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Memórias em confronto nas comemorações dos centenários de Canudos (1993-1997) (página 2)

Antônio Fernando de Araújo Sá

 

MEMÓRIA COLETIVA E MEMÓRIA HISTÓRICA

É partindo de algumas questões elaboradas pelo historiador Afonso C. M. dos Santos, que gostaríamos de iniciar uma rápida intervenção sobre as complexas relações entre memória e história, para que possamos avançar na discussão sobre confronto de memórias em torno dos centenários de Canudos: Qual o papel do estudo da memória no debate teórico e metodológico de uma historiografia que se pretenda crítica e renovadora? A discussão do problema da memória, pensada enquanto produção simbólica e parte do imaginário social, pode levar o historiador a duvidar de suas certezas e a rever também a sua produção como produto de imaginário delineado por memórias específicas?3

A memória é um problema histórico recente, ao qual, curiosamente, não foram os historiadores os que primeiros deram uma resposta específica à problemática, mas sim psicanalistas e filósofos (Freud, Bergson, Lukács), escritores (Proust, Joyce, Conrad) e, mais recentemente, sociólogos seguidores de E. Durkheim (M. Halbwachs). O historiador francês Pierre Nora, em artigo intitulado Memória Coletiva, publicado na França em 1978, é talvez um dos primeiros a levar a efeito a diferenciação entre memória coletiva e memória histórica no âmbito da comunidade de historiadores. Estas reflexões serão retomadas no início dos anos 80, com a publicação da obra coletiva Les Liuex de mémoire. I La République, por ele dirigida, na qual utilizaremos a sua introdução em torno do debate entre memória e história, realçando a problemática dos lugares4 .

Para o Autor, "A memória colectiva é o que fica do passado na vivência dos grupos ou aquilo que os grupos fazem do passado. Grupos grandes, à escala de áreas culturais ou de nações, de ideologias políticas ou religiosas; famílias mais limitadas como as gerações ou movimentos minoritários, políticos, operários, femininos. A este título, evoluem juntamente com os grupos para quem são um bem simultaneamente inalienável e manipulável, um instrumento de luta e de poder ao mesmo tempo que um valor afectivo e simbólico. A memória histórica é unitária. É fruto de uma tradição sábia e "científica", é ela própria memória colectiva do grupo dos historiadores. (...) A memória histórica filtra, acumula, capitaliza e transmite; a memória colectiva conserva por um momento a recordação de uma experiência intransmissível, apaga e recompõe a seu gosto, em função das necessidades de momento, das leis do imaginário e do retorno dos recalcamentos. (...) (A) memória histórica une, a memória colectiva divide. Sejam quais forem, entre uma e outra, as passagens e as influências recíprocas, dificilmente se foge a esta oposição"5.

Em outro texto, o Autor afirma que a "memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo"6.

A leitura de Pierre Nora dialoga, especialmente, com as assertivas propostas por Maurice Halbwachs na distinção que ele faz entre a história e memória, na qual a história "é uma e podemos dizer que não há senão uma história", já a memória trabalha com o vivido, com o que está presente no grupo e é, portanto, múltipla. Nora, ao contrário de Halbwachs, propõe a utilização da memória como objeto do conhecimento histórico. Contudo, Marcos A. da Silva lembra-nos que Nora enfatiza a oposição entre a memória (espaço do vivido e do absoluto) e a história (lugar do reconstruído e do relativo), perdendo de vista que no reconstruído e relativo há alguns horizontes do vivido e certa pretensão do absoluto. O próprio mito da objetividade, que é alimentado por parcelas do conhecimento histórico erudito, acaba por reforçar a memória interna desse campo de saber. Mas se são distintos, também são inseparáveis, como afirma Montenegro. Se se toma a história como construção que, ao resgatar o passado (campo também da memória), aponta para formas de explicação do presente e projeta o futuro, podemos afirmar que esta operação encontraria em cada indivíduo um processo interior semelhante (passado, presente, futuro) através da memória7.

