Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 

O POPULAR E SUA CULTURA

"salve aquele que se presta

a esta ocupação

salve o compositor popular"

(Caetano Velloso)

Para tratar da questão da cultura popular é preciso de início saber que se está lidando com um termo esquivo, dado a muitas definições e repleto de ambigüidades. Tentaremos portanto circunscrever essa expressão de modo não deixa-la demasiadamente ampla e vaga. Se fossemos tomar como definição o que diz os verbetes dos dicionários, pelos menos em suas primeiras acepções, correríamos o risco de não avançarmos muito. Isso porque tanto no "Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa" como no "Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa", encontramos primeiramente a idéia de povo enquanto totalidade de um território ou de uma região. Somente na sexta acepção do primeiro e na oitava do segundo encontramos a idéia de que povo se refere a uma determinada parte do conjunto total de participantes de uma sociedade. Assim conceitua o segundo dicionário mencionado: "conjunto dos cidadãos de um país, excluindo-se os dirigentes e a elite econômica". Há nessa perspectiva a conceituação de popular por oposição, ou ainda, pela sua negativa.. Cultura popular seria então um conjunto de práticas culturais levadas a cabo pelos extratos inferiores, pelas camadas mais baixas de uma determinada sociedade.

O termo cultura nos parece, concordando com Peter Burke, ainda mais controverso. Burke nos fala de uma ampliação do conceito em tempos mais ou menos recentes. Escreve o historiador que até o século XVIII

"o termo cultura tendia a referir-se à arte, literatura e música (...) hoje contudo seguindo o exemplo dos antropólogos, os historiadores e outros usam o termo "cultura" muito mais amplamente, para referir-se a quase tudo que pode ser apreendido em uma dada sociedade, como comer, beber, andar, falar, silenciar e assim por diante" (Burke,1989:25).

A filósofa Marilena Chauí em sua obra "conformismo e resistência – aspectos da cultura popular no Brasil", faz primeiramente uma abordagem do termo através de sua etimologia. Dessa forma revela que o termo cultura vem do verbo latino colere que originalmente era utilizado para o cultivo ou cuidado com a planta. Por analogia o termo foi empregado para outros tipos de cuidados, como o cuidado com a criança ou puericultura, o cuidado com ou deuses, ou culto etc. cultura era então o cuidado com tudo que dissesse respeito aos interesses do homem, quer fosse material ou simbólico. Para a manutenção desse cuidado era preciso a preservação da memória e a transmissão de como deveria se processar esse cuidado, daí o vínculo com a educação a ao cultivo do espírito. O homem culto teria então uma interioridade "cultivada para a verdade e a beleza, inseparáveis da Natureza e do Sagrado". (Chauí,1986:11). A partir do século XVIII, no entanto, o termo vai se ligar a um outro, a saber, o vocábulo civilização. Essa ligação se estabelecerá positiva ou negativamente conforme a linha de pensamento. Para os românticos enquanto civilização expressa artificialidade, convenção, "sujeição da sensibilidade e do ‘bom natural’ aos espartilhos da razão artificiosa", cultura era "bondade natural, interioridade espiritual".(Rousseau apud Chauí, 1986:12). A partir do conceito de Rousseau percebemos o germe do pensamento romântico. Por outro lado a ilustração via positivamente a articulação dos dois termos, uma vez que, os dois termos concorriam para o desenvolvimento ou aperfeiçoamento do ser humano. A cultura era medida de uma civilização, não era concebida como natureza como viam os românticos, mas

"específico da natureza humana, isto é, o desenvolvimento autônomo da razão na compreensão dos homens, da natureza e da sociedade para criar uma ordem superior (civilizada) contra a ignorância e a superstição" (Chauí, 1986:13).

Percebemos a partir da explicação de Chauí, que a ampliação do conceito no século XVIII da qual nos fala acima Peter Burke, está mais ligada aos pensadores ilustrados, cuja reflexão, se encaminhava no sentido de perceber cultura justamente como não natural, pois a natureza era entendida, por essa perspectiva, como contingência e imobilidade, ou ainda como o "reino das causas mecânicas". A cultura por sua vez era invenção, mobilidade, ou "o reino humano da história". Adotaremos aqui o termo cultura para designar o conjunto de práticas materiais e espirituais elaboradas pelos homens na sua vida social, ou seja, entenderemos cultura como o "campo simbólico e material das atividades humanas" (Chauí,1986:14).

É interessante notar que justamente no momento de definição dos estados nacionais, isto é, por volta do século XVIII, ocorre na Europa um movimento de resgate das produções culturais do povo. Esse é também o momento da revolução industrial e de um forte impulso de urbanização da sociedade européia, que praticamente vai redesenhar os modos de relação social naquele continente, com posterior impacto em todo o globo.

Vimos mo capítulo anterior, como a formação dos estados nacionais na Europa moderna produziu , de certa forma, unidades muitas vezes artificiais, fazendo com que grupos que se entendiam distintos culturalmente, passassem a pertencer a uma mesma identidade, agora configurando um estado nacional. Esse processo de formação dos estados nacionais não se deu de forma homogênea no continente europeu. A França e a Inglaterra tiveram a dianteira, e por outro lado, a Itália e a Alemanha foram os últimos a realizarem suas unificações.

O historiador inglês Peter Burke observa que é justamente na Alemanha, um dos paises retardatários, onde começa a surgir uma série de termos para definir essas produções do povo. Nesse sentido surge volkslied para designar canção popular, volksmärchen para falar de conto popular e ainda outros termos surgidos posteriormente em outros países. De todo modo, a Alemanha teve a primazia na criação desses termos (Burke,1989:32).

Se a Alemanha teve precedência sobre os outros países europeus na elaboração desses novos termos, é na obra de J.G. Herder e dos irmãos Grimm onde melhor se definem as concepções e valorizações das produções populares. Para esses autores não era meramente uma questão de valoração estética daquelas produções, mas de encontrar nelas um tipo de expressão que estava em vias de desaparecimento por conta da ação da urbanização, e do próprio processo civilizatório que de certa forma privilegiava o artificial em detrimento do natural. Esses autores viam na cultura popular, e mais precisamente na poesia popular um tipo de produção coletiva, desindividualizada, expressão dos anseios e desejos de toda a coletividade. Era uma "poesia da natureza", tão natural como as árvores e montanhas. Encontramos aqui, aquele mesmo tipo de orientação que presidia a focalização de Rousseau quando distinguia cultura e civilização como par antitético.

Essa visão sobre a cultura popular, segundo Burke, tornou-se bastante aceita e rapidamente os setores cultos da sociedade passaram a se interessar por coleções de poesia popular, contos populares e música popular. Esse movimento foi denominado pelo historiador inglês como "a descoberta do povo", e ele via uma série de razões para que isso estivesse acontecendo naquele momento histórico. Eram elas: razões estéticas, que se referiam a uma insubordinação contra o artificial na arte culta e conseqüente valorização das formas simples; razões intelectuais que tinham a ver com uma postura hostil para com o iluminismo, enquanto pensamento valorizador da razão em detrimento do sentimento e das emoções. Havia também ainda com relação ao aspecto intelectual um desprezo para com as regras clássicas da dramaturgia, herdadas do pensamento aristotélico. O próprio Herder e também Goethe se manifestaram apoiando o rompimento das unidades clássicas afirmando que elas eram por demais inibidoras da espontaneidade e da imaginação; e por fim as razões políticas, que estavam ligadas as hostilidades contra a França, e seu iluminismo, alimentadas por países como a Alemanha e a Espanha.

É preciso lembrar que esse também era o momento da formação dos estados nacionais, e a busca das identidades nacionais passava obrigatoriamente pelo resgate das tradições populares. Isso não quer dizer que os pesquisadores envolvidos tivessem obrigatoriamente que estar vinculados a questão nacionalista, pelo menos no que diz respeito ao aspecto político deste. Burke lembra, no entanto, que algumas edições de coleções populares de canções, foram largamente utilizadas com o fito de produzir sentimentos nacionalistas. Foi o caso da publicação de uma coleção intitulada Wunderhorn, publicada concomitantemente a invasão napoleônica na Alemanha. Havia a pretensão expressa dos editores em transformar aquela coleção em estímulo para a consciência nacional alemã. Houve também a recomendação de um líder prussiano, de que aquela publicação era um auxiliar na luta contra o invasor.

