Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 

Relações entre violência doméstica e agressividade na adolescência (página 2)

Clécio H. da Silva; Elsa R. J. Giugliani

3. O adolescente agressivo e maltratado

"Se são violentos é porque estão desesperados." Marcuse

Conceitualmente, a violência pode ser considerada toda ação danosa à vida e à saúde do indivíduo, caracterizada por maus-tratos, cerceamento da liberdade ou imposição da força. A criança e o adolescente, por sua maior vulnerabilidade e dependência, são vítimas freqüentes de atos abusivos (Eisenstein & Souza, 1993).

Agressão é qualquer forma de conduta direcionada visando prejudicar ou ferir outra pessoa (Kaplan & Sadock, 1993). A agressividade faz parte do processo de conhecer, pode mediatizar-se, está dentro do nível simbólico, ao passo que a agressão não está mediatizada e, muitas vezes, encontra-se a serviço da destruição do pensamento (Fernandez, 1992).

Os conceitos de agressão e agressividade, assim como o de violência, envolvem múltiplos enfoques e direcionamentos. Podem estar inseridos dentro de marcos referenciais biologicistas, comportamentalistas, dentro de modelos exclusivamente psiquiátricos ou de abordagens mais amplas, como a da violência estrutural, proporcionada pelo próprio sistema social com suas iniqüidades.

Autores adeptos das doutrinas biologicistas e comportamentalistas da agressão percebem-na como "instintiva à natureza humana, tão natural e irresistível como a fome e o instinto sexual. Eles tendem a transferir as regularidades do nível biológico para o social e a extrapolar os dados referentes aos animais para as relações humanas em sociedade" (Minayo, 1990a:19). Assim, a agressividade humana seria mediada geneticamente, resultante da natureza instintiva do homem que teria uma tendência irreprimível à violência e ao domínio dos outros, numa analogia à teoria da seleção natural.

Autores da linha psicanalítica (Chess & Hassibi, 1982; Osório, 1982) tentaram identificar aspectos determinantes da agressividade na adolescência. Alguns consideram que o problema acontece devido a uma carência emocional experimentada pela criança que se sente ferida; outros acreditam que a criança não teve fixados os seus limites. Perceberam que crianças e adolescentes desvantajados, expostos ao abandono, morte ou doença dos pais, ou submetidos à intensa ansiedade gerada pelo ambiente das ruas, podem apresentar conduta agressiva (Fagan & Wexler, 1987). Quando os pais ferem-se mutuamente, abandonam as famílias ou ameaçam suicidar-se, a ansiedade dos filhos é esmagadora. Eles podem desenvolver um padrão crescentemente agressivo em suas relações familiares, escolares e sociais (Wolff, 1985). Foi encontrada associação entre privação emocional na infância agressão física entre os pais, depressão materna, quebra precoce do vínculo mãe-filho, negligência ou rejeição materna, número elevado de substitutos maternos, abuso físico e sexual e conduta violenta em adolescentes (Forchand, 1991; Assis, 1991). Histórias de abuso físico e sexual têm sido relatadas por adultos e adolescentes que apresentam auto-imagem negativa, dificuldades de relacionamento e vazão inapropriada de impulsos agressivos (Dodge et al., 1991; Gil, 1990; Oates, 1984; Blomhoff et al., 1990).

Os compêndios de psiquiatria têm-se mostrado contraditórios, ambíguos e mesmo preconceituosos na abordagem do tema agressividade na infância e adolescência. Colocam uma ênfase maior nos aspectos legais da violência, principalmente quando envolvem danos à propriedade privada, em detrimento das condutas socialmente destrutivas aos jovens, adultocêntricas e patriarcais.

Outro grupo de pensadores percebe as condutas violentas como estratégia de sobrevivência das classes populares, vítimas das contradições do capitalismo no País. Jovens violentos podem pertencer a culturas marginais e apresentar comportamentos agressivos como forma de defesa, adaptação ao grupo ou ascensão social.

