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Violência contra idosos: relevância para um velho problema (página 2)

Helena de Oliveira, Maria Cecília de Souza Minayo

4. Material e método

Os dados quantitativos sobre a mortalidade e a morbidade da população idosa brasileira, no período de 1980 a 1998, que aqui se apresentam, são retirados de um trabalho de levantamento e interpretação dessa realidade, elaborado por Souza et al. (2001), pesquisadores do Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (CLAVES) da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), utilizando o método geométrico para estimar as populações intracensitárias utilizadas no cálculo das taxas de mortalidade. As fontes principais dos dados foram os bancos do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do MS (no caso dos óbitos); e o Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS) a partir da "autorização de internação hospitalar", para o caso da morbidade. A causa básica dos óbitos foi avaliada segundo a 9a revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID9 OMS, 1985) de 1980 até 1995; e de acordo com a 10a revisão, a partir de então. Na nona, o grupo das chamadas "causas externas" abrangia os códigos E800 a E900 do capítulo suplementar; e na décima, são categorizadas nos códigos V01-Y98, comportando os homicídios, os suicídios e os óbitos por acidentes em geral. A morbidade está classificada no capítulo XIX da CID10 (OMS, 1995), referindo-se a lesões por violências e envenenamentos.

A revisão bibliográfica foi realizada a partir do MEDLINE e do LILACS (2000-2001) e da base Informa Biblioteca Eletrônica do CLAVES, Fiocruz (de toda a década de 90). Todo este material foi analisado, considerando-se as bases teóricas da reflexão e os dados quantitativos e qualitativos apresentados sobre o grupo social: a vítima, o agressor; as formas mais reincidentes de violência e as sugestões de cuidados clínicos, sociais e de políticas públicas. Aqui só serão referidos os textos que ajudam a configurar o quadro das violências e das causas externas. Tal decisão se deve ao fato de haver, em todo o material pesquisado, muita repetição de dados, de conceitos, ou de que, em grande parte dos artigos, são analisadas realidades locais de forma apenas descritiva, o que desaconselha a sua generalização. O estudo da base Informa abrangeu toda a década de 90 porque são apenas 11 as referências brasileiras sobre a problemática aqui tratada no período.

5. Mortalidade e morbidade de idosos por causas violentas no Brasil

Dentre as principais causas de morte em idosos no Brasil, nos anos de 1980 a 1998, as causas externas representaram 3,5% da mortalidade geral, ocupando, nesse conjunto, o sexto lugar. Os dados indicam tendência de queda desse tipo de óbitos que, já em 1998, significou 3,2% da mortalidade geral nessa faixa etária (ou seja, na população de 60 anos ou mais), tendo sido superado pelas doenças infecciosas e parasitárias (DIP), que estavam logo abaixo no ranking das causas de mortalidade. Em 1998, morreram 13.184 idosos por acidentes e violências no país, significando, por dia, cerca de 37 óbitos.

No período de 1980 a 1998, as taxas de óbitos da população de 60 anos e mais, por todas as causas, no país, apresentaram comportamento decrescente em ambos os sexos, com picos entre 1984, 1988 e 1993. Em 1980, essas taxas para o sexo masculino foram de 4.425,4 por 100 mil habitantes e em 1998, de 4.191. No sexo feminino foram, respectivamente, 3.531,8 e 3.180,6.

Tomando-se como base os anos de 1980 e 1998, verificou-se que, exceto em 1998, na faixa etária de 80 anos ou mais, a mortalidade dos homens idosos, por causas violentas, predominou sobre a do grupo de mulheres, mesmo sendo a população feminina muito mais elevada em todas as faixas. Na faixa citada, em 1998, a proporção foi de 3,3 mortes masculinas para cada óbito feminino. Tal relação passou para 2,0 entre 70 a 79 anos; e para 0,9 na população de 80 anos ou mais, evidenciando-se diferenças estatisticamente significativas entre grupos etários e entre os sexos, pois a razão mais constante é de 2,2 óbitos masculinos para cada óbito feminino.

