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Via de parto e risco para mortalidade neonatal em Goiânia no ano de 2000 (página 2)

Joel Alves Lamounier; Anna Luiza Gervásio da Fonseca Torga; Gisele Lemos Fe

 

4. Resultados

A análise da coorte revela que durante o ano 2000, foram registrados 29.216 nascidos vivos, sendo que desses, 19.658 eram de mães residentes em Goiânia. Ocorreram 310 óbitos infantis, dos quais 206 no período neonatal. Foram observados os seguintes coeficientes de mortalidade: neonatal (10,5/1.000), neonatal precoce (6,9/1.000) e tardia (3,6/1.000). Nessa coorte, observou-se incidência de 6,9% de BPN, 5,5% de prematuridade, 21,5% de mães adolescentes, 2,2% de gemelaridade e 0,4% de malformações congênitas. Apenas 0,8% das mães não tinha nenhuma escolaridade e 1,0% não realizou nenhuma consulta pré-natal. O parto foi hospitalar em 99,8% dos casos, sendo que os hospitais públicos com atendimento ao SUS foram responsáveis pela maioria deles. A ocorrência de cesariana foi de 56%.

A análise estratificada da via de parto considerou as variáveis idade gestacional, peso ao nascer, hospital de nascimento, consulta pré-natal, escolaridade materna, idade materna e região de residência da mãe. Constatou-se que o parto normal foi mais realizado que o operatório em situações de maior risco para a mortalidade neonatal. Ele foi realizado cerca de quatro vezes mais em hospital público, em relação ao hospital privado sem atendimento ao SUS e 24% a mais no hospital público, em relação ao hospital privado com atendimento ao SUS (Tabela 1).

A Tabela 2 mostra a análise estratificada de categorias de hospital de nascimento pelas variáveis: escolaridade materna,consulta pré-natal, idade materna, ocorrência de óbito, via de parto, idade gestacional, peso ao nascer, malformação congênita e região de residência da mãe. Nota-se que 95 óbitos (46,5%) ocorreram nos hospitais públicos e que também foram nesses que se realizou mais freqüentemente o parto normal em relação ao operatório. Ainda, nos hospitais públicos ocorreu a maior incidência de prematuros, BPN, malformações congênitas, mães adolescentes. Mães residentes na região noroeste, sem nenhuma escolaridade e que não realizaram nenhuma consulta pré-natal são fatores associados à maior ocorrência de óbitos neonatais. O Risco Relativo (RR) das associações encontradas entre as categorias de hospitais de nascimento, intervalo de confiança e valor de p dessas associações também são mostradas nessa tabela.

A Tabela 3 apresenta a análise estratificada das categorias hospital de nascimento por idade gestacional e de peso ao nascer. Observa-se que os recém-nascidos extremamente prematuros e os de muito baixo peso ao nascer ocorreram muito mais freqüentemente na categoria de hospital público em relação às demais categorias.

Quando se analisa a via de parto realizada em cada categoria de hospital de nascimento de acordo com categorias de peso ao nascer, verifica-se que, nas categorias de hospital público e privado com atendimento ao SUS, o parto normal foi realizado nas mesmas proporções que o operatório nas categorias de menores pesos em relação à categoria de peso entre 2.500 e 2.999 g. Já na categoria de hospital privado sem atendimento ao SUS a realização do parto normal em relação ao operatório, nessas mesmas situações, foi inversa à categoria de peso ao nascer: quanto menor foi o peso ao nascer maior foi a realização do parto normal. As mesmas observações são feitas quando se analisa a via de parto realizada em cada categoria de hospital de nascimento segundo categorias de idade gestacional: quanto menor a idade gestacional maior foi a realização do parto normal nos hospitais privados sem atendimento ao SUS (Tabela 4).

5. Discussão

A maior contribuição do presente estudo foi mostrar como um viés de seleção pode distorcer os resultados e, conseqüentemente, levar a conclusões errôneas em estudos de coorte retrospectiva. O encontro de maior associação entre o parto normal e mortalidade neonatal já havia sido referido em estudo realizado em Goiânia, em 1992.8 Essa associação também foi encontrada por Gotlieb & Sousa2 em Maringá, em 1993 e por Flores4 no Estado de São Paulo, em 1999. No estudo de coorte de recém-nascidos de Goiânia, em 2000, cujo banco de dados serviu para as análises do presente estudo, a maior ocorrência de óbitos neonatais no parto normal voltou a aparecer.3 Tanto aqui quanto no estudo de Morais,8 a associação entre parto normal e mortalidade neonatal, encontrada na análise univariada, foi confirmada por meio da análise de regressão logística. Somente com a análise estratificada, realizada no presente estudo, da via de parto e das categorias de hospital de nascimento por fatores encontrados como de risco para a morte neonatal, é que se pôde verificar que essa associação decorreu de viés de seleção. Esse viés foi devido à distribuição das gestantes na rede hospitalar e da via de parto, realizada em cada hospital, diante das situações de risco para a morte neonatal. A associação entre maior mortalidade neonatal e via de parto normal, no município de Goiânia, decorreu da maior realização do parto normal em situações de alto risco para a morte neonatal e da realização quase universal da cesariana em situações de baixo risco.

