Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
A explicação usual para este quadro é que estamos sofrendo os males do crescimento, e as tentativas de controlar a qualidade, estabelecer padrões, garantir a excelência, etc., são normalmente criticadas como ações discriminatórias e elitistas, que ameaçam restringir as oportunidades e o acesso à educação dos menos favorecidos. O Ministério da Educação, nos últimos anos, tem feito várias tentativas importantes de introduzir critérios de qualidade na educação brasileira em todos os níveis - através do SAEB, do ENEM, do "provão" e das avaliações da CAPES, entre outros. Estas avaliações dão a posição relativa de uns em relação aos outros - dos Estados entre si, no SAEB, ou de cada curso superior em relação aos demais em uma curva normal - mas não dizem nada sobre a qualidade dos resultados obtidos. Assim, não sabemos se existe ou não risco de vida em sermos tratados por um médico formado por uma faculdade de medicina de nível B ou C. Além disto, a não ser em casos extremos, não existe relação entre estes resultados e políticas específicas de incentivo à qualidade - exceto em relação à distribuição de bolsas de pós-graduação da CAPES. Esta relutância em levar mais em conta os resultados das avaliações se deve, me parece, à idéia de que os problemas que existem são naturais, típicos de uma "fase de crescimento," e à preocupação de não adotar políticas discriminatórias que resultem no fechamento de estabelecimentos e na restrição do acesso dos estudantes aos diversos níveis do sistema.
O impulso que esta situação generalizada de baixa qualidade provoca em muitas pessoas é, simplesmente, o de reforçar os controles e restringir o acesso - retomar a política de reprovações na educação básica, impedir a criação de nova faculdades, limitar o financiamento da pesquisa de qualidade duvidosa e conter a expansão da educação. O problema com propostas deste tipo é que elas supõem que teria existido no Brasil um padrão de qualidade que já não se vê - quando as professorinhas se formavam no Instituto de Educação e os rapazes no Colégio Pedro II ou no Ginásio Mineiro, os juristas pontificavam no Largo de São Francisco e os físicos e sociólogos se reuniam em tertúlias acadêmicas na Faculdade de Filosofia da Rua Maria Antônia. Na realidade, as eventuais virtudes destes modelos idealizados do passado se deviam menos à qualidade dos cursos e professores do que à homogeneidade social e cultural que havia naqueles anos entre os mestres e os filhos da pequena elite a quem ensinavam. Existe um grande debate, hoje, sobre a eventual existência de cânones educacionais e culturais que devam ser transmitidos de forma sistemática a todos estudantes - ou aos estudantes de determinadas disciplinas e especialidades. Se eles existem, dificilmente serão encontrados na experiência de nossas escolas e faculdades de cinqüenta ou mais anos atrás.
O enfrentamento dos problemas de qualidade da educação brasileira, em todos os níveis, não passa pela reintrodução de antigas restrições ao acesso à educação pelos menos dotados de recursos culturais e intelectuais, e sim pelo desenvolvimento de novas abordagens e procedimentos que permitam levar conhecimentos e habilidades a um número cada vez maior de pessoas. O que são estas abordagens e procedimentos é tema de muitas experiências, trabalhos e controvérsias, que não caberia discutir aqui. Elas incluem, a título de exemplo, as classes de aceleração de aprendizagem, para recuperar alunos defasados; o uso de tecnologias de informação para apoiar o trabalho dos professores; investimentos na preparação de livros e materiais didáticos de qualidade; acompanhamento contínuo de resultados do trabalho escolar, e desenvolvimento de metodologias de correção de rumo; reforço da educação técnica e profissional; a flexibilização dos currículos, através dos "cursos seqüenciais"; e assim por diante.
Dados os problemas conhecidos com a qualidade, seria de se esperar que estes esforços de melhoria fossem muito maiores e mais intensos do que de fato são. Uma das explicações de porquê isto não ocorre é que existe ainda muita controvérsia sobre o que deve ser feito, e pouco entendimento a respeito das possibilidades reais de melhora. Mas parece haver uma outra explicação mais profunda: a existência de um prêmio para a educação formal que é muito maior do que o eventual prêmio para a competência.