Podemos entender a partir do que vimos até aqui, que a cultura popular pode servir de elemento constituinte básico para a formação de uma unidade nacional, oferecendo a esta uma memória a ser compartilhada e símbolos capazes de produzir um eficiente nível de coesão social. Por outro ela também pode ser um empecilho, no sentido de que a constituição do estado nação, e vimos isso no capítulo anterior, se consolidou se sobrepondo às unidades culturais existentes tentando homogeneizá-las, transformando-as em parte dessa nova estrutura nacional. Nesse sentido vimos que a cultura popular serviu como resistência cultural ao processo de unificação nacional.

Vimos anteriormente como românticos e iluminados se configuraram como pares antitéticos quanto à abordagem da questão da cultura. No que diz respeito ao tema do popular não será diferente. Os iluministas valendo-se de concepções herdadas de períodos anteriores viam na figura do povo uma realidade ambígua. Ele representava a legitimação do governo civil nos ideais republicanos e dava corpo à democracia por um lado, e por outro representava ameaça a estabilidade política com seu ímpeto anárquico e desestabilizador. O programa iluminista deixava claro a sua contradição, no que tange a presença do povo no novo cenário político que iria surgir a partir do final do século XVIII. Segundo Jesus Martin Barbero em seu livro "dos meios às mediações" a figura do povo legitimava o poder da burguesia "na medida exata em que essa invocação articula sua exclusão da cultura" é essa exclusão que possibilitará a conceituação do povo pela sua negatividade. O povo será definido então pelo que lhe falta e essa ausência de cultura se ligará a idéia de povo inculto, portanto desprovido de capacidade de ação política do ponto de vista de uma ação racional.

Ao contrário do programa iluminista que pensava o povo mais na política, o pensamento romântico pensava-o na cultura. A visão romântica estabelecia uma antinomia entre a imaginação, a espontaneidade, a vida comunitária e a simplicidade, como atributos do povo, e o racionalismo e o utilitarismo representado pela ilustração. A busca dos românticos para encontrar essa pureza e essa vida orgânica do povo, que faria frente aos artificialismos da vida burguesa preconizada pelos iluministas, deveria se dar pelo estudo da poesia popular. Produção essa que encarnava todo o espírito popular no seu mais alto grau de singeleza e pureza, representando no dizer de Peter Burke o verdadeiro "tesouro da vida" , nessa empreitada de arqueologia romântica.

Toda essa discussão travada por românticos e iluministas ocorreu no século XVIII, momento que representou uma etapa importante no que diz respeito ao quesito da assunção das massas no cenário político e cultural ocidental. A passagem dos séculos não trouxe convergência nos discursos, ao contrário, a passagem dos anos trouxe, na verdade, mais lenha para os conflitos interpretativos desse fenômeno tipicamente moderno.

Na visão de Barbero a questão da emergência das massas e a configuração de uma sociedade de massa, já estavam colocadas desde o século XIX através de alguns pensadores. Critica portanto alguns críticos que situam nos 1930/1940 a ocorrência do referido fenômeno. Barbero passa em revista as teses de alguns pensadores que pensaram essa questão dos quais destacamos: Tocqueville – para esse pensador francês a ameaça representada pelas massas não se dava de fora para dentro do sistema social, com as massas representando um perigo exterior. O povo era pensado como parte integrante da constituição social, do qual emanava o próprio sentido de justiça, legalidade etc. Tocqueville via nessa configuração o germe da democracia moderna e isso não lhe soava nada positivo. Assim se refere Barbero as análises de Tocqueville:

"se democrática é uma sociedade na qual desaparecem as antigas distinções de castas, categorias e classes, e na qual qualquer ofício ou dignidade é acessível a todos, uma sociedade assim não pode não relegar a liberdade dos cidadãos e a independência individual a um plano secundário: o primeiro ocupará sempre a vontade das maiorias. E desse modo o que vem a ter verdadeira importância não é aquele em que há razão e virtude, mas aquele que é querido pela maioria, isto é; o que se impõe unicamente pela quantidade de pessoas. Dessa maneira o que constitui o princípio moderno do poder legítimo acabará legitimando a maior das tiranias" (Barbero,1997:57).

Percebe-se por essa leitura que a visão do pensador francês era um tanto carregada de pessimismo e assentada em um certo aristocratismo, mas não podemos deixar de notar, até mesmo uma certa antevisão do que veio a se constituir no século seguinte em nome desse tipo de poder constituído em nome da maioria. Pela esquerda o stalinismo realizou uma versão do marxismo e pela direita as experiências nazistas na Alemanha e o fascismo na Itália, bem como diversos populismos nas Américas do sul e central.

Barbero salienta ainda que subjazia a visão de Tocqueville um questionamento que foi da maior importância, a saber, "pode-se separar o movimento pela igualdade social e política do processo de homogeneização e uniformização cultural?". O problema para Barbero era que nos termos em que Tocqueville a colocava ela era representativa de um certo medo. Em contraponto com esse medo a visão do pensador alemão Engels refletia sobre os mesmos fatos e concluía que a massificação e homogeneização das formas de exploração, eram justamente o que produziria uma tomada de consciência por parte dos trabalhadores, produzindo uma possível superação daquele modelo social.

Na mesma linha de Tocqueville, Barbero situa o pensamento de Stuart Mill para quem a sociedade constitui "uma vasta e dispersa agregação de indivíduos isolados" e que a igualdade do ponto de vista civil poderia representar a possibilidade de uma vida mais orgânica, mas que de fato isso não acontece por causa do rompimento das relações hierarquizadas, e o que se tem então é uma degradação. Há portanto nessa visão uma homologia entre o termo massa e a expressão "mediocridade coletiva".

Após o movimento da comuna de Paris onde o poder da burguesia chegou a ser frontalmente questionado, passou a ser imperativo para essa classe não só mais entender a relação massa/sociedade, mas de criar meios de controle social. Nesse sentido a psicologia será de grande valia para guiar os passos desse controle de forma mais eficiente e científica. Através das técnicas de abordagem advindas da psicologia de massa, poder-se-ia entender a irracionalidade das massas. É nessa perspectiva que surge o trabalho do psicólogo Gustave Le Bon. Para esse cientista a massa era inevitável em uma sociedade industrial, portanto se fazia mister a compreensão do que a fundamenta. Le Bon via como fundamento da massa o que ele chamava de alma coletiva, que fazia um indivíduo agir em grupo de uma forma que ele não agiria individualmente. Acrecentava ainda que essa alma se formava através de uma "regressão até um estado primitivo" (Barbero,1997:60).

Outro autores são citados por Barbero, tais como Oswald Splenger, Wilhelm Reich e outros, mas por motivo de objetividade descreveremos aqui apenas mais um, Ortega y Gasset. A visão desse autor é bastante pessimista e ele vê na onipresença das massas um sintoma de decadência da cultura ocidental. "Mediocridade e especialização" dão a tônica do século XX e inclusive os espaços antes reservados às minorias criativas se vêem tomados pelas massas. Em um dado momento Barbero cita o próprio Ortega y Gasset, quando esse se valendo de uma imagem bastante forte diz:

A rebelião das massas é a mesma coisa que Rathenau chamava de a invasão vertical dos bárbaros. Ou seja; o retorno daquela definitiva idade média que não é a histórica, pois não está no passado, mas no futuro-presente e seus bárbaros invadindo-nos agora verticalmente, quer dizer, de baixo para cima" (Barbero,1997:65).

Com relação a questão cultural mais especificamente, Ortega y Gasset estabelece um conceito pelo qual cultura vai se definir pelas normas, ou seja, quanto mais norma mais cultura, e é essa incapacidade de se mover de forma racional e normativa que vai afastar as massas de uma produção cultural que valha esse nome. Em outras palavras Ortega y Gasset pensa a impossibilidade e a incapacidade da massa produzir cultura. Nesse mesmo sentido ele vê as produções artísticas de vanguarda como uma solução que põe a nu a ignorância e a incapacidade da massa de entender e fruir esteticamente. Assim Barbero se refere:

"o melhor dessa arte é que desmascara culturalmente as massas: frente a elas não podem fingir que gozam, tanto lhes aborrece e irrita. Cultura criativa, a nova arte é a vingança da minoria que, em meio do igualitarismo social e da massificação cultural, nos torna patente que ainda há classes. E nessa distinção que separa é onde reside para Ortega a possibilidade mesma da sobrevivência da cultura" (Barbero,1997:66).

No balanço final da obra de Ortega y Gasset, Barbero afirma que apesar do aristocratismo desse autor algumas observações são bastante pertinentes. Cita por exemplo a visão de que o processo de produção vanguardista levará a uma "desumanização" da arte, onde essa buscará sua pureza, alheia aos sentimentalismos tão ao gosto da massa. Essa busca a si mesmo operada pela arte moderna, causará um desconforto nos regimes totalitários, como os regimes stalinistas e nazistas, tão ciosos de uma produção artística que alimente seus intentos ideológicos.

