Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
Primeiramente, é importante que sejam feitas algumas observações acerca da Hermenêutica para, somente após definidas algumas regras ligadas a este método de interpretação, podermos diferenciar a Metodológica da Filosófica, demonstrando as diferentes interpretações que delas exsurgem.
O método hermenêutico caracteriza-se pela circularidade, por um vai e vem entre o todo e as suas partes, pois considera que somente assim se conseguirá chegar a uma compreensão do objeto a ser interpretado. Explica-se.
Para que seja possível alcançar a compreensão do objeto é indispensável que o intérprete tenha a pré-compreensão do objeto ou de algo a ele relacionado, já que, sem tal conhecimento prévio, não se poderia começar o jogo da circularidade.
Vejamos o que foi dito acerca do método hermenêutico:
Para se compreender um texto, deve-se aplicar a arte da interpretação, ou seja, ‘é preciso colocar-se na posição do autor, e isso tanto do lado objetivo quanto do subjetivo’. Ora, o lado objetivo é obtido através do conhecimento da ‘língua tal como o autor a possuiu’, e, subjetivamente, trata-se de obter o conhecimento ‘de sua vida interior e exterior’. Segue daí que ‘ambas as coisas só podem adquirir-se completamente através da própria interpretação. Pois apenas por meio dos escritos de alguém se pode conhecer seu vocabulário, bem como seu caráter e suas circunstâncias’. (Assim,) ‘o vocabulário e a história da época de um autor funcionam como a totalidade a partir da qual seus escritos devem ser compreendidos como algo particular e vice-versa’.
Disso resulta que a interpretação de um texto não pode ser feito de uma única vez: a cada nova leitura se compreende um pouco mais do texto a ser interpretado, já que os conhecimentos necessários para uma perfeita compreensão vão sendo por nós incorporados.
Assim, "o conhecimento completo sempre se dá nesse círculo aparente, de maneira que cada particular tão-só pode ser compreendido a partir do universal do qual ele é uma parte, e vice-versa. E todo o saber só é científico ao ser formado desta maneira".
Demonstrada, portanto, a circularidade do método hermenêutico, passemos à análise da Hermenêutica Medológica.
Também conhecida como Hermenêutica Epistemológica, a Hermenêutica Metodológica, criada por Schleiermacher e Dilthey, é aquela que busca conhecer o objeto de estudo através de uma análise distanciada que objetiva a neutralidade frente a este objeto.
Guia-se por um entendimento dualista, fazendo a cisão entre o objeto de estudo e o sujeito que o interpreta, e se sustenta sob um ponto de vista cartesiano, segundo o qual as sensações sentidas pelo sujeito que interpreta não são consideradas para a interpretação, sendo vistas como meras opiniões.
Desconsiderando a análise pessoal do indivíduo, ela faz com que a análise do jogo da circularidade fique restrita somente entre o objeto e o seu autor, não sendo possível qualquer outra ingerência externa. É, portanto, um método objetivo de interpretação.
Outrossim, leva ao entendimento do objeto interpretado, sendo analisado apenas aquilo que é visível, desconsiderando totalmente qualquer informação que não esteja/seja explícita no objeto.
Isso porque, sendo um método objetivo, ela busca alcançar a verdade (absoluta) acerca do objeto, pois entendeu Schleiermacher que seria indispensável um método seguro (não sendo possível dele extrair várias respostas acertadas) e aplicável universalmente.
Desta forma, "interpreta-se apenas para ampliar as informações de algo já conhecido, sem se ater á relação pessoal processual, jogando-se fora a escada após a obtenção de um entendimento maior sobre algo".
Este método de interpretação é utilizado por todos aqueles que se filiam à corrente positivista/dogmatista: somente o que está no texto da lei é que pode ser tido como verdadeiro.
Desta análise se percebe que os fatos são desconsiderados pelo intérprete, eis que o que dá sentido aos fatos é a lei – se a lei não disser, o fato não é.