Nesta pesquisa optou-se pelo conceito que caracteriza a violência como um fenômeno em 'rede'. Entender a violência nesta dimensão significa percebê-la em suas múltiplas facetas, onde cada manifestação particular se articula com as outras: a violência dos indivíduos e dos pequenos grupos deve ser relacionada com a violência do Estado; a violência dos conflitos, com a ordem estabelecida (Minayo, 1990a). As instituições socializadoras, como família, escola, sistema judiciário, perpetuam os comportamentos violentos, na medida em que são responsáveis pela manutenção de papéis que condicionam os indivíduos a aceitar ou infligir sofrimento. "Tome-se como exemplo o assassinato de adolescentes supostamente delinqüentes. Há que articulá-los com a violência estrutural que lhes nega o possível social; com a violência do Estado, cuja face repressiva é quase a única que esses jovens conhecem; com a violência organizada dos grupos organizados de narcotráfico, que lhes possibilitam realizar seus sonhos de afirmação, heroísmo e consumo, nutrindo-os com vantagens imediatas; com a violência individual de cada um que tenta se defender e se salvar sozinho numa sociedade onde os direitos humanos são, para a maioria da população, um ideal a conquistar" (Minayo, 1990b:291).

A adolescência é uma etapa do desenvolvimento humano em que as patologias não são tão freqüentes, ou seja, espera-se que a morbidade neste grupo não seja elevada. Quanto à mortalidade, aproximadamente 70% dos óbitos nesta faixa etária são devidos a causas externas (SSMA, 1996). Os jovens do sexo masculino e negros são as vítimas preferenciais para mortes por homicídio, o que apresenta tendência ascendente principalmente nos grandes centros (Minayo, 1993). Comportamentos juvenis considerados agressivos incluem desde atos que os adultos classificam como criminosos, tais como roubo e assalto, até transgressões que têm relação estrita com a idade, como corridas de automóveis, brigas de rua e bebedeiras. Além disso, a valorização destes episódios irá variar de acordo com a cultura e as classes sociais. O DSM-IV (APA, 1994) não incluiu a categoria agressividade dentro dos distúrbios de conduta, que compreendem predominantemente violação a regras sociais. A agressividade, nesta última edição do DSM, faz parte da categoria transtorno no controle dos impulsos, definido como fracasso em resistir a um impulso ou tentação de executar um ato perigoso para si ou para os outros, resultando em agressões sérias ou destruição de propriedades, podendo estar associado à suspensão escolar ou detenções legais.

Nas escolas, o discurso é construtivista, embora a violência simbólica esteja explícita ou mascarada, e o aluno 'agressivo', que não se reenquadra nas normas vigentes, acaba expulso ou convidado a se retirar. "Os mesmos professores que, em teoria, consideram que ser um bom aluno não tem nada a ver com submissão, valorizam positivamente situações que incluem a obediência e repetição, e desvalorizam alunos em situações de agressividade, porque não se encaixam no modelo inconsciente do que é ser um bom aluno" (Fernandez, 1992). Caracterizar o comportamento de um jovem como agressivo na escola pode ser uma forma velada de violência, um estigma de desprestígio, que os discrimina no mesmo rótulo de marginalizados, delinqüentes, infratores ou perigosos.

Na família, a disciplina necessária na educação dos filhos fundamenta-se na idéia, culturalmente aceita, da dominação dos pais sobre os filhos, perdendo-se o limite entre punição física como norma educativa ou agressão (Eisenstein & Souza, 1993). Consideram-se abuso as agressões inflingidas pelos pais no processo disciplinar dos filhos. Na definição de abuso físico estão presentes a intencionalidade e as conseqüências do ato agressivo, assim como os critérios de valor da sociedade. "A sociedade em que vivemos, com seu quadro de violência e destruição, não oferece garantias suficientes de sobrevivência e cria uma nova dificuldade para o desprendimento. O adolescente, cujo destino é a busca de ideais para identificar-se, depara-se com a violência e o poder e também os usa" (Aberastury, 1981 apud Levisky, 1997).

Neste tema tão complexo e sujeito a vieses, fica difícil explicitar até aonde o adolescente está exteriorizando uma conduta 'agressiva' como uma reação de defesa à violência estrutural da sociedade, ou quando há uma intenção deliberada de infligir dano ou sofrimento a outrem. Em suma, em que momento eles são transformados de vítimas em réus. "A percepção da sociedade em relação aos menores infratores é a de pivetes que roubam e matam, logo incomodam o bem estar-social. A sociedade os vê como agentes da violência. Pouco se fala destes indivíduos enquanto vítimas ou potenciais cidadãos" (Minayo & Assis, 1993). O comportamento agressivo dos adolescentes certamente está articulado com as múltiplas formas de violência, explícitas ou não, que eles vivem no âmbito da família, da escola e de outras instituições da sociedade, muitas das quais com a função precípua de protegê-los.