Mesmo quando havia um produto - como com os artífices e artesãos do mundo medieval - havia também todo um sistema de proteção e monopólio dos privilégios dos mestres e artífices, para manter os benefícios da profissão em poucas mãos. A organização corporativa das profissões e dos ofícios se justificava pela necessidade de controlar a qualidade e a confiança dos produtos e serviços prestados à sociedade, mas degeneravam, muitas vezes, em uma simples defesa de privilégios e monopólios - como quando os médicos se recusaram, por muito tempo, a acreditar nas teorias bacterianas sobre as infecções.
Assim, a educação e as profissões têm sempre uma face dupla. Por um lado, elas têm a ver com a competência, a cultura, a produtividade, os serviços. Por outro, elas têm a ver com o monopólio, os privilégios, os direitos estabelecidos, a diferenciação e a discriminação social. No melhor dos casos, estas duas faces coexistem em harmonia - os que têm competência e produzem mais recebem os benefícios deste trabalho meritório, e tratam de preservar seu mercado de trabalho. Mas existem muitas situações em que elas se dissociam - quando os benefícios do monopólio, do privilégio e das sinecuras preponderam sobre os da competência.
No Brasil, esta dissociação atingiu um grau extremamente elevado, criando uma situação que os economistas costumam chamar de "moral hazard" - um risco moral. Nenhum país do mundo, possivelmente, tem tantas profissões regulamentadas, e não sei se existem outros exemplos de países que criaram tantas exigências de diplomas e credenciais educacionais em todos os níveis da vida social, antes que tivessem sistemas educacionais capazes de formar pessoas com as competências esperadas para estes níveis. O resultado desta situação é que existem incentivos crescentes para a obtenção de credenciais educacionais, que não são acompanhados de incentivos equivalentes em termos de competência e produtividade. E, na medida em que o mercado de credenciais inflaciona, surge a necessidade de criar credenciais adicionais, e assim por diante.
Assim, em uma Secretaria de Educação do Centro-Sul, o aumento de salários associado à posse de um título universitário levou à que todos os professores tratassem de se graduar pelo menor custo possível. Em uma segunda etapa, a Secretaria estabeleceu um prêmio às credenciais de pós-graduação, e com isto proliferaram os cursos de especialização. Assim, a folha de pagamento inchou, mas não se sabe se realmente a qualidade do ensino melhorou na mesma proporção. A suposição, naturalmente, é que um corpo de professores de nível superior e com cursos de especialização é melhor, para os alunos, do que um corpo de professores que só tenham a escola normal. Mas, dados os incentivos certos à posse de credenciais, e a falta de um sistema adequado de acompanhamento de resultados, esta suposição não tem como ser confirmada, e muito menos requerida.
O risco moral, portanto, é a tendência ao crescimento sem limites das demandas por credenciais, elevando cada vez mais os custos da educação, sem que a "fase de crescimento" chegue a seu termo, e sem que as questões de qualidade e competência passem ao primeiro plano.
Educação, criação de riqueza e desigualdade social
Não é possível ir muito longe no aumento da riqueza de uma sociedade sem um aumento correspondente da educação de suas pessoas, mas esta não é una relação automática, simples e direta. Na América Latina, hoje, a possibilidade de criação de pólos de alta tecnologia e serviços complexos, de alta produtividade, depende em parte da disponibilidade de mão de obra qualificada, mas sobretudo de características da economia internacional que dependem pouco do que ocorre em cada país. A Argentina, que tem provavelmente a população mais educada da região, tem problemas de desemprego muito mais sérios do que o México, cujo nível educacional é bem menor.
Seja com mais ou com menos riqueza, uma distribuição mais equânime do acesso à educação pode reduzir a desigualdade, na medida em que pode mudar a distribuição dos recursos existentes na sociedade entre seus cidadãos. Existe uma diferença fundamental, no entanto, entre uma redistribuição da riqueza em uma sociedade que cresce e se desenvolve, e em uma sociedade estagnada e em decadência. No primeiro caso, todos ganham, e os malefícios do credencialismo são compensados, ou mascarados, pelo desenvolvimento como um todo. No segundo, é no máximo um jogo de soma zero, em que os ganhos de uns são as perdas dos outros. Nesta situação, os custos crescentes da educação formal, somados aos conflitos por recursos escassos, pode levar a um jogo de soma negativa, com perdas importantes para a sociedade como um todo.
