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O Amor Desaforado (página 2)

Igor Zanoni Constant Carneiro Leão

tudo que guardei dela

foi um lenço emprestado

para eu assoar o nariz

e que não quis de volta

30/11/02

Bem menino, plantei não se como

Um pé de pimentão no jardim.

Fui hábil, precoce, utilitário

E olhava comovido minha fazenda prosperar,

Que logo esqueci por uns Karman –Ghia

De plástico que nem abria as portinhas

 

24/11/02

Kali

Para Estelita

A malícia se inventa

Instintivamente

Se é preciso viver

Mas eu como posso não penso nisso

Procuro ser fiel

Às interpretações que vou descobrindo

Vejo assim tudo frágil e violento

O empresário e o operário

O padre e o fiel

Deus e sua criação

Meu desejo que bate no sonho

Na pulsação

Na ousadia e na validez

Vejo em tudo o retorno

Eterno como os encontros

Sempre os mesmos e sempre outros

Eterno como a memória reinventada

Como os novos beijos buscam os velhos

Como o saldo permite

Nova dívida

 

23/11/02

Nos bons poetas mal se percebe

O lavor duro

Que extraia com paciência do mais banal

O mais obscuro

E se contém adequado

Como convém

Mesmo se de lágrimas lavado

E com desvelo deixam sobre a estante

Sua herança

Seu dizer seu explicar

Que gosto têm as fontes do oceano

Que para sabê-lo são inúteis

Bússola e sextante

É preciso partir desarmado

E sem saudade

Deixar o Tejo

 

15/11/02

Escove os dentes com Sorriso

Enxágüe com Plax

Dê um beijo romântico

Essa doce invenção burguesa

 

16/11/02

Bananeira que não há

Profundidade do azul

Da flor do maracujá

Que havia

Havia

Deixou de haver

E já não há

16/11/02

É sobretudo assim:

Não quero mal entendidos

Que você busque as suas lágrimas

E se lambuze

Eu fico entre as marés

Dos almoços e das jantas

Dos tempos bons e das chuvas

Tudo tende à entropia

Dizia meu pai o científico e major

Daí a necessidade dos arquivos e dos panos de prato

Hoje não beijo amanhã não beijo

sossego o amor é isto

Não há nada mais bem repartido

Que o bom senso

O meu vem depois de duas doses

Não dessas que o garçom extorque

Mas não se extreme

14/11/02

Maria Aparecida

Como pôde tão menina e compadecida

Ensinar a este menino

O meu próprio amor masculino?

Por quê de sonho inda hoje

Quando estou tão carecido

Com seus olhos baixos como se não visse

O que estava a teus pés

Minhas dores minhas rezas mudas

Como soube dizer-me o que eu não por mim

Não descobriria

Neste mar que se abria

Continuava

E não acabava?

A ti reza em mim o que serei

Que do que tenho sido salvei

Por teu amor mas inconcluso amor

09/11/02

O menino põe o dedo machucado

No copo de água com sal

As lágrimas salgadas descem pelo rosto

E aliviam a seu modo a dor

Com elas vem o ranho

Que também tem um gostinho de sal

E que o menino gosta de lamber

A mãe bem diz: logo passa

Mas limpe esse nariz

08/11/02

 

O rio Atibaia deságua no Paraguai

Porque Campinas dista minutos de sonho

De São Luis de Cárceres

Assim é minha pessoal geografia

Nada descritiva tudo explica

O irmão que se foi

A mulher que se foi

A mâe que se foi

O pai que se foi

Meu Deus isto é uma procissão

Que o Senhor encaminha

Pelas ladeiras do Bonfim da minha juventude

Minha primeira casa

Alugada

Meu primeiro filho

Que anunciei à madrugada:

Corram que é hora!

Hora de todos

Se felicitarem esquecerem o café

Não

se esse cheiro de hospital

Mas também o rio era estranho

Passavam peixes

Passavam barcos

Passavam os mais estranhos presságios

Na minha imagem boiando na água

Nenhum tão estranho como a vida

Que é assim tão diversa e tão mesma

07/11/02

Quantas noites passei em pé

Você com suas cólicas

Eu deixando sua mãe dormir

Porque ela está tão cansada

Cansados estamos todos

Mas felizes

A vida agora aponta

O que virá?