4. Considerações metodológicas

"Eu não sei se tu consegues atingir além da casca da superficialidade." Pai, adolescente agressivo, escola particular.

Este é um estudo exploratório e fez parte de uma tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A população da pesquisa foi composta por famílias de adolescentes considerados agressivos e não agressivos na escola. Foram selecionadas quarenta famílias de cada grupo, procedentes de duas escolas: uma pública, municipal, que atende população de baixa renda, e outra particular, com alunos de classes média e alta. Em cada escola, metade dos alunos era constituída de alunos agressivos e a outra metade de alunos não agressivos. A escolha dos adolescentes foi realizada na escola, pelos professores do Serviço de Orientação Educacional (SOE), considerando agressivo o aluno que envolveu-se em mais de um episódio de agressão física com colegas, funcionários ou professores. Episódios únicos e graves também foram considerados.

Todos os adolescentes da escola particular foram entrevistados durante o período em que cursavam a oitava série, enquanto os da escola pública freqüentavam a sétima série, exceto quatro alunos com doze anos de idade que cursavam a sexta série.

Para coletar os dados, utilizou-se um roteiro semi-estruturado contendo em sua maioria perguntas abertas, acerca da vida familiar, conjugal, relação pai-filhos, rotinas, tarefas, lazer, vida escolar, conduta agressiva do adolescente e sistema de punições adotado pela família. Todas as entrevistas foram realizadas no período de março de 1992 a abril de 1993. Em cada família foram entrevistados, individualmente, o pai, a mãe e o adolescente selecionado. As entrevistas duravam, em média, de 30 min a 40 min por adulto e de 15 min a 20 min por adolescente. No momento da entrevista, a entrevistadora encontrava-se cega para a condição de agressividade do adolescente.

Durante a fase de coleta de dados foi escrito um Diário de Campo, à semelhança de pesquisas antropológicas (Salem, 1979; Zaluar, 1986).

A informação sobre as punições foi categorizada em punição leve ou ausente e punição grave. Punição leve ou ausente incluiu situações em que não havia punição física ou quando esta era pequena, simbólica ou leve (tapas; tapinhas; palmadas; palmadinhas; beliscões; empurrões; 'bifes'; chineladas; chineladinhas; solavancos; puxões; puxão de orelha; contenção pelo braço; cutucos; cascudos; sacudidelas; 'croques'). Considerou-se punição grave, quando houve menção a pelo menos um episódio contundente, grave, ou mesmo perverso (tundas, surras, pauladas, sarrafadas, cintadas, espancamentos; tapas e chineladas num contexto de maior gravidade, do tipo "dei uma surra de chinelo"; uso de instrumentos como chinelos, cintos, relhos, paus, mangueira, sarrafos, vassoura; locais pouco usuais e formas perversas de punição física, mescladas de sexualidade).

As famílias foram classificadas em flexíveis, quando havia um padrão de conduta grupal aberto, democrático e respeitoso, sem estruturação de respostas paralisadas e repetitivas; e rígidas, quando o grupo familiar mostrava-se fechado com predomínio de padrões de conflito e dominação (Falceto, 1989; Lewis, 1981).

Os dados coletados foram armazenados em computador utilizando-se o programa Dbase III. EpiInfo e SPSS foram utilizados na análise dos dados, que incluiu teste do Qui-Quadrado para testar associações entre as principais variáveis do estudo e o cálculo das razões de chance e intervalos de confiança para os riscos. Realizou-se regressão logística para testar a associação entre agressividade e punição, levando em consideração possíveis fatores de confusão.

5. Resultados: os números dos maus-tratos

"Vem de longe e promete não ter fim a guerra entre pais e filhos, a herança das culpas, a rejeição do sangue, o sacrifício da inocência." José Saramago

Foram entrevistadas 76 famílias, 37 cujos adolescentes eram procedentes da escola particular (48,7%) e 39, da escola pública (51,3%). Houve duas recusas entre as famílias da escola pública e quatro entre as da escola privada, perfazendo uma perda total de 7,9%. Ao todo, foram entrevistadas 213 pessoas. A entrevista não foi realizada com 16 pais, cinco da escola particular e 11 da pública.

