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A Revolução de 30 e o Problema Regional (página 2)

Simon Schwartzman

 

Divide-se o país em feudos e são dados todos os poderes a esses feudos. Isso não é feito, evidentemente, porque se quisesse recriar no Brasil o modelo feudal, que, na verdade, Portugal não conheceu. Mas simplesmente porque essa era a forma de colonização ao alcance dos recursos, da capacidade organizacional da Coroa. Quer dizer, esta podia fazer doações, conceder privilégios, dar direitos para que, a partir daí, surgissem riquezas. Todavia, quando surgia a riqueza, surgia o conflito, porque aí era a hora de a Coroa explorar essa riqueza. E era a hora daquele que recebia o benefício não querer ser expropriado. Assim esse padrão - dar privilégios e ceder coisas para com isso se conseguir o interesse das pessoas na exploração das atividades ou das riquezas e, depois, a expropriação em cima - penso ser o padrão clássico de exploração colonial. É, também, um fato que tem conseqüências fundamentais para o tipo de desenvolvimento que o país vai ter daí por diante.

A integração política do Brasil, que é uma coisa que ocorre - estou, evidentemente, passando em alta velocidade sobre séculos, mas é só para se ter uma espécie de visão coerente -, se consolida de uma maneira mais acabada no Segundo Reinado, com D. Pedro II; passa por um período de grande instabilidade durante o Primeiro Reinado, com as Regências principalmente. Ele teve alguns antecedentes, de conflitos, de guerra civil, que são justamente marcos desse processo de consolidação política brasileira e do confronto do centro com a periferia.

No meu trabalho para o doutorado, mencionei dois marcos que me pareceram muito importantes em relação a isso. Um, foi a Guerra dos Emboabas, que é a guerra onde se disputou o controle da região do ouro, em Minas Gerais, na passagem do século XVII para o século XVIII, onde a região de Minas Gerais foi colonizada e conquistada pelos paulistas. Era um setor marginal dentro do Brasil, uma cidade fora do controle direto da sede colonial, que estava localizada em Salvador. Depois, há uma disputa pelo controle dessa região, pelo controle do ouro, a qual termina com a vitória do centro administrativo, isto é, dos comerciantes ligados a este centro, e inclusive até a transferência da capital colonial do país, de Salvador para o Rio de Janeiro, para ficar mais próxima do controle do fluxo do ouro, e leva ao isolamento histórico de São Paulo em relação ao centro do país.

Acho que este é um marco muito importante dessa consolidação, que tem como efeito acentuar o processo histórico de marginalização paulista em relação ao processo político nacional.

O outro marco, que considero importante nesse processo, é no Nordeste - a Guerra dos Mascates. É a luta pelo controle do fluxo de riqueza ligada à economia do açúcar, no período posterior á invasão holandesa e anterior a' do ouro de Minas Gerais. Também é um processo em que, finalmente, a nobreza rural, que se estabelece em volta do açúcar, termina subordinada ao centro administrativo que se estabelece em Recife.

Creio que a esses dois eventos, que são eventos de guerra civil pelo controle territorial por parte do centro do país, pode-se acrescentar um terceiro, que é posterior: a Revolução Farroupilha e o controle, então, do Governo Central sobre a fronteira do país com o império hispânico, aqui na Região Sul. Eu acho que esse é um terceiro episódio com características diferentes dos outros dois, mas que também faz parte desse conjunto de eventos, desse processo histórico de integração do poder central e seu controle sobre o território do país.

Esse processo de consolidação política, iniciado pela administração colonial e culminando no Império, não significa uma homogeneização do Brasil. O Brasil não é um país todo igual de Norte a Sul. Na realidade, sabe-se que o Império é uma combinação muito estranha de um regime altamente centralizado no topo, mas com muito poucas raízes para baixo.

Há uma discussão clássica sobre as bases rurais do Império: se este é uma mera ficção que encobria um país totalmente agrário, ou se, na realidade, é uma estrutura centralizada, democrática, segundo Raymundo Faoro, que se impunha sobre o país inteiro.

Parece-me ser bastante claro que o que existe, realmente, são as duas coisas: por um lado temos a sociedade muito diversificada, muito complexa e com muita força nas suas raízes e onde o Estado mal chega; mas, por outro, temos também um centro político muito impermeável ao que acontece no resto do país; muito impermeável ao surgimento de uma realidade eleita, formada ou mantida por essas forças, digamos, rurais e agrárias instaladas pelo país inteiro. É um descendente direto da administração colonial portuguesa, que se mantém centrado na capital e vai crescendo progressivamente.

Entendo que a história do país é muito mais uma história do crescimento progressivo dessa máquina e que vai, depois penetrando, cada vez mais, a sociedade brasileira como um todo. A partir daí, nós podemos pensar nas questões que coloquei: quais são os tipos principais de padrão de relacionamento entre o centro e a periferia, ou entre o centro do país e algumas das regiões que o país tem.

