RESUMO
As Organizações Não Governamentais vêm aumentando e propagando-se pelo país e pelo mundo apoiadas, especialmente, em seu caráter"distanciado" das políticas do Estado. Por seu caráter muitas vezes assistencial, elas recebem benefícios fiscais e recursos financeiros de todo o mundo. Este trabalho pretende avaliar de que modo uma ONG com quase quarenta anos de atividade no país e cujo trabalho abrange grande extensão territorial estabelece critérios de inserção, como pensa essa inserção e qual seu discurso sobre ela. Tenta discutir ainda, se as ONG’s ainda podem ser consideradas de fato como entidades nãogovernamentais ou se, com o correr do tempo, sofreram transformações estruturais que astransformaram em captadoras informais de recursos, inclusive, do Estado, para os países pobres. De seu caráter de agente territorial, elas podem, ou tendem a, passar ao caráter de agente supraterritorial. Créditos internacionais são postos à disposição dos países pobres, incentivando o estabelecimento de redes a serviço do grande capital e isto pode atingir as ONG’s, inclusive.
Depois de concluir o curso de graduação em Geografia na Universidade Federal Fluminense, no período de julho de 1993 a março de 1995, dei início ao trabalho no Laboratório Amazônia: "Tradição e Modernidade", cujo tema, obviamente, relacionava-se aos processos sociais da região amazônica.
Este trabalho constituía-se em parte do convênio entre a Universidade Federal Fluminense, o Conselho Nacional dos Seringueiros – CNS - e a Associação de Cooperação Rural para a África e América Latina – ACRA, uma organização não-governamental italiana, que realiza o trabalho de organização de "campesinos" no norte da Bolívia, junto ao Departamento de Pando. Nesta época, seu trabalho estava inserido no acordo de cooperação do governo italiano com o governo boliviano que, através do Projeto "Porvenir", procurava dar suporte técnico e político aos habitantes da região, principalmente no que dizia respeito à organização comunitária e sanitarismo.
O Projeto "Porvenir" constituía-se como a estratégia geopolítica do governo boliviano para articular o norte do país com as demais regiões, através da abertura de estradas que pudessem facilitar a manutenção e defesa daquela parte de seu território. No acordo com o governo italiano previa-se a execução de um trabalho de organização comunitária que não vinha sendo realizado até a época do assassinato de Chico Mendes (1), no Brasil.
A partir deste acontecimento, que teve forte repercussão internacional, o governo italiano convocou rapidamente a "ACRA", a fim de que desse início e desenvolvesse o citado trabalho de organização comunitária. A distância física e de interesses entre a região onde seria executado o projeto e a Universidade, despertava uma indagação que até hoje surge quando nos propomos a analisar o evento, e que é: o que levaria uma organização não-governamental italiana a preocupar-se com a organização dos "campesinos" do norte da Bolívia, região que o próprio Estado boliviano relegara a segundo plano até aquele momento? Ao ser aceito para desenvolver minha pesquisa de Mestrado em Geografia Humana, no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, no segundo semestre de 1995, retomei minhas observações. Assim o fiz, por perceber, também através deste episódio, a importância do debate e reflexão acerca da proposta e efetiva ação das chamadas Organizações Não-Governamentais e sua inserção territorial. Ao constatar, também, que as pesquisas sobre este tema encontravam-se, ainda, em estado incipiente, decidi-me por estudar esta questão, buscando uma melhor compreensão do modo de ação das ONGs (2).
Um segundo elemento motivador foi a percepção de que o debate sobre estas organizações não tem considerado o território como um elemento constitutivo na definição de estratégias de ação das ONGs e, portanto, um aspecto a ser privilegiado nas análises feitas até então. Ou seja: a inserção territorial destas organizações não tem sido objeto de preocupação dos autores que se dedicaram a estudá-las (3). Énecessário dizer que o território e a territorialidade de uma organização não pode ser deixado de lado, pois a mesma, só se realiza, na prática, territorialmente.
Comecei, então, a perceber que não é um tema de simples entendimento, mesmo para quem atua (ou sobretudo para quem atua), nestas organizações.
A sigla O.N.G. (Organização Não-Governamental) abrange uma grande diversidade no que diz respeito, primeiramente, às atividades que realizam. Numa palavra, e de modo bem humorado, poderíamos dizer que existem Organizações Não-Governamentais "para todos os gostos" (4).
Um termo de difícil definição: ONGs (Organizações Não Governamentais)
As ONGs não são um fenômeno tão recente quanto se imagina, pois já estavam previstas desde a segunda metade da década de quarenta do século XX, em documentos das Organizações das Nações Unidas – ONU. Nos documentos da ONU o termo ONG surge aludindo a um universo extremamente amplo e pouco definido de instituições e, em 1961, a Carta de Punta Del Este, que estabeleceu a Aliança para o Progresso, utiliza o mesmo conceito de organizações nãogovernamentais.
Estas organizações vêm adquirindo importância e visibilidade políticas verdadeiramente surpreendentes pelas quesotes que suscitam, principalmente aquelas relativas à soberania. É por essa via que é possível investigar que papel representam as organizações não-governamentais na definição/redefinição do território5 em que atuam (Assumpção, 1993).
Isto posto, cabe-nos indagar acerca da territorialidade6 dessas organizações. Sabendo-se que foram organizações interestatais que formularam o conceito de ONG, pergunta-se: que mediações foram criadas para que seus aparatos fossem utilizados em práticas territoriais consoantes com as práticas territoriais do Estado? Ou, melhor dizendo, de que modo a efetivação dessas organizações, a criação de todo um aparato institucional, entra em contradição, ou não, com as práticas estatais? Que mediações ocorrem entre as organizações nãogovernamentais e o Estado, no Brasil? Baseado nestas informações e na pesquisa bibliográfica, elaborei a hipótese de que a criação das organizações nãogovernamentais visa, em grande parte, atender às demandas das políticas planejadas pelo Estado, isto é, visa complementar suas ações (do Estado) e estão inseridas nas políticas de intervenção sócio-espacial. Esclareço, de antemão, que por ser um universo multifacetado, qualquer generalização se mostrará difícil, face ao atual estágio das pesquisas sobre o assunto. Esta pesquisa procurou atualizar o conhecimento acerca deste tema. A fim de atingir este objetivo, optei pela apresentação dos dados da pesquisa e de campo da seguinte maneira: No primeiro capítulo, apresento as definições de ONG, território e territorialidade. Baseado em autores clássicos e em discussões mais recentes no campo da geografia humana, busco delimitar um quadro conceitual que possa servir de instrumento para compreensão do objeto aqui proposto. O leitor deve reter em mente as noções de território como espaço jurídico-político e a de territorialidade como conjunto de relações humanas nos diferentes níveis sociais, políticos, econômicos etc.
No segundo capítulo, inicio a apresentação de meu objeto de pesquisa propriamente dito. Como exemplar no auxílio à compreensão do modo de ação, origem, desenvolvimento, políticas e obstáculos a serem transpostos por uma ONG, apresento a história da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – F.A.S.E. Neste capítulo, apresento o tema sob diversos ângulos: o da própria instituição, o da bibliografia sobre ela, a de ex-participantes aos quais entrevistei e a de participantes atuais, que se referem ao histórico da Federação como explicativo de seu caráter atual. No terceiro capítulo, optei por uma abordagem sincrônica da Federação, através da descrição detalhada de suas atividades e inserções territoriais, e de seu relacionamento com outras instituições, sejam elas religiosas, leigas, políticas, financeiras, outras ONG’s etc. Na conclusão, apresento as principais idéias que decorreram da pesquisa bibliográfica e de campo, após a análise. A fim de enriquecer a dissertação, possibilitando ao leitor um melhor acesso aos dados da pesquisa, que são importantes mas que em muitas vezes não foi possível incorporar ao texto, optei por oferecer, em anexo, as entrevistas na íntegra, os dados quantitativos e outros mais que julguei interessantes.
Face à natureza das questões que o tema envolve, decidi refletir a partir de um caso concreto: o da F.A.S.E - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, buscando compreender sua constituição e atuação como exemplar do modo de ação e inserção 16 territorial das ONGs brasileiras.