A crítica dos pensadores de origem européia se articula por um certo pessimismo, talvez com exceção do pensamento marxista, todos vêem nas movimentações das massas no cenário urbano e moderno, o risco da desestabilização e da decadência moral e cultural. O pólo oposto a esse pensamento, são as análises dos pensadores americanos já no século XX. Assim se refere Barbero:

"para os teóricos norte-americanos dos anos 1940-1950 a cultura de massa representa a afirmação e a aposta na sociedade de democracia completa" (Barbero,1997:69).

O primeiro teórico americano a expressar positivamente a identificação de cultura de massa e democracia, foi Daniel Bell. Para esse pensador a nova sociedade de consumo trazia consigo uma nova revolução re-configurando as relações sociais em todo ocidente. Os lugares de mediação antes realizada por instituições como a família e a escola, passava agora para os meios de comunicação de massa, esses despontando como os novos formadores do imaginário social. Outros pensadores americanos, tais como Edward Shils e David Riesman também expressaram um profundo otimismo para com o advento da nova sociedade de massa, nascida do deslocamento da sociedade de produção para a sociedade de consumo.

No final do capítulo "povo e massa na cultura: os marcos do debate" Jesús Martin-Barbero elabora uma breve crítica ao pensamento americano e reconhece algumas virtudes. Crítica por exemplo o fato de que mesmo superando uma visão aristocrática de cultura engendrada por pensadores europeus dos séculos XIX e XX, os teóricos americanos produziram uma análise cultural separada das relações de poder e que esse pensamento

"permaneceu amarrado ao idealismo liberal que desvincula a cultura do trabalho como espaços separados da necessidade e do prazer, e conduzindo-a a um culturalismo que acaba reduzindo a sociedade à cultura e a cultura ao consumo" (Barbero,1997:73).

O aspecto positivo observado na abordagem americana fica por conta da constatação de que pela primeira vez, as massas modernas foram pensadas positivamente. Remetendo o estudo do popular não só ao que elas produzem, mas também o que elas consomem. Pensar o fazer popular na sua contemporaneidade é para Barbero um desafio lançado pelos estudos americanos.

Identidade Nacional e Cultura Popular no Brasil

"Sou brasileiro

e não nego minha raça

faço verso por pirraça

e também por precisão".

(Edu Lobo e Cacaso)

Vimos nos capítulos anteriores como a idéia de Estado Nacional formulada e gestada durante um longo período na Europa, acabou por se definir no século XVIII como um poderoso elemento de coesão e de coerção social. Ele configurou-se como a expressão moderna oriunda da correlação de forças, que estavam em jogo naquele momento na Europa. Na idade média um homem se sentiria primeiramente cristão e só depois se diria francês, essa situação se inverte fazendo com que a nacionalidade ocupe o primeiro item de hierarquia de identidade e pertencimento, relegando a identidade religiosa a um segundo plano (Moreira,1999:312-313).

O Brasil, país integrado perifericamente no sistema capitalista internacional, tardou um pouco a discutir a questão nacional e é no século XIX que se inicia por aqui a busca do caráter nacional e da identidade nacional. A filósofa Marilena Chauí em seu livro "Brasil- mito fundador e sociedade autoritária" distingue os termos caráter e identidade, e para expor essa diferença ela se vale de um esquema traçado pelo historiador inglês Eric Hobsbawm, no qual esse pensador define o ano de 1830 como marco do aparecimento do termo nação no vocabulário político. Em sua periodização ele divisa três etapas: de 1830 a 1880 como "princípio de nacionalidade" momento em que se estabelece primordialmente a relação de nação e território cujo discurso se ligava à economia política liberal; a segunda etapa de 1880 a 1918 se estabelecia a "idéia nacional" onde nação se ligava a língua e cujos discursos provinham dos intelectuais pequeno-burgueses; e por último o período de 1918 a 1950/1960 momento da "questão nacional" associada a consciência nacional e lealdades políticas defendidas pelos estados e partidos políticos.

A partir desse esquema elaborado por Hobsbawm, Marilena Chauí define a idéia de caráter nacional ligado ao "princípio de nacionalidade" (1830 a 1880) e à "idéia nacional" (1880 a 1918). O caráter poderia ser entendido como "disposição natural de um povo e sua expressão cultural" e aprofundando mais um pouco cita o também historiador Perry Anderson quando esse afirma que:

"o conceito de caráter é em princípio compreensivo, cobrindo todos os traços de um indivíduo ou grupo; ele é auto-suficiente, não necessitando de referência externa para sua definição; e é mutável, permitindo modificações parciais ou gerais" (Chauí,1996:21)

Nessa perspectiva de análise o caráter é visto como uma ideologia, que percebe a realidade brasileira ora positiva, ora negativamente, mas sempre de um modo pleno e totalizado. Esse caráter se constitui enquanto natureza, motivo pelo qual tem uma realidade determinada, onde cada elemento da composição étnica, ou racial como se dizia então, tinha sua própria característica, e a miscigenação por sua vez era também geradora de um caráter, que conforme o autor, (Sílvio Romero, Afonso Celso, Gilberto Freyre) era visto positiva ou negativamente. O caráter era então visto em termos absolutos e não em comparação com outros povos, modo de abordagem que qualificou as análises que convergiram para a definição de uma identidade nacional brasileira. Esse conceito foi forjado pelo cotejamento do Brasil com as nações industrializadas, que compunham o núcleo do desenvolvimento capitalista de então. A partir da comparação com esses países o Brasil era entendido como subdesenvolvido, sem uma burguesia nacional que implementasse um projeto de desenvolvimento, sem um proletariado apto a realizar um programa de enfrentamento com as elites. Ao contrário do caráter a identidade nacional se constituiu como ausência e lacuna (Chauí,1996:28).

A discussão a cerca da questão da identidade nacional tem sido uma constante no Brasil. Ela toma caminhos diferenciados conforme a etapa do desenvolvimento do pensamento brasileiro ou os atores em cena. A análise acima, expressa por Marilena Chauí a título de diferenciação do caráter e da identidade nacional, corresponde a apenas uma das argumentações.

No livro "cultura brasileira e identidade nacional", Renato Ortiz define alguns pontos de inflexão da conceituação do nacional no Brasil. Ele escreve que primeiramente as discussões estavam ligadas a questão do caráter nacional, como distinguiu Marilena Chauí, para depois se concentrar propriamente em torno da identidade nacional. Ortiz indica que é no século XIX que se inicia o debate em torno do caráter brasileiro, nesse momento os intelectuais brasileiros envolvidos com essas formulações estavam muito influenciados pelas teses "raciológicas" e evolucionistas, tão em evidência naquele momento. Três autores são arrolados para serem definidos como fundadores das Ciências Sociais no Brasil. São eles: Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues. Ortiz aponta que o binômio raça/clima, se constituiu para esses três pensadores, como um verdadeiro paradigma orientador de suas teses. Sílvio Romero tomou por base as análises de um historiador inglês chamado Buckle, para quem as civilizações se definiam a partir de fatores como calor, umidade, fertilidade da terra etc. chegou-se a ponto de afirmar que a incapacidade civilizatória do Brasil devia-se a um tipo de vento que tínhamos por aqui, os ventos alísios.É uma explicação que pode nos parecer pueril, mas que não só contava com o beneplácito dos setores pensantes de então, como reivindicava uma base científica.

O fator racial estava na ordem no dia na medida em que naquele momento ocorria um significativo aporte de contingentes populacionais vindos da Europa. Na verdade para Sílvio Romero essa questão era ainda mais determinante do que a questão do clima, e aí Ortiz chama a atenção ao fato de que para Romero as teses de Buckle apesar de corretas estavam incompletas, concorrendo então para o seu melhor acabamento a associação com a questão da raça. Silvio Romero se opunha a visão de miscigenação produzida pelo romantismo. Essa visão excluía o negro e idealizava demais a figura do índio. Ortiz explica que antes da abolição da escravatura o negro estava completamente ausente das formulações teóricas do pensamento brasileiro. É somente com o processo do fim da escravidão que o quadro vai se transformar, e o negro vai aparecer como personagem importante na dinâmica da mestiçagem brasileira, sendo entendido por Silvio Romero e Nina Rodrigues como até mais importante que o índio.

