"(…) filosofar consiste, talvez, em tomar consciência do tempo que somos e discernirmos se fazemos apenas ciência (nos atendo à letra) ou se filosofamos (se lemos a vida em seu supra-senso); afinal de contas, sabemos o quanto fica, sempre, de ‘não-dito quando se diz algo’" (Luiz Rohden)
O presente estudo objetiva demonstrar as diversas respostas sobre a questão da legalidade do abortamento de fetos portadores de anencefalia decorrentes da adoção de diferentes métodos hermenêuticos. Para tanto, após a análise do conceito de anencefalia, é feita uma abordagem sobre as duas formas interpretativas e colacionados nos quais se observa a aplicação da Hermenêutica Metodológica e da Filosófica.
Diante da iminência de ser prolatada decisão pelo Supremo Tribunal Federal – STF na Argüição de Descumprimento de receito Fundamental – ADPF n° 54-8/DF acerca da possibilidade da prática legal de aborto de fetos anencefálicos, torna-se ainda mais importante a reflexão sobre as várias interpretações que podem ser deduzidas do texto do art. 128 do Código Penal – CP.
O presente estudo visa justamente demonstrar que várias respostas podem ser deduzidas para a questão: "O ordenamento jurídico brasileiro permite a prática de aborto de fetos anencefálicos? Ou a conduta será punida pelo Estado-Juiz, eis que tipificada pelo Diploma Repressivo?". Tais respostas derivam, justamente, do tipo de interpretação levada a cabo pelo intérprete.
Assim, serão analisadas as respostas dadas pela Hermenêutica Metodológica e pela Hermenêutica Filosófica, emergindo ao leitor, desta análise, a possibilidade de, com consciência, realizar a escolha, inclusive em outros temas com os quais se deparar, sobre o método utilizado para interpretar o texto legal.
Primeiramente, a fim de que se tenha domínio sobre o tema estudado, mostra-se indispensável a definição do que é a anencefalia.
Trata-se de uma má-formação congênita que ocorre por volta do vigésimo quarto dia após a concepção, quando o tubo neural (estrutura fetal precursora do sistema nervoso central) sofre um defeito em seu fechamento.
Tal defeito não pode ser ligado a causas específicas, sendo certo que vários eventos podem ocasioná-lo. Dentre eles podemos citar a deficiência de vitaminas do complexo B, em especial o ácido fólico, a ingestão de álcool, o tabagismo, questões genéticas e, até mesmo, a submissão da gestante a altas temperaturas.
Deste defeito resulta que a estrutura encefálica é inexistente ou, caso existente, é amorfa, estando solta no líquido amniótico ou deste separada por uma membrana. Não há, portanto, a formação dos hemisférios cerebrais e nem do córtex cerebral (que constituem a estrutura cerebral).
Quanto ao tronco cerebral (estrutura responsável pela respiração), por ser a estrutura encefálica mais interna, é possível que não apresente lesões, embora seja muito comum que as apresente.
Percebe-se, assim, que a anencefalia é uma má-formação que diz com a lesão de parte do encéfalo – a sua parte mais importante –, qual seja, o cérebro, não sendo possível observar nos fetos portadores desta anomalia qualquer sinal de "consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade".
Seu diagnóstico poderá ser feito, de forma inequívoca, já a partir do terceiro mês de gestação, utilizando-se, para tanto, de simples ultra-sonografia, eis que a estrutura craniana do feto portador desta má-formação é inconfundível: ela não possui o formato oval/circular, mas tem profunda depressão na parte superior.
Outrossim, poderá ser usado o exame de sangue para seu diagnóstico, eis que gestações destes fetos geram um significativo aumento de alfa-fetoproteínas no sangue materno.
Quanto à incidência desta má-formação, é difícil precisar com que freqüência ocorre, eis que muitas vezes o abortamento ocorre espontaneamente, não chegando aos órgãos responsáveis pelas estatísticas a informação desta gravidez.
Entretanto, números existentes apontam a incidência de 0,6 portadores de anencefalia para cada mil fetos nascidos vivos, sendo o Brasil o quarto país no mundo com o maior número de incidência de fetos anencefálicos, ficando atrás apenas de México, Chile e Paraguai.
O art. 128 do CP prevê duas hipóteses nas quais a interrupção da gestação ou aborto não sofrerá punição. Uma das hipóteses é o aborto necessário, quando não há outra forma de salvar a vida da gestante, ou seja, quando a continuidade da gestação levará, sem sombra de dúvidas, à morte da gestante.
A segunda hipótese prevista no referido artigo é o aborto humanitário ou sentimental. Neste caso, não se pune a interrupção da gravidez decorrente de estupro, sendo requisito indispensável que a gestante consinta com a prática abortiva.
Nota-se que, se a interrupção da gestação for embasada em qualquer outro fundamento, a conduta será tida por ilícita, sofrendo o agente a incidência da pena cominada pelos arts. 124 a 126 do CP.
Do que acima foi dito resulta que não haverá discussão quanto à legalidade do abortamento de anencéfalos se a gestação puder ser enquadrada nas hipóteses literalmente previstas no CP de inaplicabilidade da pena.
Entretanto, em não sendo possível tal enquadramento, restará a necessidade de se definir se aquele que pratica o abortamento de fetos com esta característica restará submetido à incidência da norma incriminadora ou poderá, a exemplo dos demais casos, ser beneficiado, tendo sua conduta como permitida.
Esta definição será encontrada através das duas hipóteses de interpretação às quais este trabalho se dispôs a analisar.
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