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O Manifesto Antropofágico (1928), escrito por Oswald de Andrade (1890-1954) advogava a criação de uma cultura nacional genuína por meio do consumo, seguida de uma nova elaboração crítica, das influências nacionais e estrangeiras. Estas deveriam ser devoradas, digeridas, e re-trabalhadas de modo a se tornarem mais adequadas à realidade e às necessidades locais. (2) Era a utopia perfeita: a reconciliação do passado do Brasil com o seu futuro.
A metáfora de comer os outros está presente de várias maneiras na linguagem e na cultura brasileiras, e tem uma fundamentação histórica verdadeira. Em 1500, o navegador Américo Vespúcio foi contratado por Dom Manuel de Portugal para explorar a costa brasileira e verificar a extensão do território. Durante os numerosos contatos de Vespúcio com tribos indígenas, conta-se que ele teria sido testemunha de cenas de canibalismo. (Um tratamento cinematográfico do canibalismo é o filme Como Era Gostoso Meu Francês de Nelson Pereira dos Santos. Lançado em 1970, essa ficção antropológica conta a história de um francês capturado por canibais brasileiros no século XVI.) (3) Este costume assustador deixou recordações que ainda habitam o imaginário e a linguagem popular, como demonstram estas lembranças de infância de uma pintora brasileira:
Um mendigo levava um grande saco nas costas, pois costumava coletar jornais velhos e garrafas vazias para vendê-los. A senhora Hollanda, nossa vizinha, costumava dizer que ele carregava no seu saco crianças pequenas que haviam sido desobedientes, e depois as comia. Conforme o dia da semana, ele as grelhava, fritava ou cozinhava. Um mexerico circulou sobre Irene, a cozinheira da avó da Alice. Diziam que ela havia comido três crianças durante uma ceia de carnaval. Minha irmã me explicou que era por esta razão que Irene tinha olheiras permanentes sob seus olhos. (4) (tda)
Mas a metáfora de comer pessoas não causa apenas terror. No português falado no Brasil, usamos o verbo comer significando ‘fazer amor’. Em situações envolvendo sexo e sedução, as pessoas chamam umas as outras de ‘gostoso’ ou ‘gostosa’. Se alguém está muito magro e tem um ar frustrado, não é porque não se alimenta bem, mas porque é mal comido.
O Beijoqueiro e o personagem de ficção Macunaíma compartilham de características similares. Ambos são grotescos e ridículos e, ainda assim, anti-heróis brasileiros épicos. Mas o Beijoqueiro é um canibal.
O Beijoqueiro beija movido por impulsos e intenções do canibal que tem que admirar sua vítima para poder comê-la. Herdeiro inconsciente e inconseqüente da nossa tradição antropofágica, o Beijoqueiro beija para devorar e integrar os poderes e a aura midiática do beijado. (5)
Macunaíma, ao contrário, tenta escapar de ser comido, mas é devorado no final. O filme Macunaíma é repleto de canibais: um ogro (o Currupira) que corta uma parte de sua perna para Macunaíma comer; um industrial ítalo-brasileiro (Venceslau Pietro Piera) que tenta persuadir Macunaíma a se juntar (literalmente, na qualidade de alimento) ao banquete do vilão; a esposa do vilão, que se refere ao herói como um ‘pato’ que ela capturou, e começa a prepará-lo em um grande caldeirão antes de o herói conseguir escapar; e a Uiara, encarnação de uma lenda popular brasileira, uma ‘sereia’ que por fim devora Macunaíma no final do filme. (6)
Mas acima de tudo, o Beijoqueiro e Macunaíma compartilham ambigüidades similares: suas ações nascem de estratégias políticas indiretas (resistência cultural) ou de impulsos puramente egoístas, infantis e amorais?