O primeiro tipo, a meu ver o mais típico do sistema político brasileiro, é o que chamei, no momento, de padrão de dependência patrimonial. Com isso eu queria pensar em um sistema político onde, realmente, a função política é muito importante. Existe muita riqueza que está ligada ao próprio controle da máquina administrativa do Estado. É bastante ampla a capacidade do Estado de extrair recursos da sociedade, como taxar exportações e importações. Donde ser natural que as pessoas procurem ter acesso ao poder político como uma forma de conseguir benefícios. Nesse sistema, fazer uma carreira política consiste em conseguir um lugar no Estado, não como no modelo clássico chamado de política representativa, para conseguir fazer representar os seus interesses junto ao Estado, mas para conseguir os benefícios do Governo: o acesso a cargos, o direito de nomear pessoas, etc.

Acho que esse padrão de política, fundado basicamente na conquista de posições políticas e administrativas como patrimônio, tem muito a ver com o processo de relativa decadência econômica que se dá no Brasil em grandes períodos e faz com que a atividade política, enquanto tal e um pouco parasitária, seja mais rentável do que as atividades de exploração econômica, que fica mais restrita a certos grupos pequenos. E pode-se, mais, pensar no Nordeste, por exemplo, onde há, em determinada época, uma economia muito pujante de açúcar, mas que, depois, entra em decadência e fica uma elite rural, com uma certa tradição e uma riqueza para trás. Mas, na realidade, essa elite passa a encontrar muito maior rentabilidade na atividade política como tal do que na atividade econômica.

Isto é muito mais claro em Minas Gerais, onde o fim da economia do ouro deixa a maior concentração populacional do país, uma população muito ampla, muito grande e onde surge todo o tipo de especialização em política. Há um historiador que dizia que mineiro faz política porque não tem outro jeito, não tem mais nada para fazer.

Esse tipo de relação é uma simbiose, que se estabelece, entre o centro político e as regiões decadentes, estagnadas do interior. Daí vai resultar no que Victor Nunes Leal desenvolve, depois, como o fenômeno do coronelismo, que é a intermediação entre os benefícios do poder central e a fraqueza do poder local.

Isso é bem diferente do que ocorre nos centros econômicos mais pujantes do país. Na região, principalmente, de São Paulo, que por razões históricas, que não vem ao caso descrever aqui, mas são conhecidas de sobejo, vai-se transformando cada vez mais no centro mais dinâmico da economia brasileira. E, de alguma maneira, coloca-se á margem desse processo político, que unia a administração central, mais tradicional, à periferia, mais decadente.

São Paulo cresce como centro econômico do país, à margem do país. Desenvolve formas políticas de participação e de reivindicação que são bastante diferentes das que ocorrem no país como um todo. É isso que eu chamo de marginalização histórica de São Paulo, a marginalização política do centro econômico do país. E é um dos fenômenos mais importantes, para entendermos a política brasileira, investigar como um país como este consegue marginalizar o seu centro econômico mais importante.

O Rio Grande do Sul representa, creio eu, um terceiro padrão, que, conceitualmente, não é fácil de entender.

Mas, evidentemente, o Rio Grande do Sul tem uma característica toda peculiar, por ser uma região de fronteira, como ponto de encontro entre o Império Português e o Império Espanhol. Surgiu aqui uma tradição militar, uma tradição de vinculação muito grande entre elites civis e militares e uma tradição de rebeldia e de autonomia também bastante forte. Ao mesmo tempo, há uma espécie de ponte direta dada pelo próprio elemento militar, entre a elite rio-grandense e a elite política do centro do país. E este tipo de combinação entre uma elite rural militarizada, com uma tradição caudilhesca de independência acentuada, com outro segmento dessa elite, que já tem uma tradição muito mais ligada ao controle da administração e à vinculação ao centro do país, gera o conflito histórico muito sério no Rio Grande e também tem a ver com a vocação de política nacional muito importante que o Rio Grande desempenha.

Não há dúvida nenhuma que um dos componentes fundamentais históricos do Rio Grande é esse componente militar e as próprias raízes que o Exército brasileiro tem mais neste Estado do que em qualquer outro do país. Entendo que pensar nesses termos dá uma visão muito mais rica e mais apropriada da política brasileira e do modo como se desenvolve, como um jogo em diversas dimensões desses diversos setores, dessas diversas formações históricas, que se dão dentro do país. Esse conflito, esse confronto entre diversas coisas aparece com muita clareza na passagem do Império para a República. Vemos aí dois tipos de republicanismo surgidos no país: o republicanismo paulista, que é um republicanismo conservador, preocupado simplesmente com a independência da região, muito ligado aos interesses do café, na realidade, pouco comprometido com os ideais tipo abolicionista e mais modernizadores que ocorriam na época; e outro tipo de republicanismo muito mais urbano, radical, moderno em certo sentido e muito mais orientado no sentido da criação de um Estado mais moderno, mais centralizado e que pudesse romper, de certa maneira, com o domínio das oligarquias rurais e, inclusive, da oligarquia paulista.