Outros autores elaboram, com perspectivas diferenciadas, conclusões próximas a esta assertiva, especialmente aqueles que trabalham com a história oral. Michael Frisch, por exemplo, enfatiza que, apesar de, em certos sentidos, serem verdadeiramente opostos os conceitos de memória e história, muito têm em comum. Segundo ele, os estudos recentes estão marcados por situações, nas quais a história subverteu a memória e a memória subverteu a história. Isso não sugere apenas uma contradição ou paradoxo, mas sobretudo uma tensão útil que contribuiu para que os historiadores focalizassem a problemática da própria memória coletiva, situando-a simultaneamente como fonte de alternativas e resistências ao poder estabelecido e como objeto de manipulação ideológica hegemônica por parte das estruturas do poder cultural e político. Esta incorporação da memória à história proporcionou uma tensão produtiva que vem gerando novas abordagens à concepção tanto da história quanto da memória, "nas quais o processo de dar sentido ao passado é entendido como uma capacidade mais geral, expressa de várias formas e modos, que podem ser mais bem entendidos como organizados em vetores de diferentes espectros, em vez de estarem agrupados em torno de noções polarizadas de história e memória"8.

MEMÓRIAS EM CONFRONTO NOS CENTENÁRIOS DE CANUDOS

As comemorações são especialmente ricas para a reflexão historiográfica. As datas comemorativas proporcionam um balanço do que já foi feito e indicam novas contribuições para a compreensão histórica. Comemorar deve ser entendido aqui como um ato de problematizar a memória instituída e não solidificá-la, inscrevendo-a nas contradições da história dos homens em suas múltiplas e possíveis leituras. A destruição de certas memórias e a construção de outras atesta que há diferenças em seu seio, associadas aos diversos grupos humanos, com seus projetos, fantasias e possibilidades. "A memória dominante, para se afirmar, precisa sufocar ou submeter memórias autônomas, provando que sua existência se dá num espaço de lutas, configurando poderes menos visíveis e muito eficazes na construção de identidades sociais"9.

A organização de marcos instauradores da memória política dominante no Brasil, especialmente durante os centenários da Abolição e da República, evidenciaram a produção de uma hegemonia política da memória instituída, que foram abonados por boa parte da produção historiográfica erudita. A comemoração do centenário da Guerra de Canudos neste ano, referente à destruição do arraial, corre o risco de enfatizá-lo com maior intensidade do que o do centenário de fundação do Belo Monte, em 1993, confirmando, de certa maneira, que a guerra foi e é o eixo principal de análise do evento Canudos. É exemplar a criação, neste ano, da Comissão do Centenário do Final da Guerra de Canudos na Universidade Federal de Sergipe.

É importante ressaltar, como veremos mais adiante, que o evento ultrapassou o conflito armado e que há a possibilidade de uma outra leitura como ficou clara nas comemorações da fundação do arraial, por parte, de um lado, do Movimento Popular e Histórico de Canudos e, de outro, das dioceses da Igreja Católica da região, em conjunto com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Nelas se resgatou a proposta de Canudos enquanto expressão de uma luta redentora dos pobres do campo em defesa da reforma agrária, abortada pela opressão coronelística republicana.

O florescimento do debate sobre a memória e a história de Canudos deve ser interpretado dentro do contexto dos conflitos e movimentos sociais gerados pelo processo de reconstrução democrática no final dos anos 70 e início dos 80, que, ao exigir uma releitura da história do Brasil, instaurou a necessidade de se incorporar, em suas hostes, a multiplicidade de atores sociais emergentes no cenário político de então - trabalhadores rurais, posseiros, índios, negros, mulheres, operários, homossexuais, etc.

Esta releitura impunha, de um lado, rever a periodização clássica da história político-institucional, associada à memória do exercício do poder e não à história. Por outro, a emergência de vozes alternativas à da memória instituída estava articulada às lutas sociais e às relações de poder na construção de identidades sociais, fundamentando àquela revisão10.

Como todo programa político está intimamente ligado a um projeto de reconstrução do passado, o caso de Canudos tornava-se emblemático para os diferentes projetos políticos em confronto naquele momento histórico, resultando numa intensa produção cultural, tanto erudita, como popular, em torno do tema, especialmente, face à emergência cada vez maior de uma consciência camponesa que interpelava (e interpela) toda a sociedade brasileira.

Segundo Pierre Nora, as diferentes visões sobre o acontecimento expõem a diversificação por que passa a história, no sentido de transformá-la num campo de forças político-ideológicas, em virtude da proliferação das memórias coletivas impostas pelos media. A contemporaneidade, assim, tende a fabricar um maior número de memórias coletivas, a multiplicar os grupos sociais que se autonomizam pela preservação ou pela recuperação do seu próprio passado, a compensar as convulsões e rupturas das sociedades contemporâneas e a angústia e a incerteza do futuro com a valorização de um passado que não era, até então, vivido como tal11.

