Universidade, Ideologia e Poder

Enviado por Simon Schwartzman


Publicado em Presença Filosófica (Rio de Janeiro, publicação da Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos), Vol. IX, nº 3 e 4, Jul./Dez. 1983, 58-62

I

A participação política dos universitários não é, como muitos pensam, um fenômeno novo. Na América Latina, ela data pelo menos do famoso movimento da Reforma de Córdoba, Que deu a muitas universidades latino-americanas seu poder de autogestão e sua vinculação com movimentos políticos da época; de fato, ela vem de muito antes, como atesta, por exemplo no Brasil, a história da Faculdade de Direito de São Paulo, com a famosa e mal conhecida organização estudantil denominada "bucha" nos moldes das fraternidades secretas européias.

Na realidade, a própria idéia mais original de "universidade" atesta, desde o principio, sua conotação política. Estabelecidas na transição das sociedades medievais para a época renascentista, as primeiras universidades européias eram, acima de tudo, corporações de estudantes e professores que buscavam conseguir, muitas vezes a duras penas, o direito ao trabalho intelectual independente, a autonomia administrativa é mesmo o direito a foro especial para seus membros, em relação às autoridades eclesiásticas e políticas de então.

A busca desta autonomia era por si mesma um fato político, já que implicava delimitar o âmbito de ação dos poderes constituídos, e levar ao reconhecimento de um poder autônomo é paralelo. Mas freqüentemente, hoje como no passado, as universidades não se limitavam a isto, tratando de levar ao resto da sociedade sua maneira particular de ver e entender as coisas é sua pretensão ao amplo exercício do poder na sociedade pela força das idéias.

II

É possível examinar este fenômeno em uma perspectiva ainda mais ampla. Todas as sociedades, praticamente sem exceção, apresentam um potencial de disputa entre um princípio de liderança política, estabelecida geralmente pela via da ação militar, e um principio de liderança intelectual ou cultural, estabelecida pela via do acesso ao conhecimento - seja ele religioso, mágico. medicinal, ou outro. É uma disputa que visa ao controle da sociedade como um todo, aí incluído o acesso aos bens materiais que decorrem das posições dominantes. Não é, no entanto, uma disputa à morte.

Freqüentemente, no passado, as lideranças políticas e intelectual ou espiritual surgiam unidas e inseparáveis. No Egito antigo, ou no Tibet, o líder político era a própria encarnação da divindade, e a organização eclesiástica não se distinguia, freqüentemente, da administração da coisa pública. Estas sociedades teocráticas, no entanto, tendem a ser raras, mesmo na antigüidade. O surgimento das tradições religiosas escritas, entre outros fatores, tende a fazer do acesso ao conhecimento sagrado uma especialidade, à qual se associa um estilo de vida freqüentemente ascético e exemplar, do qual deriva uma pretensão explicita à autoridade moral e ao exercício do poder sobre a sociedade como um todo. Esta pretensão à liderança se confronta, muitas vezes de forma violenta, com o poder que se estabelece por outras vias - a conquista militar, o acúmulo de riquezas pelo comércio, ou outro -, mas ao qual faltam os princípios de legitimidade moral e intelectual. Se estas duas tendências muitas vezes lutam, muito freqüentemente, também, elas se aliam - a Igreja se associa ao Estado, os religiosos educam os filhos dos reis e dos nobres, e ambos se associam para manter a sociedade como um todo estável e respeitosa da autoridade temporal e espiritual.

Têm razão, pois, os que vêm nas organizações, instituições e pessoas dedicadas à administração do conhecimento aliados freqüentes dos que detêm o poder temporal - mas se enganam os que acham que esta é uma aliança simples, automática e inquebrantável.

De fato, assim como o conhecimento é uma forma de poder e controle social, ele também funciona como uma via possível de rebeldia e revolução. A história está cheia de exemplos de sistemas de dominação estabelecidos que se vêm desafiados por novos grupos que trazem consigo idéias, conhecimentos e interpretações do mundo das coisas e dos homens que se confrontam com aqueles do poder. Seria simplista, evidentemente interpretar estes movimentos como simples confrontos de idéias, já que, junto com elas, vêm geralmente todo um conjunto de atividades de tipo econômico e militar que buscam sua própria legitimidade. O exemplo clássico moderno é a reforma protestante, que surge no ímpeto da revolução capitalista e burguesa; um outro exemplo atual é a associação entre o islamismo fundamentalista e o nacionalismo árabe de tendência revolucionária.

 


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