A escolha da FASE7 como objeto de pesquisa se deu em virtude de sua contemporaneidade com a Aliança para o Progresso e, também, por ter sido criada através de um serviço religioso, apresentando, assim, um tipo de territorialidade sui generis; (isto é, que atravessa os marcos do Estado Territorial), ou uma "supraterritorialidade", pois sua localização se dá em várias unidades da Federação8. Além disso ela é relevante, também, pelo processo de transformação em seu perfil institucional e por sua história nas lutas da sociedade brasileira. A FASE apresenta, ainda, o caráter de entidade de utilidade pública e, atualmente, reconhece-se como organização nãogovernamental.
Em sua origem, contudo, ela já apresentava interesses ligados a acordos entre governos. Outro aspecto investigado foi o modus operandi da gestão territorial na relação Estado/FASE. Estes atributos serão discutidos no corpo do trabalho.
Pesquisa Bibliográfica e de Campo
A pesquisa foi realizada através de entrevistas com participantes leigos e religiosos, militantes, ativistas, políticos e outros informantes. Foram feitas ainda visitas a diversas ONG’s, com atividades diferentes, às quais pude comparar entre si para minha melhor análise. A pesquisa bibliográfica constou da consulta a autores de disciplinas diversas que trataram do tema, além de jornais, revistas, periódicos especializados, panfletos e sites da Internet. Grande parte do material realmente atualizado se encontra no meio virtual, que as ONG’s foram praticamente pioneiras em utilizar. Este dado se constituiu, inclusive, como um dado de pesquisa propriamente dito, pois o uso da Internet influiu fortemente no desenvolvimento e internacionalização das Organizações não Governamentais. No Jornal do Brasil de 15/10/1995, no Caderno Internacional, na matéria "ONG S.A., multinacional sem fim lucrativo", um grupo de jornalistas, distribuídos por vários países, assina a matéria que informa que:
"[...] o surgimento da Internet também faz explodir a febre da comunicação entre as ONG’s de todo o mundo, tornando possível por exemplo, que um grupo de ambientalistas do Mato Grosso troque idéias com militantes ecológicos da World Wide Fund for Nature (WWF), o Fundo Mundial para a Conservação da Natureza, maior organização de defesa do meio ambiente, com sede em Londres.[...] Esse intercâmbio na era da eletrônica foi fundamental para o desenvolvimento das ONG’s brasileiras, e especialmente de uma, o Instituto Brasileiro de Análises Sócio Econômicas (Ibase), dirigido pelo sociólogo Herbert de Souza. ‘A popularização do computador começou no fim dos anos 70 e início dos 80.
Nessa época, o Betinho e o Carlos Afonso vieram do exílio com dois micros na mala e fundaram o Ibase’ conta Cândido Grzybowski, diretor do Instituto.[...] O Ibase tem um orçamento [cuja...] metade [...]chega através de agências internacionais, especialmente da Holanda e da Alemanha. A outra parte é complementada por recursos próprios, entre eles a cobrança dos serviços da Alternex – sistema de acesso à Internet controlado pelo Ibase, que já conta com 5 mil usuários. A Internet serve tanto para gerar dinheiro como para multiplicar o poder de mobilizar a mídia, servindo de base para as ações espetaculares das ONG’s".
Como se vê, o papel da Internet cresce a cada dia, tanto para a pesquisa como para as atividades institucionais em geral, demonstrando inclusive a necessidade de se repensar os próprios conceitos de território e territorialidade em Geografia. Este trabalho apesar de não discutir esse aspecto foi capaz de perceber este fenômeno de modo claro. A seguir, principio a dissertação, apresentando os conceitos de ONG, território e territorialidade.
1.1. Como surgem as ONG’s e para quê.
A expressão "Organizações Não-Governamentais"- ONG’s, surge no cenário político do pós-guerra, quando a ONU – Organização das Nações Unidas, passou a ser a instituição normatizadora da ajuda aos países destruídos pela Guerra Mundial. A ajuda, denominada Cooperação Internacional, proporcionou o surgimento de experiencias de participação e de exercício da cidadania em países da Europa e acarretaram no surgimento de vários tipos de associações que em muito se diferenciavam das organizações governamentais 1.
"Da Europa Continental vem o predomínio da expressão "Organizações Não Governamentais" (ONGs), cuja origem está na nomenclatura do sistema de representações das Nações Unidas. "Chamou-se assim às organizações internacionais que embora não representassem governos, pareciam significativas o bastante para justificar uma presença formal na ONU. O Conselho Mundial de Igrejas e a Organização Internacional do Trabalho eram exemplos em pauta. Por extensão, com a formulação de programas de cooperação internacional para o desenvolvimento estimulados pela ONU, nos anos sessenta e setenta, cresceram na Europa Ocidental "ONGs" destinadas a promover projetos de desenvolvimento no Terceiro Mundo.
Formulando ou buscando projetos em âmbito não governamental, as ONGs européias procuraram parceiros mundo a fora e acabaram por fomentar o surgimento de ONGs nos continentes do hemisfério Sul". (Rubem César Fernandes, 2000 Disponível na Internet via www em http://www.rits.org.br .
Capturado em 03/12/2002). Nos países do Sul, seu surgimento deu-se de forma diferenciada, mesmo estando no marco da Cooperação Internacional. "ONG" parece ter sido um termo empregado sem muitos critérios de análise. Segundo Rubem César Fernandes:
"Na América Latina, Brasil inclusive, é mais abrangente falar-se de "Sociedade Civil" e de suas Organizações. Este é um conceito do século dezoito que desempenhou papel importante na filosofia política moderna, sobretudo entre autores da Europa continental. Designava um plano intermediário de relações, entre a natureza, pré social, e o Estado, onde a socialização completar-se-ia pela obediência a leis universalmente reconhecidas. No entendimento clássico, incluía a totalidade das organizações particulares que interagem livremente na sociedade (entre as quais as empresas e seus negócios), limitadas e integradas, contudo, pelas leis nacionais. O conceito foi recuperado na América Latina no período recente das lutas contra o autoritarismo (como, aliás, também na Europa de Leste). A literatura hegeliana de esquerda foi instrumental neste sentido, tendo Gramsci como principal referência. O marxismo de linhagem italiana contribuiu, assim, para que a intelectualidade de esquerda reconsiderasse a questão da autonomia da "sociedade civil", com suas inúmeras instituições, frente ao Estado. Ocorre, no entanto, que o uso recente trouxe uma importante transformação no escopo do conceito original. Falase hoje das "organizações da sociedade civil" (OSCs) como um conjunto que, por suas características, distingue-se não apenas do Estado mas também do mercado. Recuperada no contexto das lutas pela democratização, a idéia de "Sociedade Civil" serviu para destacar um espaço próprio, não governamental, de participação nas causas coletivas. Nela e por ela, indivíduos e instituições particulares exerceriam a sua cidadania, de forma direta e autônoma. Estar na "Sociedade Civil" implicaria um sentido de pertença cidadã, com seus direitos e deveres, num plano simbólico que é lógicamente anterior ao obtido pelo pertencimento político, dado pela mediação dos órgãos de governo". (Rubem César Fernandes, 2000 Disponível na Internet via www em http://www.rits.org.br apturado em 03/12/2002).
Pode-se dizer, deste modo, que o que se convencionou chamar de "Terceiro Setor"2 é um setor composto de organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, de âmbito não governamental, que dá continuidade às práticas da caridade, filantropia e do mecenato, ou seja, práticas tradicionais que expandem seu sentido para outros domínios, devido, sobretudo, à incorporação do conceito de cidadania e de suas diferentes manifestações na sociedade civil. No Brasil, no entanto, a legislação reconhece sob o termo "instituição sem fins lucrativos", apenas aquelas organizações que não buscam o lucro. hoje, contudo, muitas organizações que se apresentavam como sendo organizações sem fins lucrativos se intitulam, ou buscam ser consideradas como, de caráter "não-governamental".