CANUDOS COMO "TERRA DA PROMISSÃO"

Em pequeno artigo sobre a história e a historiografia de Canudos, Mário Maestri lembra-nos que o prosseguimento da guerra camponesa vietnamita, a resistência sandinista na Nicarágua, entre outros movimentos sociais insurgentes nos anos setenta, mantiveram aceso o interesse de pesquisas sobre o movimento camponês, ainda que o regime militar constrangesse as ciências humanas e a política editorial no país. No final da década de 1970, Edmundo Moniz escreveu no exílio e publicou no Brasil alentado livro sobre o tema de Canudos, intitulado Guerra Social de Canudos. Nele, Moniz tentava aplicar os ensinamentos de Leon Trotsky sobre a lei histórica de desenvolvimento "desigual e combinado", presente em A História da Revolução Russa, para explicar o movimento conselheirista dentro do contexto da hegemonia do capitalismo. O livro traz importantes depoimentos de alguns dos últimos protagonistas dos fatos, revelando facetas inusitadas dos acontecimentos. Moniz apresentava neste e em outro livro de menor fôlego, Canudos: A Luta pela Terra, publicado no início dos anos oitenta, Antônio Conselheiro como uma liderança carismática e providencial, defensor da reforma agrária no século XIX. Efetuara-se, assim, uma operação de deslizamento da figura de Conselheiro: de pensador teológico tradicional a reformador e agitador social, leitor da Utopia de Thomas Morus e adepto do socialismo utópico12.

Poderíamos acrescentar ainda para compreender esta nova imagem de Conselheiro, o fato de, à mesma época, se efetivar uma revisão, dentro dos vários campos da produção cultural, da imagem do povo e da religiosidade popular, especialmente com o avanço da Teologia da Libertação na criação de comunidades eclesiais de base e sua penetração na própria hierarquia da Igreja Católica. Reiterava-se uma imagem positiva desta religiosidade, não mais vista como alienação, mas como forma possível de protesto das classes subalternas.

Data desta época uma nova postura da Igreja diante da questão da terra e da luta camponesa, talvez como fruto de um processo de envolvimento mais direto da hierarquia católica e do laicato nos conflitos de terra, que desembocou na criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em setembro de 1975. A partir de então, foi marcante sua atuação na defesa dos pequenos proprietários, índios, posseiros e sem terras, questionando a concentração da terra em todo o Brasil e, em especial, a progressiva ocupação da região amazônica por parte de grupos econômicos estrangeiros e do sul do país, com incentivos fiscais do Estado autoritário, através da SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia).

Esta tendência de enfrentamento com o Estado autoritário, no que se refere à questão da terra, se consolidou no famoso documento "Igreja e Problemas da Terra", datado de fevereiro de 1980 e aprovado por ampla maioria da cúpula eclesiástica em Itaici/SP. Na ocasião, a CNBB declara sua condenação ao capitalismo, amparando-se nesta experiência da Pastoral da Terra diante dos conflitos sociais da época no campo, marcadamente no norte e nordeste brasileiros13.

Imbuídos desta nova postura político-ideológica de parte da Igreja Católica frente à questão camponesa e empenhados na tarefa de "resgate da história e da experiência concreta e da luta heróica dos camponeses de Belo Monte", membros das comunidades eclesiais de base da paróquia de Monte Santo e um grupo de artistas, militantes de partidos de esquerda e moradores de Euclides da Cunha e Uauá, numa discussão às margens do açude do Cocorobó, decidiram criar o Novo Movimento Histórico de Canudos, em 15 de outubro de 1983.

Em depoimento dado ao Autor deste ensaio, Enoque Araújo, um dos seus fundadores e que representou Conselheiro na 1ª Missa pelos Mártires de Canudos, lembra que a preocupação com o resgate da história de Canudos vinha sendo construída na região desde 1981, quando fora criado o Grupo Conselheiro na cidade de Euclides da Cunha, o qual através do I Encontro com Canudos fez com que, a partir do teatro, da poesia popular e da música, o tema viesse à tona na região. Em 1982, já com a presença decisiva do então padre Enoque Oliveira, da paróquia de Monte Santo, o tema Canudos passou a ser discutido, com grande entusiasmo, nas comunidades eclesiais de base e sindicatos de trabalhadores rurais, seja através de discussões sobre a posse comum da terra - as áreas de "fundo de pasto" -, seja por meio dos poemas e cânticos do padre.