No conjunto das violências, as que mais vitimaram os idosos no período estudado foram os acidentes de trânsito e transporte, as quedas e os homicídios. Essas três causas específicas representam 54,1% do total dos óbitos por violência entre os idosos em 1980; e 55,8%, em 1998. É importante destacar que, embora ainda sejam a causa violenta mais significativa de mortes da população com mais de 60 anos, os acidentes de trânsito e transporte decresceram proporcionalmente no ano de 1998. Ao contrário, os homicídios e as quedas apresentaram crescimento proporcional, passando, respectivamente, de 7,2% e 13,7% do total das mortes por acidentes e violências, em 1980, para 9,6% e 16,6%, em 1998. Não é desprezível a proporção de suicídios, no conjunto das mortes violentas, tendo se elevado de 6,7% para 7,8%, no período. Ressalta-se, ainda, o alto percentual de óbitos por causas e intencionalidade ignoradas em 1980 (19,4%), o que felizmente vem decrescendo, chegando em 1998 a 11,9%. Esse último campo de classificação ainda fala alto sobre problemas de notificação, mas também indica o êxito dos esforços acadêmicos e institucionais para esclarecimento de causas básicas de mortes violentas. Portanto, é importante indagar sob a plausibilidade de que os aumentos detectados nas proporções de falecimentos por causas específicas reflitam real incremento ou melhor qualidade das informações sobre as circunstâncias que envolveram o evento fatal.

Seis Unidades da Federação destacam-se como as mais violentas para os idosos: Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Roraima e Rio de Janeiro, com taxas que variam de 133,7 a 249,5 óbitos por 100 mil habitantes. Piauí e Maranhão evidenciam as taxas mais baixas, cerca de 52/100 mil.

Na distribuição espacial das causas específicas, os acidentes de trânsito e transporte que vitimaram os idosos têm as maiores taxas em Roraima (135,1/100 mil), Rondônia (59,9), Goiás (50,9), Espírito Santo (50,5), Paraná (48,7) e Distrito Federal (47,7) e Acre (42,0). Bahia, Sergipe e Maranhão foram os Estados da Federação que apresentaram as menores taxas de mortalidade, por essa causa específica, em 1998: 12,7, 14,5 e 15,2 por 100 mil, respectivamente.

As quedas, causa específica cuja relevância só é considerada pelos óbitos por lesões e traumas provocadas por acidentes e violências no trânsito, têm as maiores taxas encontradas no Distrito Federal (37,5), Paraná (34,2), Rio de Janeiro (33,9), Minas Gerais (26,2), Espírito Santo (25,2) e Pernambuco (19,6). Para este tipo de agravo, as menores taxas foram encontradas no Maranhão (2,5) e no Amapá. Esse último não apresentou nenhum caso notificado de morte em idosos por essa causa específica, em 1998. Em um estudo realizado por Uchikawa & Gomes (1999) em um grande hospital geral de São Paulo sobre os arquivos hospitalares de 1995, evidenciou-se que 54% dos idosos internados por causas externas o foram por quedas, e 63% desse grupo apresentavam traumatismo crânio-encefálico. Do total dos internados, 23% foram a óbito.

A distribuição espacial da mortalidade por homicídios evidencia as maiores taxas ocorrendo no Amapá (62,3) e em Roraima (52) em 1998. Piauí e Sergipe destacam-se como as unidades da Federação com as menores taxas de mortalidade por homicídios de idosos, também em 1998 (2,9 e 3,4 por 100 mil, respectivamente).

Em um estudo focalizado sobre o Estado do Rio de Janeiro, Souza et al. (1998) mostraram que aí predominam, como causas violentas de morte de idosos, acidentes de trânsito e quedas. Estas últimas vitimam, sobretudo, mulheres na faixa dos 70 ou mais anos de vida. Porém, é evidente também o crescimento de óbitos por sufocação no período de 1980 a 1994, indicando falhas nos serviços assistenciais e ausência de prestação de cuidados médicos.