Apesar do caráter dito "sem fins lucrativos", é impressionante o volume de recursos financeiros envolvidos nos trabalhos das ONG’s ou organizações filantrópicas de diversas finalidades sociais. Rubem César Fernandes, que estudou o tema apresenta uma reflexão interessante sobre a importância social do trabalho voluntário das organizações religiosas, apontando, assim, a economia que este trabalho proporciona, indiretamente, aos cofres do Estado. Diz ele:
"Segundo o RAIS, do Ministério do Trabalho, em 1991 existiam mais de 200 mil organizações sem fins lucrativos no Brasil, empregando mais de um milhão de pessoas (Góes, 1995). São números nada banais, que colocam o setor como a terceira maior categoria na geração de empregos no país. Analisando dados da Receita Federal do mesmo ano, Landin (1993) constatou que a maior parte delas (77%) é composta de "associações" (cerca de 170.000). Dentre as associações, por sua vez, os maiores números distribuem-se entre "Beneficentes e Assistenciais" (29%), "Recreativas e Esportivas" (23%) e "Culturais, Científicas e Educacionais" (19%). Estão entre as últimas, em 1985, 895 museus e 21.602 bibliotecas. Esses números são notoriamente frágeis, pois as informações sobre o mundo "sem fins lucrativos" não têm sido levadas a sério no país. Valorizá-las é uma parte importante do processo de consolidação do setor. Os números que temos, no entanto, dão uma idéia das dimensões do objeto, ainda que tentativa e incompleta. Não inclui, por exemplo, o trabalho social que é feito no âmbito dos templos religiosos. Cada paróquia da Igreja Católica desenvolve, ao menos, um projeto social. As Ordens Religiosas desenvolvem trabalhos que ultrapassam os limites das obras formalmente registradas. É comum, por exemplo, que um colégio católico inclua projetos sociais em suas atividades extra-curriculares. Os Vicentinos, no Brasil desde 1873, especializam-se na organização de voluntários leigos, com um forte componente jovem, que se dedicam a obras sociais de forma sistemática e regular. Organizam-se em grupos locais chamados "Conferências", cada um composto no máximo de quinze pessoas, que levantam recursos e aplicamnos segundo uma metodologia comum. Em 1991, as Conferências Vicentinas coordenavam o trabalho social de 300.000 voluntários, com um orçamento anual acima de dezoito milhões de dólares (Novaes, 1995). Não há Centro Espírita que não faça, ao menos, uma obra de caridade - uma creche, um ambulatório, campanhas de atendimento. Pesquisa feita sobre a assistência social espírita no Estado do Rio de Janeiro, encontrou, por exemplo, que somente na distribuição de alimentos, a ação espírita no estado beneficia regularmente cerca de 187 mil pessoas cadastradas (Giumbelli, 1995). O trabalho voluntário é tão valorizado entre os espíritas que adquire um sentido propriamente religioso, como a principal expressão prática da doutrina. Pesquisa sobre as igrejas evangélicas no Rio de Janeiro, indica que cerca de 20% de seus membros dão algum tempo de trabalho voluntário pelos necessitados num ritmo semanal. Isto significa algo próximo de trezentos mil voluntários evangélicos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Pouco sabemos de sistemático sobre os investimentos das empresas particulares em projetos sem fins lucrativos. Vale citar, no entanto, que os projetos apresentados pelas 99 empresas concorrentes ao Prêmio Eco de Filantropia Empresarial, em 1995, totalizavam investimentos no valor de US$285.338.662,00. Leilah Landin coordena no ISER um projeto que pretende estimar o peso relativo do Terceiro Setor nas contas nacionais. Considerando o que sabemos através de investigações parciais, pode-se apostar que o resultado dessa pesquisa será impressionante". (Rubem César Fernandes, 2000 Disponível na Internet via www em http://www.reptos.org.br Capturado em 03/12/2002).
Mesmo com a relativa indefinição sobre o significado do termo "Organizações não-governamentais", o conceito passou a ser entendido como uma categoria de classificação de entidades nascidas no interior da sociedade civil. Mas, segundo Martins (1994), no Brasil "a sociedade civil não é senão esboço num sistema político em que, de muitos modos, a sociedade esta dominada pelo Estado e foi transformada em instrumento do Estado". (Martins,1994:13).
Então, como perguntava o sociólogo Herbert de Souza, "como entender não-governamental nascida de costas para o Estado?" Quando surgiu, a denominação "Organização Não-Governamental" nos documentos da ONU, seu objetivo era o de contrapor--se à denominação Organização Governamental. Sendo assim, o primeiro entendimento era de fácil identificação. Hoje a complexidade das relações institucionais demanda maior clareza na definição do que seja uma Organização Não-Governamental.
Neste sentido, têm sido feitos esforços no sentido de se compreender melhor o fenômeno das Organizações Não-Governamentais que vem se impondo à vida social, especialmente na atual situação histórica de fraqueza do sistema partidário e de desregulamentação do trabalho.
Uma das primeiras definições de Organização Não- Governamental encontra-se em Merle (1981):
"A sigla ONG indica todo agrupamento, associação ou movimento constituído de uma maneira durável por particulares pertencendo a diferentes países, tendo em vista o alcance de objetivos não lucrativos3".(Merle, 1981:277).
Já em Castro (1992) encontramos a seguinte definição:
"As ONGs são possivelmente uma herança cultural do associacionismo civil e religioso das democracias liberais protestantes, mas agora com uma conexidade ampla e com um poder de fogo político muito maior. Ecoando e articulando interesses sociais locais, coletivos e populares em escala mundial, elas são o contrapeso inesperado da articulação transnacional dos grandes interesses econômicos e dos arranjos geopolíticos entre os Estados Nacionais" (Castro, 1992:19).
Localizando religiosa e politicamente as Organizações Não- Governamentais numa origem remota que vai se atualizando, Castro mostra que estas são frutos de articulações e interesses definidos. Só que, ao mostrar a articulação de interesses de escala local com os de escala mundial, aponta as Organizações Não-Governamentais como "o contrapeso inesperado". Como vimos, contudo, a previsão destas já se encontrava em documentos de Organizações e Programas que articulariam interesses econômicos e geopolíticos. É, portanto, ingenuidade, acreditarmos que estas surgem "inesperadamente" ou, "espontaneamente".
Scherer-Warren (1995), também estuda o fenômeno e propõe a seguinte definição:
"Sintetizando, pode-se definir as ONGs como organizações formais, privadas, porém com fins públicos, sem fins lucrativos, autogovernadas e com participação de parte de seus membros como voluntários, objetivando realizar mediações de caráter educacional, político, assessoria técnica, prestação de serviços e apoio material e logístico para populações-alvo específicas ou para segmentos da sociedade civil, tendo em vista expandir o poder de participação destas com o objetivo último de desencadear transformações sociais ao nível micro (do cotidiano e/ou local) ou ao nível macro (sistêmico e/ou global)".
Partindo do estatuto jurídico das organizações brasileiras, Scherer-Warren, vai definindo-as através das formas de relação que são estabelecidas entre atores, trabalhos realizados e público-alvo. Temos que considerar, contudo, que nem todas (ou quase nenhuma) as organizações preenchem todos os requisitos propostos na definição, pois sabemos que, na prática, muitas das Organizações Não- Governamentais não estão interessadas na transformação social.
O mesmo propõe Menescal (1996), quando nos diz que "[as]...ONGs podem ser atualmente definidas como o que eu chamaria de pressure groups sociais. Ou seja, como grupos de pressão que buscam por um lado influenciar e democratizar políticas governamentais para que essas supram de maneira mais extensa possível as necessidades da sociedade e de condições de vida iguais e justas no mundo todo e, por outro, movimentar a sociedade em que estão inseridas, utilizando-se de suas relações de solidariedade, na busca dessa democratização e influência política" (Menescal,1996:28).
Estas duas últimas definições são limitadas pelo fato de explorarem o campo de luta da sociedade civil organizada, não levando em consideração outros atores que com suas Organizações Não- Governamentais têm interesses específicos.
