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A capacidade de difundir informações de modo barato e quase instantâneo pelo mundo não parece estar levando somente a uma melhor distribuição da competência científica, mas também à sua crescente concentração. O fenômeno é semelhante ao que ocorre quando novas estradas ligam cidades modernas e centrais a áreas e regiões periféricas. Os mais capazes deixam as suas regiões, as velhas lideranças perdem o prestígio, a indústria local é sufocada pelos produtos de massa que chegam por caminhão. O processo não é irreversível, já que, com as facilidades de comunicação, o próprio conceito de "periferia" pode perder sentido. A globalização é extremamente eficaz na destruição da cultura e da organização locais, mas é bastante incerta em sua capacidade de substitui-las com alternativas verdadeiramente universais.
Um aspecto deste processo é a coexistência entre processos de estandardização, requeridos pelos fluxos globais de informação, e as tendências à diversificação, facilitadas pela crescente disponibilidade de meios alternativos. Isto fica especialmente claro na indústria editorial e nos meios de comunicação. A indústria editorial depende hoje de uns poucos best sellers que são vendidos aos milhões através de canais padronizados e sustentados por uma publicidade elaborada e dispendiosa. Jornais locais são coisa do passado, sendo substituídos pelas revistas nacionais e internacionais; o mesmo ocorre com o rádio e a televisão, substituídas pelas redes nacionais e até mesmo globais. Não só o número de best sellers, jornais e revistas é pequeno, como eles tendem a se limitar a uma estreita faixa de temas, questões e personalidades, criando assim um mundo muito restrito e provinciano em escala global.
A tecnologia da moderna comunicação, contudo, também está estimulando uma tendência oposta. Os computadores pessoais tornaram a edição em pequena escala uma atividade simples e acessível, a televisão por satélite e cabo ameaça ambas as extremidades do monopólio das redes nacionais de TV, e os baixos custos da comunicação permitem fluxos simultâneos em todas as direções. Seria possível imaginar que atual tendência à concentração e crescimento assimétrico esteja sendo substituída por uma nova tendência à diversificação e à complexidade crescentes. O mais provável, no entanto, é que as duas tendências vejam a coexistir como faces da mesma moeda: de um lado, comunidades pequenas mas cada vez mais complexas e diversificadas de produtores de moderna tecnologia e consumidores de seus produtos mais sofisticados; do outro lado, consumidores de produtos 'empacotados'.
O modo pelo qual essa transformação está afetando a ciência e a tecnologia ainda não foi suficientemente explorado, mas também aqui devem ocorrer paradoxos. Com a recente explosão das redes de computadores, é quase tão fácil trabalhar com informação de primeira linha e equipamento computadorizado na América Latina quanto na Ásia ou em Boston, e projetos de cooperação estão hoje muito mais livres das limitações geográficas do que antes. A ausência de boas livrarias e jornais, um problema crônico nas regiões menos desenvolvidas, tende a deixar de ser importante, à medida que o acesso à distância de bancos integrados de dados e as transmissões por fax se tornam mais baratas. Para os cientistas que deixarem suas instituições e laboratórios para trabalhar em regiões distantes, o trabalho pode continuar como se eles não tivessem partido, porque seu laboratório, na prática, passa a ser o mundo. Para cientistas e tecnólogos de instituições e áreas periféricas, entretanto, os efeitos dessa mudança podem ser catastróficos. Eles não terão desculpas para trabalhar em sua língua nativa, ou em assuntos diferentes daqueles que atraem a atenção dos colegas dos principais centros. Eles serão comparados com seus pares nesses centros, e não com os seus pares em sua instituição ou região de origem. Haverá menos razões para difundir os recursos humanos e técnicos geograficamente. A concentração do conhecimento e da competência científica poderá crescer em proporções extraordinárias, levando instituições de pesquisa inteiras e gerações de cientistas à obsolescência.
