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As universidades modernas têm muito em comum com todos estes fenômenos de abrangência histórica tão universal, mas também têm suas peculiaridades. Apesar de que, na Europa, elas viessem associadas e intimamente ligadas à Igreja, no fundo elas surgem em contraposição a ela, já que a própria existência de um sistema educacional à parte supõe que os conhecimentos desenvolvidos e transmitidos pela corporação religiosa eram insuficientes em relação ao que a sociedade como um todo exige. As primeiras universidades se dedicavam ao ensino para as profissões liberais da época (Teologia, Direito Canônico e Medicina), e incluíam em seus sistemas as disciplinas chamadas propedêuticas, o trivium (gramática, retórica e lógica) e o quatrivium (geometria, aritmética, música e astronomia) que em conjunto formavam as sete artes liberais, reunidas, como em Paris, em uma Faculdade inferior. Na realidade, no entanto, as artes liberais assumiam freqüentemente mais importância, dentro das universidades, do que o ensino profissional enquanto tal, propiciando um desenvolvimento cultural e intelectual que nem sempre se acomodava facilmente ao dogma da identidade entre a verdade conhecida pela via racional, que era o fundamento legitimador dos vínculos entre a Universidade e a Igreja.
Em outras palavras, as universidades européias cristalizaram o surgimento e a diferenciação de uma nova forma de conhecimento, com uma nova pretensão ao reconhecimento e ao poder social; o conhecimento secular, de base racional, produzido em uma comunidade freqüentemente cosmopolita, independente dos poderes locais, e ciosa de seus direitos e autonomia. A história das universidades ocidentais nos séculos seguintes, que seria evidentemente impossível resumir aqui, gira de qualquer forma ao redor de alguns conflitos e tensões básicas: por uma parte, o conflito entre as tendências de transformá-la em um simples mecanismo de formação de profissionais adequados para o exercício do poder político e religioso - advogados, sacerdotes e médicos - e as aspirações freqüentemente mais altas dos que passam pelas novas formas de estudo propedêutico ou ai ficam, multas vezes, como sacerdotes de um novo tipo de conhecimento. Depois, e o conflito que se estabelece entre as formas mais tradicionais e estabelecidas de cultura, baseadas no conhecimento das artes liberais e no acesso aos clássicos gregos e latinos, e as novas formas de conhecimento que emergem e ganham força junto com a técnica e o livre-pensar que fazem parte do Renascimento - é a chamada "filosofia natural", termo que engloba, em seus princípios, o que viria ser o conhecimento científico moderno. Estes conflitos ressurgem em roupagens modernas no confronto entre o desejo de fazer das universidades centros de reflexão e pesquisa cientifica autônomos e independentes, e a tentativa de transformá-las em centros de formação de "capital humano" para alimentar, tão perfeitamente quanto possível, a organização econômica, política e administrativa da sociedade.
É Importante lembrar, ainda, que nas universidades convivem dois grupos muito distintos, os que por ela passam, e os que nela ficam. São grupos, motivações e interesses distintos, e, por isto, freqüentemente em conflito. Sem saber o que a universidade lhes dará, os estudantes a buscam pela promessa de um conhecimento que lhes proporcionará acesso a posições de prestigio e poder, e por isto se submetem, freqüentemente de má vontade, aos rigores e rotinas dos programas de estudo e dos exames. Os professores estão comprometidos, freqüentemente, com o próprio conteúdo das disciplinas que ensinam, com seu prestígio entre seus pares e na sociedade como um todo, e não necessariamente com a apreciação efêmera do estudante que passa por suas mãos.
Em algumas das primeiras organizações universitárias, como em Bologna, o predomínio total era dos estudantes, que contratavam e despediam seus professores como lhes aprouvesse. Na universidade inglesa, e com mais força do que nunca na universidade alemã do século XIX, o professor era absoluto, autoridade moral e hierárquica que tinha em suas mãos o juízo final e o destino de seus alunos.