Neste sentido, as ONGs são instituições independentes. Não são uma parte integrante de estruturas maiores. Assim, mesmo que uma pastoral, um departamento da universidade, um partido político ou um setor empresarial realizem eventualmente um trabalho do mesmo tipo, eles não poderiam ser considerados ONGs. Além disso, eles não são representantes de uma classe qualquer de indivíduos. O valor das ONGs vem do trabalho que realizam e não do segmento social que representam. Como observa Rubem César Fernandes (Disponível na Internet via www em http://www.rits.org.br Capturado em 03/12/2002), "sindicatos, associações de bairro, e outras organizações que prestam serviços a seus membros talvez exerçam o mesmo tipo de atividade, mas não seriam considerados ONGs tampouco. E não são agências de financiamento, o que as torna diferentes das Fundações. A proposta é fornecer serviços sociais que em geral não se autosustentam, daí as ONGs terem que sair à procura de fundos em outros lugares".
Como se pode ver, existe uma série de traços contrastantes que tornam diferentes as ONGs: sendo entidades não-governamentais, sem fins lucrativos, elas não fazem parte de estruturas maiores. Assim, também não são representativas, pois não financiam.
Outro ponto importante é que, sem as amarras das obrigações da representação, "as ONGs não estavam limitadas a uma definição territorial e nem mesmo funcional. Podiam mover-se de um lugar a outro, de um grupo a outro, e até de um assunto a outro, sem restrições formais. Sempre que seus serviços fossem bemvindos, ficavam e faziam o trabalho. Uma vez terminado o projeto, passavam para outro lugar ou para outra coisa. Essa mobilidade, claro, era bastante funcional para o papel de intermediário que iriam desempenhar entre as instituições globais e as organizações de base". (Disponível na Internet via www em http://www.rits.org.br Capturado em 03/12/2002) As ONG’s, por sua história e estilo institucional, têm que produzir projetos interessantes para possíveis financiadores, e esforçar-se para executá-los com sucesso, a fim de que se justifique um próximo financiamento de seus projetos. Para se sustentarem, necessitam de um bom desempenho, o que exige competências específicas num ambiente competitivo. Embora não seja este o "espírito" da organização, as ONGs "competem" por financiamentos de projetos junto aos potenciais financiadores. Portanto, nas relações de interação locais, distinguem-se não apenas por suas conexões, como ainda pela tendência a adotar abordagens profissionais nas atividades sem fins lucrativos e em geral voluntárias. Portanto, ainda que de modo involuntário as ONG’s terminam por reintroduzir em seu trabalho a lógica da eficiência institucional4 no campo das ações sociais não-governamentais.
1.1.1 - As ONG’s no Brasil
Sobre a caracterização no Brasil dessas organizações existem poucos estudos (Assumpção,1993, Fernandes, 1991, 1994 e outros), a maior parte deles de iniciativa de instituições de alguma forma ligadas às práticas de Organizações hoje ditas não-governamentais, como a FASE, o IBASE, o ISER, a NOVA etc. Nestes estudos procura-se definir sua identidade e seus objetivos ou seja, afirma-las como interlocutores no jogo político. Além disso, é preciso lembrar que, nos últimos anos, o tema Organizações não-governamentais, começou a ganhar destaque também em estudos acadêmicos, como os de Scherer-Warren (1995) e Gohn (1997).
As características principais das organizações que se originaram no Brasil a partir da década de sessenta, são seus traços assistencialistas e sua proposição como entidades que atuem fora da burocracia das organizações governamentais e da partidarização das entidades representativas da sociedade, metas nem sempre atingíveis, pois o movimento social é, como se sabe, marcado por clivagens. Esta concepção de ONG parte do modelo teórico cujo ideário primordial é o de não ser governamental, não ser partidário ou, em poucas palavras, estar e operar acima da sociedade e do social. Na prática, estas representações podem não passar de meias-verdades. Este fato é relevante, pois mostra que, embora tendo origem fora do Estado, como se verá, as ONG’s têm uma práxis comprometida com interesses ligados às políticas do Estado. Tal práxis se realiza, por vezes, prescindindo de seu aparato e da representação legalmente pré-concebida nos códigos e normas sociais, fundamento do Estado Moderno.
As primeiras Organizações brasileiras com características nãogovernamentais tiveram origem na Igreja Católica (como por exemplo, o CERIS - Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais criado em 1962, e o IBRADES - Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, criado em 1968, ambos no Rio de Janeiro) e a partir da iniciativa de professores e pesquisadores da área acadêmica que buscavam criar um espaço alternativo para a produção do conhecimento, elaboração e realização de propostas e projetos junto ao movimento popular.
Na década de setenta, em função de uma ação política de oposição, resistência e denúncia, surgiram novas organizações, que definiram seus objetivos influenciadas pelo contexto de resistência ao regime ditatorial sob tutela militar.
Na década de oitenta, as organizações não-governamentais aumentaram em número e aquelas já existentes experimentaram os resultados dos projetos desenvolvidos nos períodos anteriores. As Organizações Não-Governamentais cumpriram, neste período, o papel de assessoria, preparando lideranças sindicais, organizando associações de moradores de bairros etc., que foram de fundamental importância para o movimento social. Foram chamadas, então, de organizações de "assessoria e apoio aos movimentos populares5".
Devemos lembrar, entretanto, que estes não foram o recorte privilegiado na década. Outros temas, como mulheres, negros e ecologia foram, também, objeto de atuação6 e preocupação das ONG’s.
Nos anos noventa, as organizações experimentaram uma nova prática, tanto em relação ao Estado, quanto no âmbito da Cooperação Internacional7. O discurso ecológico8 passou a ser o amálgama entre a necessidade de um novo modo de produção e a utilização dos recursos para isto. O que se propunha era, então, um novo modelo de desenvolvimento, não mais pautado na exploração da natureza, pura e simplesmente, mas que conseguisse combinar produção e preservação do meio ambiente. Neste momento ganharam visibilidade as Organizações Não-Governamentais que tinham procurado, como objetivo, trabalhar a relação entre meio ambiente e desenvolvimento.
1.1.2. Como atuam as ONG’s
Não obstante a indefinição do que sejam, as Organizações Não-Governamentais existem (algumas há três décadas) e têm uma prática de inserção social que, a nosso ver, implica uma forma de (Rubem César Fernandes, 2000 - Disponível na Internet via www em http://www.rits.org.br Capturado em 03/12/2002).
relação com o território. Muitas são as dificuldades para definir o que são; entretanto, podemos contar com duas certezas depois de sua investigação. São elas:
1 - Surgem no marco da Cooperação Internacional - isto é, estão previstas nos acordos entre os Estados Nacionais;
2 - Têm um papel estratégico no contexto de implementação do desenvolvimento sustentável9.
Portanto, as Organizações Não-Governamentais tanto podem operar no âmbito de um Estado a partir de e com os interesses estatistas, como podem operar na tessitura mais fina da sociedade10.
Estas organizações, para realizarem seus trabalhos, articulam várias escalas espaciais. Situam-se na escala local e fazem mediações em escalas nacionais e internacionais. Para a Geografia, é importante aprofundar a pesquisa e desvendar que tipo de mediações são estas que as ONG’s realizam.
Inicialmente, podemos indicar que muitas entidades buscam financiamento no plano internacional e realizam seu trabalho, por exemplo, numa comunidade de pescadores. As organizações estabelecem deste modo, uma rede de relações com outras organizações e agências financiadoras que perpassa vários níveis da configuração sócio-espacial.
A participação cidadã se dá a partir de vários caminhos possíveis. Suas origens mais profundas estão nos espaços e interstícios da sociedade civil ou do que se convencionou chamar de "terceiro setor", ou seja, estruturas que se construíram historicamente no interior de sociedades nacionais. A grande ruptura das últimas três últimas décadas, reside na expansão, gradual e crescente, para a esfera internacional, deste compromisso com valores e causas de interesse público, antes experimentadas acima de tudo no nível local e/ou nacional. Este movimento de ampliação do alcance da participação dos cidadãos para fora das fronteiras nacionais, é expressão do fenômeno até então inaudito de construção consensual, pela comunhão internacional de valores, princípios e normas de conduta de natureza universal que correspondem a direitos e necessidades básicas da humanidade. Temas como a proteção do meio ambiente e a defesa dos direitos humanos revelam um novo conteúdo na noção de solidariedade internacional, introduzindo, ainda as noções de "destino comum", "cidadania global" e "gestão planetária". (Miguel Darcy de Oliveira, 2000, Disponível na Internet via www em http://www.rits.org.br Capturado em 03/12/2002).