Depreende-se daí que a utilização da Hermenêutica Metodológica como método de interpretação da questão da anencefalia levará o intérprete a considerar ilícita a interrupção de uma gestação de um feto portador desta anomalia.
E isso justamente porque o texto do art. 128 do CP não exclui a aplicação da pena às hipóteses de aborto terapêutico, mas tão-somente ao humanitário e ao necessário.
Esta visão é defendida, por exemplo, pelo Procurador-Geral da República, dr. Cláudio Fonteles, como se pode vislumbrar da análise do parecer dado na ADPF já comentada.
Assim manifestou-se o Procurador:
17. (Os artigos do CP) Bastam-se no que enunciam, e como estritamente enunciam.
18. Aliás, injurídico, data venia, manusear-se com a interpretação conforme a dizer-se que na definição dos tipos penais incriminadores, não seja criminalizada tal situação (…).
22. As situações extintivas da antijuridicidade, que enuncia, apresentam "o sentido inequívoco que a lei enquanto tal apresenta", para que sejam rememoradas as palavras de Rui Medeiros (item 9, deste parecer), sentido inequívoco e preciso, que se completa, e legaliza o aborto:
a) para que a mãe não morra (aborto terapêutico)
b) se a mãe, vítima de estupro, consente no aborto (aborto sentimental)
23. A situação de anencefalia não se coaduna, por óbvio, nessas situações.
24. O feto anencéfalo não causa a morte da mãe. Afasta-o a própria petição inicial.
25. Se causasse tal situação, ter-se-ia diante o aborto terapêutico.
26. Quanto ao aborto sentimental não há discrepância na abalizada doutrina penal de que sua compreensão é limitadíssima à hipótese que enuncia: gravidez resultante de estupro – grifos do original.
Nota-se, portanto, que para o Procurador-Geral, o que não está escrito no texto da lei não pode ser interpretado; não pode ser alargado o conceito expressamente determinado pela lei: ou está previsto (claramente) ou não o está.
Desta análise nota-se, claramente, que o fato, a questão posta à baila, que é justamente uma solução para um caso que traz graves problemas à família da gestante, não é levada em consideração, sendo o intérprete levado, apenas, à análise fria e objetiva do texto da lei, muitas vezes persistindo o conflito no caso concreto.
Entretanto, traz maior segurança ao intérprete-juiz – que poderá dizer que decidiu de acordo com a vontade do legislador, mantendo, assim, distanciamento dos fatos trazidos à sua interpretação – e aos jurisdicionados – que terão certeza que somente uma resposta será dada: aquela previamente determinada pelo legislador, o que gera segurança jurídica.
Ao contrário da Hermenêutica Metodológica ou Ontológica, a Filosófica preocupa-se com o caminho utilizado pelo intérprete, o processo de interpretação utilizado, não tendo importância significativa ou, ao menos, preponderante, o resultado conquistado pelo intérprete.
Isso porque o importante neste tipo de interpretação é o ser, o intérprete, o que ele pensa e sente a respeito do objeto. Suas impressões são imprescindíveis para que se possa buscar a interpretação.
No que respeita à participação do intérprete na interpretação realizada pelo método da Hermenêutica Filosófica, interessante colacionar a explicação feita pelo professor Luiz Rohden que clarifica a interação entre o objeto e seu intérprete: "(…) há um sujeito que joga e é jogado; não observa apenas, mas também é afetado pelo processo de conhecer que envolve sentido e significado".
Assevera, ainda, que a Hermenêutica, enquanto filosofia, não se prende aos trilhos da interpretação casual linear nem à mera análise de textos ou proposições. Nela, ética e linguagem caminham de mãos dadas, uma vez que o modo de interpretar implica discernir suas implicações (pessoais e sociais). Arraigada na finitude humana, a hermenêutica filosófica não se separa desta sua condição. Daí por que a historicidade e a linguagem assumem os papéis de protagonistas do pensar filosófico pautado por uma medida de racionalidade apropriada ao modo de ser humano (grifou-se).