Capacitação e desqualificação do trabalho
Os complexos produtos da moderna tecnologia se apresentam de forma cada vez mais simples não só para o comprador final de bens de consumo (tudo funciona com o aperto de um botão), mas, em muitos casos, também para o trabalhador da linha de montagem. Há duas interpretações opostas dessa tendência. Uma é a teoria do deskill, ou da desqualificação do trabalho: ela afirma que, na medida em que a intensidade de conhecimento aumenta, o trabalhador se desqualifica, já que o conhecimento fica "corporificado" nos equipamentos e apropriado por um grupo restrito de engenheiros especializados. A evidência disso seria o crescimento da utilização de trabalhadores disciplinados e baratos (em geral mulheres) nas linhas de montagem de países menos desenvolvidos para a produção de produtos eletrônicos e bens de consumo de alta tecnologia.
A interpretação oposta sustenta que a desqualificação foi uma característica da revolução industrial das primeiras décadas deste século, caracterizada pelo trabalho repetitivo nas linhas de montagem. Hoje, no entanto, a produção industrial requereria pessoas melhor instruídas e treinadas, aptas a compreender e a desempenhar seu trabalho de maneira integral, e não segmentada. Nesta interpretação, estaríamos vivendo uma nova revolução industrial que tenderia a recuperar, em um outro nível, a tradição de competência artesanal que foi perdida com as linhas de montagem. O trabalhador moderno deveria ter, sobretudo, habilidades de genéricas (entender o que lê, escrever, fazer as operações matemáticas básicas, entender a sociedade em que vive). A automação tenderia, não a aumentar o uso do trabalhador desqualificado, mas a eliminá-lo totalmente, concentrando a produção, e a riqueza, naquelas sociedades capazes de incorporar trabalho qualificado em todos os níveis do processo produtivo.
Na realidade, pareceria que não existe um determinismo tecnológico absoluto a este respeito (Joravsky, 1989). As tecnologias modernas podem tanto desqualificar o trabalhador (a automação bancária, por exemplo, que banaliza os trabalhos dos caixas de banco), como se apoiar na dedicação, diligência e competência dos trabalhadores em utilizar instrumentos e procedimentos complexos (as modernas indústrias automobilísticas). Tudo depende, em grande parte, da existência de uma população educada e capaz de se incorporar ao processo produtivo em determinada região ou país, que tenderá a concentrar os processos produtivos mais complexos e intensivos de trabalho qualificado. A conseqüência é uma divisão de trabalho que já está acontecendo entre as nações e regiões com alta tecnologia e o resto do mundo, com as tarefas mais complexas (e mais rendosas) reservadas para os primeiros e as tarefas rotineiras (e mais baratas) cabendo aos segundos. A automação, contudo, reduz a necessidade do trabalho disciplinado e não qualificado, deixando as regiões de baixa tecnologia como meros consumidores - mas sem a renda para pagar pelos produtos. A moderna ciência e a tecnologia são compatíveis tanto com uma população qualificada por um sistema educacional que proporciona as habilidades gerais necessárias para a manipulação dos serviços e equipamentos modernos, e o uso complexo e sofisticado de seus produtos, como com consumidores de produtos empacotados, que só aprendem a apertar botões, e não adquirem as qualificações necessárias para os trabalhos complexos. Mas os resultados não são idênticos, já que os primeiros tenderão a concentrar a riqueza e os benefícios das modernas tecnologias, alijando aqueles que não conseguirem fazer a transição para os novos tempos (Porter, 1990).
Investimentos crescentes e recursos minguantes
As transformações descritas acima coincidem com uma crise generalizada do "welfare state", o estado protetor e beneficiente, que não parece depender somente da riqueza relativa de cada país. Em níveis diferentes, mas por volta da mesma época na década de 1980, a maioria dos países parece ter exaurido sua capacidade de aumentar a transferência de recursos do setor produtivo para áreas como educação, saúde, aposentadorias e pesquisa de longo prazo. Isto parece contradizer a noção de que a ciência e a tecnologia são mais importantes hoje do que nunca, e estão recebendo cada vez maiores porções de recursos, pelo menos nos principais países industrializados.
