A universidade primeira do Brasil: entre intelligentsia, padrão internacional e inclusão social

Enviado por Simon Schwartzman


RESUMO

A UNIVERSIDADE de São Paulo é a principal universidade de pesquisa e ensino de pós-graduação no Brasil, e sua produção acadêmica é comparável à de várias das universidades consideradas de classe internacional por analistas internacionais. No entanto, ela é relativamente desconhecida fora do Brasil. O artigo discute as razões desse provincianismo; se a Universidade de São Paulo poderia, e deveria assumir um papel de universidade de classe internacional; e quais seriam as condições para isso.

Palavras-chave: Educação superior, Universidades de classe internacional, Brasil, América Latina.

ABSTRACT

THE University of São Paulo is Brazil's leading academic institution in research and graduate education, with an academic production comparable to that of several world class universities according to international analysts. However, it is relatively unknown outside Brazil. This paper examines the reasons for this provincialism and debates whether the University of São Paulo could or should strive to become a world class university and, if so, what are the requirements.

Keywords: Higher education, World class universities, Brazil, Latin America.

Introdução

A CRIAÇÃO DAS nações-estado latino-americanas no início do século XIX foi acompanhada da noção de que era importante estabelecer, em cada novo país, instituições de ensino superior capazes de promover os valores da modernidade e da racionalidade, que estavam moldando a construção das nações-estado modernas na Europa e, mais especificamente, na França. Alguns países tiveram mais sucesso que outros, e, em certos lugares, as antigas universidades coloniais católicas, fundadas nos séculos XVI e XVII, acabaram transformadas e incorporadas ao novo ambiente acadêmico e educacional (Halperín Donghi, 1962; Schwartzman, 1991a, 1996; Serrano, 1994). Essa é a origem das universidades nacionais de ponta na região – Universidad de Chile, Universidad de Buenos Aires, Universidad Nacional Mayor de San Marcos no Peru, Universidad Nacional Autónoma de Mexico, Universidad de la República no Uruguai, e outras.

No início do século XXI, a noção prevalecente de "universidade de ponta" [flagship university] está fortemente associada à pesquisa científica e tecnológica. Na América Latina, contudo, as universidades de ponta demoraram a incorporar esse componente de pesquisa, de tal modo que, ainda hoje, nos debates sobre quais devem ser as prioridades de uma universidade, a pesquisa é obrigada a competir com outros valores e outras motivações.

Neste artigo, examinamos o caso da Universidade de São Paulo (USP), a principal instituição acadêmica brasileira em relação a pesquisa e programas de pós-graduação. Foi também a primeira universidade do país, criada na década de 1930 – cerca de cem anos após suas instituições-irmãs em outros países da região. A USP não é uma universidade nacional, mas uma instituição criada pela elite política do Estado de São Paulo, a região econômica mais rica do Brasil, numa competição clara com o governo federal, que na época pretendia estabelecer uma universidade nacional no Rio de Janeiro, a Universidade do Brasil (Schwartzman et al., 2000).

Hoje o Brasil possui universidades e instituição de ensino superior federais, estaduais, privadas e até municipais, com cerca de quatro milhões de alunos, 70% dos quais estudam em instituições privadas.2 Muitos estados têm suas próprias universidades, financiadas com dinheiro público (a Constituição proíbe as instituições públicas de cobrar anuidade), mas o sistema estadual paulista ocupa um lugar especial. Além da USP, o Estado de São Paulo tem duas outras universidades públicas mais novas, a Universidade de Campinas (Unicamp) e a Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp). Juntas, são responsáveis por cerca de um terço de todos os doutorados concedidos no Brasil por ano. Nenhuma instituição norte-americana forma mais doutores do que a USP, exceto se juntarmos todos os campi da University of California.

Esses números são ainda mais impressionantes se considerarmos a alta qualidade da maioria desses doutorados, garantida por um rigoroso sistema de peer review [avaliações por pares] implantado pelo Ministério da Educação. No entanto, a USP é relativamente desconhecida no âmbito internacional e não está bem colocada em diversos rankings internacionais de universidades publicados recentemente. Isso pode ser atribuído, em parte, à ignorância internacional generalizada sobre o Brasil. Neste ensaio, contudo, argumentamos que é também resultado da falta de um esforço explícito da universidade e das autoridades públicas para torná-la uma influente instituição de pesquisa de classe internacional, tal como se entende hoje. Ao adotarmos essa perspectiva, também conseguiremos entender melhor a difícil situação atual da educação superior brasileira como um todo.

USP: a primeira universidade do Brasil

Na América Latina, o ensino superior do Brasil é um caso especial, seja por sua abrangência restrita seja pela alta qualidade de seus melhores cursos profissionais, escolas de pós-graduação e programas de pesquisa. É especial também pelo atraso com que surgiram suas instituições. Em outros países da região, as universidades datam do século XVI ou, no máximo, do século XIX, ao passo que as tardias universidades brasileiras só surgiram nos anos 1930 e 1940. Com isso, o ensino superior brasileiro permaneceu por muito tempo imune ao movimento de "reforma universitária" que, começando em Córdoba, Argentina, em 1918, espalhou-se por muitos países da região – Argentina, Peru, Uruguai, Venezuela, México – e engendrou não só uma mescla peculiar de autonomia e politização da universidade, mas também padrões acadêmicos que deixaram bastante a desejar.