O crescimento e desenvolvimento do terceiro setor implica, portanto, sua crescente "profissionalização", tanto no que diz respeito à inserção nos diferentes locais e grupos sociais, como na utilização e capacitação de técnicos. Cada vez mais profissionais executivos de empresas privadas têm sido chamados ou apresentam-se voluntariamente para o trabalho nas ONG’s. Assim, a administração das ONG’s ou mesmo de todo o terceiro setor (o que inclui fundações, associações de cidadãos, entidades religiosas etc) vem deixando de ser espaço de ação de senhoras caridosas ou de aposentados. A profissionalização das entidades sem fins lucrativos tem atraído a migração de executivos qualificados do setor privado para elas.
Segundo Roberto Galassi Amaral, superintendente do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE), que trabalhou na Mesbla, na Pirelli, no Banco Noroeste e na Iochpe-Maxion, em entrevista à Gazeta Mercantil:
"O RH e o terceiro setor são meio aparentados; um lida com uma comunidade interna de pessoas e o outro trabalha para essa mesma comunidade, só que ampliada".
De fato, os dois negócios são parecidos mas existe uma diferença crucial: O terceiro setor não trabalha sob a lógica do lucro não existe visão de curto prazo. Existe a necessidade, primordial, da eficiência dos projetos. No caso, a velocidade dos processos é a maior distinção entre o RH e o terceiro setor. Nas empresas existe um caminho definido através do diagnóstico, planejamento e execução. No terceiro setor, existem alguns degraus a mais: o aspecto político, a negociação e a arrecadação de recursos.
Este setor, inclusive, vem sendo encarado como novo mercado de trabalho para executivos. De acordo com Antonio Mendes de Almeida Júnior, coordenador do curso de administração pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a tendência é mundial. Nos Estados Unidos, segundo ele, de cada dez pessoas empregadas quatro estão no terceiro setor. No Brasil a proporção ainda é de um para dez.
Duas competências são essenciais, segundo os especialistas, para a gestão das ONG’s e de todo o terceiro setor: conhecer a técnica de captação de recursos e o marketing da área. Na iniciativa privada é possível minimizar gastos para maximizar lucros. Já no setor estatal existem orçamentos e impostos. No terceiro setor, entretanto, as fontes de recursos ficam a cargo da arrecadação de fundos. Uma boa rede de contatos, um influente conselho administrativo e trânsito livre pelo meio empresarial são características indispensáveis. Neste sentido, ainda, o marketing tem de ser eficiente na propagação da idéia de que a ONG vai produzir resultados e dar visibilidade às empresas que contribuem financeiramente para suas atividades.
Sendo assim, fica evidente que a localização espacial das ONG’s e os projetos a que se dedicam localmente, de modo simultâneo à sua relação com entidades internacionais de financiamento, influenciam fortemente suas atividades. Também seu modo de inserção, suas possibilidades técnicas e de marketing, assim como de arrecadação local de recursos estão intimamente ligadas ao território e à territorialidade como categorias fundamentais na elaboração de projetos com perspectivas de sucesso. A presença do Estado em maior ou menor grau, o modo de produção local, o relacionamento entre os diversos grupos, inclusive de classe, a tradição e vários outros fatores delimitados ou limitados pela territorialidade, devem ser analisados para a melhor compreensão de como as ONG’s se inserem localmente e de que modo esta inserção é transformadora.
1.1.3. ONGs, Estado e Território
O fenômeno Organização Não-Governamental vem impondo modificações nas relações institucionais em diversas escalas da vida social. Uma dessas modificações diz respeito ao território, porque essas organizações conseguem articular várias escalas da esfera da vida social, desde o local/local até o local/internacional.
O Estado, historicamente, de forma múltipla, é o regulador de relações institucionais, o que lhe assegura o domínio na gestão do território. Mesmo existindo outros atores (por exemplo, a Igreja), o Estado mantém o domínio na gestão do território. Em Becker, 1983, o território
"emerge então como uma noção fundamental: expressão concreta das unidades políticas no espaço, o território define a existência física da entidade jurídica, administrativa e política que é o Estado".(Becker, 1983:01).
As ONGs operam no domínio territorial do Estado Nacional.
Deste modo "no plano interno, num primeiro momento, o Estado, entendido como aparelho político governamental, passa a ter poder dominante nas formações econômico-sociais; hoje, porém, não mais se nega que o poder é multidimensional, o que implica no reconhecimento dos diversos agentes sociais com suas estratégias e conflitos presentes em diferentes escalas espaciais [...]" (Becker, 1983:02).
Este ponto de vista coincide com o de Castro (1992), a propósito da articulação transnacional, supraterritorial, interesses econômicos e geopolíticos dos Estados. É neste sentido, que se desenvolvem as práticas territoriais do Estado. Assim é importante pesquisar essas organizações com o intuito de desvendar as suas territorialidades e ver até que ponto essa inserção territorial é ou não contraditória com relação ao Estado11.
Com o pressuposto de que as ONGs estão previstas nos estatutos das Organizações Internacionais e nos acordos entres Estados Nacionais, procura-se mostrar que isto se torna um paradoxo porque, ao mesmo tempo em que é não-governamental, procura ter uma prática de complementaridade ao próprio Estado12. Deste modo, estas organizações mostram mais a fragilidade do que a força da sociedade organizada13.
A discussão teórica sobre o Estado Nacional Moderno, pressupõe outras duas: a da sua base territorial e conseqüentemente a soberania. Apesar de muitas discussões estarem apontando para um enfraquecimento do Estado, sua base territorial continua sólida e como um elemento inviolável.
Em cada Estado Nacional coexistem instituições que afirmam o domínio do território constituído e mantêm a coesão territorial dentro das normas legais estabelecidas. Entretanto nos últimos anos, instituições vêm construindo práticas de administração do território que, em certa medida, contradizem a gestão do território por parte do Estado. Será que estas organizações estão em contradição territorial com o Estado? Será que as territorialidades construídas por essas organizações não fazem parte das estratégias de domínio do Estado? As formulações dessas questões conduzem a análise da prática territorial destas organizações da vida civil. Contudo para tornar exeqüível este estudo, tomamos uma destas entidades, no caso a FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, para efetuar uma pesquisa analítica. A seguir, a fim de que possamos refletir sobre os aspectos empíricos destas práxis organizacionais e sua relação com o espaço em que se insere, discutiremos os conceitos de território e territorialidade em Geografia.
1.2. Território e territorialidade
1.2.1. Território
A discussão sobre a inserção territorial de uma ONG exige, de antemão, a definição, para fins analíticos, do que seja "ONG" e dos conceitos de "território", "territorialização" e de "territorialidade".
De acordo com o senso comum, "território" se refere a um espaço qualquer, geralmente marcado e defendido; espaço de sobrevivência de um grupo ou pessoa. O termo, originário do latim "territorium" (termo derivado de terra) figurava nos tratados de agrimensura, significando "pedaço de terra apropriada" e, de acordo com Le Berre, difundiu-se efetivamente na Geografia apenas no final da década de 1970.
Os conceitos de território e territorialidade interessam a muitas disciplinas do conhecimento e nos últimos anos especialmente à Geografia. Discuti-los e empregá-los não é tarefa simples, pois os inúmeros tratamentos que estes conceitos recebem, oferece a possibilidade de conceituá-los com numerosos significados. Não é nosso objetivo tratar desta problemática, mas discutir os referidos conceitos na acepção jurídico-política que os termos território e territorialidade recebem.
O território e, conseqüentemente, o seu uso, definido como espaço delimitado e constituído por relações de poder, foi utilizado na ciência geográfica, remetendo o seu significado ao território nacional. A associação, então, com o Estado nacional foi de fácil identificação. Isto porque a idéia de Estado esteve sempre associada a um determinado território onde poder e povo exerciam sua soberania. Esta forma de ver o território predominou na Geografia por muito tempo, contudo a maneira de enfocá-lo vem se modificando. Já existem estudos que enfocam o território como construído e desconstruído para além do poder do Estado14.