Mas foi, em 28 de julho de 1984, com a realização da 1ª Missa pelos Mártires de Canudos concelebrada pelo bispo de Juazeiro, Dom José Rodrigues, e mais oito padres da região, que o Novo Movimento Histórico de Canudos, em conjunto com as dioceses da região (Paulo Afonso, Bonfim, Juazeiro e Rui Barbosa), realizou um dos momentos mais significativos de resgate da história popular de Canudos como experiência igualitária e exemplo de reforma agrária. Na cerimônia, segundo reportagem da revista semanal Veja, intitulada, maldosamente, de Missa ao Herege, D. José Rodrigues, bispo de Juazeiro/BA, afirmou que

"Estamos aqui para louvar o Conselheiro e o seu povo. Ele era um sonhador que quis criar uma sociedade igualitária inspirada na Bíblia".

Diante de uma multidão de cerca de 1.000 pessoas, entre camponeses, sindicalistas, artistas, religiosos, universitários, alguns políticos e representantes do movimento de mulheres, que, com alegria e esperança, cantavam "Alegria povo meu, pois Canudos não morreu", setores da Igreja puderam se redimir do passado, revendo o papel de Antônio Conselheiro como fanático e colocando-o como exemplo de reformador social. Nas palavras de Dom Angélico Bernardino, então presidente da regional da CNBB em São Paulo, "Canudos e o Conselheiro têm papéis preponderantes na tarefa de revisão da História do Brasil. (...) (A) Igreja Católica, ao acompanhar a historiografia oficial errou até agora ao considerar o movimento de Canudos e seu líder como fanáticos e hereges (...) o Conselheiro agira movido pela mais pura fé"14.

Esta revisão da figura de Antônio Conselheiro vai ser duramente atacada pelas elites políticas e intelectuais baianas da região sertaneja e da capital, através de um editorial do principal jornal baiano da época, A Tarde, caracterizando-o ainda como um líder fanático. O editorial, intitulado Preparando a Guerrilha, publicado às vésperas da realização da 1ª Missa aos Mártires de Canudos, tentou caracterizá-la como uma atitude revanchista dos setores progressistas da Igreja Católica, reiterando que o tema Canudos deve permanecer como objeto de estudo - teses de mestrado e doutorado, reportagens e outros escritos - e não "para justificar atividades militantes que têm claro objetivo de desestabilização social no campo". Ainda segundo o editorial, "remontar o cenário de Canudos, invertendo os fatos e apresentando uma versão tendenciosa da figura de Conselheiro, não tem cabimento. No fundo, não passa de uma provocação que caberia ser abortada pela hierarquia da Igreja, instituição que, ao longo dos tempos, sempre combateu com o crucifixo e o rosário as manifestações messiânicas de fanatismo"15.

O professor José Calasans, um dos maiores estudiosos do tema Canudos, afirma que "ao longo de todos esses anos de pesquisa nunca encontrei um só dado concreto que sustentasse a tese de que Conselheiro irritava os proprietários rurais porque era um revolucionário, favorável a uma reforma agrária violenta". Segundo ele, "Antônio Conselheiro não queria fazer a revolução nem reformas. Ao contrário, resistia a elas"16 .

A figura de Conselheiro permanecia, assim, enquanto campo de disputa na memória coletiva. Fica evidenciado, nas diferentes versões sobre ele presentes no editorial e na celebração da Missa ou na própria historiografia, a proposição de Marc Ferro de que a dimensão da disputa, do controle é uma marca permanente da história. A representação do passado que predomina na memória coletiva e individual tem uma significativa participação no governo do corpo individual e social17 .

Nas novas representações sobre Antônio Conselheiro, articuladas pelos movimentos sociais, tanto como um líder revolucionário cristão, quanto como líder das massas rurais e reformador social, resgatava-se a tradição messiânica e milenarista de Canudos como Cidade Santa, Nova Jerusálem, Aldeia Sagrada, Canaã Nordestina. Há uma inversão desta leitura marxista e de esquerda sobre Canudos com relação à idéia euclidiana de um "comunismo primitivo", na qual era vista pejorativamente o sistema de propriedade como "coletivismo tribal de beduínos". Moniz valorizara esta forma de propriedade coletiva como experiência camponesa na direção do socialismo18.