A distribuição da renda foi nitidamente diferente nas duas escolas. Na escola particular, dois terços das famílias (62,2%) recebiam mais de vinte salários mínimos, enquanto na escola pública a renda de dois terços das famílias (74,4%) estava abaixo de seis mínimos mensais.

A maioria das famílias entrevistadas (72,4%) era constituída por pai, mãe e irmão(s). Em 12,3% das famílias havia a presença de apenas um dos pais e, nestes casos, o genitor presente era a mãe. Famílias refeitas, com a presença de um padrasto, constituíram 9,2% da amostra. Doze famílias eram separadas e quatro mães eram viúvas, perfazendo um total de 21,1%, em relação ao total.

A distribuição dos 76 adolescentes segundo sexo não foi homogênea, havendo praticamente o dobro de indivíduos do sexo masculino, ou seja, 48 rapazes (63,2%) e 28 meninas (36,8%), numa proporção de 1,6:1, que se manteve nas duas escolas. Embora as médias de idade dos adolescentes das duas escolas fossem semelhantes 14,3 anos na escola pública e 14,8 na particular , a dispersão em torno da média na escola municipal foi maior. Entre os adolescentes entrevistados, 15 (19,7%) exerciam algum tipo de trabalho remunerado, sendo a maioria 14 alunos da escola pública. A distribuição dos adolescentes em relação à história de aleitamento materno mostrou que apenas 8,1% das mães da escola particular não amamentaram seus bebês, em contraposição a 30,8% das mães do bairro. No total, 53,9% das crianças foram cuidadas somente pela mãe no primeiro ano de vida e 26,6% estiveram em creches. Aproximadamente 80% dos alunos entrevistados da escola pública haviam repetido pelo menos uma das séries do primeiro grau. Na escola particular, o quadro inverteu-se: apenas cinco alunos (13,5%) tinham história de repetência.

A classificação das famílias de acordo com sua dinâmica evidenciou uma quantidade maior de famílias flexíveis entre os alunos da escola particular (46,0%), do que entre os da escola pública (23,1%).

Encontraram-se nove situações de violência física entre os cônjuges (11,8% da amostra). Três (8,1%) aconteceram em famílias da escola particular e seis (15,4%) aconteceram nas da escola pública.

A violência contra os adolescentes foi expressa no indicador punição física grave. A punição física grave, episódio único ou freqüente, relatada por pelo menos um dos membros da família, ocorreu em 41 dos relatos, representando 53,9% do total de casos. Em apenas sete famílias, os três membros entrevistados negaram a existência de punição física. A maior parte das famílias, portanto, utilizava algum tipo de punição física em relação aos filhos, e o mais dramático é que na metade delas os castigos empregados eram graves. A situação mais séria foi a de famílias em que a punição era intensa e freqüente: 16 casos (18,4%).

Aconteceram 14 relatos de punição grave entre os alunos da escola particular (37,8%) e 27 entre os da escola pública (69,2%), evidenciando que a punição física das crianças é um padrão de conduta mais disseminado entre as famílias de baixa renda. O adulto mais punitivo foi o pai (44,0%), enquanto as mães maltratantes perfizeram 21,9% da amostra.

Em aproximadamente 30% dos casos de punição física grave, os adolescentes ainda estavam sendo punidos no momento da entrevista. Destes, cinco eram da escola particular e oito da pública.

A análise bivariada que testou a associação entre punição física grave e algumas variáveis mostrou que os meninos, os mais velhos, os que trabalhavam fora e pertenciam a famílias de baixa renda foram os mais punidos. Outro aspecto da violência presente no contexto familiar foi o das agressões entre irmãos. Adolescentes punidos tiveram oito vezes mais chance de serem violentos com os irmãos. As famílias flexíveis foram menos punitivas com suas crianças, ou seja, adolescentes punidos tiveram uma probabilidade 15 vezes maior de pertencerem a famílias rígidas.

As variáveis que não estiveram associadas com punição física grave foram: primogenitura, aleitamento, cuidado materno no primeiro ano de vida, ausência do pai, repetência e punição física perpetrada pelos avós em relação aos pais.

A associação entre punição física grave e agressividade foi estatisticamente significativa adolescentes diagnosticados como agressivos tiveram uma chance quatro vezes maior de serem punidos que os não agressivos (Tabela 1).