Podemos considerar como exemplos nas cidades de territórios que são construídos e desconstruídos aqueles da prostituição e de grupos étnicos que encontram-se em feiras de produtos típicos de sua região de origem. Necessariamente, nesses casos, temos que indicar que a escala espaço-temporal é de horas. Outro exemplo que nos últimos anos vem ganhando importância é a construção e desconstrução de territórios a partir dos movimentos reivindicatórios que se mobilizam para exigir direitos. Aqui a escala espaço-temporal já é mais complexa variando segundo a proposta reivindicatória e o grau de relação estabelecida pelo movimento na sociedade.
Entendendo o território como delimitado e constituído por relações de poder, estaríamos desconsiderando formas diversificadas de enfocar o seu uso que não engessam a sua compreensão, mas a torna muito mais complexa por envolver uma análise que leve em consideração muitos atores. Sendo assim, o território por nós será considerado como delimitado , construído e desconstruído por relações de poder que envolvem uma gama infindável de atores que vão territorializando as suas ações. Para o nosso estudo os atores principais envolvidos seriam as organizações hoje intituladas não-governamentais e o Estado.
Em "Les Mots de la Géographie", dicionário crítico de Roger Brunet, o termo território aparece de modo relevante para esta pesquisa em pelo menos duas acepções, que cito abaixo. Embora longa, a citação é necessária a fim de compreendermos melhor as várias dimensões culturais, políticas e sociais, além das físicas propriamente ditas, do conceito de território. Segundo este dicionário crítico a noção de território é jurídica, cultural e social e, pode ser considerada até mesmo afetiva. O território implicaria, hoje em dia uma apropriação do espaço.
Ou seja, ele é mais que o espaço. O território não se reduz, portanto, a uma entidade jurídica, e não pode ser assimilado a uma série de espaços vividos sem existência política ou administrativa reconhecidas.
O conjunto de ligações ou de relações entre os habitantes que freqüentam o mesmo supermercado no sábado não constituiria, desse modo, território. O território também não é um terreno e nem o ar da cidade, nas palavras de Brunet. Ele não se reduz ao enraizamento dos camponeses a um lugar, e também não ao apego dos cidadãos urbanos a um bairro ou aos lugares que freqüenta. Para definir território é preciso algo mais, e este algo mais é um sentimento de pertencimento ("eu sou daqui") e de apropriação ("isto é meu", "esta é a minha terra", "este é meu domínio"). O território tende a projetar sobre um certo espaço estruturas específicas de um grupo humano. E isto inclui um modo de classificação e gerenciamento do espaço, sua administração propriamente dita."(Brunet et alli, 1993).
O território contribui, por sua vez para a criação destas "especificidades". Serve para confortar, pelo sentimento de pertencimento. Ele ajuda na cristalização das representações coletivas e símbolos que se encarnam em altos planos de significado.
"Conceito relevante da socialização do espaço, o território não é de natureza individual, salvo no sentido restrito da proxêmica, onde existem, por sua vez, territórios individuais e territórios familiares (do lugar ao pertencimento ou à extensão estritamente apropriada)" (Brunet et alli, 1993: 480).
Ampliando a discussão de território surge a relação entre território e rede que é discutida, na mesma obra. Brunet nos diz que território é rede. Opõe-se algumas vezes o território como se considera hoje sob a forma de uma área, à rede, que seria composta de linhas, ligações, relações. Na verdade um território seria constituído de lugares que são inter-relacionados. Ele comporta os percursos, com seus pontos importantes, e seus meandros. Seu espaço (do território) é algo diferenciado. A rede, se vista do ponto mais capilar até as ligações mais superficiais, serve para a compreensão de relações que abrangem uma superfície.
"Uma folha de árvore tem nervuras, mais e mais finas e ela tem uma superfície. Rede e território estão na mesma relação: o espaço geográfico, que inclui os dois [...] e uma dupla face, areal e reticular. É o capilar que une e transmite a contradição; eis porque administração do território deveria cuidar dele particularmente, em vez de se limitar aos grandes canos dessas infraestruturas pesadas" (Brunet et alli, 1993: 481).
De acordo com Raffestin (1993), o território pode ser definido como:
"[...] uma reordenação do espaço no qual a ordem está em busca dos sistemas informacionais dos quais dispõe o homem enquanto pertencente a uma cultura. O território pode ser considerado como o espaço informado pela semiosfera. [...] O acesso ou o não-acesso à informação comanda o processo de territorialização, desterritorialização das sociedades. É a teoria da comunicação que comanda nos nossos dias a ecogênese territorial no processo de T-D-R15.
Para Alliès, o território é o "ter" do Estado, "objeto de um direito especial de soberania, assimilável a um direito real do Estado sobre o solo nacional, distinto do poder deste sobre as pessoas. Assim, a territorialidade arrisca-se a tornar-se um ramo isolado e específico da potência estatal; seu patrimônio ‘natural’".
Outros autores consideram o conceito de território contemporâneo a partir de sua natureza política, domínio no qual as concepções de Estado e fronteira são essenciais. Esta noção de território é a mais tradicionalmente difundida e sua origem é encontrada, na Geografia, na obra de Friedrich Ratzel. Foi ele quem afirmou primeiramente que:
"[...] embora mesmo a ciência política tenha freqüentemente ignorado as relações de espaço e a posição geográfica, uma teoria de estado que fizesse abstração do território não poderia jamais contudo, ter qualquer fundamento seguro. [...] sem território não se poderia compreender o incremento da potência e da solidez do Estado.
A concepção do território como "prolongamento do corpo do príncipe", de Le Berre (1992:618), associa as idéias de dominação16 ( "ligada ao poder do príncipe") de área dominada por este controle territorial e a de limites, materializados por fronteiras.
Um importante trabalho que enfoca a definição de território na perspectiva política e que busca desmistificar sua condição de "natural" dentro do Estado, notadamente do Estado dito burguês, é o de Alliès (1980). Alliès usa como referência concreta a formação do Estado nacional francês, identificando três escolas teóricas que tratam o território como categoria jurídica: território-objeto, território-sujeito e território-função.
No território-objeto, ou seja território como objeto do Estado ou [...]as fronteiras [...] podem ser variáveis, entretanto, sem a existência de um território que particularize o agrupamento, não se poderia falar de política. Disso decorre a separação característica entre o interior e o exterior [...] . Esta separação é inerente ao conceito de território [...]. Pode-se, pois, definir a política como a atividade que reivindica para a autoridade instalada em um território o direito de domínio, que é a manifestação concreta e empírica do poderio [...] . Esse poderio e esse domínio, segundo Marx Weber, só se tornam políticos quando a vontade se orienta significativamente em função de um agrupamento territorial, com vistas aa realizar um fim, que só tem sentido pela existência desse agrupamento" ( Freund, 1977:160-161).
como seu "elemento natural", Alliès se refere à sua reificação . Neste caso o território é considerado "o ter" do Estado e "objeto de um direito especial de soberania assimilável a um direito real do Estado sobre o solo nacional, distinto do poder deste sobre as pessoas. Assim a territorialidade arrisca-se a tornar-se um ramo isolado e específico da potência estatal" (1980:11). Ou seja, seu patrimônio natural.
Na categoria território-sujeito Alliès compreende que o território não é "objeto" sob domínio do Estado mas um de seus elementos constitutivos de seu "ser"; o modo de existência do Estado no espaço, sua naturalização, que acaba legitimando sua expansão física17.
O autor mostra, ainda, que o território passa, depois, de sujeito do Estado a limite da norma jurídica, pois para aquele autor o território estatal é o domínio de validade territorial de uma ordem jurídica do Estado. "Simples quadro de competências sobre o solo", que exclui o direito privado (Alliès, 1980:12-13).
O território-função seria, para Alliès, "um território que é meio de ação do Estado e não somente um quadro geo-físico de competência". O território, como lócus da administração, desnaturalizado e instrumentalizado , torna-se um espaço que se pretende de intervenção em toda a coletividade e não um objeto da soberania estatal. Contudo, seu papel ideológico permanece ignorado.
Assim, além de "funcional" no sentido prático, o território possui também uma dimensão simbólica, especialmente quando realiza a "síntese de um solo e uma idéia que é a própria essência da nação". (Alliès,1980:15- 16).