A diferença entre as duas interpretações é claramente demonstrada nos seguintes trechos:
De um procedimento que julga e deduz passamos a um modo de ser, a uma postura filosófica que ouve, discerne e dialoga. Nesse caso, trata-se de um olhar que não apenas enxerga, mas se enxerga, e estamos às voltas com um dizer que não apenas dita, mas se implica ao dizer. No primeiro caso, o importante é a análise correta que se faz (de um texto ou de um contexto), ao passo que ao filosofar o importante é a consciência da experiência que a consciência realiza.
Se, para a primeira (Metodológica), o mais importante é o ponto de chegada do processo interpretativo, ou seja, o conhecido representado-adequado, para a segunda (Filosófica) a ênfase recai sobre o processo mesmo do interpretar, do compreender, do perguntar, do saber. No primeiro caso, ao final, conhecemos; no segundo caso conhecemos, mas sabemos também que o real extravasa o conhecido.
Aqui, é preciso que sejam abertos os horizontes do intérprete, que ele considere todas as possibilidades e, somente após feitas todas as considerações é que poderá optar por uma resposta que entenda correta.
Para a Hermenêutica Filosófica, no que se refere à interpretação de textos legais, o que importa é o fato, a realidade vivida, e não o texto da lei. Em outras palavras, é o fato que dá sentido à lei, e não a lei que atribui conceito aos fatos, do que se depreende que um olhar dogmático é incompatível com esta forma de interpretar.
Indo além da subsunção do fato na norma, este método de interpretação aplicado na questão da anencefalia leva a se considerar legal a conduta abortiva dos fetos portadores desta má-formação.
Isso porque levará em consideração a realidade fática que envolve a questão família: a tortura psicológica que a gestante sofre ao saber que o feto que carrega em seu ventre não vingará, não sobrevivendo mais do que poucos segundos fora do útero materno (isso se se mantiver vivo até o momento do parto) e o risco de vida da gestante, além da inviabilidade da vida deste feto.
Assim, foi lançada a tese de que o abortamento de anencéfalos se enquadraria na hipótese do art. 128, I, CP. Partindo do pressuposto que para ter vida é preciso ter saúde, os defensores desta forme de interpretação afirmam que a gestação de anencéfalos ocasionaria um mal-estar físico e psicológico que permitiriam a incidência da permissão prevista neste inciso. Esta é a posição adotada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS, que foi a responsável pelo ajuizamento da ADPF em comento.
Da inicial da ADPF, primeiramente, é importante transcrever-se aqui um trecho que demonstra claramente a forma de interpretação utilizada:
09. Note-se, a propósito, que a hipótese em exame só não foi expressamente abrigada no art. 128 do Código Penal como excludente de punibilidade (…) porque em 1940, quando editada a Parte Especial daquele diploma, a tecnologia existente não possibilitava o diagnóstico preciso de anomalias fetais incompatíveis com a vida. Não se pode permitir, todavia, que o anacronismo da legislação penal impeça o resguardo de direitos fundamentais consagrados pela Constituição, privilegiando-se o positivismo exacerbado em detrimento da interpretação evolutiva e dos fins visados pela norma.
Outrossim, na peça foram expedidos argumentos que demonstram a análise das circunstâncias externas ao texto como embasadoras do pedido. É o que se percebe da análise dos trechos a seguir:
7. Uma vez diagnosticada a anencefalia, não há nada que a ciência médica possa fazer quanto ao feto inviável. O mesmo, todavia, não ocorre com relação ao quadro clínico da gestante. A permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-útero desses fetos. De fato, a má-formação fetal em exame empresta à gravidez um caráter de risco, notadamente maior do que o inerente a uma gravidez normal (…).