6. Famílias em pedaços

"Onde hás de juntar os mil e um pedaços de cada homem?"

Giórgos Seféris

O principal achado deste estudo, certamente, foi a associação entre agressividade e punição física, ficando evidente que os adolescentes considerados agressivos na escola foram mais punidos que os não agressivos. Assim, ficou explícita a figura do adolescente agressivo e maltratado, violento e machucado. "Se são violentos é porque estão desesperados." Essa associação esteve presente nas duas escolas, mas foi mais evidente na escola particular, onde a punição física talvez possa ser considerada um dos fatores predisponentes da agressividade futura do jovem.

Os resultados desta pesquisa deixaram claro que, na vigência de comportamentos agressivos em adolescentes, não se deve deixar de pensar em violência doméstica, ficando evidente que o adolescente agressivo na escola é um indivíduo maltratado. Embora a relação entre punição física e agressividade já tenha sido evidenciada em diferentes estudos (Gil, 1990; Kempe & Kempe, 1983), outros autores consideram que a violência doméstica não tem sido citada como fator de risco para distúrbios emocionais em jovens (Assis, 1991). É tempo, portanto, de se olhar a violência doméstica e propor formas educativas alternativas no âmbito da escola, da família e da sociedade, para que esta sociedade "não precise se fundamentar na ética perversa que necessita promover a morte do novo, na figura de seus jovens" (Kayayan, 1992:16).

A punição física grave, episódio único ou habitual, relatada por pelo menos um dos membros da família, foi referida por mais da metade da população amostrada neste estudo. Num inquérito realizado com escolares no Estado do Rio de Janeiro, a autora referiu 52,8% de punições físicas episódios leves e graves (Minayo & Assis, 1993).

A punição física foi mais prevalente entre as famílias da escola pública, embora a proporção de famílias onde aconteciam punições graves e freqüentes tenha sido semelhante nas duas escolas. O pai foi o adulto mais punitivo, contrariando outros estudos que apontam a mãe como o adulto mais abusivo (Deslandes, 1994).

Em muitos dos depoimentos, ao relatar episódios de punição física intensa, os pais mostraram-se muito emocionados. Choraram, afirmaram que não bateriam mais nos filhos, parecia que buscavam absolvição e alívio das culpas, pela confissão que a entrevista proporcionava:

"Eu batia nele. Me atacava e batia nele. Hoje não faço mais isso. Até machuquei ele batendo com o cabo da vassoura. Ficou marcado nos braços dele. Eu me atacava... (chorou)." Mãe, escola pública, aluno agressivo.

Houve situações de contradição entre os membros da família: os adolescentes afirmando que sofriam algum tipo de punição e os pais negando. Também aconteceu o contrário, filhos gravemente punidos negaram a situação, que foi relatada pelo genitor abusivo, corroborando estudos que afirmam que a criança vitimizada costuma manter-se calada, mantendo-se fiel ao adulto maltratante, muitas vezes o único vínculo afetivo que possui. Este comportamento pareceu mais comum nas formas graves de abuso quando mobiliza intensos sentimentos de vergonha, medo e culpa (Kempe & Kempe, 1983).

"Batia muito nele. Ele me questionava e era quem mais apanhava. Eu perdia a cabeça. Ele tem o dom de me fazer perder a cabeça. Sempre tinha alguma coisa que ele fazia para me atacar. Respondia com alguma coisa que sabia que ia bater no fígado. Então eu ia para cima dele e batia forte. Se eu vou bater, bato com força. Na cabeça. É chocante o visual: aquele homem batendo com força na cabeça do guri." Pai, escola particular, aluno não agressivo.

No depoimento anterior, o adulto abusivo projetava os aspectos agressivos no filho, percebido como provocador. Ele afirmou que o filho o fazia perder a cabeça e ele batia na cabeça do menino. Outros pais declararam: "Eu não me dou com esse filho"; "Ele faz o sangue subir na minha cabeça"; "Ele tem o dom de me provocar". Isto para justificar atos abusivos e, em última instância, modificar a condição de vítima para a de ré.

A situação mais dramática foi a da violência mesclada com sexualidade, formas perversas de abuso:

"Minha mãe me dá de relho. Tira a roupa minha e do meu irmão e dá de relho." Adolescente não agressivo, escola pública.

