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I - Participação política e sistema social
É interessante notar como esta concepção de modos alternativos de participação política pode ser integrada com um quadro conceitual mais amplo sobre a estrutura c desenvolvimento do sistema social como um todo. Referimo-nos, em outro contexto, à existência de pelo menos quatro processos de desenvolvimento político-social que deveriam ser considerados como analiticamente independentes em qualquer estudo de desenvolvimento: o processo de desenvolvimento econômico, o de modernização social, o de participação politica c o de crescimento c diferenciação da estrutura do Estado.(10) É fácil ver como estes processos, enfatizados a partir de uma preocupação com estudos de desenvolvimento c transformação social, são similares aos subsistemas funcionais assinalados pela tradição parsoniana, orientada, prioritariamente, para problemas de integração social c consenso.(11)
Pensar em termos de processos, ao invés de coerência funcional, leva à análise de tensões c clivagens que se desenvolvem entre os diversos subsistemas funcionais em um processo de mudança social c desenvolvimento. Stein Rokkan c S. M. Lipset tratam, a partir do esquema parsoniano, de criar um modelo geral para a análise histórica dos sistemas multi-partidários da Europa Ocidental.(12) O esquema parsoniano consiste, essencialmente, em analisar as interações entre os seis pares de subsistemas, dos quais três são considerados especificamente "políticos", por Rokkan e Lipset:
a . interação entre os subsistemas político c valorativo: problemas dc legitimação política; b. interação entre os subsistemas político e o público: problema de apoio político; c. interação entre os subsistemas valorativo e integrativo: problemas de lealdade e solidariedade política.
Quadro 1. |
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FUNÇÃO |
SUBSISTEMA |
PROCESSO |
INDICADORES |
A- (adaptação) |
econômico |
crescimento |
renda per cápita, consumo de energia per cápita, etc |
G (realização de objetivos) |
politico |
crescimento e diferenciação do Estado |
% do PIB em atividades governamentais, % da população ativa ocupada pelo governo, % da população servida por serviços públicos, etc. |
I (integração) |
"O público", associações e grupos secundários |
participação política |
dados sobre sindicalização, participação em partidos políticos, comparecimento eleitoral, etc. |
L (manutenção de pautas e valores) |
"Valorativo", familiar e educacional |
modernização e secularização |
urbanização, expansão de meios de comunicação de massas, expansão do sistema educacional, migração,tc. |
A exclusão do subsistema econômico se entende pelo caráter analítico do esquema. O econômico só se relaciona diretamente com o político em termos de mobilização de recursos, o que não se reveste de caráter político em si mesmo. O aspecto político da economia aparece quando o sistema político se relaciona com o econômico através do público (com a consideração de critérios políticos de alocação de recursos) ou através do sistema de valores (implicando problemas de legitimação da estrutura do mercado de trabalho e das pautas de consumo).
A análise subseqüente de Lipset e Rokkan faz-se através de um exame da estrutura interna do subsistema integrativo, onde se localizam as estruturas partidárias que emergem historicamente. Eles consideram a existência de dois eixos de referencia, um no sentido de centro-periferia ("G" e "L") e outro no sentido de especificidade de interesses - política ideológica ("A" e "I"). Somente a título de exemplo, oposições políticas entre empregadores e empregados se localizariam no extremo de especificidade de interesses, da mesma forma que as oposições entre os setores primário e secundário da economia. Mas esta oposição estaria mais próxima da periferia política que a anterior, na Europa ocidental.
Se voltamos a pensar em termos de processos, e não mais de subsistemas funcionais, notaremos um ponto importante que não é levantado por Lipset - Rokkan: os quatro processos desenvolvem-se em ritmos diferentes, levando a diferentes graus de domínio de um sobre o outro. É possível pensar, por exemplo, que o desenvolvimento econômico pode vir acompanhado de um desenvolvimento maior ou menor da estrutura governamental, ou de modernização e urbanização. O mesmo se aplica em relação ao sistema de valores e pautas de consumo, já que a correlação entre estes e crescimento econômico não é perfeita. Em relação ao processo de participação política, a flexibilidade é ainda maior, e ele tanto pode se exacerbar em função de processos de mobilização mais ou menos autônomo quanto ser reduzido por via coercitiva. Portanto, é conveniente analisar o processo de participação política como dependente dos demais, em função da relativa dominância de um sobre o outro. O quadro 2 sumaria os resultados desta conceituação.