30. (…) Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica (…).
Percebe-se, portanto, que a Hermenêutica Filosófica leva em consideração outros critérios além da norma posta, do texto explícito, para alcançar a resposta que entende correta ao caso concreto.
Disso resulta que cada intérprete poderá levar em consideração, no momento da interpretação, vários e diferentes argumentos e situações, do que se percebe que o resultado interpretativo depende exclusivamente do intérprete, não sendo possível prever o resultado que será alcançado.
Assim, ao contrário da Hermenêutica Metodológica, não se tem aqui segurança jurídica, embora sejam almejados resultados mais justos (embora o conceito de justiça seja algo totalmente dependente do indivíduo, da mesma forma que o resultado da interpretação filosófica).
A opção por um dos métodos será utilizado implicará na obtenção de resultados díspares e, muitas vezes, até antagônicos, como é o caso da legalidade ou não da prática de abortos de fetos portadores de anencefalia.
Entretanto, é importante que o intérprete tenha conhecimento e domine os dois métodos interpretativos, para que possa optar, no caso concreto, pelo resultado que considerar mais satisfatório e adequado. Isso porque nenhum deles pode ser taxado como correto: casos há em que uma interpretação mais conservadora se faz necessária para atender os interesses em conflito, o mesmo ocorrendo com uma interpretação mais ampla, que abarque todas as questões ligadas ao caso.
Com relação especificamente ao caso da anencefalia, parece mais adequado o resultado alcançado pelo método filosófico, já que a norma que delimitou as hipóteses de exclusão da imputabilidade é bastante antiga e certamente abarcaria a hipótese se à época existissem os recursos tecnológicos hoje existentes.
Chega-se a esta conclusão já que o legislador permitiu a prática legal do aborto sem levar em conta a realidade do feto, mas exclusivamente a da gestante (tanto que permitiu o abortamento no caso de estupro), o que demonstra a necessidade de proteção de sua saúde física e mental. E isto somente será alcançado se a gestante não for obrigada a levar a cabo uma gestação de um anencéfalo.
CANTARINO, Carolina. Mulher ou sociedade: quem decide sobre o aborto. Disponível em: <http://www.comciencia.br/rportagens/2005/05/05_impr.shtml>. Acesso em: 10 abr. 2005.
Conselho Federal de Medicina do Estado da Bahia. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília: Letras Livres, 2004.
FONTELES, Cláudio. Parecer do MPF na ADPF n° 54/DF. Disponível em: <http://www.providaanapolis.org.br/parefont.htm>. Acesso em: 27 de julho de 2006.
MARTÍNEZ, Roberto Cassís. Evaluación ecografica del sistema nervioso central del feto. Disponível em: <http:/www.medicosecuador.com/sncfetal/articulos/anomalias_del_sistema_nervioso_central.htm>. Acesso em: 31 ago. 2005.
RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal: uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal no Brasil. Aborto por anomalia fetal. 1ª Reimpressão. Brasília: Letras Livres, 2004.
ROHDEN, Luiz. Hermenêutica metodológica e Hermenêutica filosófica. Filosofia Unissinos, vol. 04, n° 06. São Leopoldo: UNISSINOS, 2003, pp. 109/132.
SANEMATSU, Marisa. Interrupção da gravidez em casos de anencefalia fetal: a cobertura da imprensa sobre a liminar do STF e suas repercussões. Disponível em: <http://www.ipas.org.br/arquivos/10anos/marisa_liminarstf2004.doc>.Acesso em: 30 ago. 2005.
SANTOS, Marília Andrade dos. A aquisição de direitos pelo anencéfalo e a morte encefálica. Revista de Direito Médico e da Saúde, ano II, n° 5, março de 2006. Recife: Livro Rápido, 2006, pp. 05/46.
Autora:
Marília Andrade Dos Santos
austriaandrade[arroba]hotmail.com
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|