É interessante indagar por quê o tema do credencialismo ainda não foi incorporado nas análises dos economistas que têm tratado entre nós da questão da educação. Existe uma tendência a desconsiderar o tema, como se a teoria do capital humano tivesse tornado os problemas do clientelismo irrelevantes. O prêmio que o mercado paga aos mais educados seria uma evidência disto, e eventuais distorções seriam corrigidas a médio e longo prazo pela lógica do próprio mercado. Mas os que se preocupam com o problema do credencialismo não dizem, em geral, que a educação se limita a redistribuir posições de poder na sociedade, sem nada acrescentar. O que dizem é que a expansão da educação e das profissões vem acompanhada de sistemas de monopólio e quase-monopólio associados à posse de diplomas que, se não forem limitados e controlados, podem ter efeitos extremamente negativos em relação ao próprio papel positivo e importante que a educação deve desempenhar. Nelson do Valle e Silva observa que o credencialismo brasileiro é parte de uma prática mais ampla e generalizada, que é a de assegurar monopólios ou oligopólios para todos os grupos sociais que conseguem se organizar e se mobilizar - empresários, profissionais, funcionários, etc. Em uma fase inicial, estes procedimentos permitam que estes grupos e setores se desenvolvam e se fortaleçam, mas, a partir de um determinado momento, perdem eficiência e funcionalidade. A dificuldade em romper com estas situações institucionalizadas de monopólio e oligopólio seria uma das explicações de por quê o Brasil não consegue alterar seus níveis tão altos e vergonhosos de desigualdade social.(8)
Remando contra a maré, é necessário poder questionar se de fato a expansão da educação formal, em quantidades cada vez maiores, é um bem tão absoluto assim, com impacto claro e decisivo sobre o crescimento econômico e a redução da desigualdade; e examinar em que medida, em nome da educação e do aumento da competência, podem estar ocorrendo processos perversos e inesperados, como o aumento da desigualdade e da discriminação social, e o mau uso dos recursos públicos. É necessário ir ainda mais longe, e avaliar em que medida o sistema de estímulos que existe hoje para a obtenção de escolaridade e diplomas, que deveriam ser formas de desenvolver a competência, estão funcionando de fato como barreiras a este desenvolvimento - e são fontes, portanto, de um sério risco moral que afeta nossas instituições educacionais. A única maneira de eliminar ou reduzir este risco é identificar e eliminar os privilégios formais associados ao diploma, criar incentivos adequados para a competência, e cuidar da qualidade da educação. Assim como não é possível esperar pelo enriquecimento do país para tratar das questões da pobreza e da desigualdade social, não é possível esperar pelo fim da "fase de crescimento" de nosso bolo educativo para que suas mazelas sejam enfrentadas.
Referências Bibliográficas
Azevedo, Fernando de, 1932. A reconstrucção educacional no Brasil, ao povo e ao governo manifesto dos pioneiros da educação nova. São Paulo: Companhia editora nacional.
Becker, Gary Stanley, 1993. Human capital a theoretical and empirical analysis, with special reference to education. 3rd ed. Chicago: The University of Chicago Press.
Boudon, Raymond, 1977. Effets pervers et ordre social. 1. ed. Sociologies. Paris: Presses universitaires de France.
Coelho, Edmundo Campos, 1999. As Profissões Imperiais: Advocacia, Medicina e Engenharia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro: Editora Record.
Collins, Randall, 1979. The Credential Society. New York: Academic Press.
Langoni, Carlos Geraldo, 1973. Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura.
Sáinz, Pedro G. e Mario La Fuente R. 2001. Economic Growth, employment and income in Latin America: a long term perspective. Em Unesco-Santiago, Analysis of Prospects of the Education in Latin America and the Caribbean. pp 88-108. Santiago: UNESCO.
Schultz, Theodore W.. 1973. O capital humano: investimentos em educação e pesquisa, trad. de M.A. de Matos. Rio de Janeiro: Zahar.
Schwartzman, Simon, 1997. A Força do novo. Em Simon Schwartzman, A redescoberta da cultura. São Paulo: EDUSP - FAPESP.
Teixeira, Anísio1968. Educação não é privilégio. 2. ed. rev. e ampl ed. Coleção Cultura, sociedade, educação. São Paulo: Cia. Ed. Nacional.
Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|