Quadro 2. |
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PROCESSO DOMINANTE |
PROCESSO DEPENDENTE |
"ESTILO" DE PARTICIPAÇÃO (processo integrativo) |
A -. desenvolvimento econômico |
crescimento e diferenciação do Estado |
representação politica |
b. crescimento e diferenciação do Estado |
desenvolvimento econômico |
cooptação política |
c. modernização e secularização |
crescimento e diferenciação do Estado |
movimentos coletivos por mobilização autônoma, populismo |
d. crescimento e diferenciação |
modernização e secularização |
mobilização induzida, do Estado nacionalismo, paternalismo |
Na realidade nenhum destes estilos apresenta-se de forma pura, sendo mais freqüente combinação dos tipos A e C, por um lado, e B e D, por outro. Os termos "representação" e "cooptação" serão usados aqui em sentido mais amplo, englobando cada um destes dois tipos, respectivamente. Isto significa que, para nós, o domínio relativo do Estado terá mais importância que o tipo de processo dominado. Fazemos isto não porque o domínio relativo dos processos de crescimento econômico e modernização tenha menos importância, mas, simplesmente, porque o papel do Estado tem sido relativamente menos explorado até agora. O quadro n 3 dá um resumo exemplificativo dos diferentes tipos de participação e ideologias políticas referidas aos sistemas que funcionam predominantemente por cooptação ou por representação.
II - Cooptação e Representação na Política Brasileira
David Apter descreve os sistemas políticos hierárquicos como "baseados cm uma distribuição de autoridade em que o poder deriva rigidamente do ápice, sendo distribuído à discrição do líder", e sendo "pautados através de linhas burocráticas ou militares".(13) Há pouca dúvida de que este padrão prevaleça na política brasileira atual, e um dos objetivos deste trabalho é o de demonstrar que ele tem uma história antiga no país. A participação política neste tipo de sistema é feita através de um certo grau de cooptação da liderança política pelo centro de poder, o que é o oposto da representação política, na qual a sociedade civil tende a controlar os seus representantes na esfera política. A representação política também tem sido vigente no Brasil e as relações entre estas duas formas de participação é nossa preocupação central. Inicialmente, faremos um sumário do debate mais ou menos implícito na bibliografia brasileira sobre a natureza histórica do seu sistema político. A seguir exploraremos alguns dados empíricos, a maioria dos quais proporcionados pelos demais trabalhos deste volume, no sentido de verificar a tese de que a história politica brasileira tem sido a de um conflito entre duas linhas primordiais de desenvolvimento, uma "de baixo para cima", conduzindo aos esforços de representação política, e outra "de cima para baixo", levando à cooptação.