Vemos o Beijoqueiro sentado numa barbearia enquanto o barbeiro aplica tintura preta em seus cabelos e sobrancelhas. Nosso herói tem um jornal nas mãos, que fala dele como uma ameaça pública. Sim, porque o Beijoqueiro – disfarçado como um jornalista rejuvenescido – está pondo em ação um plano para beijar o presidente George Bush durante a Conferência Ecológica Internacional de 1992 no Rio. ‘Eu estou mais bonito. Pareço vinte anos mais jovem. Estou parecido com aquele astro do cinema que ganhou o Oscar’. O Beijoqueiro conseguiu arranjar credenciais de jornalista. Vestindo um terno, e de cabelo pintado, ele segura um santinho com a efígie de Santa Edwiges e reza para que consiga beijar Bush. A música escolhida por Nader para as cenas em que vemos suas tentativas de beijar o chefe de estado norte-americano são tiradas da trilha sonora dos filmes de James Bond. A megalomania do Beijoqueiro o faz pensar que todo o aparato militar armado para proteger a conferência é para ele. É incrível como ele ilustra exemplarmente a prática tipicamente brasileira de combinar lado a lado o ‘oficial’ – o aparato mobilizado para a visita de Bush com o falso oficial. O Beijoqueiro, um homem que foi preso e processado, acaba conseguindo credenciais de jornalista para comparecer ao evento.
Joaquim Pedro de Andrade adotou uma visão mais socialmente crítica e uma interpretação político mais amarga da fantasia antropofágica, quando fez o filme Macunaíma. Andrade queria revelar a forma negativa como os pobres e oprimidos são devorados por um sistema social injusto.
As relações de trabalho atuais, assim como as relações entre as pessoas – sociais, políticas e econômicas – são ainda basicamente antropofágicas. Aqueles que podem, ‘comem’ outros através do seu consumo de produtos, ou mesmo mais diretamente em relações sexuais. O canibalismo apenas se institucionalizou e inteligentemente se disfarçou. Os novos heróis, ainda buscando uma consciência coletiva, tentam devorar aqueles que nos devoram. Mas ainda fracos, eles mesmos são transformados pela mídia em produtos e consumidos. A esquerda, enquanto vai sendo devorada pela direita, tenta se disciplinar e purificar – uma prática que é simplesmente o canibalismo do fraco. A Igreja celebra a comunhão comendo Cristo. Vítimas e carrascos são um e o mesmo; devorando-se a si mesmos. Tudo, estando no coração ou na mandíbula, é alimento para ser consumido. Enquanto isso, de forma voraz, nações devoram seus povos. Macunaíma é a história de um brasileiro devorado pelo Brasil. (7) (tda)
Muitas outras tentativas além da de Joaquim Pedro de Andrade foram feitas no sentido de problematizar a força motriz utópica do modernismo brasileiro, mostrando seus traços negativos. Algumas críticas foram feitas, por exemplo, por intelectuais brasileiros, acerca dos aspectos conservadores e reprodutores do movimento. O crítico literário brasileiro Roberto Schwarz vê na poesia de Oswald de Andrade ‘um sorriso pacificador...em relação à modernidade e ao atraso’ e chama a atitude de Andrade de ‘um idílio interessado’. Ele argumenta que a poesia de Oswald no final das contas persegue ‘a miragem de um progresso inocente’ e foi comprometida pela influência da ideologia dos setores sociais mais tradicionais. (8) Beatriz Resende aponta as faces menos generosas do movimento: os aspectos autoritários da vanguarda, a misoginia modernista, os perigos de um sectarismo que decretou um index prohibitorum listando aqueles que não ousaram ser modernos – chamando atenção para a ingenuidade que, em última análise, permeou o projeto antropofágico.