Na maioria das capitais das regiões metropolitanas, a mortalidade de idosos por violências e acidentes ocupou entre o sexto e o sétimo lugar no conjunto das causas de óbito em 1998. As causas externas estão na sexta posição no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, em São Paulo, em Curitiba e em Porto Alegre. E no sétimo lugar, em Belém, Fortaleza e Recife.

Nas capitais de regiões metropolitanas, existem algumas especificidades dignas de nota: as de Recife e Curitiba apresentaram as mais elevadas taxas de violência em idosos: respectivamente, em 1998, 491,6/100.000 e 388,3/100.000. Recife se destaca pelas altas proporções de homicídios nesse grupo etário (14,5% em 1998); e Curitiba se evidencia pelos suicídios que atingiram, em 1998, 16,3% do total dos óbitos por causas externas. Também em Curitiba é considerável o aumento proporcional de mortes por quedas, que passaram de 1,7%, em 1980, para 26,4%, em 1998.

Salvador apresentou uma relação de cinco óbitos masculinos para cada óbito feminino por violências e acidentes, na faixa etária de 60 a 69 anos, em 1998. Nessa capital, constatou-se a relação entre os sexos mais elevada do país. A análise de séries temporais no período de 1980 a 1998 indicou haver uma tendência de crescimento na vitimização desse grupo etário em Belo Horizonte. Em Porto Alegre, é importante evidenciar três questões: a melhoria na qualidade dos dados sobre causas externas que provocam a morte dos velhos, havendo um decréscimo considerável na proporção de informações sobre causalidade e intencionalidade ignoradas: passaram de 36,6% em 1980 para 3,5% em 1998. Em segundo lugar, deve-se ressaltar a elevada proporção de suicídios em idosos. Essas proporções passaram de 10,9% em 1980, para 15,8% em 1998. Por fim, é digno de nota o considerável aumento nas mortes por quedas, nessa capital, indo de 2%, em 1980, para 32,2%, em 1998, no conjunto das causas externas. É claro que a melhoria de qualidade dos dados, graças ao investimento na vigilância epidemiológica da região metropolitana, está refletida no crescimento das proporções de óbitos por causas específicas.

No Brasil, as informações sobre morbidade por causas violentas em idosos ainda são pouco consistentes, fato observado também na literatura internacional que ressalta a sub-notificação em todo o mundo. Por meio de investigações mais localizadas, com trabalho de campo e busca ativa, alguns autores estimam que cerca de 70% das lesões e traumas sofridos pelos velhos não estão incluídos nas estatísticas (Chavez, 2002). Considerando essa limitação, entende-se que os dados existentes permitem perceber a gravidade dos problemas e observar onde devem ser realizados investimentos do sistema de saúde e das políticas sociais de proteção. Por isso, a opção é trabalhar a partir do que existe, buscando melhorar as informações desde sua origem.

A análise do Sistema de Informações Hospitalares do SUS revela que, em 1999, registraram-se 69.637 internações por violências no SIH/SUS. Destas, 55% deveram-se a quedas; e 23,4%, a acidentes de transporte e trânsito, sobretudo a atropelamentos (Souza et al., 2001). Desse conjunto, 63,2% se referiram a fraturas; 19,7%, a lesões traumáticas; 6,3%, a ferimentos; 3,5%, a luxações; e 3,1%, a amputações. Além dos dados hospitalares, pode-se verificar, analisando-se os registros policiais, que pessoas idosas são vítimas de seqüestros, roubos, assaltos, invasão de domicílio, roubo de propriedade e de veículos, em proporção menor, mas da mesma forma que outros grupos populacionais (Souza et al., 2001).

