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Para quem conhece a realidade do ensino superior no Brasil e em outros países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, o quadro descrito acima é bastante familiar, e tem uma lógica bastante clara, descrevendo as forças que trabalham pela expansão do sistema educacional a qualquer custo e de qualquer forma, e outras forças que tratam de limitar seu crescimento, ambas movidas por motivações que têm pouca relação com as habilidades profissionais e técnicas proporcionadas de fato pela educação. Estes mecanismos não são exclusivos dos países subdesenvolvidos, mas tendem a ser menos evidentes aonde os mercados operam com mais vigor, ou aonde as hierarquias sociais são menos pronunciadas.7 Além destes fatores, existem outros, que também atuam de forma bastante significativa na expansão do ensino superior. Um é de natureza geracional e cultural: cada vez mais, as famílias de classe média e alta esperam que seus filhos e filhas entrem no ensino superior, e isto já faz parte da cultura juvenil destes grupos sociais. A outra é de natureza econômica, e corresponde às novas exigências de qualificação profissional e técnica da economia, tal como descritas do documento do Task Force e outros textos que falam do surgimento de uma nova knowledge society, exigências que certamente existem, ainda que não saibamos em que proporções.
Se este entendimento a respeito dos mecanismos de expansão do ensino superior é correto, então as conseqüências, do ponto de vista das políticas públicas para o setor, podem ser bastante significativas. Em primeiro lugar, fica claro que o setor público, que tem por obrigação representar os interesses coletivos e trabalhar pela justiça social, não deveria se empenhar nem em facilitar a expansão da educação superior a qualquer custo, nem em estabelecer mecanismos de controle que limitem esta expansão, a não ser quando seja possível identificar, com clareza, o interesse social ou econômico no desenvolvimento de determinadas habilidades e competências, ou no controle de imposturas que possam colocar em risco a vida e a propriedade das pessoas. Deve ser do interesse público eliminar os mecanismos institucionais que garantem privilégios aos detentores de determinadas credenciais, fazendo com que os benefícios decorrentes da educação superior passem a ser, cada vez mais, função da efetiva contribuição dos educados para a riqueza e o bem estar social. É também responsabilidade do setor público cuidar da equidade no acesso às oportunidades educacionais, independentemente das origens econômicas, sociais, raciais ou culturais das pessoas.
No Brasil, o credencialismo que ainda predomina na educação superior é mantido por dois conjuntos de instituições, a legislação que garante privilégios e monopólios profissionais às profissões regulamentadas, e o sistema de autorizações e credenciamento de instituições de ensino superior, sobretudo privadas, por parte do governo federal. Estas instituições fazem de qualquer estabelecimento que consiga autorização para funcionar uma autoridade autorizada a emitir certificados profissionais de validade nacional, bastante semelhante aos cartórios que fazem parte de nossa tradição jurídica e administrativa.
Um outro fator que contribui para manter este sistema é o princípio do "modelo único" do ensino superior brasileiro, cuja face mais evidente é o famoso bordão da "indissolubilidade do ensino, da pesquisa e da extensão", cada vez mais distante da realidade, mas sempre repetida como uma mantra pelos mais diversos setores. A face menos evidente, mas igualmente problemática, é o modelo único da formação profissional, que tem impedido a criação, no Brasil, de profissões de nível técnico superior em áreas como a saúde, a educação e a engenharia. O relatório do Task Force do Banco Mundial – UNESCO também adota, implicitamente, a concepção de um modelo único de universidade, pautado sobretudo na universidade inglesa e americana, ainda que reconheça a inevitabilidade de uma "estratificação" das instituições de ensino, como decorrência da massificação.
A contraposição entre uma interpretação "econômica" e uma interpretação "credencialista" sobre o papel da educação, e particularmente da educação superior, é em grande parte uma questão empírica, e não conceitual ou teórica. Em algumas sociedades, mais do que em outras, existem benefícios que decorrem da posse de determinadas credenciais, relações pessoais ou estilos de vida associados à educação, e outras em que estes elementos pesam menos, em contraposição à competência profissional e técnica associada às credenciais. Existe bastante consenso em que os sistemas educacionais evoluem na medida em que se tornam mais meritocráticos e capazes de produzir habilidades socialmente desejáveis e economicamente produtivas. Por outro lado, as profissões tradicionais, como o direito e a medicina (profissões descritas na literatura como "learned professions") não são vendidas e compradas nos mercados como simples mercadorias ou serviços. Elas têm um forte componente corporativo e credencialista - um componente de status - mesmo nas sociedades mais pluralistas e dominadas pela lógica do mercado, como os Estados Unidos, e não é óbvio que estes componentes corporativos de auto-regulação e controle devam ser substituídos pela mercantilização.