Quadro 3. |
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REPRESENTAÇÃO |
COOPTAÇÃO |
|
setor dinâmico: |
economia de exportação |
o estado político |
tipo de industrialização: |
baseada em mercado livre (não necessariamente competitivo) |
baseada em incentivos governamentais |
relações exteriores: |
baseadas em laços (ou hostilidades) econômicos |
baseadas em laços (ou hostilidades) inter-governamentais ou inter-nacionais |
Tipo de Participação política: |
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a. nível das elites: |
agregação de grupos de interesse |
"Classe política" cooptada, coronelismo |
b. classe operária: |
sindicalismo autônomo |
sindicalismo corporativista |
c. setores flutuantes de classe média e baixa: |
populismo carismático |
populismo paternalista |
Ideologias políticas: |
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a. À direita |
liberalismo econômico |
moralidade publica e controle social |
b. Ao centro |
eficiência empresarial |
planejamento central baseado em estímulos governamentais à iniciativa privada |
c. À esquerda |
objetivos anti-capitalistas |
nacionalismo |
1. Uma ordem privada?
Nestor Duarte, em A Ordem Privada e a Organização Política Nacional, representa um dos extremos na interpretação do sistema político brasileiro até a Independência, cm 1822. Cita Oliveira Vianna no que se refere ao poder da aristocracia local e vai mais adiante dizendo que "se atentamos melhor, porém. veremos que o fenômeno a salientar aqui não é o dessa descentralização, mas o da modificação da índole do próprio poder, que deixa de ser o da função política para ser o da função privada". E citando novamente Oliveira Vianna: "São eles que governam, que legislam, são eles que justiçam, são eles que guerreiam contra as tribos bárbaras no interior, em defesa das populações que habitam as convizinhanças das suas casas fazendeiras, que são como os seus castelos feudais e as cortes dos seus senhorios"(14). Noutras palavras, uma réplica do modelo feudal tomado no sentido explícito do termo e considerado essencialmente imutável até o século XIX: "a grande paz do Império, o seu equilíbrio e o seu esteio estão nesse senhoriato territorial que é a força econômica e o poder material do Estado. É ele também a única parcela "política" da população brasileira. . ."(15)
A visão oposta é melhor expressa por Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder. Retira ele da história de Portugal as origens de um estado centralizado e patrimonial, transportado para o Brasil sob a proteção britânica após a ocupação de Lisboa por Junot em 1808, e que já se encontrava presente na administração colonial. "A diferença de estrutura das duas colonizações americanas" (a portuguesa e a inglesa) "decorria da diversa constituição do Estado, em uma e outra nação. Portugal, na era seiscentista, já se havia consolidado em Estado absoluto, governado por um estamento burocrático, centralizador. A Inglaterra, ao contrário, discrepando da orientação histórica continental, definiu-se numa transação capitalista industrial e feudal, repelindo a centralização burocrática". Discute longamente os mecanismos de controle da vida econômica e os limites da autonomia política da aristocracia local brasileira, concluindo que "nosso feudalismo era apenas uma figura de retórica".(16) Não ignora, é claro, as tendências centrifugas de descentralização que sempre existiram, e prossegue com um estudo detalhado do processo de centralização progressiva da administração colonial, processo esse que se acentuaria progressivamente até os fins do século XIX.
Faoro parece estar factualmente mais correto, e na segunda metade do século XVIII o país assiste à passagem de um sistema econômico colonial de produção do açúcar, no Nordeste, para um sistema de mineração do ouro e do diamante no Centro, e para um crescente enrijecimento do controle da administração colonial sobre a pujante mas efêmera economia de mineração. A política inicial de colonização no Brasil foi, de fato, a criação dc feudos hereditários (capitanias) concedidas à exploração privada, porém este sistema não chegou a se desenvolver plenamente, sendo logo em seguida substituído por um processo crescente de centralização administrativa. Como observa acuradamente Faoro, nunca houve um pacto político através do qual os altos escalões do sistema político representassem e governassem em nome de alguns setores da sociedade, o que é típico do modelo feudal. Esta situação não ocorreu sem tensões, e representantes brasileiros estiveram presentes às Cortes Portuguesas estabelecidas após a restauração. Tais deputados aparecem novamente no primeiro órgão representativo do país independente, a Assembléia Constituinte de 1823. Preparou ela um projeto dc Constituição considerado o marco de mais alto nível de representação política da aristocracia agrária brasileira no século XIX, logo abortado pelo "golpe" imperial que dissolveu a Assembléia e outorgou uma Constituição nova e menos liberal. D. Pedro I não logrou permanecer no poder mais de nove anos devido, principalmente, à clivagem demasiadamente bem delineada entre a aristocracia nativa e seus representantes, por um lado, e a administração marcadamente portuguesa, por outro. De 1831 a 1840 há um período confuso em que se sucedem regentes e estalam rebeliões nas províncias, terminando com a maioridade legal de Pedro II aos 15 anos de idade, quando se inicia o Segundo Reinado. Nesta época já as rebeliões estavam dominadas, a imagem portuguesa do governo central fazia-se menos presente, a aristocracia agrária liberal estava ou enfraquecida pelas rebeliões separatistas ou cooptada pela Corte, e o estado brasileiro pôde gozar da tranqüilidade de cerca de cinqüenta anos de calmaria política baseada no controle quase absoluto da arena política pela administração imperial.
3. Duas ideologias de mudança política
Agora podemos ir até 1930, quando a República estabelecida após a queda do regime imperial foi destruída por um movimento revolucionário, usualmente tomado como o marco do início do Brasil moderno.
A interpretação deste movimento tem sido uma preocupação constante para os historiadores e cientistas políticos brasileiros e pelo menos duas teorias podem ser explicitadas de acordo com o debate anteriormente mencionado.