Duas tendências principais explicam essa possível discrepância. A primeira é que investimentos em C&T tendem a ser dirigidos cada vez mais para o setor industrial, e aplicados por indústrias e governos fora das instituições científicas tradicionais como universidades e centros de pesquisa básica. A segunda é que, nas ciências básicas, há uma concentração crescente de recursos em poucos projetos, porém extremamente amplos. Uma recente pesquisa pela Science sobre as perspectivas das carreiras científicas nos EUA para a próxima década apontou uma pressão constante para concentrar recursos em áreas definidas de acordo com sua relevância social e econômica - pesquisa industrial, militar e educacional-, que são percebidas por muitos como uma ameaça às possibilidades científicas do país a longo termo (Hodlden, 1991). Esta busca de resultados práticos coincide com concentração dos investimentos em ciências básicas em um número reduzido de grandes projetos, nos campos da física de altas energias, da exploração espacial e da biotecnologia. A projeção é que, nos EUA, se os gastos em C&T crescerem em cerca de 3% ao ano na próxima década, apenas quatro grandes projetos absorverão todo o aumento - o Superconducting Collider, o projeto de mapeamento do genoma humano e dois projetos da NASA (a estação espacial e um sistema de monitoramento terrestre). Um efeito lateral é a 'coletivização' da atividade científica, que é percebida por muitos como uma ameaça à capacidade de inovação das lideranças individuais e dos pequenos grupos, e um desestímulo ao ingresso de estudantes bem dotados e promissores nas carreiras científicas.
Saindo das universidades e retornando a elas.
O predomínio da pesquisa aplicada e dos laboratórios de grande porte torna cada vez mais difícil à ciência moderna permanecer confinada a departamentos universitários, centros acadêmicos, institutos governamentais e mesmo laboratórios industriais isolados. A época atual se caracteriza por novos arranjos institucionais, ligando governo, indústria, universidades e grupos de consultoria privados de várias formas. Países com uma tradição de pesquisa universitária sentem que temem que ela esteja sendo ameaçada pela intromissão da indústria e pela mentalidade do lucro; países com forte tradição de pesquisa não universitária sentem a necessidade de aproximar suas instituições de pesquisa ao meio acadêmico, como forma de permanecer em dia com inovação e competitividade intelectual (Hague, 1991).
A educação também passa por inovações importantes, que começam a colocar em questão os sistemas de ensino tradicional. Ao lado do ensino formal, desenvolveu-se uma grande indústria da educação e do conhecimento, que responde de modo muito mais direto, e em geral mais eficaz, às necessidades da indústria e do mercado de trabalho, e conduz à corrosão do monopólio de que as universidades desfrutaram na difusão do conhecimento e no fornecimento de credenciais de ensino no setor privado. Uma recente matéria publicada pelo Wall Street Journal indica que as companhias americanas estão gastando cerca de 30 bilhões de dólares por ano em educação, um valor que provavelmente subirá, uma vez que ainda atinge apenas 1,5% do total das folhas de pagamento e envolve somente 10% da força de trabalho, e que a IBM sozinha gastou cerca de 270 milhões de dólares, ou 9% de seu lucro, em treinamento, em 1989 (Wall Street Journal, 1990).
Políticas governamentais e iniciativa privada
O papel cada vez maior da pesquisa aplicada e industrial, e o desenvolvimento de uma gigantesca indústria do conhecimento, levaram muitos a concluir que o apoio público à ciência, tecnologia e mesmo educação é coisa do passado, a ser substituído pela iniciativa privada. A realidade é muito mais complexa.
A primeira evidência vem do Japão e dos "Tigres Asiáticos", incluindo Coréia, Cingapura e Taiwan. (Bradford, 1984). Esses países costumam ser apresentados como casos de êxito do livre mercado e da competição, em contraste com as dificuldades encontradas das economias centralizadas conduzidas pelo Estado. Em contraste com os Tigres Asiáticos, o Brasil é citado com freqüência como exemplo de país que falhou em seu esforço de desenvolvimento por excesso de interferência estatal na economia. Até o final da década de 1970, o Brasil tinha uma das taxas de crescimento econômico mais elevadas do mundo, e sua capacidade, desde o início da década de 1980, de gerar enormes superavits comerciais para pagar sua dívida externa pode ser creditada aos ambiciosos programas de governo dos anos 70, voltados para o desenvolvimento industrial e tecnológico e para a modernização. Há um debate em curso sobre as razões da crise e da estagnação dos anos 80, e as explicações vão desde a exaustão do esforço de substituição de importações da década anterior às limitações econômicas impostas pela dívida externa, ou às conseqüências dos investimentos faraônicos e da inchação da burocracia perdulária que se processaram durante duas décadas de regime militar. Não há sinais, contudo, de que o setor privado sozinho seja capaz de tomar o lugar do Estado no esforço para o reajustamento econômico, na modernização industrial, na qualificação científica e tecnológica e na educação.