A experiência internacional mostra que sistemas de educação superior são extremamente difíceis de se reformar por decisão governamental, sobretudo pela grande força política e resistência à mudança dos diferentes grupos de interesse que participam destes sistemas – estudantes, organizações estudantis, professores pesquisadores, professores sindicalizados, corporações profissionais, administradores e outros profissionais da educação. Esta tem sido a experiência da França, da Argentina, do México e do Brasil, países que compartem, e não por acaso, uma história de centralização de seus sistemas educacionais. No Brasil, o Ministério da Educação tem sido capaz de promover reformas importantes na educação básica e média, mas tem conseguido relativamente pouco na área do ensino superior, apesar do importante sucesso que foi a implantação do "provão". Em grande parte, isto se deve à resistência que tem havido a algumas de suas iniciativas mais importantes, como a de dar autonomia às universidades federais e torná-las responsáveis pela gestão de seus próprios recursos. E em parte, talvez também, pela falta de um projeto mais claro para o setor, que pudesse enfrentar mais diretamente as questões associadas ao credencialismo e definisse um relacionamento mais adequado com o setor privado.
É possível, no entanto, que as tendências que vêm ocorrendo no Brasil e em outras partes do mundo acabem por fazer implodir, por si só, o formato antigo do ensino superior brasileiro, abrindo espaço para um sistema muito mais adequado e justo do ponto de vista social. Um sistema mais adequado seria um sistema mais amplo, que permitisse que o Brasil chegasse a proporcionar algum tipo de educação superior a pelo menos 30% de sua população em idade escolar, em contraste com menos de 10%, que é o que ocorre hoje; um sistema menos credencialista, que valorizasse muito mais o conhecimento e a competência, e muito menos o título formal; que fosse socialmente mais justo, permitindo amplo acesso à educação superior em função do mérito, e não em função da origem social das pessoas; e mais autônomo, fazendo das corporações profissionais e instituições de ensino pólos dinâmicos de produção e transmissão de conhecimentos e de criação de padrões de qualidade e referência.
O relatório do Task Force, no que é possivelmente seu capítulo mais interessante, sugere uma lista de "desirable features of a higher education system", as características necessárias para tornar os sistemas de educação superior mais efetivos e adequados. Na maioria dos casos, estas características já vêm sendo introduzidas, no Brasil como em outras partes, por um processos muito amplos que têm a ver com o próprio crescimento da educação superior e as transformações da cultura, da economia e do sistema internacional. Vale a pena examinar os principais itens desta lista: Estratificação
Mais do que desejável, a estratificação dos sistemas educacionais em universidades de pesquisa, universidades regionais, escolas profissionais e técnicas e "colleges" de diferentes tipos é uma realidade, que se impõe pelas próprias limitações de recursos humanos, intelectuais e financeiros que existem entre as diversas regiões e instituições do país, assim como pelos diferentes interesses e objetivos de quem proporciona e quem busca a educação superior. Não é a estratificação que é desejável, no entanto, mas a diferenciação das instituições. A idéia de que a estratificação é desejável decorre da visão tradicional da universidade como centrada nos modelos clássicos da research university. Um sistema diferenciado pode valorizar, igualmente, instituições de ensino, pesquisa, formação profissional, formação técnica, formação geral e formação vocacional, sem estabelecer necessariamente uma hierarquia entre elas. Alguma estratificação é possivelmente inevitável, já que algumas carreiras e instituições terão sempre mais prestígio, ou proporcionarão mais salários, ou permitirão melhor acesso a determinadas posições. Mas estes objetivos – prestígio, salário, posições – podem ser buscados por pessoas distintas, dotadas de diferentes habilidades profissionais e sociais, e orientadas por valores que freqüentemente não são os mesmos. Forçar uma hierarquia entre instituições não é uma política desejável; permitir a diferenciação, no entanto, e encontrar as funções e os papéis mais adequados para os diferentes tipos de instituição e objetivos educacionais é altamente desejável, e já vem ocorrendo na prática, apesar das resistências que ainda ocorrem. O Brasil tem hoje, às vezes na mesma instituição, às vezes em instituições especializadas, centros de pesquisa e pós-graduação, faculdades de formação profissional, escolas vocacionais para cursos superiores de curta duração, e uma ampla gama de escolas de educação geral, que se escondem atrás das chamadas "profissões sociais", sobretudo na área de administração, economia e direito. Muitas destas escolas são bastante ruins, e funcionam sobretudo como cartórios de emissão de diplomas; outras, no entanto, são razoáveis e boas, e dão aos estudantes as habilidades gerais, de conteúdo sobretudo social, que necessitam para participar das atividades não especializadas das sociedades modernas. O Brasil não possui ainda instituições de nível superior orientadas explicitamente para a educação geral, como é recomendado do relatório do task force, e que são típicas da tradição anglo-saxã, e tampouco desenvolveu ainda, suficientemente, os cursos pós-secundários de nível técnico, por causa do viés credencialista que requer o mínimo de quatro anos de estudo formal para os diplomas de nível superior.