No Brasil, Milton Santos entende que, em se tratando de territórios, devemos pensá-los como formas mas que em se tratando especificamente dos temas mundialização ou globalização é necessário aprofundar o processo de conhecimento deste aspecto da realidade total. Para ele, a noção de território implica os objetos e ações e é sinônimo de espaço humano, habitado.
"Mesmo a análise da fluidez posta ao serviço da competitividade, que hoje rege as relações econômicas, passa por aí. De um lado, temos uma fluidez virtual, oferecida por objetos criados para facilitar essa fluidez e que são, cada vez mais, objetos técnicos. Mas os objetos não nos dão senão uma fluidez virtual, porque a real vem das ações humanas, que são cada vez mais ações informadas, ações normatizadas. [...] É a partir dessa realidade que encontramos no território, hoje, novos recortes além da velha categoria região; e isso é um resultado da nova construção do espaço e do novo funcionamento do território, através daquilo que estou chamando de horizontalidades e verticalidades. As horizontalidades [são...] os domínios da contigüidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma continuidade territorial, enquanto as verticalidades [são...] formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as formas e processos sociais." (Santos, 1994:16).
De todo modo as organizações são influenciadas por suas redes de comunicações e pode-se imaginar que mudanças de rede conduzam a modificações notáveis no arcabouço social do grupo.
Portanto, o sistema é tanto um meio como um fim. Como meio nos diz Raffestin (1993:158):
"denota um território, uma organização territorial, mas como fim conota uma ideologia da organização. É portanto, de uma só vez ou alternadamente, meio e finalidade das estratégias. Toda combinação territorial cristaliza energia e informação estruturadas por códigos.
Como objetivo, o sistema territorial pode ser decifrado à partir das combinações estratégicas feitas pelos atores e, como meio pode ser decifrado por meio dos ganhos e dos custos que acarreta para os atores".
O sistema territorial pode ser entendido, dessa maneira, como produto e meio de produção. Por esta razão é preciso enfrentar o problema da territorialidade que, segundo vários autores, é um dos mais "negligenciados" pela Geografia.
1.2.2. Territorialidade
De acordo com a perspectiva de Raffestin (1993:158) a territorialidade reflete a multidimensionalidade do "vivido" territorial pelos membros de uma coletividade nas sociedades em geral. Segundo ele os homens vivem ao mesmo tempo o processo e o produto territoriais por meio de um sistema de relações existenciais e/ou produtivistas. Todas elas são relações de poder uma vez que existe interação entre os agentes que buscam modificar tanto as relações com a natureza como as relações sociais. Sem se darem conta disso, os atores também modificam a si próprios. É impossível manter qualquer relação que não seja marcada pelo poder.
Raffestin observa que a noção de territorialidade é complexa e que a história deste conceito em Geografia humana está por ser feita.
Ela nos veio dos naturalistas, que sempre abordaram a territorialidade animal e não a humana. Embora tenha sido sondada a mais ou menos três séculos, a noção de territorialidade só foi explicitada em 1920, por H. E.Howard que a definiu como:
"A conduta característica adotada por um organismo para tomar posse de um território e defende-lo contra os membros de sua própria espécie" (Howard apud Raffestin,1993:159).
Já nas ciências humanas a noção de territorialidade foi tratada pelos autores que abordaram as relações humanas com o espaço ou com o território. Depois de uma argumentação sistemática que não é possível reproduzir aqui, Raffestin define a territorialidade como:
"[...] um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo em vias de atingir a maior autonomia possível, compatível com os recursos do sistema. [...] essa territorialidade é dinâmica pois os elementos que a constituem [...] são suscetíveis de variações no tempo. É útil dizer, neste caso, que as variações que podem afetar cada um dos elementos não obedecem às mesmas escalas de tempo. Essa territorialidade resume, de algum modo, a maneira pela qual as sociedades satisfazem, num determinado momento, para um local, uma carga demográfica num conjunto de instrumentos também determinados, suas necessidades em energia e em informação. As relações que a constitui podem ser simétricas ou dessimétricas, ou seja, caracterizadas por ganhos e custos equivalentes ou não. Opondo-se uma à outra, teremos uma territorialidade estável e uma territorialidade instável. Na primeira, nenhum dos elementos sofre mudanças sensíveis a longo prazo, enquanto na segunda todos os elementos sofrem mudanças a longo prazo. Entre essa duas situações estremas teremos os outros casos, nos quais um ou dois dos elementos podem mudar, enquanto o outro ou os outros permanecem estáveis" (Raffestin, 1993:160-61).
Por sua vez, o dicionário crítico "Les mots de La Geographie" de Brunet et alli define territorialidade em duas acepções: a primeira o define como aquilo que pertence propriamente ao território considerado politicamente, ao conjunto das leis e regulamentos que se aplicam aos habitantes de um dado território (por exemplo a territorialidade das leis, dos impostos, domínio de ação dos advogados etc) e aos quais apenas a "exterritorialidade" permite fugir.
A segunda acepção define territorialidade como relação individual ou coletiva com um território considerado como "apropriado", no sentido de "tornado propriedade". A territorialidade não deveria ser confundida, entretanto, com a defesa elementar do espaço necessário à sobrevivência. A identificação com o espaço é tomada no processo de socialização, sobressaindo-se da psicologia coletiva. Ela contribui para a elaboração da identidade do grupo. Contrariamente ao que acontece com as "raízes", estes princípios são "portáteis", e permitiram aos migrantes, pioneiros e outros grupos, reconstituir seus horizontes e anseios em novos espaços, ao se apropriarem de novos territórios. Isto é o que permite, inclusive, a cada migrante que se desloca em novos espaços, no interior de uma mesma nação, de uma cidade para outra, refazer seu "território". Portanto, a territorialidade parece ser um elemento útil à coesão dos grupos sociais. Por outro lado, ela é uma fonte ou um apoio a hostilidades, exclusões, ódios. (Brunet, 1993).
"A territorialidade tem alguma coisa de animal (ou de vegetal, vide o termo raízes) e o progresso da humanidade consistiu notadamente em se despojar da territorialidade exacerbada – ou a relacioná-la a um campo na escala de todo o globo. Um pouco de territorialidade cria a socialidade e a solidariedade, muita territorialidade as assassina. Estudar os territórios é um bom modo de lutar contra o terrorismo do territorialismo". (Brunet, 1993:481).
Sack, (1986) por sua vez, enfatiza a dimensão política e o papel dos limites ou fronteiras na definição do conceito de territorialidade. Para ele, territorialidade significa :
"[...] a tentativa, por um individuo ou um grupo, de atingir, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos através da delimitação e afirmação do controle sobre uma área geográfica"18 (Sack, 1986:19).
Para Sack, "circunscrever coisas num espaço ou no mapa" permite identificar "lugares, áreas ou regiões no sentido comum, mas não cria em si mesmo um território. Esta delimitação se torna um território somente quando suas fronteiras são utilizadas para afetar o comportamento através do controle do acesso" (Sack, 1986:19). Assim, a noção de territorialidade, para o autor, cumpre, ao mesmo tempo, os papéis de classificação (relacionada à área), de comunicação (relacionada às fronteiras) e de controle ou "aprisionamento". Vê-se, assim, que nem todo espaço delimitado deve ser compreendido como um território, nem como tal se constitui. Além destas questões é preciso lembrar ainda que o advento da Internet obriga a repensar a noção de atuação em um dado território. Com ela surgiram inúmeras possibilidades de atuação e intercâmbio entre as ONG’s ampliando o quadro de relações sociais, trocas culturais e do próprio planejamento estratégico das atividades das organizações, permitindo pensar a noção de supraterritorialidade.