A estratificação das categorias de hospital de nascimento, por variáveis associadas à mortalidade neonatal mostrou que a maior ocorrência de óbitos neonatais verificada na categoria de hospital público pode ser, em parte, explicada pela maior incidência nesses hospitais de fatores tais como: partos prematuros, BPN, malformações congênitas, mães com baixa escolaridade, que não realizaram nenhuma consulta pré-natal e oriundas da região noroeste do município. Essa região, bem definida geograficamente, é constituída em sua grande maioria pela população de baixo padrão socioeconômico e tem sido descrita como de maior incidência de mães adolescentes, BPN e de maior coeficiente de mortalidade infantil no município.8 Além disso, a avaliação da categoria de hospital de nascimento por estratos de idade gestacional e peso ao nascer mostrou que, além de apresentar maior incidência de prematuridade e de BPN, os hospitais públicos apresentaram maior ocorrência de prematuros extremos e de muito baixo peso ao nascer. Os recém-nascidos prematuros e de BPN, atendidos nesses hospitais, eram mais graves do que os atendidos em outras categorias de hospital.

A análise estratificada da via de parto e das categorias de hospitais de nascimento evidenciou que as gestantes de maiores riscos para o óbito neonatal foram atendidas principalmente nos hospitais públicos, que foram os que mais realizaram o parto normal. Por outro lado, parece haver seleção no atendimento das gestantes na rede pública e da rede privada com atendimento ao SUS, uma vez que essa última categoria de hospital apresentou menor coeficiente de mortalidade neonatal, menores incidências de prematuridade, BPN e de malformações congênitas, apesar de apresentar os mesmos índices de mães adolescentes e provenientes da região noroeste como os hospitais públicos. Assim, os hospitais privados com atendimento ao SUS atendem, de fato, gestantes de baixo risco e, portanto, a proporção de 32,4% dos óbitos e o coeficiente de mortalidade neonatal de 6/1.000 nascidos-vivos podem ser considerados relativamente elevados.

A taxa de cesariana encontrada de 56% é bastante alta mesmo considerando-se que essas taxas têm aumentado significativamente, nas últimas décadas, em todo o mundo.6,13,17 Belizán et al1 verificaram que entre os 12 países com maiores incidências de cesariana, o Brasil ocupou o segundo lugar, com taxa de 32%, só perdendo para o Chile (40%). Ressalta-se que o aumento nas taxas de cesariana na maioria desses países não se fez acompanhar de diminuição equivalente nos coeficientes de mortalidade neonatal, como o evocado para justificar a prática indiscriminada desse procedimento.

Outro aspecto a ser considerado é a seleção que parece ter ocorrido na via de parto utilizada nos hospitais privados sem atendimento ao SUS, diante de situações de alto risco para os óbitos neonatais. Nesses hospitais, a realização da cesariana foi maior à medida que aumentou a idade gestacional e o peso ao nascer. A ocorrência de parto normal foi 4,83 vezes maior que a cesariana na categoria de peso ao nascer de 500 a 999 g em relação à categoria de peso entre 2.500 e 2.999 g e, ainda, 3,38 vezes maior na categoria de idade gestacional de 22-27 semanas em relação à categoria de 37 a 41 semanas. O mesmo não ocorreu nas outras categorias de hospital. Dessa forma, existe evidência de que nesses hospitais a realização da cesariana foi quase universal em gestações de baixo risco, tendo sido o parto normal reservado para situações de alto risco para a morte neonatal, como a prematuridade extrema e o muito baixo peso ao nascer.