Financiamento estável e adequado
O Brasil gasta, segundo o World Education Indicators, 16.9% de seus recursos públicos em educação, e 3,2% em educação superior, valores bem acima do da maioria dos países da OECD. O Estado de São Paulo gasta 13% dos impostos que coleta na manutenção de suas três universidades, que não chegam a atender 10% dos estudantes de ensino superior do Estado. A parte principal dos recursos públicos para a educação superior, que são os salários e aposentadorias dos professores, tem se mantido bastante estável, sobretudo após o fim da inflação, e em níveis razoavelmente adequados, se comparados com o de outros países similares. Tal como em São Paulo, em alguns outros Estados as universidades públicas recebem uma percentagem fixa dos impostos arrecadados, prática condenada, aliás, pelo task force, como podendo levar à acomodação e à percepção, muitas vezes justificada, de que as universidades recebem recursos que faltam a outros setores da sociedade. Por outro lado, tem havido ainda muitas oscilações nos recursos públicos para atividades de custeio e investimento. O setor privado não conta com as mesmas garantias, mas existe um sistema de crédito educativo em expansão, e que até pouco tempo funcionava, na prática, como um subsídio público a determinados setores da educação privada. Existe muito espaço, ainda, para que as universidades públicas tomem a iniciativa e busquem recursos junto a diferentes setores do governo e ao setor privado, assim como para o crescimento da filantropia, se houver legislação adequada para isto. É possível afirmar que no Brasil, ao contrário do que ocorre em muitos outros países, a noção de que o setor público deve se responsabilizar por uma parte significativa dos custos do ensino superior é bastante aceita, e os problemas que existem se referem, sobretudo, à forma em que estes recursos são utilizados, e não a seu montante, dentro das limitações existentes.
Competição
Quando a educação superior é dinâmica e criativa, as instituições competem por fundos públicos e privados, os cursos competem pelos melhores professores e estudantes, os pesquisadores competem por fundos e contratos de pesquisa, os estudantes buscam as melhores instituições, e os professores buscam os melhores cursos e instituições, e desta forma todos procuram melhorar. O setor privado da educação brasileira está se tornando muito competitivo no mercado por estudantes, e o setor de pesquisa e pós-graduação têm uma tradição bastante consolidada de competição por financiamentos e reconhecimento de qualidade, no marco dos conselhos e fundações de pesquisa, assim como da CAPES. A competitividade entre instituições públicas, por outro lado, tem sido muito pequena, limitada que é pelas normas burocráticas de isonomia, pela estabilidade dos empregos públicos e pela impossibilidade que têm os professores de se transferir de uma instituição a outra em busca de melhores condições de trabalho. O "provão" tem sido um fator de grande importância para estimular a competição entre instituições, sobretudo no sistema privado, aonde existem recompensas e prejuízos imediatos associados a bons e maus resultados. É de se esperar, no entanto, que a competitividade comece também a penetrar com mais força no setor público, na medida em que o regime de contratação de professores se flexibilize, em os recursos públicos passem a ser distribuídos em função de resultados efetivos das instituições, e que existam mais espaços para a busca de recursos adicionais junto aos setores público e privado.