O Rio Grande do Sul, em grande parte, participa desse segundo republicanismo. Mas a coisa é complexa; não é tão simples assim. O fato é que a República Velha, como sabemos, é uma combinação, por um lado, da força independente, bastante autônoma, das grandes oligarquias dos grandes Estados, principalmente Minas Gerais e São Paulo e, também, o Rio Grande do Sul; depois, um outro componente, que é muito próximo do Rio Grande, que é o próprio papel ativo do Exército, como terceiro ou quarto participante do jogo político, durante todo o período, que vai da Proclamação da República até a Revolução de 30.

Então, a Revolução de 30 parece-me, finalmente, que o que ela faz é levar ao extremo as possibilidades do jogo, mais ou menos independente, entre esses grandes centros de poder que o país possuía e se mantinham mais ou menos preservados. Basicamente, eu diria, serem eles, na época, Minas, São Paulo, Rio Grande e, de certa maneira, as Forças Armadas, como que um grupo ainda não muito configurado, mas já com uma política bastante própria.

Eu não vou repetir a História e os eventos objeto deste simpósio. De qualquer maneira, um dos efeitos principais ocorridos com a Revolução de 30, eu considero que é a perda da capacidade de autonomia dessas diversas oligarquias regionais. Minas Gerais joga a cartada revolucionária, com a suposição de que conseguiria manter a sua autonomia. Mas essa autonomia desaparece, não só com Benedito Valadares, mas já nos primeiros dias da Revolução. Os que conhecem a história dos primeiros anos da Revolução sabem da grande luta de Olegário Maciel para conseguir a sua independência como Presidente do Estado de Minas Gerais. Há uma tentativa de derrubá-lo com um golpe que não se mantém, mas de qualquer modo o processo de eliminação da autonomia regional é muito forte, é irreversível e não pode ser controlado. O Rio Grande tem o seu lado de participante desse grande processo de concentração de poder, mas tem a sua resistência, a sua tentativa de manter a sua autonomia, que não é conseguida.

São Paulo tenta a Revolução de 32, fracassa e perde. E considero que aí é, realmente, que se estabelece, pela primeira vez depois do Império, uma forma de centralização política, mas então multo mais estruturada, com muito mais recursos de penetração, de controle sobre todo o país do que a existente na época imperial.

É multo curioso como o processo de integração paulista nesse processo de concentração progressiva do poder se dá. Porque São Paulo, na realidade, desiste de certa maneira de tentar jogar as suas cartas de autonomia e de independência. Os setores mais ativos da área econômica - a colônia do café, a industrialização, com os setores industriais nascentes - como que preferem uma acomodação, um tipo de situação que lhes permita se beneficiarem dos recursos do Governo Central. E dessa maneira estabelece-se uma espécie de acordo, de compromisso que não chega a integrar, ou subordinar completamente São Paulo ao centro político, mas elimina esse elemento tão exclusivo que parecia ir acontecer em 32.

Então, o regime brasileiro se centraliza; chega ao auge da centralização em 1937, quando são nomeados Interventores em todos os Estados do país; passa pela II Guerra, que é um período de maior concentração de poder ainda, sob o pretexto da economia de guerra.

E, finalmente, temos em 45 o ressurgimento da Democracia Representativa e o restabelecimento da Federação. E o que nós temos nesse caso é, de algum modo, o ressurgimento do sistema político com as suas diferenciações tão marcantes e tão claras. Nós temos, também, como todos sabemos, o fracasso, o fim dessa experiência política, a partir de 64. Estamos hoje revivendo, quem sabe, uma nova tentativa de reabertura do sistema político. E é curioso que, ao se dar esse processo, de novo aparecem os elementos de diferenciação regional e o papel diferente que os diversos Estados podem jogar e estão jogando. Acho importante e curioso que, embora de maneira diferente, Rio Grande e São Paulo são os grandes Estados oposicionistas, onde os partidos de oposição adquirem uma força maior e mais marcada. Podemos ainda constatar como se continua, de certo modo, mantendo a tradição da política de dependência patrimonial.

Isso tudo nos ajuda a compreender como se repete no país o padrão de um sistema partidário que é subordinado e dependente do Governo Central e vive somente à custa dele. E não é por acaso que isto é tão forte nos Estados mais pobres, menos desenvolvidos do país - Minas Gerais e o Norte do país.

Penso, portanto, que esse fenômeno das diferenciações históricas das diversas regiões, seu papel diferente que se deu na formação do país, que voltou a aparecer no processo da Proclamação da República, que ficou óbvio na Revolução de 30, é como uma marca indelével, que surge e ressurge como uma constante no quadro da política nacional.

Isso é um tipo de marco geral, que creio ser frutífero, para pensarmos a questão da Revolução de 30.

Essa visão, que apresentei é evidentemente muito genérica. Como generalização, devo ter incorrido em erros factuais históricos, em incorreções de todo o tipo. Mas tem me ajudado a pensar e creio que, enquanto tal, vale a pena ser lançada e colocada na mesa. Obrigado.

* Publicado em Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Simpósio sobre a Revolução de 30, Porto Alegre, Estante Rio Grandense União de Seguros, 367-376, 1983 (apresentação oral, texto não revisto pelo autor).

Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon



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