Hoje sabemos

E minha vida está ao meio

Não quero mais da vida

Quero você seus irmãos

Enquanto puder dar minhas aulas

Insolentes

Mais cabelos longos e grisalhos

Minha insistência em usar jeans e tenis

Em usar ônibus

Você não sabe

Mas eu carioca

Ir à missa foi uma transgressão

Rompi com o que pude nisso sou bom

A todos guardo

Não no silêncio inútil

Nas palavras frágeis

01/11/02

1

O amor corrói os óculos

Cerra os ouvidos

Multiplica em vão as palavras

Torna os gestos cada vez mais imprecisos

O amor dilui a paisagem

Faz do lobo um lobo

Tudo dissimula

Tudo trai

Esquece os anos

Lembra as dores

Esquece as mesmas dores

Culpa ou justifica

Segundo a conveniência

Para o amor até o dízimo da couve

É essencial à lei

O amor é generoso

Quando joga verde

E esquece que a primavera

Vem quando quer

Que ela também é arbitrária

01/11/02

Que seja querido

Que seja próximo

Que seja possível

Mas que não seja

Necessário

01/11/02

1

Na terceira fila de prateleiras

À esquerda

Na vetusta biblioteca do departamento de economia

Encontramos a primeira edição

Dos Sermões de Vieira

E um pouco além consultando uma passagem

Da Sagrada Escritura

O padre Vieira

2

Não falamos de alegrias vividas

Nem dos maus tempos

Partimos nossas vidas

E a sós cada um a seu modo

Não vivemos

31/10/02

3

O afeto é irreprimível

Podemos fingir transformá-lo

Em mil borboletas de papel dourado

O afeto fica em nós

Duro requerente

O afeto é este

Mas você sabe

4

Insuportavelmente é o mundo

Mais vasto que o meu coração

Não conta o vinho

Não conta o amor

Não sou poeta

Sou raramente zen e mesmo aí

Mais propriamente triste

01/11/02

Tão inquieto me faço

Se estou ou não contigo

Que quando te vejo a leste

A oeste te vejo se pondo

Se com a direita apontas o sul

Quero também o norte e a esquerda

E se no céu te colocas

Na terra ao teu lado vou nos deitando

26/10/02

Todas as palavras estão manchadas de desejo

Anzói scopo de dadosentando abolir o acaso

A palavra que nomeia o mais frio e o mais distante

Guarda a paixão do Titanic

Incluindo as próteses glamourosas inspirando

O susto e o beijo no amor que súbito

Se faz único e verdadeiro

Até que outra palavra eficaz surja do abismo

Cria a luz para não errarmos tanto o caminho

26/10/02

Esse poema assovio

Não serve como poema

O que é ótimo

Nem chama passarinho

Nem brinca com moça bonita

É inútil nesses casos

O que já é mais grave

É um poema que nem mata nem cura

Mas consola

É um poema digamos homeopático

23/10/02

Lira dos Quinze Anos

Eu queria condensar

Na química terrena tão banal

De que se fazem os amores que não terminam

E os vinhos excepcionalmente bons

Mais: o seu relaxamento atento

A sua inquietude aceita e resolvida

E a noite tão rara de estrelas em Curitiba

Num verão curto que serve o gosto

Do verão de Fortaleza e de Cuba

Queria poder deixar de ser tão político

Tão poético tão religioso

Não andar também com o fio de prumo nas mãos

Tocando os muros

Deste vasto arrimo

Queria poder viver sem esperanças

E não precisar tanto da tua pele

A lembrança

23/10/02

Auto-ajuda

Por que fiquei tão aflito

Por que a raiva quase me perdeu?

Será que a mim também

O mundo tornou intolerante

Será que me cabe escrever

O obituário dos imbecis

Que aliás vivem

E passam bem?