"Ele me disse que te contou que eu bato nele... Sabe, eu peguei uma cinta e dei umas cintadas nele. Levei pro quarto. Baixei o abrigo, senão não dói, deixei ele só de cueca e dei umas cintadas. De vez em quando precisa, não é? De vez em quando tem que dar uns tapas, não é? O que eu vou fazer?" Mãe, adolescente não agressivo, escola pública.

Algumas famílias mostraram-se tão dilaceradas que parecia não ter sobrado nada a não ser a raiva. Agressões verbais, físicas, retaliações, jogos de poder e de fúria. Nas famílias punitivas, havia menos flexibilidade e diálogo, mais rigidez nas relações e papéis desempenhados, além de maior quantidade de conflitos entre os irmãos.

Muitos adolescentes punidos ainda estavam sendo maltratados. Esses alunos, e principalmente suas famílias, precisariam de um atendimento imediato.

"Tento falar com a minha mãe que eu já tô grande para apanhar assim. Ela bate quando a gente faz arte. Surra de cinta. Não pode fazer barulho, ela fica braba. Ela acha que eu debocho dela. Daí ela me surra. Diz que eu provoco ela." Adolescente não agressivo, escola pública.

A dominação e o autoritarismo perpassavam muitos dos espaços da vida destes adolescentes. A violência doméstica incorporada nos castigos e práticas educativas foi apenas um de seus aspectos. A violência está expressa nas discriminações de gênero, idade e raça, nas contradições entre discurso e prática dos adultos, na conduta das escolas, evidentemente mais acentuada no colégio público, e principalmente na violência estrutural da sociedade que fecha a estes jovens as portas da esperança.

Considera-se oportuno, e até esperançoso, finalizar com o relato de uma família não punitiva. Estas famílias também estiveram presentes neste estudo. Elas enfrentam problemas e crises, como qualquer outra família, mas procuram resolvê-los de forma mais aberta, flexível, democrática e, inclusive, bem-humorada.

"Acho que se deve cortar alguma coisa, mas alguma coisa leve. Não tenho penalidade drástica. O assunto aqui em casa é muito debatido. Eu acredito muito na conversa, até pelo fato de ser juiz. Senão a pena termina sendo uma vingança. Não é preciso ficar tudo tão bordado de punições." Pai, adolescente agressivo, escola particular.

7. Considerações finais

" ... não me peça exatidão porque vou cometer erros, muita coisa eu me esqueço ou se distorce, não guardo lugares, datas, nem nomes; em compensação, nunca deixo escapar uma boa história." Isabel Allende

Esta pesquisa confirmou a idéia inicial de que adolescentes agressivos na escola teriam experimentado mais episódios de violência doméstica do que os não agressivos. Contudo, o mais estarrecedor foi verificar o quanto a punição física das crianças está disseminada na sociedade e é aceita como prática disciplinar de jovens e adolescentes.

Entrevistar os adolescentes foi mais difícil que entrevistar adultos, talvez porque os adultos sejam mais verbais, enquanto os adolescentes utilizam linguagem não verbal, expressões fisionômicas, sorrisos, gestos. Também são mais tímidos e desconfiados, temerosos de serem delatados. Esses adolescentes são aculturados pelos adultos, cooptados, punidos fisicamente, pressionados verbalmente, chantageados pelos pais ou familiares com os quais vivem, em nome da socialização, do bom desempenho escolar, das responsabilidades. Enfim, "para o próprio bem deles". Os adultos declararam-se cheios de boas intenções, mesmo quando estavam sendo violentamente punitivos e cruéis. Essas constatações levaram a autora, sentindo-se solidária com estes jovens, tantas vezes tão desprotegidos, a modificar a denominação inicial do estudo: Por que nossos adolescentes são tão agressivos? para o agora evidente: Por que somos tão agressivos com nossos adolescentes?, que se tornou o título de passagem durante o transcurso do trabalho, documentando a mudança de postura e de ponto de vista que aconteceu no processo da pesquisa.

A fantasia inicial de que as famílias se recusariam a participar do trabalho ou se calariam, de que o homem seria o membro mais arredio nas entrevistas, não se confirmou. Não só as pessoas participaram como se sentiram aliviadas com isso e muitas agradeceram a oportunidade de participar do estudo. Houve questionamentos em relação à profundidade e/ou fidedignidade das respostas, embora estas dúvidas pudessem significar uma reflexão sobre o processo de trabalho.

