Segundo Maria Lúcia Lepecki começo a escrever este texto alguns meses depois de ter apresentado, a partir de apontamentos, a comunicação que lhe está na origem, e dou-me conta que não vai ser fácil passar a escrita o que me apareceu tão pouco problemático de apresentar oralmente.
A primeira coisa que gostaria de me perguntar agora, tentando pensar a utopia formulada, é a seguinte: o que é preciso para apoiarmos futuros? Parece-me evidente ser uma, apenas uma, a resposta possível: só se apoiarmos futuros se começarmos, desde já, a apoiar presentes. E só poderemos apoiar presentes e futuros de profissionais de escrita – qualquer que seja o campo de actividades em que trabalhem – se nos dedicarmos imediata e decididamente a apoiar o agora da Língua Portuguesa.
Qualquer pessoa que observe com um mínimo de atenção crítica o que se vem passando no campo do uso da Língua materna entre nós tem bastas razões para se preocupar. No plano da oralidade, reina um quase descalabro. Coxeia de forma lamentável a sintaxe, o que é de suma gravidade, pois em falhando a sintaxe evapora-se, já o sabemos, o pensamento. A gerência e a concordância parecem ter caído de moda, a prosódia perde-se nas brumas de uma quase ficção surrealista, o sistema de pausas obedece a uma lógica próxima do irracional: de tal maneira é assim que ouvindo, por exemplo, um noticiário televisivo até sustentado evidentemente por um teleponto, não se consegue compreender o que se nos diz porque as pausas mal distribuídas e as ligações idem impedem qualquer entendimento.
Uma pessoa pergunta-se como entender o descaso com que tem vindo a ser tratada entre nós a Língua Nacional. Uma pessoa, no caso eu, pensa que só pode entender o sintoma como fenómeno como sintoma de uma patologia cultural alargada, patologia que dá pelo nome de desatenção pelo património colectivo. O espírito que maltrata a Língua Portuguesa, pensando que prevaricar contra ela é expressão de liberdade quando não de criatividade digna da maior admiração, esse espírito é o mesmo que desrespeita a limpeza pública, seja ela das ruas ou das áreas colectivas de prédios, é o mesmo que rasgar os bancos de carruagens de metros ou dos autocarros, é o mesmo que tirar páginas de livros de bibliotecas escolares de qualquer nível, é o mesmo que não compreende o valor do património arquitectónico. É o espírito que não compreende que o que é culturalmente nosso não é apenas posse nossa mas é também uma parte do nosso próprio ser. Se isso é verdade para o lugar onde vivemos, para o quadro natural que nos rodeia, para a cidade ou a aldeia em que nascemos, isso é muito mais verdade para a língua que nos conforma o espírito e a inteligência e que é, em fim de contas, o nosso primeiro outro eu.
A desatenção pelo património colectivo, o distorcido entendimento do que é estar-à-vontade na sua própria terra e na sua própria Língua, petulância que confunde liberdade e criatividade com ignorância pura e simples não assim, ao que me parece, as primeiras fontes de desapoio à escrita que é preciso combater.
Mas há outros desapoios, ao que creio. Por exemplo, a deseducação geral da disciplina mental, sem a qual não há hipótese de bom conhecimento, boa manipulação, de qualquer linguagem, articulada ou não. A deseducação da disciplina mental revela-se, no que concerne à Língua Portuguesa que é o que agora nos interessa, na falência da sintaxe que o mesmo é dizer do sistema de conexões que permite a uma Língua pensar e a um usuário de Língua pensar-se e pensar o mundo. A esse respeito devo dizer, possivelmente para escândalo de muitos, que nunca consegui compreender por quais misteriosas razões se afastou da prática do ensino em qualquer nível o exercício da análise sintáctica pura e simples – e ousarei dizer "convencional". Considerada por quase todos, ou por convicção ou por receio de contrariar o uso dominante, como sendo um exercício maçador e de fraca incidência na pedagogia da Língua, a análise sintáctica é, pelo contrário, aquilo que nos faz penetrar sistematicamente na lógica da Língua em que nos expressamos, e isso equivale a dizer faz-nos penetrar na lógica como entendemos o mundo e o constituímos como espaço de sentido.
Não registo a evocar aqui o que refere Winston Churchill lembrando um seu professor de Língua Inglesa que ensinava sistemática e obsessivamente a análise sintáctica, ao que Churchill comenta: "e assim eu aprendi a estrutura da Língua inglesa normal, o que é uma nobre coisa". Exactamente assim: nobre coisa. Pensando nisso não nos ocorrerá perguntar se aquela espécie de limbo para que se recuou a análise sintáctica não será também um sintoma, e desta vez sintoma de qualquer coisa como a falta de desejo de espírito sistemático? Uma pessoa – ou um conjunto delas – pode eventualmente desenvolver, por razões que se desconhecem, uma fobia de qualquer esforço de entendimento da organização das coisas? Não sei, e corro sem dúvida o risco de estar demasiado dramática, mas não posso esquecer que já me tem acontecido encontrar universitários, finalistas de letras, que não reconhecem o sujeito de uma oração, e no entanto conhecem (e uso o termo como diferente de "sabem") terminologia de teoria Literária e de Linguística. Uma situação em que à apreensão de um vocabulário, quase de valor mágico, não corresponde, de modo algum, cabe perguntar por tecido linguístico, literário ou não, a que o mesmo vocabulário se está aplicando.
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