Oração

Lembra Pai do dia em que nos fizeste

Que nos predestinaste o mundo

Como lar

Não como desterro

E aliás só temos o mundo que nos deste

Outro não criamos

Daí esse desespero

Que beira o pecado

De tantos pecados

Que perdem o mundo

E se perdem juntos

16/10/02

Vindo um tempo de requerer-se a companhia

Dos que já não podem acompanhar-nos

Não porque não o desejem os que podem

Mas por não partilharem as mesmas intrigas

Ciúmes questão de opinião

Por não estarem aqui antes mas

Vindo depois e aos poucos por gerações

Já a cidade dos mais velhos ainda presentes

Pôde e pode chamar-se São José dos Ausentes

12/10/02

Às sete chega o leite

Às sete e meia sai o pãozinho

Às vezes estou tão só

Mas lembro: casando sara

E às oito tomo um lanchinho

14/10/02

Você, tão leve e tranqüilizadora

Longa noite longo inverno

Entre as canções pagãs fino- ugrianas

E a neve que não pára de reafirmar

A pureza do branco e a inexistência de horizontes

Nas estepes siberianas

Que nunca conhecerei

14/10/02

Toda flor é importante

Senão para você, que é amarga,

Para a borboleta que dela se mantém

E nesse exercício faz nascer outras flores

15/10/02

Conversa íntima

1

É melhor falar

Das coisas caras e importantes

Dando voltas e mais voltas

Mentindo por meias verdades

Ou compulsivamente

Deixando que a concha de uma palavra

Calculadamente dita

Esconda a carne que quer viver

E que em nosso cerne vive

12/10/02

2

Por essas coisas tão caras

Estamos ora unidos

Ora separados

Sem saber quando

Por quanto tempo

Culpando a vida

É certo: culpemos a vida

E bola pra frente

12/11/02

Tiago

Quando eu quero falar com o Tiago

Em primeiro lugar eu lembro a grana

Que ele me emprestou e não paguei

Depois o número de livros discos filmes

Viagens vinhos cujas pistas ele me deu e foram ótimas

Em seguida lembro de todas as pessoas que o amam

E da quantidade de classe da mulher que ele tem

Esses números juntos formam o do celular do meu amigo

Que no momento está em Marte dando um rolé

09/10/02

Poemas queimados

Nas desilusões do amor

Cedo se foram borboletas negras

Por que o amor não era azul?

11/10/02

Quando a tempestade está próxima

E não há um pára-raio à vista

Quando se está longe de casa e é tarde

Mas não há mais vales-transporte no bolso

Quando se quer uma companhia tranqüila

Com a qual se possa conversar sem constrangimento

Quando aos cinqüenta anos se quer companhia

Para fazer umas asneiras próprias dos vinte

Quando se quer falar de Deus

Sem dar nem ouvir sermão

Quando se quer falar de amor

Sem ser julgado ateu

Quando não se tem motivo algum para ficar só

(é preciso um bom motivo para isso)

É ótimo encontrar você Anna Luísa

09/10/02

Deus está tentando terminar o céu

Você não quer suar um pouco

E ajudar pegando uns tijolos?

07/10/02

Quantas balas precisarão ser perdidas

Antes que uma fure o seu jornal

Quantas pessoas precisarão sangrar

Antes que teu sangue aflore

Quantos pobres oram do seu último recurso

Que você ignora

Quantos precisarão orar

Até que você mesmo se sinta pobre

E ore

Quantas vezes você desejou sua mulher no último ano

Em que noite você ficará acordado

Com a mais lúcida integral positiva

Salvadora dor de cabeça

07/10/02

Por que você pisa tão leve

Abafando o tamanquinho no tapete

E prende, austera, o cabelo?

