Nas próximas páginas se propõe analisar, a partir de depoimentos orais, a atuação ao longo da ditadura civil-militar (1964-1985) do partido de esquerda que iria iniciar aquela quadra histórica como o mais importante daquele período: o partido comunista brasileiro (pcb). Sua atuação ao longo de todo o período ditatorial esteve voltada para a superação pacífica daquele regime. A proposta pecebista defendia a mobilização popular aliada à negociação política, a convocação da constituinte, o aumento progressivo das liberdades (aí incluída a legalização do próprio pcb) como únicos meios possíveis para a superação do regime. Com isso, se contrapunha frontalmente à linha defendida por grande parte da esquerda nos primeiros anos da ditadura civil-militar: superação da ditadura pelas armas. Tal diferenciação só aumentaria a "má fama" que a política pecebista nutria em amplos setores das esquerdas desde a atuação anterior ao golpe de 1964: uma política "reformista", de "conciliação de classes". Os anos seguintes mostrariam a inviabilidade da proposta armada, ao mesmo tempo em que o movimento de massas e a mobilização eleitoral retomavam a linha ascendente (o que para os pecebistas parecia confirmar o acerto de suas posições).
Por fim, a redemocratização através da negociação, a formação do Colégio Eleitoral que elegeu o primeiro presidente civil depois de 21 anos de regime ditatorial e a convocação da Assembléia Constituinte simbolizaram para a maioria dos pecebistas a vitória de seu projeto político. E aí está um dos maiores paradoxos da trajetória do PCB. Um momento que parecia representar a vitória de seu projeto coincidiria com sua crise mais grave, culminando no esfacelamento do partido anos mais tarde (em 1992). O partido que em 1964 ocupava papel hegemônico no seio da esquerda brasileira chegaria ao fim daquele período com visível perda de representatividade e influência.
Ganhará destaque especial nas próximas páginas a memória dos depoentes, e como o golpe que deu origem à ditadura, a oposição ao regime, a repressão e principalmente o processo de abertura são vistos por eles em perspectiva. Como qualquer trabalho baseado em depoimentos (construídos a posteriori, marcados por doses mais ou menos generosas de parcialidade), não se pretenderá analisar a ditadura civil-militar a partir deles, nem mesmo a trajetória pecebista como um todo. Trata-se aqui de uma análise a partir da memória, cuja "elaboração se dá no presente e para responder às solicitações deste presente" [1]. O que essa coleção de depoimentos permite [2] é expor à luz do dia a riqueza do pensamento e da trajetória de alguns atores importantes daquele período (o que por si só já seria muito), permitindo que se levantem novas questões (e possíveis respostas) acerca dos complexos fenômenos históricos dos quais fizeram parte as mulheres e homens com os quais divido a partir de agora a palavra.
É interessante observar que, ao tratarem da ditadura civil-militar inaugurada em 1964, os depoentes sempre iniciam sua narrativa um pouco antes, na renúncia de Jânio Quadros, em 1961. Mais interessante ainda é o papel de culpabilidade que as esquerdas (e o próprio PCB) assumem nesses discursos, pela atuação "radicalizada" (ou ao menos "dúbia") que teria contribuído para a desestabilização do Governo Goulart (1961-1964) e indiretamente para a vitória do movimento golpista. Para um dos depoentes, a "dubiedade" pecebista fica clara:
Em 62 o partido fez uma Conferência de Organização, da qual saíram dois documentos. Um de organização, que era profundamente na linha de 58, aprofundando mais a questão democrática, das alianças... e o documento político de 62 apontava para o lado contrário, dizia que o governo Jango era de conciliação, e que o certo portanto no nosso caso era o combate à política de conciliação do João Goulart. Então isso do ponto de vista político terminou redundando no Golpe de 1964. Chegou defendendo o João Goulart de um lado, na prática, mas do ponto de vista teórico a gente estava com a convicção de que aquele governo era um governo de conciliação. A gente chegou até ao absurdo de considerar o Plano Trienal, elaborado pelo Celso Furtado na época, um plano conservador. Fruto da política de conciliação que o governo fazia com a grande burguesia. E os teóricos por coincidência dessa visão eram grande parte da Executiva Nacional do partido, que depois, na crise do pós-64, explicitaram suas posições mais à esquerda, que eram o Mário Alves, o [Carlos] Mariguella, o Jacob Gorender e outros. E tinha o grupo minoritário que era o Giocondo Dias, o Armênio Guedes, o chamado "grupo baiano", dos nordestinos, que eram mais pela abertura. Com essa complicação chegou o momento em que o próprio [Luiz Carlos] Prestes que era o fiador dessa política nossa, de vez em quando ‘vinha lá e vinha cá’. Numa hora ele dizia que o governo Goulart era de esquerda, na outra dizia que tinha que dar combate à política de conciliação do Goulart. [...] no dia do golpe a gente já havia sofrido uma derrota política, o governo já estava praticamente isolado, em relação à esquerda estava totalmente isolado em função dessa fragmentação da esquerda. A esquerda aguçou a questão da conciliação do João Goulart, e partiu para achar que o Governo Goulart era a mesma coisa que qualquer outro governo. Não entendeu o que representava o Governo Goulart. Isso é uma coisa traumática para nós porque... eu sei que o movimento radical de esquerda não criou o golpe, mas ajudou, deu pretexto para que a direita criasse os elementos psicológicos, da chamada guerra psicológica, para isolar o Governo Goulart da classe média [3].
Nesse trecho, já é possível encontrar elementos que são uma constante nos depoimentos: a "dubiedade" pecebista, o papel "conciliatório" e "pendular" de Prestes, e o princípio da divisão que nos anos posteriores ao Golpe de 1964 causaria grande "sangria" nas fileiras pecebistas. Percebe-se a mesma linha discursiva em outro depoimento:
Através então de uma série de erros políticos, um componente do partido e da esquerda no Brasil passa a rejeitar o processo de acumulação de forças e reformas nos quadros do regime, passa a procurar uma saída rápida, somando-se ao golpismo de Brizola e Jango, que termina evidentemente na desorientação do partido e da esquerda e na derrota do João Goulart. Essa derrota não foi só por isso, mas isso ajudou [4].
Critica-se nesses depoimentos a atuação pecebista nos anos imediatamente anteriores a 1964, opinião coerente com a posição oficial do partido ao longo da ditadura (a agremiação produziria no pós-1964 uma "autocrítica" de sua atuação anterior). É provável que vários daqueles militantes que se afastaram do partido naquele período, aderindo à luta armada, façam em retrospectiva um julgamento alternativo ao que apresentamos aqui. Tratamos apenas, no entanto, de militantes que atravessaram o período ditatorial nas fileiras pecebistas, e é notável a unidade de seus depoimentos. Da crítica à "radicalidade" do PCB e das esquerdas no pré-1964, esses militantes passam sem maiores dificuldades à defesa de uma política mais moderada no enfrentamento à ditadura, o que pode ser ilustrado pelo depoimento a seguir:
O Golpe de 1964 me pegou trabalhando com os estudantes, ilegal. Nessa época eu vinha avisando o partido que ia se dar o golpe, eles não acreditavam! Eu tratei de pegar meus papéis e jogar tudo fora, joguei na embaixada, joguei na igreja, me desfiz de tudo que eu achava que não devia deixar... Bobagem! Mas fiz isso. Depois de 64, nos dias depois do golpe, eu ficava pegando esses meninos pra mandar eles pra fora, porque sabia que a correlação de forças tinha mudado, e nós não tínhamos nenhuma condição de levantar a cabeça naquele momento. Tinha é que se ocultar, acumular forças para um tempo depois voltar [5].