Flexibilidade
Dois tipos de flexibilidade são necessários. A primeira é a flexibilidade quanto a objetivos e conteúdos, e a segunda é a flexibilidade quanto a formatos organizacionais e institucionais, que inclui a flexibilidade na busca de recursos. A flexibilidade de objetivos e conteúdos não tem sido grande nos cursos de graduação para as profissões tradicionais, pela camisa de força dos controles corporativos sobre as diversas profissões. No entanto, existe grande flexibilidade na pós-graduação, e a atual legislação dá às universidades ampla autonomia para organizarem qualquer de programa de ensino, sob a denominação genérica de "cursos seqüenciais". Mesmo os currículos mínimos das profissões são suficientemente genéricos para permitir ampla margem de adaptação e inovação por parte das instituições.
A flexibilidade institucional e financeira é quase total para o setor privado, e mais restrita para o setor público, onde as regras relativas à administração de pessoal e à aplicação de recursos limita bastante o que as instituições podem fazer. No entanto, ainda aí existe mais flexibilidade do que normalmente se admite. As universidades públicas brasileiras desenvolveram mecanismos que permitem a venda de serviços e o pagamento de salários diferenciados a seus professores, por exemplo, através das fundações de direito privado que administram, que não existem nem seriam permitidas em outros setores da administração pública; e a nova legislação relativa ao serviço público deve abrir espaço para maior flexibilidade na área de contratação de pessoal.
Parece ser, assim, que as limitações que possam existir em relação à flexibilidade de funcionamento das instituições de ensino se devem muito mais à cultura e formas de trabalho destas instituições do que, propriamente, a impedimentos de ordem legal.
Padrões de qualidade bem definidos
A outra face da autonomia e flexibilidade deveria ser a existência de padrões claros de qualidade, que permitam ao setor público e aos cidadãos distinguirem entre o que é bom e o que é ruim dentro do sistema de educação superior. Existe uma contradição potencial, porém, entre a flexibilidade e a criação de padrões, que tende a impor uma visão homogênea a respeito do que deve e não deve ser feito. No passado, a tendência era controlar os padrões pelos insumos utilizados pelas instituições – instalações físicas, titulação e tempo de dedicação dos professores, espaço físico, livros na biblioteca, alunos por professor, laboratórios, etc. Hoje, a tendência é deixar de lado os insumos, e concentrar a atenção nos resultados. O Ministério da Educação avançou bastante nesta linha, através dos exames de curso, mas ainda mantém uma sistemática bastante complexa para a avaliação da chamada "condição de oferta" dos cursos superiores, que termina por impor às instituições determinados formatos e custos de funcionamento que não resultam, necessariamente, em benefícios educacionais para os estudantes.
Apesar do grande avanço que representa, o "provão" tem duas limitações conhecidas, que não foram ainda enfrentadas. A primeira é que ele mede resultados finais, mas não avalia quanto os cursos de fato agregam aos alunos em termos de conhecimentos, já que não existe um critério ex-ante com o qual seus resultados possam ser comparados. Esta limitação pode vir a ser superada no futuro, na medida em que se generalize o uso do Exame Nacional de Ensino Médio, como elemento de avaliação para a seleção de ingresso aos cursos profissionais. A outra limitação é que o Provão, ao desenvolver um exame único para cada programa de estudo ou carreira, reforça o modelo único de formação, e impede que diferentes instituições desenvolvam seus próprios objetivos pedagógicos e acadêmicos. Para que esta situação seja superada, é necessário que os padrões de avaliação deixem de ser centralizados, e que as atuais avaliações feitas pelo Ministério da Educação possam ser substituídas por um sistema efetivamente pluralista de avaliações feitas por órgãos e instituições autônomas de tipo regional, setorial ou especializado.
Proteção contra manipulação política
Existem dois tipos de questões em relação a este item; o primeiro é quando os partidos políticos usam as instituições educacionais como "moedas" de troca de interesses e favores, fazendo, desta forma, com que os recursos financeiros e humanos sejam distribuídos não de acordo com algum critério relacionado com a educação, mas conforme os interesses político-partidários de um ou outro grupo. O outro é quando os próprios participantes das instituições educacionais – estudantes, professores, dirigentes – se alinham partidariamente, e, novamente, passam a tomar decisões em função das divisões político-partidárias do país.
É freqüente, no Brasil, que dirigentes de instituições públicas e privadas façam lobby junto a governantes e políticos para garantir seus orçamentos no setor público ou facilitar os processos de autorização e credenciamento de cursos no setor privado. Estas práticas, em si, são normais, quando não ultrapassam os limites da moralidade e da probidade. O que ainda existe na educação básica e secundária, mas já não se vê no ensino superior, é a interferência direta de políticos da vida interna das instituições. O próprio Ministério da Educação, que no passado era normalmente preenchido por pessoa indicada entre os políticos da coalizão governamental, desde o início da década tem estado em mãos de pessoas oriundas do meio acadêmico e profissional, e não se concebe mais que possa ser diferente. Esta despartidarização do ensino superior parece ser um resultado do fortalecimento interno das instituições educacionais e do interesse com o qual o setor é acompanhado pela imprensa, que fazem com que qualquer interferência considerada indevida seja objeto de imediata rejeição.