A primeira perspectiva, a do feudalismo brasileiro, está de acordo com o modelo marxista de um processo que se inicia com o sistema feudal e um governo central dependente, passando por uma contradição em virtude do surgimento de uma burguesia urbana, e culminando com uma revolução burguesa, que por seu lado prepararia o caminho para o acesso à arena política da classe trabalhadora. Adaptada ao contexto de uma economia de exportação dependente do mercado internacional, tal teoria identifica, em sua forma mais simplificada, o "feudal" com a agricultura extensiva para a exportação, de tipo colonial ou semi-colonial, e a revolução burguesa é também vista como nacionalista e anti imperialista. Assim é que muitos autores brasileiros vêem a Revolução de 30 como a tomada do poder pela burguesia, senão diretamente, pelo menos em termos de conseqüências "objetivas" da política por ela seguida.(17)
Um outro modelo substitui a burguesia pelas classes médias como fator dinâmico na Revolução. Entretanto, não se trata apenas de uma variante menor do primeiro, já que suas implicações são bem distintas. Os teóricos das classes médias pensam menos em termos do processo econômico de industrialização que no processo social de modernização, e "classes médias" ou "setores médios" são conceitos suficientemente amplos para abranger todos os grupos emergentes que não sejam nem um setor da elite política e/ou agrária, nem totalmente assimiláveis a ela.
O descontentamento crescente de jovens militares após 1920 é visto por muitos autores como um indicador do surgimento do setor médio que até então era excluído do sistema político, e que agora passava a reivindicar maior participação política. A Revolução de 1930 é, então, para tais autores, um movimento essencialmente de classe média que abriu as portas do sistema político a estes novos setores.(18)
O que chama a atenção enquanto diferença essencial entre os dois tipos de explicação não é tanto o fato de apontarem para grupos sociais diferentes como principais atores da Revolução de 30, quanto o fato de que apresentam uma imagem diferente do papel do sistema político no processo de mudança. No primeiro caso, o fenômeno político nada mais é que um epifenômeno, modificado e explicado pela confrontação entre dois setores do sistema econômico do país. No segundo caso, entretanto, os setores médios são vistos menos como uma classe econômico-social que como um estrato social que possui demandas de consumo, de participação e de poder políticos. A participação política e o poder político são buscados não como meios para satisfazer os interesses econômicos de um dado setor da economia, mas como um objetivo em si mesmo, do qual derivariam outras formas de participação econômica e social.(19)
Estas duas teses apontam para duas abordagens intelectuais e ideológicas distintas na compreensão da história brasileira, e o que é mais importante, refletem duas tendências no desenvolvimento da sociedade brasileira que geralmente são apontadas como alternativas mas nunca, como deveria ser, como um processo simultâneo de desenvolvimento contraditório.
Estas duas teorias sobre a Revolução de 1930 devem ser vistas como ideologias das duas tendências que constituirão a preocupação central deste trabalho. Os pormenores das duas ideologias são um capítulo da história do pensamento social brasileiro e enquanto tal não lhe dedicaremos muita atenção. E suficiente dizer que embora os teóricos da revolução "burguesa" tendam a partir de uma tradição marxista, partilhar com a ideologia liberal uma visão de um estado passivo, a inspiração dos teóricos das classes médias originou-se nas experiências e ideologias fascistas européias. Virgílio de Santa Rosa, um dos mais lúcidos analistas da Revolução de 30, e um dos teóricos das classes médias, viria a tomar as experiências bolchevista e fascista como exemplos da criação de uma estrutura de Estado eficiente. e racional, dirigida pela intelectualidade e setores médios, e preocupada com a destruição da estrutura tradicional de poder em seus países. Azevedo Amaral, um dos mais importantes ideólogos do governo de Vargas, recusa explicitamente a relevância tanto de uma quanto de outra experiência para o caso brasileiro e ignora os setores médios. Vai mais longe ainda: traindo sua influência germânica, vê o poder local no interior como a fonte telúrica da força nacional, e culpa as oligarquias regionais por infestarem o país com a idéia de um Estado liberal exótico e fictício. A Revolução de 30, neste contexto, é vista como um esforço de aproximação da nação com as suas fontes reais, e como o começo de uma nova era. Este componente romântico encontra-se ausente de outros autores da mesma linha de pensamento, porém todos concordam com a idéia de um Estado Central que poderia vir a recuperar a sua autonomia após várias décadas de controle pelas oligarquias regionais.(20)
Estabelecido como um compromisso entre as oligarquias regionais e um grupo de jovens oficiais e intelectuais modernizantes, surgindo num momento em que ocorria um acréscimo nos níveis de participação política no país, o regime de Vargas logo afastou de si um setor significativo da intelectualidade brasileira que se filiou ao movimento "integralista" e tentou mesmo derrubá-lo em 37, em um esforço para avançar ainda mais a revolução da "classe média". A despeito das diferenças individuais e divergências de opiniões sobre as origens históricas dos problemas do país e suas possíveis soluções, não é difícil ver como os ideólogos da "classe média" aceitam a noção (e o ideal) de uma estrutura governamental independente dos interesses de classe e pressões regionais, e que possa agir à vontade na condução da vida do país.