"Olha, é engraçado. Na verdade, perguntas coisas bem pessoais. Já pensou, se eu desse pau nele ia ter que te contar, e é uma coisa horrorosa. Ou ia ter que mentir que também é uma coisa horrorosa. Eu tenho uma relação com uma pessoa que quer se desenvolver intelectualmente. Tu não ia me tirar pedaços. Ia fazer alguma pergunta indiscreta. Mas trabalho científico é trabalho científico. Eu não sei se tu consegues ultrapassar a couraça das defesas... ." Pai, adolescente agressivo, escola particular.

Ficou evidente que o trabalho com adolescentes em crise deve ser realizado junto à família. O adolescente com comportamento violento está denunciando alguma coisa, quer seja maus-tratos, abuso sexual, solidão, dor. Articulando-se com a família, a escola e a equipe de saúde somam esforços e, certamente, muitos nós poderão ser desatados. O papel do professor é valioso: identificando situações, encaminhando, ouvindo a família, acolhendo. Começa aqui a atuação interdisciplinar (Cruz Neto et al., 1993).

Considera-se oportuno comentar a mudança interna que ocorreu na pesquisadora. Nesta tarefa de coletar histórias de vida, compartilhar emoções, dores e segredos, muitos foram os sentimentos que brotaram, porém, "... se invadi estas pessoas fui, concomitantemente, invadida por elas. Em suma, sei que infringi normas de imparcialidade na coleta dos dados (...) parece-me que o ponto central não é como proceder para atingir a imparcialidade mas antes o de explicitar, sempre que possível, o modo como foi conduzido o trabalho de campo" (Salem, 1979:63).

Estas histórias, tantas, estas famílias inteiras e aos pedaços, estes adolescentes machucados, tristes, marcados, estas dores e também as alegrias, foram fermentando na cabeça e no coração da pesquisadora para torná-la uma outra pessoa. A constatação da universalidade dos temas, "a lágrima na pele branca, na pele escura", o cinto que corre, a culpa, os preconceitos do lado de lá, do lado de cá, as tramas, a impotência e o começar de novo, porque, sem dúvida, chega-se à parede dos próprios limites. Limites que são o novo ponto de partida. No fim da jornada, ou, quem sabe, "na metade do caminho", percebo que, no transcurso da tarefa, obtive um pequeno, frágil, fugidio e volátil fragmento de conhecimento da mesma natureza, acredito, daquela força que "move o sol e as estrelas!".

8. Referências

APA (American Psychiatric Association), 1994. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders DSM-IV. Washington, D.C.: American Psychiatric Association.

ASSIS, S. G., 1991. Quando Crescer é um Desafio Social: Um Estudo Sócio-Epidemiológico sobre Violência em Escolares em Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.

BLOMHOFF, S.; SEIM, S. & FRIIS, S., 1990. Can prediction of violence among psychiatric impatients be improved? Hospital Community Psychiatry, 41:771-775.

CHESS, S. & HASSIBI, M., 1982. Distúrbios de conduta. In: Princípios e Práticas de Psiquiatria Infantil (S. Chess & M. Hassibi, eds.), pp. 91-166. Porto Alegre: Artes Médicas.

CRUZ NETO, O.; SOUZA, E. R. & ASSIS, S. G., 1993. Entre o determinismo e a superação: algumas considerações. In: O Limite da Exclusão Social: Meninos e Meninas de Rua no Brasil (M. C. Mynaio, ed.), pp. 117-124. São Paulo: Hucitec.

DESLANDES, S., 1994. Atenção a crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica. Cadernos de Saúde Pública, 10(supl.1):177-188.         [ SciELO ]

DODGE, K. A.; BATES, J. E. & PETTIT, G. S., 1991. Mechanisms in the cycle of violence. Science, 250:1.678-1.683.

EISENSTEIN, E. & SOUZA, R. P., 1993. Situações de Risco à Saúde de Crianças e Adolescentes. Rio de Janeiro: Vozes.

FALCETO, O. G., 1989. Diagnóstico psiquiátrico de família. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 11:131-136.         [ Lilacs ]

FAGAN, J. & WEXLER, S., 1987. Crime at home and the streets: the relationships between family and strange violence. Violence and Victims, 2:5-23.