Alguns estudos internacionais e nacionais (Payne et al., 1992; Souza et al., 1998, 2001) referem que, enquanto os acidentes de trânsito e de transporte são a primeira causa específica de mortes de idosos, quedas são o principal tipo de agravo que leva à internação desse grupo populacional e o mais importante motivo de sua demanda aos serviços de emergência. Freqüentemente, as quedas que provocam lesões e traumas ocorrem entre o quarto e o banheiro, dentro do ambiente doméstico; ao atravessar as ruas e ao subir nos ônibus ou ao se locomoverem dentro deles. Associam-se, na maioria das vezes, a enfermidades e fragilidades como osteoporose, instabilidade visual e postural mais típicas da idade e podem indicar também negligências em prover proteção aos idosos.

Souza et al. (2001) ressaltam a existência de uma razão de três quedas não-fatais para cada queda fatal. E observam que a elevada relação entre óbitos e lesões também costuma ser uma expressão de vários tipos concomitantes de maus-tratos por parte dos familiares ou dos cuidadores, dentro dos lares ou nas instituições de abrigo. Um terço desse grupo que vive em casa e a metade dos que vivem em instituições sofrem pelo menos uma queda anual. A fratura de colo de fêmur é a principal causa de hospitalização e metade dos idosos que sofrem esse tipo de lesão falece dentro de um ano. Grande parte dos que sobrevivem fica totalmente dependente do cuidados de outras pessoas. Isso representa altos custos financeiros e sociais (Kleinschimdt, 1997; Sijuwade, 1995).

6. Discussão dos dados frente à bibliografia internacional e nacional

Por mais que impressionem os números relativos aos 13.184 idosos mortos por violências (cerca de 37 pessoas por dia) em 1998 e os 69.637 que ficaram internados por lesões e envenenamentos em 1999, a violência contra os idosos é muito mais intensa, muito mais disseminada e muito mais presente nas sociedades e também na sociedade brasileira do que os números revelam. Na verdade, como já se explicitou, os registros de morte e de morbidade por "causas externas" referem-se, exclusivamente, aos casos de lesões, traumas ou fatalidades que passam pelos serviços de saúde ou pelo Instituto Médico Legal, constituindo-se na ponta do iceberg de uma cultura relacional de dominação, de conflitos intergeracionais ou de negligências, familiares ou institucionais.

A partir dos dados coletados na literatura internacional e nacional, pode-se concluir que a violência contra os idosos constitui um problema universal. Estudos de várias culturas e de cunho comparativo entre países têm demonstrado que pessoas de todos os status socioeconômicos, etnias e religiões são vulneráveis aos maus-tratos, que ocorrem de várias formas: física, sexual, emocional e financeira. Freqüentemente, uma pessoa de idade sofre, ao mesmo tempo, vários tipos de maus-tratos (Chavez, 2002; Menezes, 1999; Wolf, 1995). Essa classificação pode ser entendida como uma tipologia universalizada, pois todos os autores que fazem investigação empírica ou têm analisado arquivos de Emergências Hospitalares e de Institutos Médico-Legais comprovam eventos dessa natureza como bases de lesões e traumas físicos, mentais e emocionais (Chavez, 2001; Menezes, 1999; MS, 2001; Pavlik et al., 2001). Por exemplo, Wolf (1995), em uma revisão de várias pesquisas canadenses, ressalta, como abusos mais freqüentes, os de origem financeira (12,5%), a agressão verbal (1,4%) e as agressões físicas (0,5%).

Países com maior acumulação de conhecimento sobre o tema, como Estados Unidos e Canadá, revelam uma prevalência de maus tratos de 10% para toda a população idosa. (Chavez, 2002; Kleinschmidt, 1997; Wolf, 1995), fato que não se pode comprovar no Brasil, pelo estado incipiente das investigações.