Estas duas perspectivas refletem o fato de que o Brasil tem tido um processo de desenvolvimento ao longo de duas linhas diferentes e, em certa medida, divergentes; uma gerada pelo setor mais dinâmico da economia, ligada ao mercado internacional e baseada principalmente no Estado de São Paulo, e outra gerada pelo centro do poder político, baseada no Rio de Janeiro, e apoiada nos Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia e outros. Esta dualidade é devida à dualidade entre as fontes econômica e política de poder, entre uma estrutura de poder hierárquica por um lado, e uma estrutura de poder contratual e piramidal, por outro. Assim, a história do Brasil pode ser descrita em. termos das relações entre estes dois pólos. Ela não pode ser compreendida se se pressupõe simplesmente que o regime político reflete, mais ou menos por definição, o sistema de produção ou, então, que o poder político pode determinar o que ocorre em outras esferas da sociedade. Não é difícil perceber que estas duas alternativas devem ser tomadas como pontos extremos de um continuum tendo, é claro, implicações profundas quanto à natureza do sistema político do país e ao seu futuro.
A marginalidade política do Estado econômico e demograficamente mais forte do país é, possivelmente, uma peculiaridade brasileira, que pode ser observada nos quadros 4 e 5. Apenas durante a República Velha (1889-1930) São Paulo teve voz mais ativa na formação do governo central no Brasil. A Revolução de 30 começou exatamente quando São Paulo tenta quebrar a aliança republicana com Minas Gerais e assumir a liderança a permanente.(21) Frustrado, faz uma nova e mais vigorosa tentativa em 1932, que teve como resultado o fracasso e o isolamento político do Estado por mais 30 anos. Só em 1960, com a eleição de Jânio Quadros, pôde São Paulo fazer um presidente porém um presidente de pouca duração, que inaugurou um período de instabilidade e levou ao regime militar de 1964.
Quadro 4. |
|||
% de votos para partidos |
% de votos de todo o Brasil no Estado |
||
Estado |
nacionais (1) |
regionais (2) |
|
SP |
42,0% |
58,0% |
18,0% |
MG |
87,2 |
12,8 |
15,0 |
RS |
81,9 |
18,1 |
10,0 |
RJ |
77,3 |
227 |
6,0 |
BA |
73,1 |
307 |
7,0 |
DF |
69,3 |
30,7 |
7,3 |
BRASIL |
71,7 |
28,3 |
100% |
(+) Calculado de Orlando M. de Carvalho, "Os Partidos Nacionais e Parlamentares de 1958". Revista Brasileira de Estudos Políticos, 8, abril da 1960, pp.18/19. (1)- PSD, PTB o UDN (2)- PSP, PR, PDC e 6 outros |
O quadro 4 toma uma eleição parlamentar típica, a de 1958, e compara a porcentagem de votos dada a partidos nacionais com os votos dados a partidos regionais, para os seis maiores Estados. São Paulo apresenta a variação mais significativa do padrão nacional, seguido não muito de perto pelo centro urbano do Rio de Janeiro. Os correlatos econômicos e demográficos desta marginalidade política podem ser vistos
Quadro 5. |
|
% do total em São Paulo: |
|
Demográficos: |
|
população (1960) |
18,3 |
Sociais: |
|
telefones ( 1966 ) |
39,2 |
veículos |
38,8 |
estradas federais pavimentadas |
18,4 |
bibliotecas populares e especializadas (1965) |
21,5 |
teatros e cinemas (1964) |
27,0 |
estações de radio (1966) |
26,7 |
circulação de jornais (1966) |
42,4 |
Econômicos: |
|
valor da produção industrial (1960) |
55,1 |
consumo de energia elétrica (1966) |
52, |
arrecadação de impostos federais (1966) |
41,3 |
FONTE: IBGE, Anuário Estatístico, 1965 a 1966 |