Compartilhando esta leitura, a Coordenação do Novo Movimento Histórico de Canudos edita, coletivamente, em 1984, um livreto em que expressa suas propostas em torno da leitura do tema Canudos, como "terra da promissão" - comunidade igualitária e exemplo de reforma agrária -, muito próxima da vertente marxista. Este pequeno texto vai ser incorporado a outro livro ampliado, publicado em 1986, também de forma coletiva e que vai ser utilizado nos debates com os trabalhadores rurais e estudantes da região.

Em sua primeira parte, resume-se a história de Antônio Conselheiro como reformador social, inserindo-a na história do nordeste brasileiro da segunda metade do século XIX. Segundo o texto, após "20 anos de peregrinação pelo Nordeste, sentindo de perto o atraso planejado e o descontentamento das massas camponesas, (...) Conselheiro encontra uma terra devoluta. Das mais secas do Nordeste. Cortada pelo rio Vaza-Barris, na região do Raso da Catarina, para servir de local adequado à organização dos camponeses e colocar em prática seu objetivo: formar a comunidade igualitária de Canudos. Conselheiro era um homem prático. Sabia que não bastava construir a cidade. Organizar seus habitantes. Praticar a igualdade. Era preciso garantir a sobrevivência da população. Era preciso produzir. Era preciso defender a organização e, sobretudo, era preciso trabalhar a terra em comunidade e colocar a produção a serviço de todos. Obediente aos mandamentos da Lei de Deus, devoto da Virgem Maria que prega a elevação do povo humilde, Conselheiro ensina que a terra tem um dono só: Deus! Se a terra é de Deus, os camponeses podem ocupá-la". Sobre a organização do poder em Canudos, outra passagem do texto afirma que "todos cuidavam da terra e da cidade. Todos trabalhavam e eram responsáveis pelo futuro da comunidade. Todos participavam da decisão. O poder era exercido de forma comunitária. O único senhor era Jesus Cristo. (...) Na cidade só havia uma lei: a lei da partilha. (...) O povo humilde construía com suas próprias mãos, um novo céu e uma nova terra. Era o Reino de Deus de que fala a Bíblia, que começava no sertão da Bahia"19 .

Na segunda parte, fica explícita a intenção didático-pedagógica do livro, que, através do recurso da história em quadrinhos, busca sua utilização nos debates com as comunidades e sindicatos da região, mostrando a atualidade da história de Canudos para a luta camponesa hoje.

Por último, o livro discute o papel da Igreja e dos movimentos sociais na tentativa do resgate da história de Canudos, bem como as reações dos políticos e da imprensa sobre o Movimento de Canudos. Como anexo, foram publicados os cânticos e poemas do padre Enoque Oliveira, que servem de combustível para a mística do movimento.

Como lembra-nos Le Goff20, a memória, onde cresce a história, que, por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. O Movimento de Canudos trabalha na perspectiva de que a memória coletiva sirva para libertar os homens e não para sua servidão, utilizando-se de recursos que vão dos rituais da Missa - composta de depoimentos, cantoria e a celebração propriamente dita da Missa -, os debates políticos aos cânticos e poemas.

Pode-se afirmar mesmo que a história foi apropriada pela memória coletiva, elaborando um processo de resignificação do passado até então ausente nos debates político-ideológicos da região, cujo acirramento teve como ápice a prisão do padre Enoque Oliveira, em 1985, decretada pelo juiz de Monte Santo a mando do prefeito da localidade, ligado ao PDS (Partido Democrático Social); afora constantes ameaças de morte e perseguições por ele sofridas, desde 1983.