Por que serei tão leve

Atrás dos óculos que gravam

A impressão do entendimento

Mas também de distância

Distância que eu meço em braços

Mas que não sabem nadar

Mas você me assegura

Aqui é um porto

Provisório se quiser

Se gritar adeus

06/10/02

Mas há uma hora boa

Em que você sentirá

O tranco do leme

Nas marés

Às vezes é preciso ir muito longe

Dar várias voltas e sempre

Conferir as referências

Às vezes basta sair um pouco pelo bairro

Mas sabemos nem sempre andar

É o maior problema

Às vezes é preciso pensar com outros

Problemas (antes tão alheios)

E chorar ao subir na calçada

Nós que atravessávamos a rua

Rindo por motivos só nossos

Às vezes é preciso pegar nas mãos

Olhar nos olhos

Essas coisas banais e emocionantes

E há uma paz na qual apostamos

Que buscamos

Mas sobre a qual ainda há um não

Um pode ser

Um tente de novo

Porque amigo mesmo em plena idade madura

Custa bastante ser feliz

05/10/02

Farrapo hegeliano

Existes para si

Quando não estás aí

Comigo

É quando menos sou

Em mim

E para mim não estou aí

Com nada

04/10/02

Forever

1

Demian Castro, bom tenista,

Bom judoca, bom professor,

Quando meio alto se tranca

No banheiro com um sax alto

Que esquece de aprender

Quando mais abaixo

2

Ser estar permanecer

São verbos que ligam

A ave ao seu voo

O pobre à sua fome

O pároco ao seu vinho doce

O virtual ao manifesto

3

A boca nunca se une a outra boca

Como nos sonhos que se dão ao trabalho

De no beijo mostrá-lo tudo:

Detalhes de dentes, sede, pulsão

Nenhum beijo dado vale um beijo sonhado

4

Ninguém viaja em navios naufragados

Exceto os náufragos e os sobreviventes

03/10/02

Não faço oratórios para vocês que todas amei

Figurações de santas cuja função

É perdoar e compreender

De todas me tornei cedo descrente

Tão cedo quanto de mim

Faço poemas que me custam

As horas em que estou longe

Em que rogo a pele sobre a pele

A vida sem sua contabilidade exaustiva

O amor que não quebra o encanto

Se digo seu nome

E vive entre os materiais da vida

Sem esquecer a pétala a maçã

Toda a doçura que escapa

Como desnecessária confissão

27/05/02

Aos onze anos obriguei papai

A comprar uma foto de uma trapezista

Mais ou menos da minha idade

Os maiores amores são esses

Carentes de reflexão?

Arquiteto de uma continuidade amorosa

Perdi o retrato

Trapezista certamente ela já não é

Atemporal construi o significado de paixões futuras

27/11/02

Planos amplos e inclinados

Nos quais ninguém se mantém

Vãos livres insustentáveis

Na linha de três horizontes

No primeiro o barco se vai

No segundo ainda está no porto

No terceiros perdeu-se em si

No quarto horizonte

Tememos todos pelo futuro

22/09/12

Sinto muito não pude te entender

O arroz quase queimara no fogo

E era hora dos meninos irem para a escola

Havia um programa no rádio

Naquele país com tantas fronteiras

Será que havia uma guerra?