É bastante claro que não se pode compreender a história política brasileira se esta contradição entre os pólos econômico e político de desenvolvimento do país não é posta no centro da análise. Entretanto, a tendência tem sido ignorar esta dualidade, devido provavelmente à falta de uma estrutura teórica adequada para integrá-la.(22) Autores paulistas tendem a generalizar o que vêem em São Paulo como válido para todo o Brasil, apenas em um nível mais reduzido, enquanto outros vêem através da perspectiva do Rio ou de Minas Gerais, tendendo a ver a singularidade política de São Paulo como um fenômeno idiossincrático que não altera muito o quadro geral.(23) É de se admirar que esta dualidade, a característica mais importante do quadro geral, tenha sido negligenciada até hoje . A delimitação precisa desta dualidade e suas conseqüências são um campo praticamente virgem para a pesquisa, do qual apresentamos neste trabalho apenas alguma evidência preliminar.
Torna-se importante retornar ao período de consolidação do Estado brasileiro, no século XIX, para se compreender a evolução desta situação. O período colonial no Brasil pode ser visto como uma grande operação comercial do Estado português, que desenvolveu a administração colonial como um instrumento de controle desta atividade . É essencial para a compreensão do período acentuar "os laços que uniam os dois processos paralelos da expansão comercial e criação dos Estados do tipo moderno".(24) O que ainda é desconhecido é a forma pela qual esta estrutura burocrática reagia face às flutuações da economia lo período colonial . Celso Furtado sugere que a economia do açúcar no Nordeste só foi capaz de resistir às quedas de preço no mercado internacional pela retração de seu aspecto "externo", revertendo a um estado de auto-suficiência que é o que mais se aproximaria, no Brasil, de um sistema de tipo feudal.(25) Se isto é assim, o que ocorreu com as atividades administrativas e comerciais relacionadas com esta economia decadente? Os historiadores ainda estão por mostrá-lo, mas o mais provável é que o comércio tenha desaparecido ou se transferido, enquanto que a administração colonial se recolhia ao ritualismo burocrático ao qual a estrutura administrativa portuguesa, altamente centralizada e formalizada, tanto conduzia. O padrão da colonização ibérica na América parece-nos composto de dois movimentos típicos. Inicialmente, a administração proporciona todo tipo de facilidade à iniciativa privada, e isto tanto conduziu à prosperidade econômica quanto à dispersão do poder . Em um segundo momento, a administração aumenta seu papel, através de toda sorte de restrições e centralizações, levando a um conflito inevitável com os empresários particulares, os "criollos" na América espanhola.(26) A ironia da colonização portuguesa reside em que tais movimentos centralizadores tenderam a ocorrer em períodos de decadência econômica . Isto ocorreu com a economia do açúcar, certamente foi o caso da decadência da mineração em fins do século XVIII e ocorreu novamente na tentativa de restauração promovida pelas Cortes portuguesas. O resultado geral foi o estabelecimento de um Estado forte que está em defasagem constante com a economia; esta regularidade é ainda acentuada durante o período imperial do Brasil independente. O renascimento econômico do país na segunda metade do século XIX ocorre em uma área geográfica estranha às raízes políticas tradicionais do Estado, área esta que não está representada na política nacional até a queda do regime imperial em 1889. A tendência para a centralização política e autoridade hierárquica procede quase sem interrupção através do século, tendo como conseqüência a alienação política gradual dos setores dinâmicos da economia de exportação. As características essenciais do período que marcarão a evolução do país até os nossos dias são a centralização crescente, o aumento progressivo dos recursos de poder nas mãos do governo central, e também a alienação crescente da economia do café e os desenvolvimentos ligados a esta alienação.
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