A miscigenação brasileira será entendida, a partir das críticas de Sílvio Romero ao romantismo, como o cruzamento de três raças, a saber, a raça branca européia, o negro africano e o índio autóctone. Para os três autores citados por Ortiz, no entanto, o europeu era o primeiro colocado na hierarquia das três raças, uma vez que era o elemento civilizador por excelência. A partir desse momento a miscigenação vai exprimir mais do que uma realidade imediatamente constatável, mas uma exigência no sentido de ser um agente de aclimatação do europeu, que era , como já dissemos, o agente civilizador. A mestiçagem por sua vez trazia algumas questões inconvenientes para aqueles pensadores. Assim Ortiz se refere a essa questão

"O mestiço, enquanto produto do cruzamento entre raças desiguais, encerra, para os autores da época os defeitos e taras transmitidos pela herança biológica. A apatia, a imprevidência, o desequilíbrio moral, e intelectual, a inconsistência, seriam dessa forma qualidades naturais do elemento brasileiro. A mestiçagem simbólica traduz, assim, a realidade inferiorizada do elemento mestiço concreto. Dentro dessa perspectiva a miscigenação moral, intelectual e racial do povo brasileiro só pode existir enquanto possibilidade. O ideal nacional é na verdade uma utopia a ser realizada no futuro ou seja, no processo de branqueamento da sociedade brasileira. É na cadeia da evolução social que poderão ser eliminados os estigmas das ‘raças inferiores’, o que politicamente coloca a construção de um Estado nacional como meta e não como realidade presente" (Ortiz,1994:21).

Ligado à raça e ao clima, mas ao mesmo tempo se descolando desses, vai surgir um outro binômio que atravessará todo o século servindo de fio condutor em outras tantas interpretações do Brasil. Esse binômio será reinterpretado sempre que as condições sócio-políticas assim necessitarem. Estamos falando do nacional-popular, peça chave para o entendimento das diversas explicações que tentaram dar conta de entender o Brasil, ou simplesmente servindo de base para formulações ideológicas elaboradas por grupos hegemônicos da sociedade brasileira.

É interessante notar como a busca do que seria o mais legítimo representante de uma nacionalidade encontre nas produções populares a sua mais acabada expressão. assim foi para o movimento romântico na Europa do século XVIII, e foi também aqui no Brasil, quando da investida em se localizar as fontes originais de nossa nacionalidade.

Apesar dos pensadores do século XIX terem visto na mestiçagem uma possibilidade de solução para as características negativas que constituíam boa parte da nossa formação racial, afinal negros e índios eram vistos como atrasados em relação ao branco europeu, restava um ranço pessimista no que diz respeito ao fatalismo que a abordagem desses pensadores continha. Uma configuração social estabelecida a partir de uma herança biológica dava pouca margem a mudanças, produzindo uma espécie de travejamento que teria de ser superado.

Segundo Renato Ortiz essa superação veio com o deslocamento da idéia de raça para a de cultura. Esse momento coincide com um momento de intensas mudanças as quais o Brasil estava sendo submetido. As primeiras décadas do século XX foram de intensa atividade intelectual e também de um surto de industrialização que transformaria radicalmente as relações sociais no país.

A consagração do mestiço como ente nacional por excelência ocorre , segundo Ortiz, a partir da reelaboração, feita por Gilberto Freyre, das teses dos pensadores que o antecedeu, entre eles Silvio Romero. Há na obra de Gilberto Freyre, "Casa grande e senzala", o deslocamento do conceito de raça para o de cultura. Essa inflexão atendia sobremaneira as novas necessidades do momento histórico. Assim se refere Ortiz a obra de Freyre

"Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada. Só que as condições sociais eram agora diferentes, a sociedade brasileira já não mais se encontrava no num período de transição, os rumos do desenvolvimento eram claros e até um novo Estado procurava orientar essas mudanças. O mito das três raças torna-se então plausível e pode se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambigüidades das teorias racistas, ao serem reelaboradas pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional"(Ortiz,1994:41).

A partir daí podemos entender como o mito da democracia racial pode se consolidar enquanto ideologia e também como rito, pois eventos como os citados por Ortiz, como o carnaval e o futebol, podiam a partir de então serem a gestualização ou a ritualização do mito. Sobre a já citada obra de Gilberto Freyre, Ortiz cunhou a feliz expressão de que ela serviu como "uma carteira de identidade para o brasileiro".

A partir dos anos 1930 com o governo de Getúlio Vargas a cultura passou a ser vista como um importante lócus de interferência do estado no sentido de se produzir um ideal de homem brasileiro. A música, através do samba, foi um desses lugares onde se travou um combate contra a malandragem, por exemplo. O Brasil entrava naquele momento em uma nova etapa de seu desenvolvimento, e os grupos hegemônicos sentiam a necessidade de estabelecer um imaginário que atendesse as expectativas do capitalismo emergente.

Em 1937 com o advento do Estado Novo há, segundo a professora Lúcia Lippi de Oliveira, uma reconceituação do "popular", no sentido de que o termo apresentava uma ambigüidade que o estado tentava equacionar. Por um lado o povo era positivo porque nele se encontrava a alma nacional, associando-se a isso o fato de ser espontâneo, autêntico, e puro. Por outro o povo era visto também como inconsciente, analfabeto, deseducado, precisando pois a ação do estado no sentido de educá-lo e instruí-lo (Oliveira,1992:71). Para essa tarefa de "sentir" os interesses das massas e agir no sentido de satisfazê-la o estado novo contava com seus intelectuais que atuariam entre outras frentes como na questão do resgate de tradições populares. As pesquisas advindas desse momento se constituíram como importantes fontes de informação e até hoje servem de referência a quem se dedica ao tema da pesquisa de cultura popular. Alguns intelectuais do elenco modernista tiveram participação ativa, como no caso de Mario de Andrade.

A década de 1950 inaugurará um outro ciclo econômico e político, que por sua vez exigirá novas conceituações no que diz respeito ao nacional e o popular. O período anterior foi denominado pelo economista Paul Singer como de dependência tolerada (Chauí,1996:34). Essa conceituação dizia respeito ao entendimento que as elites econômicas brasileiras aceitavam o modo como o Brasil foi integrado na divisão internacional do trabalho, cabendo a nós a produção de bens agrícolas, tais como café, algodão, tabaco etc. . Essa situação muda com a consolidação de uma burguesia nacional, com quem os intelectuais progressistas e engajados politicamente acreditavam possível e necessário se estabelecer uma aliança, que visasse a superação de atraso que era identificada por essa elite pensante. O nacional desenvolvimentismo era então a ideologia que consagrava a necessidade de se estabelecer a nível nacional o desenvolvimento industrial, como solução para que nos integrássemos ao conjunto de nações desenvolvidas, e os pensadores que elaboraram essas teses estavam agrupados em torno do ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Marilena Chauí afirma que as teses desse instituto surgem no momento em que as elites brasileiras passaram a entender a questão da dependência não mais como "consentimento", mas como "tolerância". Isso quer dizer que a partir dali iria se compreender a dependência como um dado passível de uma transformação futura, de modo que a aceitação dela era apenas estratégica.

A relação desse novo pensamento brasileiro com a cultura vai se estabelecer através do ideário nacional-popular e da própria reavaliação do conceito de cultura. Renato Ortiz afirma que nos anos 1930 o conceito de raça tinha cedido lugar ao de cultura, com a obra "Casa grande e senzala" de Gilberto Freyre. Essa transformação ocorreu sob os auspícios do culturalismo e da antropologia americana na figura de Franz Boas. A partir dos anos 1950, no entanto, o quadro cultural seria pensado dentro do quadro filosófico e sociológico. A questão cultural era vista pelos isebianos a partir de categorias que os mesmos utilizavam para compreender a realidade nacional, são elas: cultura alienada, colonialismo e autenticidade. A condição colonial era vista pelos teóricos dessa corrente como um dado importante da formação cultural brasileira e mais do que necessário era que essa condição fosse superada. Nesse sentido não era no passado que se deveria buscar as fontes de uma nacionalidade genuína, pura e imaculada. A cultura brasileira era percebida como um vir a ser. Nesse sentido a professora Lúcia Lippi de Oliveira citando Maria Isaura Pereira da Costa esclarece que para os isebianos o homem brasileiro seria

"um homem sem passado, alienado no íntimo do seu ser porque fora colonizado, ao qual haviam sido impostos conjuntos culturais transferidos do interior; tornava-se urgente criar ou descobrir uma cultura nacional válida, que assim se apresentava como um projeto ligado ao futuro, como uma utopia do porvir que serviria de motor à ação" (Queiroz apud oliveira,1992:71).