Além destes, as universidades sofrem a presença e a pressão de outros grupos da sociedade, que sobre ela atuam em função de seus próprios objetivos. São seus ex-alunos, participantes do sistema de "co-gobierno" onde a influência da Reforma de Córdoba se fez sentir, assim como através das "alumni associations" que freqüentemente financiam uma parte substancial de universidades norte-americanas; é a Igreja, que não desiste jamais de sua preocupação em preservar no sistema educacional o conteúdo ético e normativo de seus ensinamentos, quer pela criação de suas próprias universidades, quer pela luta pelo ensino religioso, quer, por exemplo, pela exigência, hoje feita nos Estados Unidos, do ensino de teorias "creacionistas" ao lado do evolucionismo das escolas; é o Estado, que freqüentemente quer a universidade obediente e bem comportada, como um ramo entre outros do serviço público; são as organizações econômicas, que querem da universidade a formação mais eficiente possível de sua mão-de-obra, com o mínimo de custos e de transmissão de conhecimentos "inúteis" e improdutivos.
Esta multiplicidade de interesses e pressões sobre o sistema universitário sempre existiu, e é responsável por fazer da universidade, em todos os tempos e com poucas exceções, centros de grande efervescência e constante instabilidade. Se isto era verdade com as universidades mais tradicionais, ainda o é com multo mais razão nos sistemas universitários modernos, onde os professores se contam por dezenas de milhares, e os alunos, por milhões.
A generalização da chamada "educação de terceiro grau" nos dias de hoje faz com que os conceitos mais clássicos de universidade se percam, aparentemente, em um sistema educacional muito mais complexo e mais amplo do que jamais tenha existido. No Brasil, fala-se hoje de "sistema universitário" para se referir a todo este sistema. Ainda que formalmente exista uma distinção entre universidades e estabelecimentos isolados, na prática esta é, na maioria das vezes, uma questão meramente administrativa, e não existe diferença legal nem social entre títulos superiores emitidos por um ou outro tipo de instituição. Diante de fatos como este, não seriam as universidades tradicionais fenômenos passados e ultrapassados? Em que medida pensar sobre as universidades medievais, ou a universidade alemã do século XIX, nos ajuda a entender e a propor algo que faça sentido para os problemas da educação superior no mundo atual?
A razão pela qual o passado nos ajuda a entender o presente é que os sistemas educacionais contemporâneos estão sujeitos aos mesmos fenômenos de disputa entre os princípios de liderança política e os princípios de liderança intelectual, moral ou espiritual que caracterizavam os sociedades do passado. A principal diferença é que, nas sociedades modernas, existe uma tendência à progressiva diferenciação de papéis, e ao surgimento de outras fontes e formas de legitimação. A revolução burguesa traz consigo um novo tipo de liderança, baseada exclusivamente em posições conquistadas no mercado de trocas, que são as lideranças de cunho econômico enquanto tal; a revolução política que a acompanha gera mecanismos renovados de liderança política enquanto tal, que se forma dentro de sistemas partidários e se estabelece no interior das novas formas de dominação política de cunho racional e legal; a separação iniciada pelas universidades tradicionais entre o conhecimento religioso, sagrado e revelado e o conhecimento de base racional é levada ao extremo pelo desenvolvimento das ciências contemporâneas, que tratam de se instituir como uma nova filosofia, de base natural, que legitima e instrumenta o individualismo da revolução industrial e burguesa. Além disto, as sociedades modernas propiciam o desenvolvimento de sistemas organizacionais cada vez mais complexos, de tipo governamental ou privado, que exercem um controle de tipo "técnico" ou "administrativo" (na realidade, tecnocrático) sobre grupos sociais cada vez maiores. Estas novas formas de liderança e dominação não eliminam, no entanto, as antigas: a Igreja continua a existir e a desempenhar seu papel, em suas diversas formas. o poder político de base militar não aceita com facilidade sua subordinação à liderança racional-legal, e antigos critérios de liderança e dominação política baseados na nobreza, na língua, na nacionalidade e na raça não se desfazem com facilidade.