No caso nacional, embora a violência que ocorre no âmbito familiar seja apresentada como de indiscutível presença (Menezes, 1999; MS, 2001; Souza et al., 1998), há outras três questões que disputam com ela um espaço de relevância. Em primeiro lugar, um tipo de negligência social difusa que se manifesta como uma cultura de relação com os idosos, juntando, em sua configuração, o Estado que se omite quanto a programas de proteção e quanto à avaliação das instituições que oferecem assistência; instituições que abrigam e cuidam dos velhos como se eles estivessem em um corredor de espera da morte; e famílias que, por dificuldades financeiras e vários outros motivos, costumam abandonar seus familiares em asilos e clínicas (Machado et al., 2001). Em segundo lugar, como uma derivação dessa cultura negligente, assinala-se a violência institucional, cuja maior expressão são os asilos de idosos, sobretudo os conveniados com o Estado, onde são comuns processos de maus-tratos, de despersonalização, de destituição de poder e vontade, de falta ou inadequação de alimentos e, também, omissão de cuidados médicos específicos e personalizados. Freqüentemente, os idosos são vistos como ocupantes de um leito a mais para obtenção de financiamento público. Esse problema crucial tem no caso da Clínica Santa Genoveva, no Rio de Janeiro, sua expressão paradigmática (Guerra et al., 2000; Souza et al., 2002).

Em terceiro lugar, ressalta-se a questão dos transportes públicos e do trânsito, assunto que diz respeito à vida urbana e à circulação dos idosos pelas cidades. Essa forma de violência começa no design dos ônibus com escadas de acesso muito altas e roletas apertadas ou difíceis de mover. Evidentemente, a comodidade e a adequação desses veículos até hoje não têm levado em consideração os velhos ou quaisquer pessoas portadoras de deficiência. Mas o desrespeito se expressa, sobretudo, na insensibilidade de motoristas e cobradores. Muitos não param nos pontos quando os vêem; arrancam e freiam bruscamente. Por vezes, usuários dos coletivos não lhes oferecem lugares de assento aos que, pretensamente, teriam prioridade. Esse tema foi intensamente trabalhado por Machado et al. (2001), em estudo qualitativo com idosos do Rio de Janeiro.

Na maioria dos estudos internacionais, enfatiza-se, como a mais freqüente forma de violência contra os idosos, a que acorre no âmbito familiar. Chavez (2002) e Kleinschmidt (1997) demonstram que 90% dos casos de maus-tratos e negligência contra as pessoas acima de 60 anos ocorrem nos lares. Essas pesquisas revelam que cerca de 2/3 dos agressores são filhos e cônjuges dos idosos vitimizados (Chavez, 2002; Reay & Browne, 2001; Williamson & Schaffer, 2001). Tais dados, além de mostrar o ambiente familiar como conflituoso, abusivo e perigoso, ressaltam também o fato de a questão do idoso continuar a ser, na maioria das sociedades, responsabilidade das famílias. Para o Brasil, algumas pesquisas como a de Menezes (1999) demonstram também a alta prevalência de violência familiar, mas o estado atual dos trabalhos existentes não permite explicitar a proporção em que esse fenômeno incide sobre o conjunto das violências e acidentes em idosos.

Estudos nacionais (Menezes, 1999; MS, 2001) e internacionais (Anetzberger et al., 1994; Ortmann et al., 2001; Wolf, 1995) evidenciam que existe um perfil do abusador familiar: por ordem de freqüência, costumam ser, em primeiro lugar, os filhos homens mais que as filhas; e a seguir, noras e genros; e esposos. Sanmartin et al. (2001), em uma amostra de 307 idosos maltratados acima de 70 anos, encontraram o seguinte perfil de agressores: 57% eram filhos e filhas; 23% eram genros e noras: 8%, um dos cônjuges. Anetzberger et al. (1994) também evidenciaram, como principais agressores, filhos homens em 56,5% dos casos; e filhos homens solteiros com idade inferior a 49 anos, em 78,3% dos casos, em um estudo qualitativo realizado com abusadores e não-abusadores, nos Estados Unidos.