A gênese da política pecebista de oposição pacífica ao regime ditatorial é descrita por um depoente da seguinte forma:
O partido convocou um congresso para reafirmar a nossa linha política, em cima de cisões, de quedas, o pessoal saindo para o exílio... Então a gente tentou organizar o [vi] congresso que foi realizado em 67 e que referendou toda a nossa política de frente democrática, da questão já da anistia, da constituinte, nos documentos de 67 já está explicitada toda essa política de abertura política, de se trabalhar através da sociedade, para ‘derrotar’ politicamente a ditadura, e não para ‘derrubar’ a ditadura (era um conceito diferente). A ‘derrubada’ significa a luta armada, e a ‘derrota’ significava para nós o envolvimento da sociedade, dos movimentos políticos, da população no sentido de isolar a ditadura e dar uma saída até negociada, como na realidade aconteceu [6].
O PCB enfrentou nos anos posteriores ao Golpe de 1964 uma grave crise, gerada principalmente pelas disputas internas e pela repressão. O partido chegaria aos anos 1970 enfraquecido, com boa parte de seus membros presa, exilada, desaparecida, ou afastada da agremiação. Em contrapartida, os pecebistas veriam nessa década o avanço eleitoral da oposição (através do Movimento Democrático Brasileiro - MDB, ao qual os pecebistas prestavam apoio) e a retomada dos movimentos sociais (sindical, estudantil, negro, feminista), o que parecia confirmar o acerto de sua política e a abertura de novos caminhos para a atuação do partido. Entretanto, o princípio do complexo processo de "abertura" política, a partir do governo de Ernesto Geisel, coincide com um aumento da repressão aos pecebistas. Tudo levava a crer que o aparelho repressivo "voltava suas baterias" para a agremiação, a partir do momento em que as organizações da "esquerda armada" já haviam sido desmanteladas. "Entre o final de 1974 e o decorrer de 1975 o partido foi fortemente golpeado. Nove membros do Comitê Central foram assassinados pelos órgãos policiais. Uma parte da direção foi para o exterior [...]. Mas, a despeito das investidas da ditadura contra o PCB, os pecebistas, coerentes com a linha definida pelo VI Congresso, insistiam na manutenção da Frente Democrática para derrotar o regime e, através do caminho institucional legal, restabelecer a ordem democrática no país" [7]. Apesar dessas vicissitudes, o PCB guardava um trunfo:
O partido sofrera grandes baixas, possuía erros e debilidades, mas, apesar de tudo, sua orientação política vinha vencendo e inclusive se transformando em política concreta de um enorme arco de forças. Esta era sua grande e decisiva força [8].
A grande maioria dos depoentes esteve entre o grupo do Comitê Central que seguiu para a Europa naquele momento. Na verdade, apenas um deles permaneceu no Brasil, e seu depoimento ilustra em parte as dificuldades da atuação política do partido nos anos 1970:
No período de clandestinidade, você não pode exercer na sua plenitude a democracia interna no partido. Você não pode ter as reuniões, os diretórios, a política ampliada, com participação, discussões o dia todo. [...] Nós tínhamos que, de um lado, no plano orgânico resguardar a direção do partido, a militância partidária, e para isso você tinha que tomar medidas de segurança, e de outro lado no plano político você tinha que agir de uma maneira que a interferência não fosse de grupos isolados, fosse com a participação das massas, do povo. Não adiantava você fazer atos isolados, que nós seríamos esmagados. Alguns grupos não davam atenção a isso, achavam que o caminho era a guerrilha. Nós não! Nós dávamos importância à realização das eleições, mesmo com as restrições impostas pela ditadura naquela época. Nós procurávamos acertar nossa situação com as leis que a ditadura impunha. Nós não podíamos apresentar candidatos comunistas, mas nós apresentávamos candidatos que eram amigos nossos, que eram democratas, não eram militantes do partido mas tinham um relacionamento conosco bom. Então nós apoiamos aí e isso contribuiu para a vitória do mdb na ocasião. À medida que as nossas vitórias foram se acumulando, culminando na luta pelas eleições diretas, grandes movimentos, a ditadura sendo obrigada a abrir, os companheiros voltando do exterior, e a democracia no brasil começou a funcionar [9].
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