Representação e Cooptação Politica no Brasil

Enviado por Simon Schwartzman


Publicado na Revista Dados, 7, 1970, pp. 9-41. O autor Agradece os comentários e criticas de Amaury de Souza, Bolívar Lamounier e Peter McDonough, além do interesse e debate incessante sobre os temas aqui discutidos com os alunos do IUPERJ, que também colaboraram neste volume.

Apresentação ao número especial da revista Dados sobre Sociedade e Estado (Dados 7, 1970)

O tema deste número trata das relações que se estabeleceram, no decurso da história política brasileira, entre o Estado e a sociedade. Os trabalhos reunidos são o resultado de uma experiência didática realizada com alunos curso de mestrado em Ciência Política e Sociologia do IUPERJ, em 1969, a orientação de Simon Schwartzman.

As incursões de sociólogos e cientistas políticos na seara da historiografia trazem consigo todos os inconvenientes e vantagens próprios deste tipo de transgressão. Leigo, o cientista social ignora muitas vezes autores consagrados, toma fontes secundárias por primárias, deixa de considerar teses, teorias e proposições freqüentes na literatura que não domina totalmente. Talvez por isto mesmo, entretanto estes parvenus podem as vezes propor novas interpretações, chamar a atenção para aspectos ignorados, fazer conexões entre fatos isolados ou, simplesmente, trazer a um novo contexto de discussão temas e proposições até então limitados ao especialista. Não há dúvida de que estes trabalhos padecem daqueles defeitos, mas é possível que tenham, também, algumas dessas qualidades.

Existe uma indagação teórica e um suposto metodológico que permeiam todos os trabalhos. A indagação teórica é a suscitada por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, a respeito do domínio total que seria exercido pelo Estado brasileiro, estruturado na forma de um "estamento burocrático", sob o sistema social, político e econômico do país, desde os primórdios do período colonial. Esta tese impressiona pela força da evidência que a acompanha, e ao mesmo tempo perturba, principalmente quando estamos acostumados a pensar o Estado e a política como resultantes mais ou menos diretos de processos sócio-econômicos básicos. Este problema é discutido, em nível teórico, no início dos três primeiros artigos, evidenciando, entre outras coisas, como diversas orientações teóricas podem chegar a visões similares de um mesmo fenômeno.

O suposto metodológico implica a busca de dados quantitativos. O interesse pela quantificação não deriva, como muitas vezes se supõe, de um esforço para precisar e refinar a informação sobre um fato ou objeto já conhecido. O objetivo principal da quantificação é pesquisar a existência de tendências e relações entre fatos que só em termos globais podem ser apreendidos, e que escapam à historiografia tradicional que se desenvolve à luz do estudo de personalidades e de estruturas jurídico-formais. O desenvolvimento das técnicas de quantificação em ciências sociais, a partir, principalmente, da Segunda Guerra, veio associado à metodologia de "survey" e ao estudo de sociedades nacionais complexas. Os anos sessenta trouxeram, no entanto, a noção de que a análise sistemática de dados sócio-econômicos referidos a sociedades complexas pode levar ao conhecimento de processos globais só acessíveis, anteriormente, por via intuitiva e ensaística. Precisão e refinamento são conseqüências posteriores de melhores dados e melhores teorias, mas o suposto essencial é que não há porque exigir dados melhores que os conceitos, e, neste momento, existe ainda um campo imenso a explorar com materiais sistemáticos que hoje dormem em nossos arquivos e bibliotecas.

O seminário que deu origem a estes estudos foi estruturado em torno de três temas - transição, desenvolvimento do Estado, desenvolvimento da sociedade civil - e dois períodos históricos - o Império e a República Velha. O resultado, aqui apresentado parcialmente, deve ser apreciado menos em seu detalhe que em seu conjunto, pelos temas, problemas e perspectivas e linhas de estudo que porventura sugira. Apesar da unidade temática e dos esforços de integração teórica, cada trabalho deve ser visto como autônomo.

Os artigos foram distribuídos da seguinte forma:

Simon Schwartzman

"Representação e Cooptação Política no Brasil"

Período Colonial: Fernando José Leite Costa

"Processo de Diferenciação na Sociedade Colonial"

Império: Lúcia Maria Gaspar Gomes e Olavo Brasil de Lima Jr..