A caracterização do agressor foi mais aprofundada por alguns autores que se perguntaram pelas situações de risco que os idosos vivenciam nos lares, ressaltando as seguintes: agressor e vítima viverem na mesma casa; o fato de os filhos serem dependentes financeiramente de seus pais de idade avançada; ou de os idosos dependerem da família de seus filhos para sua manutenção e sobrevivência; o abuso de álcool e drogas pelos filhos, outros adultos da casa ou pelo próprio idoso; haver, na família, ambiente e vínculos frouxos, pouco comunicativos e pouco afetivos; isolamento social dos familiares e da pessoa de idade avançada; o idoso ter sido ou ser uma pessoa agressiva nas relações com seus familiares; haver história de violência na família; os cuidadores terem sido vítimas de violência doméstica; padecerem de depressão ou qualquer tipo de sofrimento mental ou psiquiátrico (Anetzberger et. al., 1994; Chavez, 2002; Laschs et al., 1998; Menezes, 1999; Ortmann et al., 2001; Reay & Browne, 2001; Sanmartin et al., 2001; Williamson & Schaffer, 2001; Wolf, 1995).

Dentre todos os fatores, a maioria dos estudiosos referidos ressalta a forte associação entre maus-tratos aos velhos e dependência química. Segundo Anetzberger et al. (1994), 50% dos abusadores que entrevistaram tinham problemas com bebidas alcoólicas. Esses autores e Chavez (2002) assinalam que os agressores físicos e emocionais dos idosos usam álcool e drogas em uma proporção três vezes mais elevada do que os não-abusadores.

Alguns pesquisadores vêm desmistificando a idéia de que os cuidadores familiares seriam os maiores agressores e que as situações de maus-tratos e negligências tenderiam a piorar, quanto mais o idoso fosse dependente e mais tempo exigisse de atenção e dedicação. Kleinschmidt (1997) e Reay & Browne (2001) constataram que essa relação, sem dúvida estressante, só se transforma em violenta quando o cuidador se isola socialmente; quando sofre de depressão ou problemas psiquiátricos; quando são frouxos os laços afetivos entre o idoso e ele; ou quando quem assiste à pessoa idosa foi vítima de violência por parte dela. Afirmam Williamson & Schaffer (2001) que análises multivariadas sugerem ser a qualidade da relação pré-enfermidade ou anterior ao estado de dependência do idoso em relação ao cuidador que determina a forma positiva ou negativa como este último percebe seu trabalho (como castigo ou como ato de dedicação amorosa), sendo preditiva de estados de depressão e de possíveis comportamentos violentos. É muito ilustrativo o trabalho de Caldas (2002), que, por meio de uma abordagem fenomenológica, ouve e interpreta a ótica dos cuidadores sobre o impacto em suas pessoas e em suas famílias, da convivência com idosos em processo de demência. Em seu estudo, Caldas chama atenção para o processo de sofrimento dos cuidadores que, "com toda a dificuldade e mesmo sem apoio, conseguem cuidar, fazendo adaptações que geram grandes custos materiais e comprometem sua saúde física e mental" (Caldas, 2002:70). Suas falas evidenciam uma urgente e profunda necessidade de suporte material, institucional e comunitário.

No que concerne à especificidade de gênero, estudos demonstram que, no interior da casa, as mulheres, proporcionalmente, são mais abusadas que os homens; e ao contrário, na rua, eles são as vítimas preferenciais. De ambos os sexos, os idosos mais vulneráveis são os dependentes física ou mentalmente, sobretudo quando apresentam déficits cognitivos, alterações no sono, incontinência, dificuldades de locomoção, necessitando assim, de cuidados intensivos em suas atividades da vida diária. E concomitantemente, as conseqüências dos maus-tratos provocam neles experiências de depressão, desesperança, alienação, desordem pós-traumática, sentimentos de culpa e negação das ocorrências e situações de maus-tratos (Wolf, 1995).