A politização de estudantes, professores e funcionários é uma questão distinta, e mais controversa. Ser "politizado," em nosso meio, costuma ser considerado um valor de cidadania, associado à preocupação com os interesses comuns da sociedade, em contraste com os que só pensam em seus interesses privados. Quando a política é ideológica, as pessoas politizadas tendem a se alinhar com partidos que representam suas ideologias, e as questões acadêmicas e institucionais adquirem, consequentemente, coloração político-partidária. É longa, e mundial, a fascinação dos intelectuais com a política, assim como é longa a história dos custos desta fascinação para os próprios intelectuais. Como o mundo da política é sempre maior do que o dos intelectuais e acadêmicos, o resultado inevitável é que os valores intelectuais e acadêmicos acabem sendo subordinados ao da política, que obedece, normalmente, a uma lógica bastante mundana de poder. A separação entre a vida intelectual e a vida política, proposta por Max Weber em suas famosas conferências de 1918, não são somente a expressão de sua postura intelectual8, mas fazem parte de seu entendimento a respeito do amplo processo de diferenciação e institucionalização das profissões técnicas e científicas que são um componente central das sociedades modernas, que pagam um preço alto quando não o permitem. No Brasil, como na América Latina de maneira mais geral, a intensa politização dos estudantes, que a partir dos anos 80 se transferiu para os professores, refletia tanto a politização de amplos segmentos das classes médias quanto as poucas possibilidades de profissionalização efetiva destas pessoas em suas respectivas áreas de trabalho e especialização. A política ideológica ainda existe em nossas universidades, mas de forma cada vez menos significativa. Hoje, a linguagem política radical mal encobre, geralmente, a defesa dos interesses mais imediatos de grupos de estudantes e professores – preços de restaurantes, gratuidade de ensino, oposição a provas e avaliações, defesa de salários. Uma medida recente do Ministério da Educação, que restringiu os processos de eleições diretas para as autoridades universitárias no sistema federal, aumentando o papel do segmento acadêmico nestes processos, não encontrou maiores oposições, e contribuiu para diminuir ainda mais o espaço da política ideológica dentro das instituições de ensino.
Vínculos bem definidos com outros setores (educação secundária, instituições públicas e privadas)
Isoladas do resto da sociedade, as instituições de ensino superior são débeis, vazias de conteúdo e, em última análise, irrelevantes. No passado, quando os professores eram todos profissionais liberais, o mundo do trabalho e do estudo quase que se confundia nas profissões acadêmicas como a medicina e o direito e a odontologia, e este modelo se repetia em outras áreas. Com a criação do professorado em tempo integral, os riscos de separação aumentaram, levando à criação de uma "profissão acadêmica" auto-contida que, no melhor dos casos, se vinculava a comunidades científicas mais amplas, mas, na maioria das vezes, ficava encapsulada em seu próprio mundo. Hoje, esta separação é bem menor, sobretudo nas áreas técnicas e profissionais, onde as universidades e instituições de ensino se desdobram para estabelecer relações de parceria e colaboração com a indústria, o governo e órgãos de pesquisa nacionais e internacionais. Esta proximidade entre o ensino superior e outros setores decorre, em parte, das próprias limitações do ensino superior público e privado, que não têm como manter, com recursos próprios, os níveis salariais e os estímulos profissionais esperados pelos seus professores e pesquisadores mais qualificados. Ela decorre, também, da importância crescente do trabalho técnico e intelectual na vida das empresas e organizações sociais, que buscam nas instituições de ensino os recursos humanos de que carecem. Mesmo nas ciências humanas, o mundo acadêmico funciona bem próximo ao mundo da imprensa e da indústria do livro. Um outro fator de penetração do mundo externo no ambiente acadêmico são os novos meios e instrumentos de comunicação, que permitem que as pessoas busquem conhecimentos aonde quer que eles estejam, e que criam novas ofertas de serviços .