"Atores Políticos do Império"

Transição: Maria Antonieta de A. Parahyba

Abertura Social e Participação Política no Brasil" (1970 a 1920)

Transição: Nancy Aléssio

"Urbanização, Industrialização e Estrutura Ocupacional"

Transição: Irene Maria Magalhães

"Antecedentes da República: Intervencionismo: militar e legitimidade" (publicado como nota de pesquisa)

Revolução de Trinta: Celina do Amaral Peixoto M. Franco, Lúcia Lippi de Oliveira e Maria Aparecida Alves Hime

"O contexto político da Revolução de Trinta'

Os trabalhos de Hélio Mathias - "A Sociedade Civil no Império: Crescimento da População", Vera Maria Pereira - "Independência e subordinação da economia" e Renato Raul Boschi - "O Estado e a Sociedade na República Velha: uma análise de tendências orçamentárias", que não puderam ser incluídos neste número, serão publicados e divulgados como Documento de Trabalho do IUPERJ e poderão ser solicitados à instituição. Nem todo o material quantitativo recolhido foi' utilizado nas análises aqui apresentadas, e grande parte dele encontra-se reunida em documento de trabalho lho do IUPERJ com o título de "Subsídios para o estudo da História Político Social Brasileira", a ser divulgado proximamente.

Representação e Cooptação Politica no Brasil

"Os reinos conhecidos pela história têm sido governados de duas formas. Pelo Príncipe e seus servos, que, como ministros por sua graça e permissão, o assistem no governo de seus domínios; ou por um príncipe e seus barões, que ocupam posições não pelo favor do governante, mas pela antiguidade do sangue". Machiavel, O Príncipe.

Introdução: um modelo analítico - Estado e Sociedade

Reinhard Bendix chama a atenção, em trabalho recente, para duas linhas de pensamento que se vêm alternando na história da teoria política desde, pelo menos, Machiavel(1).Uma delas, a mais antiga, tem no próprio Machiavel seu representante, e entende os fenômenos políticos como decorrentes das habilidades e virtudes do chefe político: o Príncipe. Em sua forma mais geral esta tradição percebe o Estado como sintetizando e realizando a vontade e os objetivos de toda a sociedade, que a ele se subordina. A outra tradição parece adquirir sua explicitação mais clara em Rousseau, para quem as atividades do Estado se fazem por delegação explícita e delimitada por um contrato social Se a noção de um contrato social não tem mais que um sentido ideológico e normativo (Rousseau trata na realidade, de estabelecer limites de legítimação ao Estado), permanece sem embargo a idéia dc que a politica se faz em função de interesses e propósitos de grupos dentro da sociedade Alterada a ordem causal, passa se à discussão de que grupos dentro da sociedade têm mais ou menos capacidade de orientar o Estado para a satisfação de seus interesses e objetivos. Em Hegel já é nítida a separação entre Estado e Sociedade Civil, esta correspondendo ao Estado de necessidade e aquele encarnando a unidade da vontade geral, da vida política.(2) A crítica de Marx a Hegel, que terá influência predominante no pensamento social daí por diante, diz que o Estado, na realidade, não encarna a vontade geral, mas realiza a vontade particular dos membros da burocracia(3). Esta particularização do geral é função, na sociedade capitalista, do sistema de propriedade privada, e daí à identificação entre os interesses do Estado e os da classe dominante é um passo(4) A tradição intelectual que deriva desta crítica tende a negar autonomia aos motivos políticos, explicando-os por suas implicações econômicas, assim como às ações que decorrem do Estado, explicando-as por seus fundamentos de classe.(5)