A análise mais aprofundada do caso dos países asiáticos mostra, no entanto, não o afastamento do Estado das atividades de desenvolvimento industrial e tecnológico, mas, ao contrário, um envolvimento governamental muito mais forte e decisivo do que o que jamais pode ser feito no Brasil (Rusing e Brown, 1986). Existem pelos menos quatro diferenças importantes, no entanto, que costumam ser assinaladas. A primeira é que a ação governamental nos países asiáticos não se deu pela constituição de um grande conjunto de empresas estatais, como no Brasil, e sim pela associação entre o Estado e o setor privado. Segundo, naqueles países, as políticas de desenvolvimento industrial e tecnológico se pautaram sempre por claras considerações macroeconômicas, voltadas sobretudo para a obtenção de competitividade nos mercados internacionais. Terceiro, o desenvolvimento da capacidade inovativa nas indústrias se deu a partir da produção de componentes simples, que foram gradualmente se sofisticando. E quarto, o fortalecimento de indústrias nacionais não se fez pela exclusão de firmas e tecnologias estrangeiras, mas a partir de associações com elas. É exatamente o contrário do que o Brasil tentou fazer na área de informática, criando empresas estatais, como a Cobra, garantindo preços internos irrealistas pelo fechamento do mercado, tentando começar pelo produto final, o computador (com a idéia de ir nacionalizando aos poucos os componentes) e impedindo a presença das firmas e tecnologias de outros países.
O Brasil é muitas vezes comparado com a França, um país que ficou em defasagem em algumas das tentativas dirigidas pelo Estado para vencer sua defasagem na competição internacional, na área de computadores, fabricação de automóveis e produtos eletrônicos, entre outros. No entanto, alguns dos projetos dirigidos pelo governo francês constituem casos de sucesso inquestionável, tanto do ponto de vista econômico como tecnológico, como o trem de alta velocidade (TGV), o programa de energia nuclear, o setor telecomunicações e a indústria aeronáutica. Estes sucessos são explicados pela excepcional competência técnica da administração pública francesa, pela existência de uma força de trabalho altamente experiente, e pela coexistência com um setor privado competente e eficiente. No entanto, existe bastante consenso, hoje, que o modelo francês de desenvolvimento industrial nacionalizado está em crise. O exemplo francês, como o dos Tigres Asiáticos, confirma que o Estado tem um papel importante a desempenhar na modernização industrial e tecnológica, mas que este papel não pode se resumir aos supostos do nacionalismo tradicional (Brickman, 1986).
Políticas de ciência e tecnologia: realidades complexas, mitos simples
As antinomias discutidas nos parágrafos acima colocam em questão muitas das suposições tradicionais a respeito das políticas nacionais e internacionais para ciência e tecnologia. A Segunda Guerra Mundial consolidou a crença na importância da ciência, não só para ganhar guerras, mas também para gerar dividendos na paz. Depois da guerra, a pesquisa científica parecia ser uma cornucópia aberta a todos os países, e conselhos científicos foram criados em toda parte, freqüentemente com apoio e incentivo das Nações Unidas, agências nacionais de assistência externa e fundações privadas nos países industrializados. Supunha-se que, com instituições científicas funcionando e educação científica adequada, todos os países poderiam participais em bases relativamente iguais dos benefícios da ciência e da tecnologia modernas. O que testemunhamos nos últimos dez ou vinte anos é que esta suposição não se agüenta mais em pé. Não se trata apenas de que a maioria dos países do Terceiro Mundo falharam em sua tentativa de construir instituições modernas, de alta qualidade científica; mas até mesmo países relativamente bem desenvolvidos e com a população bem educada (como os da Europa e, naturalmente, os do bloco socialista) começaram a perceber que seu patrimônio científico e tecnológico estava se tornando obsoleto. Não está claro se os recentes esforços para ampliar os investimentos em C&T e para estabelecer redes de cooperação internacional na Europa Ocidental serão suficientes para que ela acompanhe os Estados Unidos e o Japão; o que é certo é que nenhum outro país ou região consegue acompanhá-los.