FERNANDEZ, A., 1992. A agressividade: qual o teu papel na aprendizagem? In: Paixão de Aprender (E. Grossi, ed.), pp. 168-180. Rio de Janeiro: Vozes.

FORCHAND, R., 1991. The role of the family stressors and parent relationships on adolescent functioning. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, 30:316.

GIL, E., 1990. Treatment of Adults Survivors of Childwood Abuse. California: Sage Publications.

KAPLAN, H. & SADOCK, B., 1993. Condições não atribuíveis a um transtorno mental. In: Compêndio de Psiquiatria (H. Kaplan & B. Sadock, eds.), 6a ed., pp. 577-587. Porto Alegre: Artes Médicas.

KAYAYAN, A., 1992. Violência e saúde. IX Conferência Nacional de Saúde. Brasília: Universidade Nacional de Brasília. Cadernos Descentralizando e Democratizando o Conhecimento, 9:13-17.

KEMPE, R. & KEMPE, H., 1983. Child Abuse. Suffolk: Fontana Paperbooks.

LEVISKY, D. L. e cols., 1997. Adolescência e Violência Conseqüências da Realidade Brasileira. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

LEWIS, J., 1981. A família do paciente. In: Psiquiatria na Prática Médica (G. Usdin & J. Lewis, eds.), pp. 68-69. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan.

MENEGHEL, S. N., 1986. Vigilância das principais causas de óbito prematuro. Boletim da Saúde, 13:34-36.

MINAYO, M. C., 1990a. Bibliografia Comentada na Produção Científica Brasileira sobre Violência e Saúde. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.

MINAYO, M. C., 1990b. A violência na adolescência em foco a adolescência descamisada. Cadernos de Saúde Pública, 6:278-292.

MINAYO, M. C., 1993. O Limite da Exclusão Meninos e Meninas de Rua no Brasil. Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco.

MINAYO, M. C. & ASSIS, S., 1993. Violência e saúde na infância e adolescência: uma agenda de investigação estratégica. Saúde em Debate, 39:58-63.

MUZA, G. M., 1994. A criança abusada e negligenciada. Jornal de Pediatria, 70:56-60.         [ Medline ]        [ Lilacs ]

OATES, R. J., 1984. Personality development after physical abuse. Archives of Disease in Childhood, 59:147-150.

OSÓRIO, L. C., 1982. Síndrome delinqüencial: um estudo sobre a psicopatologia do adolescente. In: Infância e Adolescência (J. Outeiral, ed.), pp. 74-86. Porto Alegre: Artes Médicas.

PELTON, L., 1980. Child abuse and neglect: the myth of classlessness. In: Child Abuse and Neglect Comission and Omission (J. V. Cook & R. T. Bowles, eds.), pp. 87-96. Toronto: Butterworth and Company Limited.

SSMA (Secretaria de Saúde e Meio Ambiente), 1996. Estatística de Saúde Mortalidade. Porto Alegre: SSMA.

SALEM, T., 1979. Entrevistando famílias: notas sobre o trabalho de campo. In: A Aventura Sociológica (E. Nunes, ed.), pp. 47-64. Rio de Janeiro: Zahar.

STITH, D., 1993. Can physicians help curb adolescent violence? Hospital Practice, 27:193-207.

WOLFF, S., 1985. Non-delinquent disturbances of conduct. In: Child and Adolescent Psychiatry (M. Rutter & L. Hessor, eds.), 3a ed. pp. 400-423. Boston: Blackwell Scientific Publications.

ZALUAR, A., 1986. Teoria e prática do trabalho de campo, alguns problemas. In: A Aventura Antropológica (R. Cardoso, ed.), 2a ed., pp. 107-126. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Stela Nazareth Meneghel 1; Elsa J. Giugliani 2; Olga Falceto 3 - elsag[arroba]terra.com.br

1 Escola de Saúde Pública, Secretaria de Saúde e Meio Ambiente. Av. Ipiranga 6311, Porto Alegre, RS 90610-001, Brasil.

2 Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ramiro Barcelos 2600, 4o andar, Porto Alegre, RS 90035-003, Brasil.

3 Departamento de Psiquiatria, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ramiro Barcelos 2350, térreo, Porto Alegre, RS 90035-003, Brasil.



 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.