Nunca é demais lembrar uma frase sábia de um desses – mil perdões, mas o nome me escapa agora – técnicos de futebol, mais experientes do que diplomados, que não cansava de repetir a seus pupilos: "treino é treino, jogo é jogo". Pois bem, isso se aplica, mutatis mutandis, à presente conjuntura de transição política, na qual uma velha maioria começa a ser substituída por uma nova, colocando a representação eleita da população em compasso mais afirmado com sua verdadeira maioria sociológica.
O exercício do poder, seja no Executivo, seja na Legislatura ou mesmo nas muitas instâncias estaduais e locais que passaram pelo terremoto da mudança paradigmática, exige uma série de qualidades administrativas que vão além da retórica eleitoral e muito além, isso também parece claro, das simulações mais ou menos impressionistas que são feitas nos programas de campanha e mesmo nas diretrizes programáticas para "uma nova realidade". Como deve ser evidente a qualquer pessoa medianamente instruída, não basta proclamar que "um outro mundo é possível", que "uma outra América idem" ou que "as mudanças estão ao alcance da mão", para que esse mesmo mundo, como num passe de mágica, bata à porta no dia seguinte ao da posse. O papel aceita tudo, microfones idem, mas a realidade, esta é um pouquinho mais teimosa e renitente em se dobrar à nova vontade de poder das maiorias recém assumidas.
Em primeiro lugar, existe a inércia natural dos grandes corpos paquidérmicos, como podem ser as burocracias estatais e suas legiões de funcionários e suas selvas de regulamentos – e leis, não esquecer – que tornam difícil implementar, num estalar de dedos, a famosa ruptura prometida. Geralmente se tem de avançar aos poucos, segundo o ritmo da representação parlamentar, que ainda permanece a instância regulatória por excelência em democracias.
Em segundo lugar, surge como obstáculo a proverbial falta de meios, uma vez que orçamentos são limitados e as necessidades são incomensuráveis, sobretudo em direção daqueles que mais necessitam. Aqui também os grandes projetos e os brilhantes ideais têm de se ajustar à realidade dos números, a menos que se queira financiar o programa anunciado pela via inflacionária, o que é sempre possível mas não recomendável, em vista da experiência histórica brasileira e seus efeitos sobre aqueles, justamente, que se pensa poupar dos aspectos mais dolorosos do novo "ajuste social e político".
Em terceiro e mais importante lugar, se situa, não algum problema operacional qualquer, mas mais propriamente uma atitude, uma visão do mundo, uma determinada concepção de como devem ser conduzidos os "negócios públicos", que um filósofo da USP chamaria de "Weltanschauung" da nova maioria. Creio, pessoalmente, que esta dimensão é mais importante até do que as duas primeiras, que parecem ser meramente instrumentais, ou pelo menos dependentes de "arranjos técnicos" na máquina do Estado, seja no plano institucional-burocrático, seja no dos recursos financeiros. Antes de transformar o mundo, como proclama, de maneira otimista, a décima-primeira tese sobre Feuerbach, seria preciso, pelo menos, interpretá-lo corretamente, o que nem sempre está garantido nos velhos manuais de economia política.
Por isso, tenho esforçado-me, nesta série sobre as "conseqüências econômicas da vitória" – ver as duas anteriores em minha página, acima indicada, a partir de "Trabalhos Originais", ou outros textos do mesmo tipo, como "Dez coisas…" e "Carta aberta…" –, por chamar a atenção para aspectos não convencionais do pensamento econômico tido como mainstream na oposição de esquerda (agora bem menos oposição e menos ainda de esquerda, mas isso não importa agora). O manual para uma nova economia política deveria, a partir de agora, cobrir aspectos da "economia doméstica" – depois das considerações sobre a dimensão internacional ou macroeconômica da nova realidade, mas talvez seja o caso, antes de focar a problemática social, de deter-se um pouco na questão da "visão do mundo" da nova maioria, pois ela pode ser reveladora de uma maneira de pensar cujas conseqüências "governativas" devem ser avaliadas com calma e lucidez, para evitar surpresas mais adiante.
Como a luta política – de forma algo similar à estratégia militar – se organiza usualmente em termos de aliados e opositores, de amigos e inimigos, e como a passagem de uma situação de oposição à condição de Poder implica uma mudança fundamental na forma de organização dessas alianças – algumas táticas, outras estratégicas –, caberia agora pensar nessas relações de amizade e tratar de distinguir, um pouco mais claramente o que, efetivamente, conta para um bem sucedido exercício desse poder e o que pode acarretar impasses institucionais, econômicos ou diplomáticos.
Como os velhos hábitos são duros na queda, a única recomendação de caráter geral que eu faria seria essa que figura no título: "pense duas vezes antes de agir", pois velhos aliados e antigas inimizades podem revelar qualidades surpreendentes, no sentido exatamente oposto ao que se pensava antes de assumir o poder. No mais, vou alinhar sem ordem de prioridade alguns desses surpreendentes novos amigos e velhos inimigos, ou vice versa, num exercício de puro "contrarianismo". Assumo toda responsabilidade pela heterodoxia, mas ela é feita em toda boa fé, pensando no melhor desempenho possível na nova situação de poder.
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