1.2.3. Supraterritorialidade
No artigo "O território do dinheiro e da fragmentação", Milton Santos aponta a necessidade, gerada a partir do amplo processo de globalização, de se pensar a reestruturação do espaço geográfico, seja em termos sociais ou financeiros, embora esteja claro que estes não se separam. Apontando a existência de uma certa "esquizofrenia" entre os objetivos do Estado e o modo de vida dos territórios, o que acarreta importantes conseqüências no nível social, diz ele:
"Hoje, com a globalização, pode-se dizer que a totalidade da superfície da Terra é compartimentada, não apenas pela ação direta do homem, mas também pela sua presença política. Nenhuma fração do planeta escapa a essa influência. Desse modo, a velha noção de ecúmeno perde a antiga definição e ganha uma nova dimensão; tanto se pode dizer que toda a superfície da Terra se tornou ecúmeno quanto se pode afirmar que essa palavra já não se aplica apenas ao planeta efetivamente habitado.
Com a globalização, todo e qualquer pedaço da superfície da Terra se torna funcional às necessidades, usos e apetites de Estados e empresas nesta fase da história." (Santos, 2000: 81).
Compartilhando esta noção, Francisco de Oliveira (2000), mostra que, no Brasil, esta "supraterritorialidade" tem efeitos nocivos para a própria noção de Estado, uma vez que este já não pode mais estabelecer seus próprios parâmetros, pois "já não existe enquanto conformação da sociedade".
"O princípio da territorialidade como jurisdição nacional não é contestado em nenhuma instância, nem por nenhum poder interno ou externo. [...] só que ele é relativamente inócuo, a não ser como jurisdição de controle da força de trabalho. Sob outros pontos de vista, os Estados nacionais, contemporaneamente, foram supraterritorializados: guerra do Iraque, Bósnia, Iugoslávia e Kosovo, Granada, Panamá, para citar os mais ostensivos, e FMI, o menos ostensivo e o mais letal. É o lado da globalização que não é assumido enquanto tal, mais parece impulsionado por um dever global- diga-se as maiores potências, diga-se EUA – de manter os sistemas democráticos (?) em sua aura de intocabilidade. E a performance do capital fictício que se move além fronteiras com a facilidade da Internet, escapa a toda territorialidade." (Oliveira, 2000:31).
Esta "fuga" à territorialidade baseia-se muito especialmente na fluidez e velocidade das comunicações e da "sociabilidade" por elas gerada. O discurso político, compartilhado pela imprensa, transforma esta velocidade de comunicação e suposta "solidariedade" em uma espécie de "bem comum". No entanto, como ressalta Milton Santos :
"[...] A fluidez potencial aparece no imaginário e na ideologia como se fosse um bem comum, uma fluidez para todos, quando, na verdade, apenas alguns agentes têm a possibilidade de utilizá-la, tornando-se, desse modo, os detentores efetivos da velocidade. O exercício desta é, pois, o resultado das disponibilidades materiais e técnicas existentes e das possibilidades de ação. Assim, o mundo da rapidez e da fluidez somente se estende a partir de um processo conjunto no qual participam de um lado as técnicas atuais e, de outro, a política atual, sendo que esta é empreendida tanto pelas instituições públicas, nacionais, intranacionais e internacionais, como pelas empresas privadas." (Santos, 2000: 83-4).
Juntam-se ao argumento de Milton Santos, as palavras de Guillermo O’Donnel, citadas por Leroy (1997), que imagina um mapa do mundo onde a cor azul designa a presença do Estado de modo eficaz e legal, com pleno gozo da cidadania. Neste mesmo mapa, a cor verde significaria uma forte penetração territorial e baixa presença de classe.
A cor marrom indicaria níveis muito baixos ou nulos de ambas as dimensões. Segundo O’Donnel neste mapa o Brasil seria dominado pela cor marrom. Neste mapa, as dinâmicas microrregionais coincidem com o mapa marrom da ausência do Estado de Direito. Em alguns casos a sobreposição do marrom e do azul formam manchas vermelhas que "unem tragicamente os destinos de áreas do Acre, de Rondônia ou do Pará às favelas das grandes metrópoles" (Leroy, 1997: 267). Este contexto obriga as organizações que pensam a construção de uma proposta alternativa de desenvolvimento sustentado a investir grande parte de suas ações e energias na conquista e defesa de direitos básicos de cidadania restando pouco tempo e recursos para a concretização de suas propostas de ação.
Francisco de Oliveira observa que este estado de coisas "desliza perigosamente para uma espécie de anomia estatal, uma falta de formas, uma falsa forma". A supraterritorialidade estaria, desse modo, imbuída da "infraestadualidade", para usar uma palavra que designe um baixo quociente de presença e ação do Estado em determinadas regiões/territórios. Diz ele:
"[...] Agora, trata-se de dar conta do que pode ser, apenas para recuperar o gosto pelo paradoxo a catástrofe tranqüila: um Estado-não-Estado, uma violência nãoviolenta, uma exceção permanente. [...] Talvez o problema maior consista em que uma nova totalidade não pode ser conceituada senão quando completamente formada: em outras palavras ficam faltando as forças que se opõem ao Estado Shangri-lá para que o trabalho teórico do seu deslindamento possa ser formulado. É sempre a mesma questão: enquanto o conflito não produz a própria fala dos conflitantes, ele não pode sequer ser enunciado. Em outros temos, será preciso que as forças que se opõem a esses sintomas o nomeiem de alguma forma para que sua decifração possa ser feita. Chamá-los simplesmente de neo-liberalismo não é suficiente.(Oliveira, 2000:33).
A moeda supraterritorializada, ou seja, mundializada sem a consideração do efeito que seu uso terá nos diferentes territórios, com diferentes territorialidades, está em discussão no âmbito mundial. É neste contexto que se insere o tema das organizações não governamentais, que utilizam, também, em suas, ações esta moeda gerida pelo capital internacional. Pensando com Francisco de Oliveira podemos perguntar se nas relações das ONG’s com os territórios em que se inserem estão presentes as falas conflitantes decorrentes deste processo de globalização.
Espero demonstrar, no próximo capítulo, utilizando o exemplo da F.A.S.E., que o modo de inserção das ONG’s pode ser pautado pela territorialidade e por uma estratégia global, especialmente quando, como acontece com a F.A.S.E., a entidade atua simultaneamente em diversos territórios, com diferentes projetos e através inclusive do meio virtual.
A F.A.S.E. (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), foi constituída como uma sociedade civil, de direito privado, sem fins lucrativos. Seu caráter era educacional, beneficente e de assistência social. Ela já se apresentava como uma entidade vinculada a grupos e movimentos populares, sem distinção de nacionalidade, credo ou raça e com o interesse de reunir, em uma entidade civil, várias instituições de assistência social e educacional com o objetivo de:
"contribuir para a construção de uma alternativa de desenvolvimento fundada na justiça social, na preservação do meio ambiente e na ampliação da cidadania. Apoiar, com uma visão e atuação própria, através de ações educativas e de projetos demonstrativos, a constituição, o fortalecimento e a articulação de sujeitos coletivos do desenvolvimento"1.
Há quem considere, entre os mais antigos participantes da F.A.S.E., que ela teve seu início real, no Brasil, em 1946, através da presença no país da Catholic Relief Service, instituição católica que atua mundialmente como braço da Conferência Nacional dos Bispos Norte-Americanos. Contudo, oficialmente ela surgiu em 1961, no Rio de Janeiro (antiga Guanabara) período em que foi dirigida por um padre norte-americano de nome Edmund Leising2 (missionário dos Oblatos de Maria Imaculada), vindo da organização Cáritas, uma instituição da Igreja Católica, de âmbito internacional, com cento e quarenta e seis organizações membros e atuante em cento e noventa e quatro países. A Cáritas é um organismo, no Brasil, da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos no Brasil3, ligada ao setor Pastoral Social.
Num dos seus documentos, em que narra sua história, ela afirma que:
"Foi em 1961, que o escritório no Rio [de Janeiro] da CRS – Serviço Católico de Assistência (órgão da Conferência Nacional dos Bispos Norte-Americanos) incentivou a criação de uma federação que congregasse e ajudasse organizações dedicadas a auxiliar instituições de assistência social e educacional no Brasil. [...] Constituída de acordo com todos os requisitos legais, a nova entidade teria condições de aproveitar e canalizar para os programas de assistência e educação das organizações federadas, todas as vantagens proporcionadas pelo Programa de Ajuda Externa do Governo dos Estados Unidos e pelos programas de outras Entidades Beneficentes Internacionais". (Histórico da F.A.S.E., 1975:02).