Na medida em que a natureza complexa e contraditória da ciência e da tecnologia contemporâneas se revela, elas gera, em um outro paradoxo, propostas de políticas públicas que tendem à simplicidade extrema, se não ao simplismo. Não é difícil compreender porquê. Sociedades que tiveram sucesso na construção de suas instituições científicas e tecnológicas realizaram isso de uma maneira não planejada, dentro de um amplo movimento de crescente educação, industrialização e desenvolvimento da competência científica e tecnológica. A confiança nos valores da ciência e do saber era tácita e as atividades científicas, tecnológicas e educacionais foram mais ou menos deixadas para os cientistas, engenheiros e educadores, que discutiam com o governo os recursos de que necessitavam, em troca dos produtos que achavam que podiam entregar. Aqui, uma vez mais, a ciência e a tecnologia modernas desenvolveram uma das suas muitas faces duplas. Uma para a sociedade como um todo, clamando seu desinteresse por assuntos de lucro e de governo, e seus benefícios a longo prazo, como fontes de conhecimento para a indústria e para as profissões liberais. Outra para as autoridades governamentais e círculos políticos internos, oferecendo respostas de curto prazo para complexos problemas econômicos e sociais, e negociando junto às agências governamentais por recursos crescentes. Foi possível continuar com essas duas faces enquanto havia confiança geral nos benefícios da ciência e da tecnologia, e o alto prestígio dos cientistas garantia para elas os ouvidos e os bolsos dos responsáveis pelo dinheiro público. As comunidades científicas (e em menor grau os tecnólogos) podiam se desenvolver ajustando-se gradualmente às circunstâncias externas, sem perder sua capacidade de decidir com independência aquilo que deveria ser feito, e em que direção estavam indo. Quando este delicado equilíbrio entre duas faces contraditórias foi ameaçado, a ciência ficou em desvantagem. Na União Soviética e nos países socialistas, as ciências sociais morreram sufocadas pelo abraço apertado do partido e do governo, e as ciências naturais também retrocederam. Várias países semi-industrializados tentaram desenvolver ciência e tecnologia sob uma íntima supervisão governamental e com propósitos militares, ou, no outro extremo, acreditaram ingenuamente no desinteresse e na bondade natural da ciência básica para com suas sociedades, e nenhum desses extremos funcionou bem.
A novidade das décadas de 1980 e 1990 é que está se tornando impossível manter essa face dupla, mesmo nos países capitalistas industrializados. Há muito dinheiro envolvido, os riscos e benefícios da moderna tecnologia são grandes demais, há competidores em excesso, e o mito idílico da Ciência Pura sofreu um dano irrecuperável, tanto pela investida da crítica social e intelectual, quando pela evidência cada vez mais clara de suas possíveis deficiências e disfunções. Um exame mais detalhado das experiências passadas mostrará que os países que conseguiram manter políticas complexas, multifacetadas e pragmáticas para ciência e tecnologia e desenvolvimento industrial foram mais bem sucedidas do que aqueles que tentaram traçar projetos ambiciosos e abrangentes, de longo alcance.
As discussões sobre o que pode ser feito para recuperar o crescente desequilíbrio entre o centro e a periferia em ciência e tecnologia estão permeada por uma série de suposições contraditórias, as quais, por falta de evidências adequadas, podem ser consideradas como mitos. Podemos chamá-los de 'mitos do passado' e 'mitos do presente'.
Os mitos do passado consistem em negar as realidades e as implicações das mudanças em curso. Em alguns casos, estes mitos surgem como uma nostalgia pela universidade de elite, despedaçada em todo o mundo pelas ramificações do movimento estudantil de 1968, e pelos centros de pesquisa independentes e de alta qualidade, hoje ameaçados por cortes de orçamento e exigências míopes de 'relevância'. Nas universidades, aumenta a críticas às experiências reformistas pós-68, e a defesa de uma volta aos currículos mais tradicionais e aos princípios de hierarquia intelectual. Na ciência e na tecnologia, criticam-se as tentativas de deslocar a pesquisa da academia e atrelá-la aos negócios e às agências do governo. Em países do Terceiro Mundo, que nunca atingiram os níveis de excelência da universidade tradicional e da pesquisa básica convencional, existe a sensação de que estes objetivos ainda são os únicos a serem buscados, apesar de desvios momentâneos por circunstâncias políticas e econômicas de curto prazo. Se apenas tivessem os recursos, logo estariam como a Europa - mas a do início dos anos 60.