Será que ainda podemos acreditar que comemos mesmo o Bispo Sardinha? Parece-me que antes temos sido comidos por bispos, reis e valetes... (9)
É interessante notar que enquanto a estratégia de Oswald de Andrade tencionava ser libertadora, a acadêmica e ativista negra bell hooks nos previne sobre a prática perversa e oposta de ‘comer o outro’ – ou seja, de fetichizar e tornar exótico qualquer coisa ou qualquer um que ameace as disposições culturais de poder estabelecidas. (19)
E volto a perguntar: estão Macunaíma e o Beijoqueiro engajados em uma resistência indireta e subversiva às normas ou estão sendo devorados por uma condição social que usa suas próprias indeterminações a fim de reforçar e reproduzir a si mesmo? Macunaíma (o romance) ganhou um subtítulo de Mário de Andrade: ‘O herói sem nenhum caráter’. Esta frase é ambígua pois em português, como também em inglês, falta de caráter significa, ao mesmo tempo, falta de definição ou falta de força moral.
O Cinema Novo, particularmente em suas fases iniciais, criticava radicalmente a ‘apatia’ do Brasil para enfrentar seus problemas sociais. ‘O Brasil não tem densidade histórica’, queixava-se Glauber Rocha no manifesto publicado nos Cahiers du Cinéma em 1967. Na visão de Glauber, ‘Houve apenas alguns golpes e contragolpes militares de estado feitos em nome dos interesses imperialistas e da burguesia nacional. A esquerda populista sempre termina assinando um pacto com a direita arrependida, avançando mais uma vez para a ‘redemocratização’. (11)
Não apenas a proverbial preguiça "macunaímica" como também o uso periódico do famoso "jeitinho" brasileiro impedem o Brasil de ser verdadeiramente heróico. Talvez o único herói a que o Brasil possa aspirar seja o anti-herói, um tipo que tem como seu representante Macunaíma e o Beijoqueiro. No final do romance Macunaíma, o herói se cansa de viver na Terra e, após ser devorado por piranhas, é transformado magicamente na Ursa Maior; no filme, entretanto, ele é devorado pela canibalística Uiara, e vemos sua jaqueta verde flutuando no rio, com sangue jorrando por debaixo dela.
As representações culturais das dinâmicas históricas da sociedade brasileira podem ser vistas como refletindo uma tensão permanente entre utopia e derrota. E para piorar as coisas o Beijoqueiro, de acordo com Carlos Nader, não devora meramente, mas é, como Macunaíma, devorado também. A diferença, entretanto, é que o Beijoqueiro é regurgitado pela câmera e ressuscitado para viver eternamente nos arquivos das tomadas da televisão.
Além do quê, o malandro sabe muito bem que atrás de famoso tem sempre uma câmera. É pela via oral que o Beijoqueiro quer invadir um reino que não é deste mundo. E mais do que isso. Além de comer, o desejo íntimo do canibal é o de na verdade ser comido pelo orifício mais voraz e insaciável que o homem já inventou. A câmera. Assim o ciclo do prazer se completa. O recado do Beijoqueiro, e de toda a loucura de um determinado espaço-tempo que ele incorpora, é bem claro: "Câmeras do Mundo, esta é minha imagem. Comei." (12)
O espaço de indeterminismo talvez possa, afinal, ser visto como fértil em sua opção não afirmativa. Talvez esse espaço – onde se move o anti-herói contemporâneo do Terceiro Mundo – seja capaz de trazer, junto com a invenção, a intervenção.
O Beijoqueiro, beijando figuras míticas, torna-se – através da mídia – ele próprio um mito. O mito é um recurso crucial para tema e narrativa de povos e nações que vivem, de acordo com Beatriz Sarlo, ‘nos arredores, nas margens, nas zonas cinzentas das histórias centrais’. (13) Ainda que o mito apresente uma estrutura circular que poderia, em princípio, obstruir uma visão mais crítica da sociedade, ele ainda é um meio poderoso de retratar as realidades paradoxais dos assim chamados países em desenvolvimento – colocando-os não sob o signo de atraso histórico, mas do contraponto. (14) A criação de um sentido de utopia e de um tempo mítico foram instrumentos interpretativos que deram 'sentido à nossa marginalidade' e impregnaram de esperança 'a sensação constante de andar em círculos'. (15) Mas o mito não é relegado a lendas dos tempos antigos e às narrativas tradicionais que os povos incorporam em suas culturas. Carlos Nader vê o xamã como um tipo de antena parabólica capaz de mediar níveis diversos de conhecimento.
