CAPELATO. Op.Cit. p. 202
[35] Idem. P. 203
[36] "Privilegiados" era o nome de uma cartilha de alfabetização infantil. Para Perón, na Argentina, somente as crianças teriam privilégios. O texto constante na cartilha impressa pela gráfica peronista era o seguinte: "Privilegiados, únicamente serán los niños - dijo Peron. Privilegiados - dicen que somos porque vivimos llenos de amor."
[37] Texto constante da ilustração da página 67 do livro "Privilegiados".
[38] Op. cit. p. 19
[39] Idem. p. 248.
[40] Para Mauss, a coisa dada extrapola o conceito físico, alcançando o metafísico, o espiritual, mais importante que a "coisa" em si. O "espírito da coisa dada" tem o nome de "hau" nas sociedades pesquisadas por Mauss.
[41] MAUSS. Op. cit. p. 200
[42] FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito. Cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil. Rio de Janeiro. Mauad. 2002. pp. 244-245
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