7. Conclusões

Pode-se observar uma convergência entre as causas externas específicas de mortalidade de idosos, entre os motivos de internação por maus-tratos e as expressões de violência, muito mais amplas, difusas, naturalizadas e reproduzidas na cotidianeidade das relações sociais no interior das famílias, nas instituições e em diferentes contextos sociais. Mortes no trânsito (primeira causa específica de morte) e quedas (primeira causa específica de internação) resultam, na maioria das vezes, de negligências, omissões e maus-tratos. É importante ressaltar, também, a universalidade do problema e sua dimensão histórica, presente nas sociedades complexas e contemporâneas e nas comunidades primitivas, como se evidenciou neste texto.

Em qualquer política de prevenção e atenção à violência contra os idosos, atualmente, precisa-se considerar as diferentes formas de configuração do problema. Devem ser objeto de atenção: políticas públicas que redefinam, de forma positiva, o lugar do idoso na sociedade e privilegiem o cuidado, a proteção e sua subjetividade, tanto em suas famílias como nas instituições, tanto nos espaços públicos como nos âmbitos privados. Por exemplo, a travessia mais segura das ruas, a conservação das vias, a reeducação de motoristas de coletivos para garantirem a segurança na subida e no interior dos veículos, maior tempo de sinalização para a travessia podem colaborar para a prevenção de acidentes nesta faixa etária. Do mesmo modo, cuidados básicos de segurança, principalmente nas moradias, apoio nos banheiros, tapetes antiderrapantes e melhor iluminação, entre outros, poderiam evitar a ocorrência de quedas fatais. Embora as campanhas publicitárias tenham efeito duvidoso quando feitas isoladamente, é importante usar esse instrumento ou outras formas criativas de comunicação para sensibilizar a sociedade quanto ao envelhecimento da população e ao cuidados que a maior idade demanda.

No caso dos serviços de saúde, é preciso que os profissionais, tanto os dedicados à atenção primária como os do setor de emergência se preparem cada vez melhor para a leitura da violência nos sinais deixados pelas lesões e traumas que chegam aos serviços ou levam a óbitos. Em vários estudos, demonstra-se o pouco envolvimento das equipes para ir além dos problemas físicos, mesmo quando em seu diagnóstico fica evidente a existência de violências como causa básica das ocorrências. A lógica que define seu não-envolvimento costuma ser a consideração do problema dos maus tratos, como sendo do âmbito privado, portanto, fora da competência da medicina. O texto de Hirsch & Loewy (2001), escrito especialmente para médicos, alerta-os para a necessidade de melhorarem seu diagnóstico em casos de maus-tratos e ensinando-lhes a reconhecerem alguns sinais. Os autores afirmam que é preciso prestar atenção à aparência desse cliente; ao fato de que procure seguidamente seus cuidados para o mesmo diagnóstico; a suas repetidas ausências às consultas agendadas; aos sinais físicos suspeitos; e às explicações improváveis de familiares para determinadas lesões e traumas. E concluem instruindo os médicos para, no caso de observarem a ocorrência de abusos ou negligências, providenciarem um monitoramento mais cuidadoso que inclua visitas domiciliares periódicas, e se for o caso, que denunciem, às autoridades competentes, a existência dos maus-tratos, para que se tomem providências relativas a proteção dos idosos e à penalização dos abusadores.

Em todas as formas de aumentar o respeito à população mais velha, todas as políticas públicas voltadas para sua proteção, cuidado e qualidade de vida precisa-se considerar a participação dos idosos, grupo social que desponta como ator fundamental na trama das organizações sociais do século XXI. Ricos ou pobres, ativos ou com algum tipo de dependência, muitos sustentam famílias, dirigem instituições e movimentam um grande mercado de serviços que vão do turismo, lazer, estética, cosmética, produtos e assistência médica e social.

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Maria Cecília de Souza Minayo - minayo[arroba]terra.com.br

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