A prisão fora motivada por uma passeata organizada pelo padre Enoque Oliveira contra a ocupação, pela prefeitura, da Casa de Romeiros e do Cine Teatro São José, tradicionais lugares de ocupação da Diocese de Senhor do Bonfim. Após sua libertação, o juiz impôs verdadeira lei de silêncio ao padre Enoque, proibindo-lhe de participar de manifestações públicas e rezar missa na roça, muito menos "falar mal das autoridades" do município. Além da comoção popular na cidade de Monte Santo e da intervenção da Diocese de Nosso Senhor do Bonfim, sua prisão fez com que sua luta tivesse solidariedade do conjunto do movimento sindical baiano (CUT, Sindiquímica, Associação Baiana de Geólogos, ADUCSAL, entre outras entidades), das Pastorais da Igreja (da Mulher Marginalizada, da Terra), de partidos políticos (PMDB e PT), entre outros, tornando-se num símbolo contra o arbítrio coronelístico na passagem para a Nova República no Sertão da Bahia.

Mas o pano de fundo dessa perseguição política contra o Padre Enoque Oliveira foi sua atuação na questão da terra na região, especialmente o caso dos "fundos de pasto", como o do Sítio do Feliciano, no município de Uauá, em dezembro de 1987. Seja como assessor da Federação dos Trabalhadores na Agricultura da Bahia, seja como líder do Movimento de Canudos, o Padre Enoque estava ferindo os interesses dos grileiros da região, por ele próprio chamada "Santuário da Fé e Paraíso da Grilagem".

A Segunda Missa pelos Mártires de Canudos teve como tema central a Reforma Agrária, intencionando transformar o dia 5 de outubro de 1985 num grande debate sobre a questão da terra, especialmente no contexto da Nova República, quando o tema retorna ao cenário político com a Constituinte. Segundo o panfleto da Missa, "Canudos tem muito a ensinar sobre este assunto". Na opinião do historiador Sérgio Guerra, "A Segunda Missa é a reconstrução do passado e a construção do futuro, ou seja, encontraremos no passado os elementos que ajudarão a construção de um futuro justo para o trabalhador"21.

As Missas em Homenagem aos Mártires de Canudos foram realizadas pelo Movimento de Canudos com a colaboração das Dioceses da região até 1987, ou seja, a Quarta Missa, quando houve uma ruptura entre os organizadores. Ela foi ocasionada em torno da disputa pelo controle das manifestações em torno da memória de Canudos, açodadas com o acirramento entre autoridades civis e eclesiásticas, já mencionado, que acabaram por afastar o padre Enoque Oliveira da Paróquia de Monte Santo. Após sua prisão e posterior suspensão como pároco, irrompeu no imaginário coletivo da região a idéia de um "novo profeta", já que, como no passado, Conselheiro fora perseguido pela polícia e pela Igreja Católica. Além do mais, o padre Enoque Oliveira é também cearense como o líder de Canudos.

Segundo Guilhermina Ramos, ativista do Movimento Histórico e Popular de Canudos, foi a proposta de centralização da comemoração nas mãos das Dioceses da Igreja Católica da região que proporcionou a cisão com o Movimento. Dentro do quadro da organização camponesa, ela aponta alguns elementos que fundamentam divergências entre a prática do Movimento de Canudos e a da Igreja Católica. A conduta paternalista e assistencialista dos padres da região, além da cooptação de lideranças por parte do clero, acabaram por isolar o Movimento de Canudos. O Movimento quer resgatar o povo como agente da história, sem este paternalismo inibidor do desenvolvimento de uma consciência política dos problemas da região.

Por outro lado, Enoque Araújo avalia que, após o desligamento das atividades paroquiais do padre Enoque de Oliveira, sua intenção de criar um movimento cismático dentro da Igreja Católica, com a criação da Igreja Popular Antônio Conselheiro, não teve o retorno político imaginado, contribuindo para o afastamento de membros expressivos do Movimento de Canudos identificados com os partidos e sindicatos de esquerda, bem como de parcela significativa dos camponeses, que preferiram aderir às manifestações patrocinadas pela Igreja Católica.

O padre Joaquim Gonçalves, pároco de Monte Santo, ao abordar o assunto, afirma que "A ‘Igreja Popular’ teria dado certo se nós não tivéssemos continuado na Igreja o trabalho que ele começou". Isto ficou claro quando do conflito de terra ocorrido na Lagoa do Mandacaru, em 1991, que resultou nas mortes de um tratorista e um pistoleiro. Hoje, a área abriga uma roça e pasto de cabras geridas de forma coletiva22.

Atualmente, é interessante observar que há uma expansão considerável das seitas protestantes, impondo novos valores na região do Sertão de Canudos.