Esta ligação não se deu ainda, no entanto, em relação aos demais níveis educacionais. Até recentemente, a formação de professores para a educação elementar era função das escolas secundárias, e só agora passa a ser atributo da universidade, através da criação da figura de uma nova "escola normal superior" que vem sendo objeto de grande controvérsia. A formação de professores para as últimas séries do ensino fundamental e para o ensino médio sempre foram função das universidades, que deixou de ser cumprida a contento, principalmente nas instituições públicas, pelo pouco salário e baixo prestígio da profissão de professor. É provável, no entanto, que esta situação venha a se reverter. Os avanços havidos com a educação básica nos anos recentes já estão repercutindo no ensino secundário na forma de um grande aumento de demanda, que deverá se refletir, mais cedo ou mais tarde, na necessidade de melhorar as qualificações e as condições de trabalho dos professores deste nível; e o próprio ensino básico também deverá evoluir e se diversificar, aumentando a demanda por professores e especialistas em educação. Na medida em que o ensino básico e secundário se consolide, ele aumentará inevitavelmente sua demanda sobre o ensino superior, e as ligações entre estes setores deverá se fortalecer e ampliar.
Estrutura legal e regulatória adequada, que estimule a inovação e o desempenho.
Lentamente, o marco legal e regulatório do ensino superior vem evoluindo de um modelo centralizado e burocrático, desenvolvido em íntima integração com sistema corporativo e credencialista das profissões, a um sistema mais aberto e flexível, preocupado sobretudo com resultados e desempenho. A nova Lei de Diretrizes e Bases é a evidência mais clara desta mudança, e a tendência geral das normas e orientações emanadas do Ministério da Educação e seus diferentes órgãos vão geralmente no mesmo sentido. É uma mudança lenta, com idas e vindas, e algumas resistências bastante importantes ainda por serem vencidas, sobretudo em relação ao controle governamental sobre o ensino privado, a rigidez de funcionamento das universidades federais, a mantra da "indissolubilidade" e a persistência da unificação entre título universitário e certificação profissional. Mas é possível afirmar que a sociedade brasileira vem se diversificando de tal maneira que os benefícios associados aos mecanismos corporativos e credencialistas do sistema educacional e profissional começam a escassear, e a ser substituídos pelos benefícios reais associados às habilidades e capacidades efetivamente aprendidas e valorizadas pelo mercado de trabalho. É aqui, sobretudo, que vem ocorrendo a revolução silenciosa da educação superior do país.
Recursos sistêmicos
A última recomendação do Task Force a respeito das características desejáveis do sistema de ensino superior é a existência de recursos que beneficiem não a determinadas instituições, mas ao sistema como um todo. Hoje, um dos mais importantes destes recursos é o acesso à Internet, e às bases de dados e informações que são a matéria prima de quem trabalha com o conhecimento e a informação. Outros recursos sistêmicos incluem os fundos para a pesquisa, as bolsas de estudo, o crédito educativo, as avaliações de desempenho, os programas de intercâmbio no país e no exterior. O barateamento das comunicações e a difusão da Internet já estão tendo um impacto importante nas instituições de ensino brasileiras, que tenderá a aumentar cada vez. Depois de muitos anos de estagnação, o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos se transformou em uma instituição de pesquisa educacional de qualidade, que vem proporcionando ao país informações atualizadas sobre a educação em seus diversos níveis, permitindo que as políticas governamentais se façam a partir de informações claras e inteligíveis. E, apesar das limitações recentes, o Brasil dispõe de um sistema bastante amplo de apoio à pesquisa e à pós-graduação, acessível a todas as instituições de nível superior do país.