Vários estudos têm referido que a incidência de cesariana sofre influência do nível socioeconômico entre grupos populacionais. No Brasil, vários autores têm mostrado a relação entre nível socioeconômico da gestante e incidência de cesariana.7,13,15,17 Victora et al,15 em estudo realizado em Pelotas, observaram que não só a taxa de cesariana guardava essa relação, mas também a taxa de indução do parto que foi maior nas gestantes com menor poder socioeconômico. Em estudo em Ribeirão Preto, a incidência de cesariana variou segundo a categoria de internação, sendo duas vezes maior na categoria privada em relação ao público e, ainda, ocorreu gradiente crescente de cesariana à medida que se elevou o padrão social das gestantes.17

Os resultados obtidos apontam para a influência de aspectos não médicos para a ocorrência de altos índices de cesariana em Goiânia. As taxas de cesariana nos hospitais públicos e privados com atendimento ao SUS, de respectivamente, 38,1% e 50,1%, estão longe dos 15% recomendados pela OMS. É preocupante a alta incidência de 84,9% de cesariana, encontrada nos hospitais privados sem atendimento ao SUS. Os hospitais privados sem atendimento ao SUS foram responsáveis pelo atendimento das gestantes com maiores níveis de escolaridade, que realizaram maior número de consultas pré-natal e provenientes de regiões de melhor poder socioeconômico do município. Em contrapartida, os hospitais públicos, que deram assistência às gestantes mais carentes, foram os que mais realizaram o parto normal. Essa observação mostra que, contraditoriamente, a cesariana foi mais utilizada em gestações de baixo risco e o parto normal nas de alto risco para o óbito neonatal. Alguns autores, que encontraram altos índices de cesariana, também observaram essa distorção.7,12-14

É provável que não só aspectos socioeconômicos estejam ligados às altas taxas de cesariana encontradas em todas as categorias de hospital desse município. Há descrição na literatura de vários fatores que influenciam na incidência de cesariana, sendo os principais: a remuneração do parto, aspectos culturais e, principalmente, a forma como a estrutura de assistência hospitalar está organizada.9,11,15 Em Goiânia, a assistência ao parto, realizada nos hospitais públicos é, em geral, sob regime de plantões médicos o que pode ter favorecido a maior ocorrência dos partos normais. Já a assistência disponibilizada às gestantes particulares, com convênios ou planos de saúde é realizada em diferentes hospitais, pelo próprio médico assistente do pré-natal. Isso dificulta a assistência ao parto uma vez que o médico tem que abdicar de todas as suas outras tarefas para dedicar várias horas ao atendimento do trabalho de parto normal. Por outro lado, os hospitais privados com atendimento ao SUS têm as suas cotas de cesariana, até certo ponto, controladas pelo SUS.

Apesar das altas taxas de cesariana encontradas em todos os hospitais de Goiânia não terem apresentado associação direta com a mortalidade neonatal, fato que pode, inclusive, ter sido decorrente dos já referidos vieses, esse coeficiente representa perda importante dos recursos que poderiam ser destinados a outros aspectos referentes à assistência perinatal.

A hipótese de que vieses poderiam ser responsáveis pela associação entre morte neonatal e parto normal encontrada em estudos de coorte em Goiânia partiu dos vários conhecimentos acumulados na literatura que afirmam justamente o contrário e, ainda, de certo conhecimento que os pesquisadores apresentavam a respeito da organização da assistência perinatal nesse município. Assim, pôde-se observar que a viabilidade da utilização de dados oriundos do SINASC e do SIM para estudos de coorte populacionais depende da utilização crítica das informações contidas nos instrumentos de declaração de nascimento e de óbito.

Os resultados apresentados evidenciam que é necessário direcionamento das políticas de saúde para os hospitais públicos, locais onde atendem a população de maior risco para a morte neonatal. Há, ainda, necessidade de estudos que aprofundem os conhecimentos a respeito das altas taxas de cesariana praticadas, que avaliem a acessibilidade e qualidade de assistência perinatal na rede pública, principalmente a destinada às gestações de alto risco e que analisem a qualidade da assistência prestada ao parto normal.

6. Referências

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3. Giglio MRP, Lamounier JA, Morais Neto OL. Fatores de risco e coeficientes de mortalidade neonatal, em Goiânia, no ano de 2000 [dissertation]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2003.

4. Gottlieb SLD, Souza RKT. Probabilidade de morrer no primeiro ano de vida em área urbana da região Sul, Brasil. Rev Saúde Pública 1993;27:445-54.

5. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. Censo 2000. Disponível em URL: http://www.ibge.gov.br//censo/default.php [14 jun 2003]

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8. Morais Neto OL. A mortalidade infantil no município de Goiânia: uso vinculado do SIM e SINASC [dissertação de mestrado]. Campinas: Unicamp; 1996.

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Margareth Rocha Peixoto GiglioI; Joel Alves LamounierII; Otaliba Libânio de Morais NetoIII - jalamo[arroba]medicina.ufmg.br

IDepartamento de Pós-Graduação em Medicina. Faculdade de Medicina. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil

IIDepartamento de Pediatria. Faculdade de Medicina. UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil

IIIDepartamento de Epidemiologia. Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública. Faculdade de Medicina. Universidade Federal de Goiás. Goiânia, GO, Brasil



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