O rio fazia uma curva lenta

Em certos portos se podia tomar banho

Conversar de pé em meio aos peixes

Outro insinuava um poço

Melhor não pensar no desejo

Melhor perdoar

Meu bem

Anúncio

Preciso desesperadamente de uma mulher

Que ame bem

Cozinhe bem

Tenha uma saúde melhor que a minha

E jamais precise de meus conselhos

20/09/02

Uma frase tão linda

Um cisne escondendo os pés

21/09/02

Desculpe não pude me conter

E você não soube lidar comigo

Foi tudo

Quebrei minha imagem

Inútil dizer sinto muito

Peço sem a menor esperança

De ser perdoado

21/09/02

Eu te trazia uma flor

Mas o vento a desfolhou

Eu te trazia um soneto

Mas de tão vetusto me deixou

Rumo a um sarau na corte

Pensei em apenas vir

E apertar calorosamente sua mão

Mas minhas mãos se enfiaram nos bolsos

E ali ficaram duras teimosas

Não pude dizer nada

Não pude nem te tocar

Deixo em meu diário este poema imberbe

Na coleção das vergonhas juvenis

Que não acabo de perpetrar

Teu último poema

Te perdeste de mim

Enquanto fugias do frio que tornava insuportáveis

Teu tênis a blusa de flores a cabeçada

Que a gente sabe vai dar mas dá com gosto

Perdeste meu sonho achaste estúpido

Não me culpe algo em mim sonha

Eu também de mim tantas vezes me perderia

Se pudesse

Mas tu podes Afrodite

Recolhendo amor como imposto sem dedução

Absorvida funcionária de escrúpulos

Meus calos não te doíam é claro

Há sempre a dificuldade de bordar as palavras

Cerzir as frases dissolver parágrafos

Quando a vontade é calar e ver o Jornal Nacional

E há também o espírito do tempo

O contexto vital todas essas coisas

Que meu voluntarismo jurou dinamitar – em vão

20/09/02

Quarta – Feira

1

As menores orelhas bastam

Para os melhores perfumes

Que por isso só precisam

De pequenos frascos

2

De tantas mudanças em minha vida

Não vi mamãe envelhecer

Não vi meu irmão morrer

E a casa no Castelo ficar grande e antiquada

Depois que vim para cá e não saí mais

Percebi que a minha vida tinha lapsos

Desvios irreparáveis tantas pessoas às quais não me apeguei

E me faltam ou saltam em meus sonhos

Como retratos buscados hipotéticos

Irreparáveis

Fui ficando depois mais de bairro

E aprendi a fazer um trivial aceitável

Que eu me vá primeiro que vocês

Como Parmênides penso que a vida

É permanência e tempo que não passa

19/09/02

Se você se sentar nesse jardim

Logo terá companhia de pombos sujos e famintos

Poderá perguntar se há posturas municipais em relação aos pombos

Se migraram de algum lugar perdido e se adaptaram aos jardins urbanos

Se tiver bom coração lhes oferecerá pipocas

E pensará que a renda do pipoqueiro depende dos pombos

E da aura mística e pacífica de que a cristandade os revestiu

Mesmo sujos e famintos

E sem receio de mendigar a você pipocas

Se quiser mudar de assunto compre um jornal

Os sensacionalistas logo dizem a que vêm:

Insinuar que os atletas do seu time fogem da concentração

Se atrasam nos treinos

E que por tudo isso seu time vai mal mas que a diretoria tomará providências

Mostrarão a impunidade e o sangue-frio dos marginais

E pedirão a polícia no portão de cada casa e dentro da

Maioria das casas pobres e famintas

Tudo culpa do governo que não ensina a pescar

E dos pobres e famintos que compraram freezer a prestação

Segundo a última pesquisa de domicílio esquecendo que não teriam

Peixe para colocar no freezer

Guarde a página do meio: há uma mulher de costas insinuando

Que você é um homem que sabe o que é bom

Do que gosta

Por isso se senta na praça alimenta pombos compra e lê

O jornal

Aqui nada é excessivo

O inseto sabe algo nele sabe

Como não se perder no amplo parque

E o vento traz o exato prenúncio

De outra primavera

Pessoas em profusão trazem flores

E compram paçoca nos carrinhos

Para agüentar até o almoço

Aqui nada é excessivo

Que a tudo nos conformamos

Ao amor inesquecível

Aos heróis inolvidáveis

Aos anos que não nos tornam sábios

E comedidos

Oh vida tudo passa como pode

Tudo virá às vezes como pedimos

Às vezes não

Oh azul desolação!

Elegia fúnebre

Faz frio e os morcegos pendurados nos saibros do teto

Caçam sementinhas de mamão no cortinado

Leio sem D. Maria ter passado para casa

A história de Joana D"Arc que mamãe me deu

Com uma imensa dedicatória.

Corre o ano da morte de Kennedy

Aqui não há jornais mas pressinto

Que papai está tenso.

Por isso dormi cedo.

Quer dizer: não durmo.

Gostaria de perguntar porque posso ler sobre Joana D"Arc

Mas preciso ignorar quase tudo sobre Kennedy

Gostaria de estar com papai

Mas estou com medo de sair de baixo do cortinado.