Esta multiplicidade de fontes de poder e dominação leva, evidentemente, a problemas sérios e freqüentemente catastróficos de rompimento do tecido social. Não é por acaso que o surgimento das sociedades modernas foi acompanhado por todo um pensamento de tipo conservador que buscava e pregava a volta a um passado medieval mítico onde o poder temporal e o poder espiritual se mantinham indissolúveis sob a tutela moral da Igreja, e ao qual se subordinava tanto a atividade econômica quanto o sistema educacional, quanto a atividade política e militar. Menos radicais, os sociólogos da chamada linha funcionalista, de Émile Durkheim a Talcott Parsons, dedicaram sua obra à busca dos princípios unificadores que pudessem explicar e manter a coerência dentro da multiplicidade e da diferenciação. Para Durkheim, era exatamente ao sistema educacional que cabia este papel integrador e unificador, pela transmissão dos valores de coesão e integração social em uma sociedade moderna e laicizada. Para Parsons, o sistema social tendia naturalmente ao equilíbrio - "all fits nicely" - graças aos valores básicos transmitidos pelos sistemas integrativos da sociedade - de novo a educação. A experiência das últimas décadas parece mostrar que este equilíbrio natural é cada vez mais difícil de conseguir, e que o sistema educacional, no presente como no passado, pode funcionar tanto como um fator integrativo como um elemento de competição e disputa pela liderança e poder na sociedade.
Descartada a harmonia do equilíbrio funcional, e inaceitável o mito da harmonia orgânica medieval, só nos resta aceitar o desafio de uma sociedade moderna em constante mudança e transformação. Na realidade, esta tem sido a história dos últimos séculos, e não há razão para crer que isto mudará tão cedo. Nesta história, as universidades tiveram um papel ativo nas transformações havidas, lutando pela sua independência e autonomia, pela sua liberdade de pensamento e ensino, e tratando de levar seus valores e princípios ao resto da sociedade.
Se é possível extrair de toda esta experiência algumas conclusões de tipo normativo, elas poderiam ser resumidas nos seguintes pontos:
Primeiro, a vitalidade da universidade como núcleo gerador de novas idéias, conhecimentos e valores tem estado e deve estar intimamente relacionada com sua integração relativamente débil com o resto da sociedade, e particularmente com as fontes mais tradicionais de liderança e dominação econômica, política e religiosa. A universidade "bem comportada", que funcionasse de maneira integrada e sem tensões com outros setores da sociedade, seria quase certamente uma universidade burocratizada, desmotivada, sem vida e, em última análise, sem relevância.
Segundo, é importante que, neste processo de competição com outros setores da sociedade, a universidade não termine vitoriosa e perca, sem sentir, sua identidade própria. É próprio da universidade não ser a fonte do conhecimento sagrado, nem do poder econômico, nem do poder político; ela deixa de ser universidade quando se transforma em Igreja, empresa ou partido. Encontrar seu espaço próprio, não se submeter nem se descaracterizar é a chave para sua permanência e sua relevância.
Terceiro, os sistemas educacionais modernos têm em si o germe da universidade clássica, mas também muitas outras coisas que pouco têm a ver com ela. Por isto mesmo, eles são necessariamente instáveis, e submetidos a um processo constante de disputa e competição internos. Esta é uma situação inevitável, que não pode ser corrigida sem que algumas das funções importantes que os sistemas universitários modernos desempenham sejam sacrificadas. O que é importante, aqui, é aprendermos a viver com a variedade, a diferenciação, as contradições de objetivos e princípios que são inerentes a sistemas sociais de tanta complexidade.
A sina da universidade, se podemos utilizar esta figura, é estar sempre descontente com suas limitações, sem perder no entanto, jamais, sua identidade, forjada na evolução das sociedades modernas nos últimos séculos. Na medida em que ela possa se manter fiel a esta sina, ela será, ainda por muito tempo, um fator de perturbação, discussão, eventualmente conflito - e também de esperança para um mundo melhor.
Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon
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