Os mitos do futuro tendem a ser radicais, sejam catastróficos ou românticos e utópicos. A veia utópica está mais em voga. É uma crença na nova era do progresso, do desenvolvimento econômico e da paz, trazida pela destituição do socialismo, pelo fim da guerra fria e pelos progressos da ciência e da tecnologia. Os otimistas aceitariam que há, naturalmente, aqueles que ainda não viram a luz, e países que ainda precisam se desembaraçar das ilusões acerca do planejamento central, do papel do Estado, da cultura e da ideologia. Mas eles acreditam que esses povos e países eventualmente recuperarão a consciência e se unirão à onda da nova ordem internacional. Os pessimistas vêem apenas as contradições, a emergência do nacionalismo e do racismo, a difusão da cultura de massa, a vitória do irracionalismo e a instauração do pós-modernismo.
A razão pela qual as questões tão complexas como as da ciência e tecnologia tendem a ser tratadas de forma tão simples e extremada é que os problemas e oportunidades gerados pelos novos conhecimentos são de tal monta, no mundo moderno, que eles transcendem a órbita dos especialistas e das decisões de gabinete, e tendem a entrar no mundo da política e dos grandes interesses, sob o olhar atento dos meios de comunicação de massas. Quando isto ocorre, desaparecem as cores cinzas, em benefício do branco e negro, ou das cores fortes. Esta é uma dificuldade, mas também uma oportunidade importante. É difícil, mas necessário, preservar um espaço para decisões refletidas, ponderadas e bem avaliadas sobre a área da ciência, tecnologia e da educação como um todo, onde as ambigüidades são muitas, e a pressão por posicionamentos bombásticos e radicais é intensa. A exposição crescente destas questões ao escrutínio da opinião pública, através da imprensa, dos partidos políticos e dos movimentos sociais deve ser vista também como um sinal da importância crescente destes temas, e uma garantia de que, bem conduzidos, eles poderão encontrar na sociedade o eco e o apoio de que necessitam.
Referências:
Basalla, George, 1989 - The Evolution of Technology, Cambridge University Press
Bradford, Colin I., Jr, 1984 - "The NICs: Confronting U.S. 'Autonomy' ", in
Richard E. Feinberg and Valeriana Kallab, editors, Adjustment Crisis in the Third World, Washington, Overseas Development Council, 1984.
Brickman, Ronald, 1986 - "France", in Rushing and Brown, 1986.
Hague, Sir Douglas, 1991 - Beyond Universities - A New Republic of the Intellect, London, The Institute of Economic Affairs, Hobart Paper 115.
Holden, Constance, 1991 - "Careers in Science", Science, 252: 1110-1147, May 21.
Joravsky, David, 1989 - "Machine Dreams", The New York Review of Books XXXVI, 19 (December 7, 11-15.
Porter, Michael E., 1990 - The Competitive Advantage of Nations, New York, The Free Press.
Rushing, Francis W. and Carole Ganz Brown, 1986 - National Policies for Developing High Technology Industries -International Comparisons. (Boulder and London: Westview Special Studies in Science, Technology and Public Policy.
Wall Street Journal, 1990 - "Education: The Knowledge Gap", The Wall Street Journal Reports, The Wall Street Journal, February 9, 1990.
*Publicado inicialmente em Ciência Hoje,e incorporado em Michael Gibbons,Camille Limoges, Helga Nowotny, Simon Schwartzman, Peter Scott e Martin Trow, The New Production of Knowledge - The dynamics of science and research in contemporary societies, London, Thousand Oaks e New Delhi, Sage Publications, 1994. Incluído em A Redescoberta da Cultura, São Paulo, EDUSP, 1997.
Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon
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