1

O corpo é um poço de desejos

E ama as contradições

Que como se sabe não se resolvem

O corpo é mesmo um jumento

Mas nele vive o que há de mais caro

Enquanto as palavras se desavêm

Vicio aprendido no colégio

2

Se você ficar tempo suficiente

Ao lado de uma morena pequena

Os cabelos cheirando a roseiras

E as unhas sempre recém feitas

Você terá uma chance em mil de conquistá-la

Mas se ela chamar-se Ana

Sua chance diminuirá desoladoramente

3

Na vastidão oceânica dos diálogos

Com a minha alma

Acho-a infelizmente bem burguesa e comportada

Antes de abrir a segunda garrafa de champanha

4

Eu te amo mais que o primeiro homem

Que teve a rara idéia de olhar o céu

E apaixonar-se pela estrela da tarde

Seguiu-a até encontrar-se nunca soube como

Em casa no mundo.

Não nos separamos

Quase sonhando você cruza o jardim

Onde a roseira já não vive

E os caminhos se perderam no mato invasor

Ainda quase sonhando

Você pega um ônibus

A cabeça recostada numa almofada

Cheirando a um desinfetante

Que ajuda a dormir

Você então chega a uma rodoviária

Onde o café vem morno e doce

Mas ninguém sabe se há quarto

Para uma noite

E quase sonhando você continua

Mas não nos separamos

Tão longe e partidos

Perdemos a chance

De estar separados

Adeus meu amor adeus

Ao lado do telefone mudo

Da caixa vazia do correio

Para a posteridade digo:

Amei esta mulher como pude

Se não bastou

que bastasse a minha vida

Adeus

Quetrágico! e que solitário!

Palmas e silêncio agora para

O próximo ato

21/08/02

O amor é passado

Ainda que vivo

E esta casa antiga

Faz-se de moça

Na conversa dos meus rapazes

Eu leio e bebo

Dois passatempos solitários

E às vezes quando me angustio muito

Escrevo

E se já quase não me suporto

Te telefono

19/08/02

Quando passar o verão

Das diarréias

Virá o inverno torrencial

As cobras buscando abrigo

Dentro das casas

Trabalho sempre haverá

Por toda parte há miséria

E o freizinho não tem tempo

De lavar no tanque a batina

10/08/02

Setecentos portugueses carregados de café

Mediram-se a distância de um braço

E subiram a escadaria

Para aprender o segredo do cê-cedilha

11/08/02

O tempo interior é o anel

No qual retornam

Os sussurros no sótão

A carrapeta

O soldado desconhecido

A protofonia que mal cabe

No rádio

Contudo tão próxima

11/10/02

Quanto mais te busco mais me afasto

Da minha vida

De meu verdadeiro amor

E o que quero não é

Aquilo de que estou mais carecido

Incerto num caminho incerto

Jogo migalhas de pão enquanto sigo

09/11/02

Eu quero destruir os espinheiros

Que cercam o castelo onde você dorme

Sob o dossel antigo que entretanto

Nem o pó ousa tocar

Eu sou só um cavaleiro

Que às vezes faz triste figura

Mas se você me ajudar

Destruirei tudo o que me impede

De devolver à vida clara

O pajem que terminava

De servir o seu chá

O lacaio que (há quanto tempo?)

Ousava tocar nos vestidos

Que trazia da lavanderia

O brilho da perda que a espera

Momentos (quantos?)