Mas Bendix assinala, na realidade, uma terceira alternativa, também presente na citação em epígrafe de Machiavel. Se a fórmula do "Príncipe e seus servos" corresponde a um modelo de autonomia do Estado, o modelo alternativo, do "Príncipe e seus barões", não corresponde a um modelo puramente contratual. Os direitos do Príncipe não emanam dos barões, mas têm origem independente e são apenas limitados pelas posições ocupadas "pela antiguidade do sangue". Seja por uma fonte autônoma de legitimação (quando o Príncipe, por exemplo, é um primus inter pares) ou pelo desenvolvimento de fenômenos de "particularização do geral" pelas estruturas burocráticas em sociedades complexas, o fato é que coexistem, em todos os sistemas sociais, sistemas de interesse que tratam de orientar e delimitar a ação do Estado, e uma autonomia mais ou menos significativa do Estado que trata de influenciar a vida da sociedade civil. Esta dualidade não é, meramente, de tipo funcional, o Estado incorporando as funções do sistema político referidas às relações verticais de autoridade e dominação, e a sociedade civil corporificando as relações horizontais de solidariedade e comunidade de interesses O que se passa, exatamente, é que relações de solidariedade se desenvolvem dentro das estruturas de autoridade, e relações de autoridade se desenvolvem dentro das estruturas de solidariedade, e é isso que torna a pesquisa empírica necessária e insubstituível. As características do Estado não podem ser deduzidas a partir da estrutura de classes, assim como estas não derivam de um sistema jurídico ou de poder dado.(6) A relativa autonomia de cada um, e depois suas interações, são o objeto central dos trabalhos aqui reunidos, para o caso do Brasil.

A análise das relações entre Estado e Sociedade é não somente importante, mas constitui a própria caracterização da ciência política como disciplina. Um estudo do crescimento e diferenciação das estruturas burocráticas e de serviços de um Estado só deixa de ser um estudo jurídico e/ou administrativo e passa a ser político quando se analisam as relações entre estas estruturas e suas mudanças e outros setores da sociedade, como por exemplo a economia. A distinção entre a preponderância das estruturas de governo e a preponderância das estruturas de organização sócio-econômica de tipo autônomo levou David Apter à distinção entre sistemas de autoridade hierárquicos (que incluem sistemas políticos de mobilização e burocráticos) e piramidais (compreendendo os sistemas teocráticos e de reconciliação).(7) Se passamos, no entanto, à consideração das formas de participação política mais típicas de cada uma destas alternativas, veremos que os termos representação e cooptação parecem ser de grande utilidade.

Com efeito, é possível pensar em sistemas sociais autônomos que desenvolvem seus recursos econômicos e institucionalizam e desenvolvem suas estruturas de interação social, de produção e difusão de símbolos e pautas culturais e educativas, tudo isto de forma independente do sistema de poder. Estas sociedades tratarão, tanto quanto possível, de subordinar o sistema de poder aos seus interesses (ou aos interesses dos setores que nelas dominam), ou, quando isto não for possível, de se fazer presentes quando decisões que lhes sejam vitais devam ser tomadas. O conceito de representação corresponde bem a este tipo de articulação de interesses e vontades de baixo para cima, buscando influenciar, dirigir ou mesmo comandar.

Entretanto é bem distinta a situação em que o Estado prepondera, a atividade econômica, a criatividade cultural, o sistema educativo, tudo dependendo de seu beneplácito, incentivo e direção. Nessa situação a participação politica não se faz pôr representação de interesses junto ao Estado mas antes, como bem o diz Apter, por "representação do Estado junto aos diversos setores da sociedade".(8) Dono da iniciativa, o Estado tem condições de promover a participação de uns e reduzir a de outros, e a participação mais eficaz não será mais aquela que melhor possa articular-se para reivindicações junto ao Estado, e sim aquela que melhor consiga se aninhar no interior da própria máquina governamental. A participação se faz por iniciativa superior, a "representação sem tributação" a que se refere Torcuato S. Di Tella, em forte contraste com o tipo anterior.(9) A esta participação essencialmente situacionista, dependente, corresponde bem o termo "cooptação".

A vantagem destes dois termos, no sentido aqui exposto, é que eles não se referem a um sistema de governo e autoridade, ou a um sistema político em sentido amplo, mas sim a formas específicas de participação na vida pública. Um regime político autoritário e hierárquico geraria somente formas de participação por cooptação ("o Príncipe c seus servos"), enquanto que um regime piramidal e aberto seria baseado em representação. Mas as formas mistas ("o Príncipe c seus barões") são as mais interessantes e relevantes historicamente, cabendo, então, o estudo dos determinantes destes diferentes tipos de participação, sua evolução c inter-relações.

 


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