É dessa forma que vemos uma desvinculação entre cultura popular como folclore e identidade nacional, e se dissemos cultura popular como folclore é porque para esses pensadores rompia-se também a identidade entre esses dois termos. Folclore era a tradição ou o passado, e cultura popular, submetida ao conceito mais geral de cultura, era o presente e como tal, era a possibilidade de transformação e de se romper com o estado de subdesenvolvimento.

Essa visão instrumental da cultura popular vai desaguar como importante estratégia de um outro grupo, que nos anos 1960 será herdeiro, de certa forma, do pensamento isebiano. Trata-se do Centro Popular de Cultura – CPC. Há para os integrantes desse grupo uma distinção entre os construtos da cultura popular, a saber, a arte popular alienada, ou seja , a cultura popular tradicional identificada com o folclore; a arte popular como fruto da elaboração de profissionais e especialistas produzidas para o público das grandes cidades; e por último a arte popular revolucionária tal qual propunha o CPC. A inspiração desse movimento era nitidamente vanguardista, onde os intelectuais trabalhariam no sentido de promover a consciência social dos estratos mais baixos da sociedade. Nessa visão o povo não seria capaz de sozinho produzir sua própria "libertação". Vemos aí um paralelo com a visão desenvolvida nos anos 1930 quando da mesma forma, o governo getulista incentivava os intelectuais para que esses fossem ao encontro das produções da cultura popular, incorporando-a ao projeto de identidade nacional promovida pelo estado-novo. Da mesma forma, nessa perspectiva, os intelectuais seriam agentes dessa operação e o povo entendido como incapaz, carecendo portanto de uma ação externa que venha em sua ajuda. Evidente que as finalidades dos dois grupos comparados eram distintas, porém as realizações esquemáticas eram semelhantes.

A abordagem da questão da cultura popular feita pelos integrantes do CPC não se encaminhava no sentido de produzir uma identificação desta com a nação, numa tentativa de construção de identidade nacional, como foi feito por outros grupos que pensavam de dentro do estado, como no caso dos intelectuais ligados ao DIP no Estado Novo. As teorias dos intelectuais do CPC eram formuladas de fora do aparelho do estado (o CPC era ligado a UNE – União Nacional dos Estudantes) e sua inclinação era a da transformação, da revolução. A atividade desse grupo se situou no período de 1962 a 1964, quando foi interrompido pelo golpe militar.

O período pós-64 traz na opinião de Renato Ortiz, um dado novo na longa trajetória da questão do nacional, do popular e da identidade nacional. Para esse autor esse período corresponde a emergência do que ele chama "criação de um mercado de bens simbólicos". Ele deixa claro que já antes existia uma circulação a nível nacional de bens simbólicos, só que não com tanta intensidade e significando tanto na composição do imaginário popular. esse período corresponde a implantação no Brasil de grandes empresas de comunicação que vão compor com o regime ditatorial uma verdadeira rede de solidariedade. Ortiz aponta que esse é o momento de um deslocamento na formulação identitária brasileira, pois a implantação da indústria cultural irá produzir um equacionamento no qual se re-processará a questão da identidade agora pelo viés da questão mercadológica. Assim se ele expressa

"a indústria cultural adquire, portanto, a possibilidade de equacionar ima identidade nacional, mas reinterpretando-a em termos mercadológicos; a idéia de ‘nação integrada’ passa a representar a interligação dos consumidores potenciais espalhados pelo território nacional. Nesse sentido se pode afirmar que o nacional se identifica ao mercado; à correspondência que se fazia anteriormente, cultura nacional-popular, substitui-se uma outra, cultura mercado-consumo" (Ortiz,1994165).

Esse autor salienta ainda que a equivalência entre cultura popular de massa e cultura nacional se processará primeiramente no âmbito da televisão, mas não se restringirá a esta. Essa visão penetrará praticamente todos os campos da cultura. É assim que o cinema tomará, principalmente através da Embrafilme, o caminho do mercado, agindo no sentido de uma inflexão aos caminhos experimentais do cinema novo. Os que defendiam essa nova rota, argumentavam que a experiência anterior tinha afastado o público dos cinemas, e que era preciso uma produção de fácil assimilação, para que se viabilizasse um cinema verdadeiramente "popular". Podemos pensar a partir dos argumentos em defesa do cinema "popular" acima expostos, que há uma equivalência entre eles e o pensamento daqueles teóricos americanos que citamos no capítulo anterior, que viam a cultura de massa como índice de realização democrática. Observamos ainda o aspecto irônico dessa equivalência na medida em que sabemos que a aposta realizada pelos teóricos americanos dizia respeito à consolidação, ou melhor, a identificação entre cultura de massa e democracia, e aqui no Brasil ela foi levada a cabo por um regime ditatorial.

A MÚSICA BRASILEIRA COMO PROPOSIÇÃO IDENTITÁRIA

"O brasileiro canta o samba

a valsa, o chorinho e a macumba

também no mês de fevereiro

só se ouve pelas ruas:

é tumba, moleque tumba!

Mas quem nos representa no estrangeiro

É o samba rasgado brasileiro"

(Zé Kéti e Jayme Silva)

Tencionávamos iniciar esse nosso último capítulo abordando primeiramente o "Ensaio sobre a música brasileira" de Mário de Andrade. Achamos oportuno, no entanto, elucidar, ou justificar a importância da utilização da música como índice de inteligibilidade para a compreensão de fatos históricos, culturais e sociais. Nesse sentido invocamos as análises de Ênio Squeff quando afirma, ainda no início do seu livro sobre o nacional e popular na música brasileira, que a música constitui um lócus privilegiado para a compreensão da história e da sociedade humanas. Esse autor advoga a tese de que a música é o "desdobramento sensível mais importante de todos os períodos históricos". É sem dúvida uma tese arrojada e ele mesmo reconhece que é também polêmica. Porém sua argumentação é bastante plausível. Ele elege o sentir como categoria fundamental para se chegar ao entendimento dos processos históricos, pois é pelo sentir, apesar de sua não conceitualidade, que se pode perscrutar mais intimamente o âmago dos processos históricos. Se o sentir é compreendido como categoria especial de análise, ele aprofunda ainda mais afirmando que é na música onde esse "sentir" se manifestaria mais profundamente, e chega a citar Beethoven quando esse alega que a música fala mais que a filosofia. Squeff acredita ser um pouco de exagero a afirmação do compositor alemão, mas ratifica que "o pathos de uma época está mais na música do que em outras manifestações artísticas". Ele avança em sua reflexão em um trecho que vale a pena reproduzirmos aqui:

"A temporalidade na música faz dela universo de sentir que só em última análise atinge a racionalidade na placidez de seu olhar imóvel. O sentir é tempo – não é espaço; a própria espacialidade só se faz sentir quando devidamente estimulada por agentes especiais que a fazem movimento. Uma pintura não se realiza senão no movimento, na temporalidade que a anima; um poema é tempo na sua emotividade (ou na sua estrutura). A música é apenas tempo: por isso o mais alto nível de uma emotividade que se faz razão tanto na medida em que é absorvida, memorizada, ou racionalizada, como no estágio em que sugere um pathos que pode ser determinado historicamente". (Squeff,1982:16).

Squeff acredita que se a música pode ser reveladora de um pathos histórico, ela também é reveladora de um ethos, e que portanto há uma equivalência entre esses dois termos. A música então teria a possibilidade de ser "co-participante da vida" e isso foi de vital importância para a questão do nacionalismo musical tanto daqui como de além. Squeff propõe um itinerário de avaliação do nacionalismo musical não como mera musicalidade, mas como musicalidade encarnada em um determinado ethos.

Vimos nos capítulos anteriores como a conceituação de termos como cultura, popular, cultura popular estava sujeita a focalizações que em última instância se ligavam a interesses de grupos específicos dentro da sociedade. Isso não é, em nosso entender, um fenômeno apenas do Brasil, ele é intrínseco ao desenvolvimento histórico das sociedades. Nesse sentido o termo nacional não se mostra menos equívoco, ele também está submetido às mesmas lógicas de apropriação conceitual que os outros termos acima referidos. Squeff chama a atenção para a complexidade da questão de uma expressão musical brasileira, e afirma que alguns compositores incorreram no erro de produzir obras de caráter nacionalista, mas se atendo a um nacionalismo exótico, chancelado pela indústria cultural, estanque, e que desprezava mudanças sociais significativas. Assim ele se referiu:

"Tal nacionalismo excluiria, a priori, todas as realidades amplas de um país; inclusive pelo fato de que a maioria da população brasileira vive hoje nas cidades, onde o pathos e o ethos têm uma conotação diferente de tudo que se entendeu sobre nacional até agora" (Squeff,1982:17-18).