Antes da festa

Basta que você sonhe comigo

Que em você tenho meu sonho

Acordado e amigo

É preciso cumprir o dia

Com rigor e método

Estar atento aos seus interesses

E de seu posto

Saber ver nos gestos cotidianos

As marcas iminentes

As desejadas e as indesejáveis

Do futuro

Mas se for impossível

Esta estrita observância

Se desculpe:

Qualquer um pode errar e erra

A cadência precisa do dia

27/07/02

Quando você não está comigo

Eu perco a hora

O leite talha

O chuveiro queima

Eu volto para a cama

Sozinho

26/07/02

Muitas amei de um amor tórrido

Incandescente

Entre beijos alcoólicos e palavras

Que buscavam

O universo

E que brotavam entre a saliva

E o esperma

Muitas amei democraticamente

Como mulheres entre mulheres

Eu, sinceramente, humilde

E lúcido

Homem entre homens

Mas que sabe que não há

Órfão no mundo

Nem potências celestes

Nem infernos

Além dos que cotidianamente

Joga no jardim

O motoqueiro da Folha de São Paulo

Mas este amor cujo nome não sei

Este corpo aflito que reparti

Entre você e você

Esta fração de humanidade ressuscitada

Para você guardei

A você eu devo

Que a você me devo

25/07/02

Eu te amo com um amor de mãe

Que não sabe estancar

A cólica do filho

Com o amor de um menino

Pelo pássaro que a custo apanhou

Mas soltou ao descobrir

Que sempre serão dois

Que jamais voará

Eu te amo com um amor

Aprendido trabalhado

Que o amor não é loucura

Mais incontida razão

23/02/02

Certamente eu

Certamente você

Beijamos a filha no quarto ao lado

Ignorando e que talvez ela ignore

Adormecendo ao lado de quem divide nossa cama

Decerto ignoramos se finge dormir

Se dormiu cansada de nos esperar

Certamente eu

Certamente você

Jamais saberemos quem somos

Nesses sonhos

E nos nossos

Um dia lhe direi: pode partir

Mas agora há essa sede

Essa lua silente

E os ônibus já recolheram

Agora há esse tempo do indistinto

Tempo de imaturidade

Em que ignoramos

Esses rinocerontes

Que comem nosso jantar

Vemos só esse colibris invisíveis

Que adejam os brincos de princesa

Da minha instância querida

Que teu beijo traz de volta

Ah essa aurora querida

Sua cólica seus panos quentes

Um dia lhe direi: pode partir

Mas há quanto terá você ido embora!

Resta essa sede silente

E essa lua insaciável

21/07/02

Toda minha vida vai

Rio que inteiro se despeja

Em mar?

Sem deixar marca

Na paisagem antiga

Seus cacos de desejo

Despojos de amor ardente

Catálogo de males pelo cartão de crédito

E como herança

Um débito

Tudo em minha vida vai

E esse silêncio rancoroso

Minha mãe meu pai

Que rói meu peito

Como uma tuberculose

08/07/02

Ama demais

Quando perde o amor

É por demais abandonado

Por um tempo não distingue

As horas do sono das da vigília

Não percebe se tem fome

Se deseja algo que não o amor antigo

Por um tempo não percebe

O que devia ser claro

Como norma da prudência:

Que as pessoas amam mal

E pouco

15/06/02

Aqui te trago

Um verso do dia dos namorados

Que não fomos e que trocamos

Por um amor calmo e constante

E que estará sempre contigo

A teus pés

Nos instantes largos e nas eras

Que o coração não toca mas esperamos

Sejam nossos

E das coisas que amamos

Nosso vinho

Nossos filhos

Nossa confiante preocupação

12/06/02

A gota na telha

O bater do coração

O ritmo do relógio

O ladrar do cão

Estes vieram

A horas ermas

Dizer que durmas agora

Meu anjo

Tudo certo entre nós dois

Com otres vezez quatro doze

A prova real eu lembro

Mas a dos nove esqueci

Bebi uma parati

Trazida do Ceará

Diretamente das mãos de Anna

Com um trago vou bem

Com dois já vou bem melhor

Tentei por todas as formas

Conquistar tua cabeça dura

Porque seus cabelos são macios

E seus peitos dois mamõezinhos verdes

Perdi o bonde das dez

Ah por favor não durma

Que eu preciso de quem me adormeça

Lembrei que a alegria é a prova dos nove

Hoje estou bem contente

Será que amanhã estarei triste?

20/05/02

Autor:

Igor Zanoni Carneiro Leão

igorzaleao[arroba]yahoo.com.br

Curitiba, 2006



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