A primeira legislação universitária brasileira, de 1931, autorizou as futuras instituições a concederem "privilégios universitários" – entre eles, o direito de os diplomados exercerem as profissões liberais. A legislação honrava as noções usuais de cultura, pesquisa e autonomia institucional, mas sua principal preocupação era manter sob controle os padrões e o tamanho das profissões; para isso, as universidades seriam submetidas a rígida fiscalização ministerial. O pressuposto era que haveria uma "universidade modelo" na capital do país, que serviria como padrão para todas as demais.

A década de 1930, entretanto, foi também um período de intensas disputas ideológicas e conflitos políticos, e, por certo tempo, pareceu que o governo federal colocaria a instituição líder da Universidade do Brasil, a nova Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, sob a tutela da Igreja Católica (Schwartzman, 1991b; Schwartzman et al., 2000). Essa faculdade seria a unidade central da universidade: desenvolveria pesquisa e ensino de alto nível nas ciências e humanidades, prepararia professores para o ensino secundário e infundiria competência científica nas velhas faculdades profissionais que haviam sido incorporadas à universidade quando essa foi estabelecida. Por diversos motivos, o acordo com a Igreja não vingou, e, na década de 1940, a Igreja Católica decidiu criar a sua primeira universidade privada, também no Rio de Janeiro.

Assim sendo, a primeira e mais bem-sucedida universidade da década de 1930 não foi a universidade nacional no Rio de Janeiro, mas a universidade do Estado de São Paulo, conhecida até hoje como Universidade de São Paulo (USP), fundada em 1934. Durante muitas décadas, o Estado de São Paulo foi o mais importante pólo de crescimento econômico do país, primeiro como a principal região de plantio e exportação de café, mais tarde como um dinâmico centro industrial, que tirou proveito das habilidades empreendedoras do grande número de imigrantes europeus e de brasileiros oriundos de outras regiões. As elites paulistas contribuíram para derrubar a Monarquia centralizada que governara o país até o final do século XIX, substituindo-a por uma República descentralizada que redistribuiu o poder entre os maiores estados. Na década de 1930, porém, esses estados não conseguiram impedir um novo impulso centralizador, e, em 1932, São Paulo liderou uma frustrada rebelião armada (que se tornaria conhecida como "Revolução Constitucionalista") contra o governo de Getúlio Vargas. Essa combinação de riqueza e frustração política contribuiu em não pouca medida para explicar as ambições originais da Universidade de São Paulo, e também seus primeiros sucessos.

Uma das personalidades mais marcantes na criação da Universidade de São Paulo foi Júlio de Mesquita Filho, cuja família era (e ainda é) proprietária do jornal O Estado de S. Paulo, uma publicação conservadora e bastante respeitada, que data do século XIX. Ele acreditava que, para São Paulo recuperar e manter sua preeminência no país, era necessário criar uma nova elite, instruída não só nas ciências modernas, mas também nas mais avançadas práticas gerenciais e de negócios. O projeto recebeu o apoio do governador do estado e culminou na criação de duas instituições: a nova universidade e uma escola independente de sociologia e ciência política. Em ambas, professores foram trazidos do exterior para lecionar e desenvolver suas pesquisas. A Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (originalmente Escola Livre de Sociologia e Política), cujo corpo docente inicial foi predominantemente norte-americano, permaneceu obscura, a despeito de algumas realizações significativas em sociologia, e existe até hoje (Limongi, 2001). A Universidade de São Paulo, como a do Rio de Janeiro, congregou várias instituições que já existiam no estado (incluindo as antigas Faculdades de Direito, Medicina e Engenharia e a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, todas fundadas no final do século XIX) e criou uma nova instituição para as Ciências e as Humanidades, a Faculdade de Filosofia, em conformidade com a legislação de 1931. Ela tornou-se a primeira instituição acadêmica do Brasil a realizar pesquisas (exceção feita a algumas pesquisas médicas das faculdades de medicina) e permanece a mais importante universidade pública do país. Eis como Mesquita Filho descreveu suas motivações em 1937:

Derrotados pela forças das armas, sabíamos perfeitamente bem que só pela ciência, e com um esforço contínuo, poderíamos recuperar a hegemonia gozada na federação por várias décadas. Paulistas até os ossos, tínhamos herdado dos nossos antepassados bandeirantes o gosto pelos projetos ambiciosos e a paciência necessária para as grandes realizações. Que monumento maior do que uma universidade poderíamos erigir àqueles que tinham aceito o sacrifício supremo para defender-nos do vandalismo que conspurcara a obra dos nossos maiores, desde as bandeiras até a independência, da Regência até a República? […] Saímos da revolução de 1932 com o sentimento de que o destino tinha colocado São Paulo na mesma situação da Alemanha depois de Jena, do Japão depois do bombardeio pela marinha norte-americana, ou da França depois de Sedan. A história desses países sugeria os remédios para os nossos males. Tínhamos vivido as terríveis aventuras provocadas, de um lado, pela ignorância e incompetência daqueles que antes de 1930 tinham decidido sobre o destino do nosso estado e da nossa nação; de outro, pela vacuidade e a pretensão da revolução de outubro [de 1930]. Quatro anos de contatos estreitos com os líderes das duas facções nos convenceram de que o problema do Brasil era acima de tudo uma questão de cultura. Daí a fundação da nossa universidade, e mais tarde da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. (Mesquita Filho, 1969; Schwartzman, 1991b)

A grande decisão tomada naqueles anos foi a de que todos os professores da nova Faculdade de Filosofia deveriam vir do exterior. Graças às incertezas econômicas e políticas na Europa daqueles anos e aos recursos disponíveis por parte do governo de São Paulo, foi possível enviar uma missão de recrutamento para a Europa e atrair jovens professores da Itália, da Alemanha e da França. Um deles foi Claude Lévi-Strauss, que aproveitou a oportunidade para visitar os índios bororos e coletar material para seus escritos subseqüentes, sem deixar muitas marcas no Brasil.3 Outros, menos conhecidos, tiveram influência bem mais duradoura: o antropólogo Roger Bastide, que formou uma geração inteira de renomados cientistas sociais brasileiros, incluindo Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni; Gleb Wathagin, um russo branco que morava na Itália e trabalhava com física das partículas, e formou um vigoroso grupo de discípulos; Gustav Brieger, que trouxe a genética moderna para a Escola de Agricultura Luiz de Queiroz; e Heinrich Reinboldt e Henrich Hauptman, que introduziram a tradição alemã de pesquisa em química.

Paulo Duarte, um jornalista e escritor que participou das decisões sobre a organização da universidade e quem deveria ser contratado, ressaltou em entrevista muitos anos depois que houve um esforço explícito de trazer dos países fascistas, Alemanha e Itália, apenas cientistas naturais e matemáticos, reservando as posições em ciências sociais e humanidades para a França. (É interessante que a Inglaterra, embora mencionada, parece não ter sido parte do mapa conceitual dos criadores da USP; os Estados Unidos estavam fora de cogitação; e a economia ainda não era percebida como matéria de estudo.)

Queríamos utilizar o melhor não de um único país desenvolvido mas de todos. Assim, a Itália deveria proporcionar professores de matemática, geologia, física, paleontologia e estatística; a Alemanha, de zoologia, química e botânica; a Inglaterra ajudaria em outro ramo da história natural, e talvez também em psicologia; quanto à França, teria reservada as cátedras de pensamento puro: sociologia, história, filosofia, etnologia, geografia, e possivelmente também a física. Mas nem sempre esse plano pôde ser cumprido. (Paulo Duarte, entrevista citado por Schwartzman, 1991b, p.130)

Desde o início, pois, a Universidade de São Paulo foi uma instituição voltada para o mundo, com um corpo docente formado de professores da Europa, freqüentada em grande parte por filhos dos imigrantes europeus que constituíam uma parcela considerável da população do estado. Naqueles anos, a ambição da nova universidade foi não apenas desenvolver competência profissional e conhecimento aplicado para fazer crescer a economia, o que de fato ocorreu, mas também trazer civilização ao Brasil por meio da "ciência pura" e do "pensamento puro".

A adoção do modelo francês (tanto Mesquita Filho como Duarte tinham estudado em Paris) implicou que os professores estrangeiros eram vistos não apenas como cientistas e especialistas, mas como intelectuais, fundadores de uma nova intelligentsia cosmopolita. De fato, eram percebidos como tal; suas palavras e realizações estavam sempre em destaque, ao que muito contribuiu a cobertura permanente do influente jornal de Júlio de Mesquita. Com exceção dos franceses, porém, os professores estrangeiros nunca assumiram eles próprios esse papel. Mas o mesmo não se pode dizer de seus discípulos não apenas nas ciências sociais, mas também nas ciências naturais, e particularmente na física. O prédio da antiga Faculdade de Filosofia na Rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, tornou-se o símbolo da união da intelligentsia brasileira por cima e além das barreiras disciplinares. Entre os físicos, o grande desafio era trazer os benefícios da energia atômica para o Brasil; veio deles o apoio intelectual e técnico das políticas de auto-suficiência atômica de sucessivos governos brasileiros desde os anos 1950, com todos os altos e baixos decorrentes da guerra fria. Da sua parte, os cientistas sociais adotaram uma abordagem mais à la francesa, de orientação marxista, que parecia fornecer respostas aos problemas socioeconômicos do país e apontar o caminho para as soluções. Eles escreviam em jornais, publicavam para o público em geral e se envolviam em política partidária. Muitos deles, cientistas naturais e sociais, se filiaram ao Partido Comunista em algum momento da vida e permaneceram identificados com a esquerda tradicional.

 


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