Essa questão de produzir uma música pretensamente nacional, mas que no fundo serviria para satisfazer um olhar estrangeiro sobre nós, até de certa forma legitimando-o, já era uma preocupação de Mário de Andrade em 1928 quando publicou o seu livro "Ensaio sobre a música brasileira", obra que se tornou capital nas discussões sobre o nacionalismo musical brasileiro. Nesse texto Mário de Andrade chama claramente a atenção dos modernistas para que esses não caíssem na tentação do exótico, e que nosso olhar sobre nós mesmos não tinha que coincidir com o olhar dos estrangeiros. assim ele escreveu:

"Nós, modernos, manifestamos dois defeitos grandes: bastante ignorância e leviandade sistematizada. É comum entre nós a rasteira derrubando da jangada nacional não só as obras e autores passados como até os que atualmente empregam a temática brasileira numa orquestra européia ou no quarteto de cordas. Não é brasileiro se fala" (Andrade,1962:13).

Mário condenava vigorosamente o que entendia como visão tosca, a de limitar a musicalidade brasileira a uma musicalidade arcaica que não se apropriasse de instrumentos ou formas musicais européias, entendendo o nacional apenas como o herdado de tradições indígenas. Vimos já em outro capítulo de nosso presente trabalho, que essa visão foi produzida pelo pensamento romântico brasileiro do início do século XIX, movimento que pensava encontrar no índio o brasileiro por excelência. O pensamento andradeano ia no sentido oposto, pensava justamente que uma arte brasileira só aparece mesmo no fim do império, esse é o momento em que se dá o amalgamento dos elementos constitutivos da cultura brasileira. Mario afirma que

"Se fosse nacional só o que é ameríndio, também os italianos não podiam empregar o órgão que é egípcio, o violino que é árabe, o cantochãoue é grecoebraico, a polifonia que é nórdica, anglosaxonia flamenga e o diabo. Os franceses não poderiam usar a ópera que é italiana e muito menos a forma-de –sonata que é alemã. E como todos os povos da Europa são produto de migrações pré-históricas se conclui que não existe arte européia" (Andrade,1962:16).

O nacionalismo de Mário de Andrade propunha um programa ideológico claro. Não era uma questão somente estética. Era também uma questão de revelar um determinado ethos brasileiro, conforme a conceituação de Ênio Squeff exposta acima. Mário chega a colocar em confronto a questão estética e o projeto nacionalista, isso porque sustentava o autor de Macunaíma, que a arte verdadeiramente artística era desinteressada, isso era o que consagraria a fruição estética, mas que aquele momento de definição do que seria a música brasileira impunha aos compositores, intérpretes, intelectuais etc. que seguissem um programa absolutamente interessado, totalmente comprometido com a formação do que seria a musicalidade erudita brasileira. Tratava-se portanto de um imperativo contra o qual não deveria haver oposição. Ele chegava mesmo as raias do irascível quando afirmava que

"Todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte brasileira é um ser eficiente com valor humano. O que fizer arte internacional ou estrangeira, se não for gênio é um inútil, um nulo. E é uma reverendíssima besta" (Andrade,1962:19).

O critério a ser utilizado naquele momento formativo da musica brasileira não deveria ser filosófico e sim social. Dessa forma o nacionalismo musical brasileiro tinha um programa claro a seguir, era o de procurar uma expressão musical que refletisse as características musicais da "raça". Mas aí surgia a questão, onde encontrar essas características? O próprio Mário respondia sem hesitação. Na música popular e aí o nacionalismo musical não estava fazendo nada original, afinal esse foi o itinerário percorrido pelo nacionalismo europeu no século imediatamente passado ao do pensador brasileiro.

O nacionalismo musical no plano internacional se confunde com o romantismo. Lembremos que esse movimento produziu uma visão idealizada do povo, onde esse aparecia como ingênuo, puro e espontâneo. Ora, o programa musical romântico não destoaria dessa perspectiva, tomaria o povo como modelo não só estético como também portador do ethos nacional, representante fidedigno da essência da nação. Mas há também uma outra perspectiva de análise levantada por Otto Maria Carpeaux, em seu livro "uma nova história da música". Esse autor afirma que com a conquista dos palcos de ópera os alemães completavam um circuito de domínio na música européia. Praticamente desde o século XVI em diante que o cenário musical contava, em termos expressivos, apenas com italianos, franceses e alemães, com vantagem para esse último. Segundo Carpeaux a partir do início do século XIX passou a haver a tentativa de afirmação de outras culturas, que passaram a buscar em suas tradições nacionais o combustível para essa resposta (Carpeaux,1977:169). Essa também era a opinião dos historiadores Grout e Palisca expressa na obra "História da Música Ocidental", assim eles se referem a esse momento:

"Na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, na Rússia e nos paises da Europa de leste, onde o domínio da musica alemã era visto como uma ameaça à criatividade musical de cada nação, a busca de uma voz nacional independente foi uma das facetas do nacionalismo. outra faceta foi a ambição dos compositores de serem reconhecidos como iguais dos seus confrades da zona austro-germanica" (Grout e Palisca,1997:666-667).

Não é demais lembrar que esse também era o momento de afirmação dos estados nacionais, na qual a música tinha evidentemente uma função identitário.

Após essa breve digressão abordando os elementos constitutivos do nacionalismo na Europa retornaremos ao nosso objeto. O nacionalismo musical brasileiro esteve desde sua primeira geração, onde desponta a figura de Heitor Villa-Lobos, identificado com as teses Andradeanas, e as inquietações,por parte dos compositores, em torno da busca de uma musicalidade que se estabelecesse como representativa do caráter nacional, refletia uma necessidade gestada naquele momento histórico por conta da república instalada no final do século XIX.

Já próximo à metade do século XX, em 1940, o movimento "música viva" iria produzir um rebuliço no cenário musical brasileiro. Esse movimento cujo líder era o professor H. J. Koellreutter tentava introduzir, na musicalidade brasileira, as teses do compositor alemão Arnold Schoenberg. Evidente que isso não poderia acontecer em águas tranqüilas e as reações foram acaloradas. A "modernização" que o sistema dodecafônico estava trazendo para o Brasil, colocava-se frontalmente contra o ideário de Mário de Andrade e dos nacionalistas. É curioso que tenha chegado a haver uma tentativa de fusão das duas linguagens através do compositor Guerra Peixe, que declarou tentar nacionalizar o sistema alemão, mas que não obteve êxito e resolveu desistir (Araújo,2000:45). Esse mesmo compositor, junto com Cláudio Santoro, depois de militarem na causa dodecafônica, voltaram atrás e acabaram por fazer parte da quarta geração nacionalista (Mariz,1959:119).

A música erudita foi palco de grandes discussões em torno de questões como nacionalismo, identidade nacional etc., ocorre que essas questões não estiveram limitadas a esse campo. Vamos encontrar na área da música popular um ambiente tão vigoroso e polêmico quanto o da música erudita. Nesse sentido observamos como, a partir do Estado Novo, a música popular urbana vai sendo cooptada para cumprir as intenções celebrativas do novo momento político. É interessante notar que o programa nacionalista de Mário de Andrade se referia a música popular rural, como portadora daquela ingenuidade tão ao gosto dos românticos de outrora. A música urbana, segundo a visão do nacionalismo musical erudito brasileiro, não tinha essa mesma essência e nesse sentido vale a pena uma citação do crítico Luís Heitor, contemporâneo de Mário. Ele afirma que

"A época de desconhecimento do valor social e da utilidade educacional da música, no Brasil, já vai ficando para trás. O impulso musical é insopitável entre a nossa gente, a música é, por excelência, o meio de sublimação da alma popular brasileira, uma necessidade de nossa formação, de nossa psicologia nacional" (Wisnik,1982:132).

Mas que música é essa a qual ele se refere? Vejamos

"Não tomo como índice a música vulgar, a canção das ruas, pois essa é, apenas, a manifestação inconsciente, não disciplinada, do pensador musical. (Wisnik,1982:132).

O crítico afirmava ainda que o termo música popular deveria se referir às produções rurais das quais a música dita "séria" deveria se utilizar para realizar uma expressão verdadeiramente artística. É interessante aqui o paralelo com a tese de Euclides da Cunha que dizia ser o mestiço das regiões do interior do Brasil mais autêntico do que o do litoral, dado a sua pouca exposição às influências do exterior.