Alguns pais de santo e xamãs mais aplicados são capazes de reconhecer em qualquer forma de representação da mídia - filme, novela, por mais mambembe, com qualquer ator e a qualquer momento - a re-encenação dos mitos de sua tradição. Quem se surpreende com isso? O que é um xamã senão um mediador, um concessionário de um veículo de comunicação, um provedor de acesso, um manipulador bem ou mal intencionado de informação? (16)
A presença residual de ‘magia’ ou elementos mágicos nas sociedades modernas não pode ser subestimada. Segundo Peter Fry, ‘aquilo que poderíamos chamar de ‘magia’ não é anulado por evoluções intelectuais. (17)
Uma característica particular da experiência de ‘encantamento’ nos países ibero-americanos é, de acordo com Morse, demonstrado na literatura. Segundo Morse, a Ibero-América, mesmo no seu setor moderno ou burguês, não é tomada pelo "desencanto" ocidental. As criações dos escritores e artistas europeus nos começos do século XX nasceram da tecnificação e da impotência pessoal na sociedade de massas capitalista. Os ibero-americanos captaram esse moderno idioma, mas perceberem que seu próprio mundo diferia de Paris e Nova York por ainda não estar desencantado. (18) Para os artistas ibero-americanos, o positivismo e o naturalismo não culminaram em uma terra desolada como aquela vista por T.S. Eliot. Morse compara duas visões da cidade moderna: a oferecida por Eliot em The Waste Land e a captada por Mário de Andrade (autor de Macunaíma) na sua ‘Paulicéia Desvairada’:
O de Eliot é um mundo desmistificado...(...) Na São Paulo de Mário de Andrade os nervos do industrialismo estavam mais expostos que na generalizada cidade ocidental de Eliot, com sua antiga epiderme cultural. Mesmo assim, São Paulo produz encantamento. A cidade é desvairada, alucinada. Mário de Andrade mergulha na paisagem urbana, anulando a distância cerebral de Eliot. (19)
Carlos Nader alerta para o quão difícil é dissociar a mídia da representação ‘primitiva’ de mitos. Uma das características mais interessantes do seu vídeo são as vinculações entre canibalismo, religião, e a mídia:
Qualquer fato de mídia também é um mito re-encenado. (...) A necessidade de alegorizar os fatos transitórios para poder integrá-los e torná-los sempre presente, é uma outra modalidade de canibalismo. Matar e comer para ter para sempre. (20)
Concluindo, o Beijoqueiro é uma força protéica capaz de alterar-se rápida e facilmente, uma força vital, um self irredutível. Ele é um artista performático, um artista do corpo (body artist) , e ao mesmo tempo um objet trouvé. O vídeo de Nader transgride, portanto, os limites de gênero e os confunde: O Beijoqueiro é um documentário ou um vídeo de arte?
Existem, finalmente, duas interpretações principais possíveis para o Beijoqueiro. Podemos, como os modernistas brasileiros, reconhecer nele a inesgotável capacidade do oprimido de resistir, e acreditar na utopia de combinar raízes e progresso em uma síntese alentadora de identidade cultural. Ou podemos, contrariamente, como Joaquim Pedro de Andrade, ver o Brasil como sendo devorado pelo próprio Brasil, por não encontrar saída para a desigualdade, a injustiça e a falta de ordem. O Beijoquero seria, no caso, uma encarnação desse processo. Comer ou ser comido? O Beijoqueiro, por revelar um dos personagens mais contraditórios e ferozes da realidade brasileira, traz a questão para o centro da discussão.
Ana Teresa Jardim Reynaud (*)
jardim2003[arroba]terra.com.br
(*) Centro de Letras e Artes/Escola de Teatro/ Departamento de Cenografia
Universidade do Rio de Janeiro - UNIRIO
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