Para que este texto não seja acusado, indevidamente, de panglossiano, é necessário chamar a atenção para uma série de problemas muito fundamentais que estão implícitos neste texto até aqui, mas que precisam ser explicitados, e colocam importantes pontos de interrogação em relação ao quadro moderadamente otimista que foi apresentado.9 O primeiro é o das condições de expansão da educação brasileira, que está relacionado ao tema do financiamento e da diferenciação. O Brasil tem uma taxa extremamente pequena de pessoas matriculadas no ensino superior, de 6,8% da população entre 18 e 24 anos de idade10 e a expectativa do Ministério da Educação é de que seria possível atingir a uma taxa de matrícula da ordem de 30% do grupo de idade até o fim desta década, o que significaria aumentar o número de estudantes matriculados de cerca de 2 para cerca de 5 milhões. A estimativa do governo tem sido de que este aumento deveria se dar em 40% no setor público, e em 60% no setor privado, mantendo aproximadamente a mesma distribuição que hoje existe entre os dois setores. No entanto, parece claro que o Brasil não terá como aumentar a percentagem de recursos públicos que hoje dedica ao ensino superior se mantiver o mesmo padrão de gastos atual. Na medida em que cresça a economia, haverá naturalmente mais recursos públicos, mas uma duplicação de gastos em 10 anos requereria uma taxa de crescimento da ordem de 7% anuais, que é pouco provável. As outras alternativas seriam aumentar fortemente a eficiência do sistema público, mantendo o mesmo padrão; aumentar a capacidade do setor público de captar recursos adicionais, pela cobrança de anuidades e outros mecanismos; reduzir drasticamente os custos per capita dos estudantes, reduzindo salários de professores, aumentando fortemente o número de alunos por professores, ou então diferenciando fortemente o sistema, criando um novo tipo de educação superior pública, de nível técnico e intermediário, que o Brasil praticamente não tem. O setor privado também teria problemas de financiamento, porque não teria como continuar aumentando sua receita a taxas anuais elevadas se a economia não crescer de forma proporcional.
Parte da solução para este problema estaria na criação de um amplo setor de ensino superior de curta duração, que pudesse formar técnicos, pessoal administrativo, e especialistas de diferentes tipos. Todos os países que massificaram seus sistemas de ensino superior criaram este estrato educacional, e o Brasil é uma anomalia em relação a isto, insistindo ainda em proporcionar o ensino "profissionalizante" no nível da educação média. A criação deste estrato poderia proporcionar uma educação superior significativa a muitas pessoas que hoje abandonam ao meio os cursos superiores de quatro anos, e desafogar a pressão de demanda sobre os cursos de maior duração. Porque o Brasil não desenvolveu este estrato? A explicação usual é que há uma forte resistência das corporações profissionais a estes cursos, mas uma política governamental mais decidida, e a criação de um marco regulatório apropriado, poderiam abrir espaço para esta nova modalidade de educação superior, tanto no setor público como no setor privado.
Um outro risco importante que corre a educação superior pública brasileira é que ele pode vir a se expandir de forma semelhante ao que ocorreu no México e em outros países latino-americanos, optando pela massificação e perdendo qualidade e substância. De novo, a única alternativa razoável contra esta tendência é uma política clara de diferenciação. Se esta diferenciação for resistida e a mantra do "modelo único" for mantida, este processo de deterioro será quase inevitável, abrindo espaço para o surgimento de um ensino superior privado de qualidade.
Um terceiro risco é o da iniquidade. Hoje, a política de educação superior pública gratuita já é socialmente injusta, e poderá ficar mais injusta ainda se o sistema não se ajustar aos diferentes perfis dos estudantes que estarão buscando educação superior nos próximos anos. Parte do problema da iniquidade tem a ver com a questão do financiamento; e parte tem a ver com o desajuste entre os conteúdos dos cursos e programas e as aspirações e possibilidades dos estudantes. A solução fácil, e desastrosa, para os problemas de iniquidade, seria abrir o acesso à educação superior gratuita de forma indiscriminada, inclusive pelo estabelecimento de quotas, e baixar os padrões de qualidade. A solução inteligente e adequada seria proporcionar sistemas adequados de crédito educativo, cobrar anuidades de quem possa pagar, e proporcionar tipos de curso e programas adequados aos diversos tipos de estudantes. Aqui, novamente, a diversificação surge como elemento fundamental para reduzir a iniquidade do sistema.
Estas dificuldades não chegam, no entanto, a criar um quadro pessimista. Existe um grande espaço a ser ainda conquistado com a diferenciação do sistema, e a criação de todo um novo nível de educação de dois ou três anos de duração; existe um grande espaço, ainda quase inexplorado, do uso de novas tecnologias e novos formatos de educação não presencial; há muito espaço para o uso mais adequado dos recursos públicos, se as universidades passarem a ter responsabilidade pelos seus orçamentos; e, na medida em que a economia cresça e se modernize, haverão também mais recursos públicos e privados para a educação Os sociólogos sabem há muito tempo que a satisfação ou insatisfação das pessoas com suas condições e perspectivas de vida não dependem do que elas efetivamente têm ou podem, mas de seu nível de aspirações, e de com quem elas se comparam. No Brasil, nesta virada de milênio, existe uma tendência bastante geral de pensar que o país está pior do que nunca, e andando para trás, apesar de muitas evidências empíricas que apontam no sentido oposto. Neste clima, um texto relativamente otimista como este pode causar espécie, e ser recebido com incredulidade. E no entanto, acredito que ele é coerente com o fato existe uma revolução silenciosa não somente na educação, mas em muitas outras áreas, que, em conjunto, poderão dar ao país uma nova e significativa inserção no mundo contemporâneo. Não é uma transição fácil, nem inevitável, e seus custos podem vir a ser bastaste altos para determinados setores e grupos, e por isto ela é resistida. Mas, na educação superior como nos demais setores, é necessário olhar o que está ocorrendo com mais profundidade, procurar identificar os sinais positivos de mudança, que existem, e trabalhar a partir deles para torná-los mais reais e efetivos.