De todo modo é essa música urbana, principalmente o samba, que vai ser alvo de uma nova ordenação cultural organizada a partir dos centros de inteligência do Estado Novo, mais precisamente o D.I.P. Departamento de Inteligência e Propaganda. É o mesmo Wisnik quem nos mostra um texto exemplar de Álvaro F. Salgado, funcionário da Rádio Ministério da Educação. Diz o texto:

"A nosso turno adiantamos que, (...) todos os indivíduos analfabetos, broncos, rudes de nossas cidades, são muitas vezes pela música atraídos a civilização. (...) dia virá, estamos certos, que o sensualismo que busca motivos de disfarce nas fantasias de carnaval, seja a caricatura, o fantoche, o palhaço, o alvo ridículo dessa festa pagã. Enquanto não dominarmos esse ímpeto bárbaro é prejudicial combatermos no broadcasting o samba, o maxixe e os demais ritmos selvagens da música popular".

... "o samba, que trás na sua etimologia a marca do sensualismo, é feio, indecente, desarmônico e arrítmico, mas paciência: não repudiemos esse nosso irmão pelos defeitos que contém. Sejamos benévolos; lancemos mão da inteligência e da civilização. Tentemos devagarinho torna-lo mais educado e social. Pouco importa de quem ele seja filho" (Salgado apud Wisnk,1982:135).

O tratamento de bastardo recebido pelo samba e pelos gêneros musicais populares urbanos, desse funcionário do Estado Novo, evidencia como a cultura das classes subalternas era vista pelos segmentos pensantes do país, ou pelo menos por uma parte dela. No entanto evidencia-se também a estratégia de utilização desses gêneros como aliados no sentido "educativo" tal qual era entendido o termo pelos setores hegemônicos de então.

A partir de 1940 a Rádio Nacional que existia desde 1936 passa a ser propriedade do estado e vai ser instrumento importante de propaganda governamental, haja visto que o rádio a essa altura já era um meio de grande inserção popular. Dessa forma o rádio e a música popular estavam compulsoriamente de mãos dadas com o autoritarismo getulista. Mas a cooptação pura e simples não conseguia dar conta de adequar a música popular aos interesses do poder, daí a utilização de força policial, contra os movimentos sociais notadamente os sindicatos, e da censura prévia no campo das produções artísticas, notadamente a música. O capítulo "o samba do Estado Novo" contido no livro "Iniciação à Música Popular Brasileira" de Waldenyr Caldas relata o seguinte:

"A censura prévia vigiava de perto a música popular . Canções de teor político só eram divulgadas pelo rádio quando elogiosas ao Estado Novo. Algumas que o contestavam foram sumariamente destruídas e seus autores, presos. O compositor Wilson Batista, por exemplo, teve alguns problemas com a Polícia Federal em virtude das suas letras ofensivas ao poder e da insistência, durante algum tempo, em cantar a malandragem e o estilo de vida de alguns compositores boêmios da Música Popular Brasileira" (Caldas,1985:41).

O carnaval também foi alvo da sanha estadonovista e é dessa forma que ainda em 1937, início do Estado Novo (apesar de que Getúlio estava no poder desde 1930) as escolas ficavam obrigadas, segundo Caldas, a criar sambas-enredo e alegorias que exaltassem os símbolos pátrios. Há porém uma controvérsia interessante quanto a esse dado colhido no livro de Waldenyr Caldas. A discussão é a seguinte: afirmamos no primeiro capítulo desse trabalho que a gênese da formação dos Estados Nacionais na Europa deveu-se não só aos arranjos políticos realizados pelas elites econômicas e políticas, mas também pelo poder de convencimento dessas mesmas elites, em um longo processo de negociação onde "os de baixo" não recebiam ordens apenas, mas conseguiam ter um certo grau de influência no processo, ou ganhavam algo em troca. É essa mesma perspectiva reivindicada pelo geógrafo Nelson da Nóbrega Fernandes no livro "Escolas de samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados". Ele afirma que ainda em 1934 quando da fundação da U.E.S. União das Escolas de Samba, o seu primeiro estatuto definia como "cláusulas pétreas" além da presença obrigatória de baianas e a proibição de instrumentos de sopro, a obrigatoriedade de nos enredos as escolas apresentarem motivos nacionais. Esse autor afirma que durante muito tempo vários autores e pesquisadores tinham essa última obrigatoriedade como imposição do Estado Novo e que só recentemente reconheceram a inexatidão do pressuposto. O autor afirma ainda que só em 1947 é que o regulamento oficial se manifestou no sentido de obrigar as escolas a terem em seus enredos os tais "motivos nacionais". A partir de então é que o samba, através do samba-enredo, vai ser efetivamente e com grande ressonância nacional, um dos núcleos narrativos da identidade nacional brasileira.

Ora, talvez estejamos diante de um caso análogo ao que descrevemos sobre a formação dos Estados Nacionais. Um caso de negociação onde "os de baixo" percebendo a necessidade de construção de uma identidade por parte das elites políticas, agiam no sentido de auxiliar essa construção, em um mesmo movimento que construíam um espaço de respeitabilidade e importância para o samba. Não é demais também lembrar que do final do século XIX até boa parte do XX, o samba era visto como caso de polícia e que alguns sambistas cariocas protagonizaram histórias interessantes que evidenciavam como a tensões geradas pela repressão as expressões culturais populares, se resolviam no âmbito das relações privadas.

Estamos falando do famoso caso de João da Baiana, que teve seu pandeiro tomado pela polícia quando se dirigia à festa da penha, e por isso não pode aceitar o convite do então senador Pinheiro Machado. O senador ao saber do motivo da ausência do sambista em seu palacete, mandou confeccionar um outro instrumento para o músico, no qual continha sua própria assinatura para que o sambista não fosse mais molestado pela polícia. A assinatura do senador funcionaria como um salvo-conduto para que João da Baiana pudesse se deslocar livremente pela cidade. Essa negociação que relatamos se inscreve, como já dissemos, no âmbito privado, mas acreditamos que coletivamente ela também aconteceu fazendo com que uma música, ou melhor, um complexo artístico de música, dança e poesia que é o samba, saísse dos estratos mais baixos da sociedade, camada social essa que algumas décadas atrás cumpria o papel de força escrava na economia brasileira,e fosse alçado a condição de gênero identitário brasileiro. Essa negociação aconteceu muitas vezes, ao nosso ver, sem que os setores pensantes estivessem se dando conta dela, acreditando até mesmo que estavam manipulando a história ao seu bel prazer.

A partir da década de 1940 a questão música popular/identidade nacional, vai passar por momentos de redefinições radicais. A aproximação dos estados unidos com a América Latina inaugurando um novo momento político tendo a indústria cultural como alicerce, redefine os marcos do debate. Naquele momento os EUA operam uma mudança de estratégia substituindo a política do Big Stick (grande porrete) pela estratégia de aproximação e influencia cultural (Moura,1986:08). Havia em jogo também uma negociação, com a balança pesando evidentemente mais para um dos lados, e esse era o lado dos economicamente mais fortes. De todo modo a imagem do Brasil projetada pela poderosa indústria americana de comunicação, recolocou a questão da nossa identidade. Sobre isso escreve o professor Samuel Araújo que

"O sucesso estrondoso de uma Carmen Miranda a partir de 1939, via Hollywood e Departamento do Estado dos EUA, reequaciona a questão da identidade cultural brasileira em termos radicais. Qualquer idéia de brasilidade esbarra, daí em diante, com a virtualidade de uma imagem comercial simultaneamente instigante (ao menos para os padrões mais puritanos) e ingênua, verdadeira e falsa, submissa e libertadora, bem sucedida e fracassada (...) o samba urbano do Rio de Janeiro, incensado internamente pelo populismo, passa a símbolo pátrio no mercado internacional e veículo de sínteses e formulações não menos antropofágicas de brasilidade" (Araújo,2000:45).

Saltando até a década de 1960 vamos encontrar um outro momento de radicalização nos debates em torno da música e da identidade nacional. O clima de efervescência dessa época traz à tona o movimento tropicalista cujas teses vão se chocar frontalmente com o ideário nacional-popular, defendido pela esquerda brasileira de então. Já falamos, em outro capítulo, sobre as teses defendidas pelo CPC, de modo que vamos nos ater aqui a explicitar o que representou o tropicalismo no contexto da música brasileira e da identidade nacional. O tropicalismo, movimento deflagrado principalmente por Caetano Velloso e Gilberto Gil, tentava entre outras coisas produzir uma mudança no que diz respeito a inserção da música popular brasileira na expressão de uma identidade. A proposição de um tratamento que via na canção um objeto industrial de massa, se valendo da estruturação tecnológica que ocorria naquele momento, configurando o que Renato Ortiz, conforme dissemos anteriormente, qualificou de emergência de um "mercado de bens simbólicos" no Brasil, era uma postura radicalmente oposta da linha de pensamento do ideário nacional-popular. os tropicalistas tentavam inaugurar uma nova linha de inserção mercadológica para a MPB, inclusive sugerindo uma identidade muito mais complexa e diferenciada integrando estéticas até certo ponto consideradas antiquadas. Na expressão de Marcos Napolitano o tropicalismo significou, entre outras coisas, a transição de uma "cultura política de matriz romântica (o nacional-popular) para uma cultura de consumo". Essa transição ocorrida no seio da música popular foi, ao nosso ver, solidária a nova etapa do capitalismo no Brasil. Não foi a toa que expressivos meios de comunicações, estimularam e deram espaço a iniciativas experimentais, e até mesmo abriram espaço para um programa de televisão para os dois maiores expoentes do movimento tropicalista, Caetano Velloso e Gilberto Gil, através do programa Divino e Maravilhoso.

O tropicalismo de certa forma evidenciava o caráter unificador da construção de uma identidade específica para um país tão heterogêneo como o Brasil, contra isso os mentores do movimento mostravam uma realidade cambiante e até mesmo contraditória, representada em seu repertório através de um verdadeiro caleidoscópio musical.

Da obra de Marcos Napolitano destacaremos um trecho que fala sobre o movimento tropicalista em relação ao tema que nós abordamos nesse capítulo. Nesse trecho Napolitano afirma que:

"Ao se colocar contra a MPB engajada e nacionalista, o tropicalismo ajudou a romper barreiras que dificultavam a plena realização comercial da canção brasileira: uma ética de ‘militância cultural’ fora do mercado que ainda prevalecia em alguns artistas e a necessidade de restringir os materiais musicais àqueles que identificassem a MPB a uma idéia de nação dotada de especificidade estética. Após o tropicalismo, a ‘militância’ cultural e o star-system praticamente se confundiam, assim como a identidade ‘nacional’ da MPB passou a ser buscada paralelamente à incorporação das tendências musicais e culturais vindas do exterior (sobretudo da cultura de consumo anglo-americana)" (Napolitano, S/D:240).

Ao final do século XX e início do XXI a situação da relação música/identidade no Brasil se encontra como talvez em todo o mundo. A presença avassaladora dos meios de comunicação perfaz uma rede que praticamente integra todo o globo. O processo de globalização econômica produz uma reordenação geral das leis internacionais, instituições e da vida cultural. O próprio conceito de Estado Nacional passa por reavaliações profundas e as grandes narrativas que tentaram ao longo da nossa história construir representações musicais por onde se expressaria o ethos nacional se encontram em crise. Por outro lado novas identidades vão se colocando as vezes até, como salienta Samuel Araújo (Araúju,2000) passando ao largo de antigos centros de legitimação. Movimentos migratórios, signos que circulam por todo planeta produzindo uma intensa circulação simbólica, talvez esteja criando as condições para o que Ortiz chama de memória internacional popular. A ascensão de uma sociedade do consumo impacta todos os campos inclusive o da cultura, e a música torna-se boa parte num objeto industrial, mas sem com isso perder seu potencial expressivo e de acolher possibilidades identitárias, afinal, como pensa Néstor Canclini, o campo do consumo vai se tornar um importante mobilizador de desejos e de ações sociais, tomando por vezes o lugar de antigos espaços reivindicatórios tais como partidos políticos e sindicatos (Canclini,2001).

De todo modo a história não acabou e o momento atual está promovendo novos arranjos e demandando novos modelos interpretativos ou atualizações dos antigos, de modo a tentar dar conta desse novo tempo.

CONCLUSÃO

Realizamos nesse trabalho uma pequena síntese da questão do nacional, do popular e de como as narrativas que davam suporte as identidades nacionais, trabalharam-nas no sentido de se apropriarem desses termos obtendo ou tentando obter o consentimento do grupo social. Percebemos também como muitas vezes esse processo ocorria não como mera imposição dos grupos hegemônicos, mas a partir de negociações construídas muitas vezes de forma sutil. Esse pode ter sido o caso da ascensão do samba à qualidade de gênero nacional e também, no caso do samba-enredo, quando esse se tornou importante fio condutor da narrativa potencializadora da construção da identidade nacional nos anos 1940.

Há certamente muitas lacunas em nosso trabalho, e de pronto identificamos duas que registramos para outros trabalhos, de nossa autoria ou de outrem. São elas: 1- a questão da música como representação identitária no âmbito da América latina; 2- a situação contemporânea da música popular como expressão identitária de grupos diversos que se organizam dentro da sociedade brasileira. Não estamos falando de identidade nacional mas de outras identidades que talvez pudéssemos chamar de transversais; 3- a relação do nacionalismo com o marxismo uma vez que esses dois termos se constituíram como poderosos instrumentos de ação social no século XX. Acreditamos no entanto que essa empreitada fugiria aos limites da nossa pesquisa.

De resto esperamos ter tido êxito na tarefa que nos propusemos realizar.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins editora, 1962.

AQUINO, Rubin Santos Leão de, ALVARENGA, Francisco J. Moreira de, FRANCO, Denize de Azevedo, LOPES, Oscar G. P. Campos. História das sociedades, das sociedades modernas as sociedades atuais. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico S.A., 1969.

ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

ARAÚJO, Samuel. Identidades brasileiras e representações musicais: músicas e ideologias da nacionalidade in brasiliana n° 04. Rio de Janeiro: academia brasileira de música, 2000.

AYALA, Marcos, AYALA, Novais Ignez Maria. Cultura popular no Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1995.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

CALDAS, Waldenir. Iniciação à música popular brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1985.

CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos, conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora U.F.R.J.. 2001.

CARPEAUX, Otto Maria. Uma Nova História da Música. Rio de Janeiro: Alhambra, 1977.

CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e cultura. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1983.

MOREIRA, Adriano. Teoria das relações internacionais. Porto: Almedina, 1999.

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência, aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

CHAUÍ, Marilena. Brasil mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.

ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Lisboa: Edições Cosmos- Lisboa, 1970.

FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Escolas de samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados. Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001

FUNARI, Pedro Paulo. Cultura popular na antiguidade clássica. São Paulo: Editora Contexto, 1989.

GROUT, Donald J., PALISCA, Claude V. História da música ocidental. Lisboa: 1997.

GUENÉE, Bernard. O ocidente nos séculos XIV e XV (os estados). São Paulo: Pioneira, 1981.

GUIBERNAU, Monserrat. Nacionalismos, os estado nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Os intelectuais e o nacionalismo. Rio de Janeiro: IBAC, 1992.

MARIZ, Vasco. A canção brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1959.

MOURA, Gérson. Tio Sam chega ao Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB. S/D.. São Paulo: Fapesp e Annablume, S/D.

ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e identidade nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira, cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Editora Brasiliense, 2001.

ROMERO, Sílvio. Estudo sobre a poesia popular do Brasil. Petróplis: Editora Vozes, 1977.

SQUEFF, Ênio e WISNIK, José Miguel . O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense1982.

ULLOA, Alejandro. Pagode a festa do samba no Rio de Janeiro e nas Américas. Rio de Janeiro: Multimais Editorial, 1998.

WISNIK, José Miguel e SQUEFF, Ênio. O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense1982.

Dedico esse trabalho a todos os anônimos e brincantes da cultura popular

que com a alacridade que os caracteriza,

construíram (ambigüidades à parte)

um pedaço do que chamamos de cultura brasileira.

Ricardo Moreno de Melo

é professor de Educação Musical e mestre em Etnomusicologia pela UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), com a pesquisa: Tambor de Machadinha: devir de descontinuidade de uma tradição musical em Quissamã.

morenoricmelo[arroba]yahoo.com.br

Área: Arte e Cultura

Elaborou as seguintes monografias no âmbito acadêmico:

    1. Jongo da Serrinha: Permanência de uma tradição banta no mundo globalizado. 2002..
    2. Sambas e congadas: o papel da música na construção de um espaço social para o negro no Brasil. 2004.
    3. Música popular e identidade nacional: sons da negritude e negociação simbólica no Brasil. 2004.

Monografia apresentada ao instituto Villa-Lobos da Universidade do Rio de Janeiro para obtenção de conclusão da disciplina Música e Sociedade de Massas do curso de mestrado em música dessa universidade.

RIO DE JANEIRO 2003



 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.