* Preparado para apresentação no seminário sobre "o sistema de ensino superior Brasileiro em Transformação, São Paulo, NUPES/USP, março de 2000. Publicado em em Eunice Ribeiro Durham e Helena Sampaio, O Ensino Superior em Transformação, São Paulo, Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior (NUPES/USP), pp 13-30.
1. Higher Education in Developing Countries: Peril and Promise, Washington, The World Bank and the Task Force on Higher Education and Society, 2000.
2. O documento do task force é representativo de idéias bastante correntes a respeito do ensino superior, mas existem outras visões que me parecem mais adequadas. Eu charmaria a atenção, especialmente, para o documento de estratégia do Banco Interameicano de Desenvolvimento. Veja Higher Education in Latin America and the Caribbean - a strategy paper, em http://www.iadb.org/sds/sci/publication/publication_757_101_e.htm
3. Os resultados do "provão", o exame nacional de cursos superiores, são divulgados em termos de conceitos de "A" a "C", mas não há divulgação do nível mínimo de desempenho considerado aceitável para cada carreira ou área de conhecimento.
Veja também Cláudio de Moura Castro e Daniel C. Levy, Myth, Reality and Reform: Higher Education Policy in Latin America, Washington, BID, 2000.
4. Criticando as análises do Banco Mundial sobre as taxas de retorno da educação, que pareciam demonstrar que a rentabilidade dos investimentos em ensino superior era menor do que a dos investimentos em educação básica, o relatório diz que "rate-of-return studies treat educated people as valuable only through their higher earnings and the greater tax revenues extracted by society. But educated people clearly have many other effects on society: educated people are well positioned to be economic and social entrepreneurs, having a far-reaching impact on the economic and social well-being of their communities. They are also vital in creating an environment in which economic development is possible." (p. 39).
5. Dados do World Education Indicators da OECD mostram que o rendimento relativo das pessoas com educação superior no Brasil é 3,59 vezes maior do que os de educação secundária completa, enquanto que, para os países da OECD, este multiplicador oscila entre 1,5 e 1,8. (tabela 12).
6. Um teste indireto desta hipótese da importância do diploma pode ser feito comparando, com dados da PNAD 1998, pessoas que completaram a educação superior com as que não o completaram. Os dados mostram que a obtenção do diploma significa um ganho adicional de cerca de 50% da renda média em relação aos que não completam o curso (as médias são 1.824 e 1.258 reais, respectivamente, para a população de mais de 25 anos de idade).. No nível de pós-graduação, no entanto, ter ou não um diploma não faz muita diferença (as médias são 3.807 e 2.868 reais respectivamente para a mesma população), o que pode explicar a grande deserção que existe nos programas de pós-graduação no Brasil.
7. O texto clássico sobre o relacionamento entre educação e credencialismo nas sociedades modernas é Randall Collins, The Credential Society: An historical sociology of education and stratification, New York, Academic Press, 1979.
8. Desnecessário lembrar que a preocupação com a separação das "vocações" acadêmicas e políticas não impediu que Weber participasse intensamente da vida política de seu tempo.
educacionais que têm pouco a ver com a cultura acadêmica tradicional, mas que podem ser igualmente ou até mais eficientes como fontes de formação.
9. Devo a José Joaquin Brunner o ter chamado minha atenção sobre a necessidade desta visão mais balanceada.
10. Esta é a "taxa líquida", com os dados da PNAD 1998. A taxa bruta, que compara a matrícula com o grupo etário de 18 a 24 anos, é de 10.8%. Um total de 36.1% dos estudantes de nível superior no Brasil tinham mais de 24 anos de idade, segundo a PNAD 1998.
Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon
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