Então, a partir de 1988, passaram a existir duas comemorações na região em torno da memória de Canudos, que, entretanto, fazem parte da mesma matriz discursiva que coloca Canudos como "terra da promissão". Uma patrocinada pelas dioceses da Igreja Católica da região, sugerida pelo padre Tiago, então pároco da cidade de Nova Canudos, que tomou a feição de Romaria. Outra, liderada pelo ex-padre Enoque Oliveira, o qual transformou a Missa em Celebração Popular pelos Mártires de Canudos, que se encontra na XIII Celebração, contando com a participação de trabalhadores rurais, estudantes universitários, intelectuais e artistas da Bahia, Sergipe e Pernambuco. Sendo que nesta última Celebração foi incluída uma homenagem, além dos mártires, aos guerreiros de Canudos.

É importante realçar que, apesar da ruptura, o modelo de comemoração construído pelo Movimento de Canudos, com depoimentos, cânticos, músicas, apresentações teatrais, é incorporado pela Igreja Católica em seu resgate da memória de Canudos. Ambas recorrendo a temas geradores que possibilitem relacionar a memória de Canudos com o cotidiano camponês da região hoje. Por outro lado, percebemos semelhanças evidentes entre o conteúdo das cartilhas editadas pela Igreja Católica, através do Instituto Popular Memorial de Canudos, e a do Movimento de Canudos, publicada em 1986.

Em 1993, por ocasião do centenário de fundação de Canudos, o tema ganhou evidência na mídia nacional, através de reportagens dos principais veículos da imprensa escrita e televisiva, além de intensa produção cultural - teatro, vídeo, filmes, poesias, xilogravuras, cordel, etc. A presença de jornalistas, fotógrafos e cineastas na região do Sertão de Canudos excitou o imaginário social destas comunidades, explicitando a pluralidade de versões da história de Canudos.

Neste ano, durante a X Celebração Popular pelos Mártires de Canudos, realizada pelo Movimento Histórico e Popular de Canudos, às margens do açude do Cocorobó, esta questão emergiu com vigor, já que o tema gerador da celebração foi "Três Canudos, Três Paixões". Em panfleto divulgado na ocasião, são identificados a Canudos Romeiro (da hierarquia católica), que prega Canudos como mais um episódio do calendário da tradição; a Canudos das Elites (intelectual e política), que tenta reconstruir a história passada sem o compromisso com a realidade presente dos camponeses e a Canudos Popular, que intenciona efetivar esta fusão, tendo como base a ação concreta da derrubada de arame, do trabalho coletivo, das Assembléias camponesas.

Segundo Guilhermina Ramos, há uma diferença fundamental entre a Romaria de Canudos e a Celebração dos Mártires de Canudos: "A romaria é feita como se fosse uma festa religiosa qualquer, por exemplo, tem festa de Santo Antônio, aí as pessoas rezam, fazem suas promessas e pagam seus pecados e vão embora. Já o Movimento não é assim, tem um trabalho durante todo o ano, com assembléias e outras atividades em Salvador, em Euclides da Cunha, e que preparam os temas que irão ser discutidos durante a celebração no dia 5 de outubro".

Mas foi a Romaria de Canudos de 1993 que adquiriu uma dimensão política nacional com a incorporação do MST nas comemorações do centenário, tornando o tema em símbolo da reforma agrária, com intensa participação de caravanas de todo o país. Neste ano, a Romaria passou a ser ecumênica, seguindo os preceitos da Teologia da Libertação, com o convite ao pastor Djalma Torres, da Igreja Batista de Nazaré (Salvador), e da mãe-de-santo Aldenice Vasconcelos (do Terreiro Abassã d’Iansã) para participarem das comemorações, além dos índios da região - Kiriris de Mirandela, Kaimbés de Massacará e Tuxá de Rodelas. A propósito, hoje o pastor Djalma faz parte do Instituto Popular Memorial de Canudos, fundado exatamente no ano do centenário, cuja sede fica na cidade de Canudos. Entre suas publicações, destacam-se as cartilhas Canudos: Uma História de Luta e Resistência e Hinos e Poesias.

Em documento intitulado "Carta Aberta do Movimento Popular e Histórico de Canudos", o Movimento faz uma avaliação do impacto das comemorações do centenário levadas a efeito pelas dioceses da Igreja Católica da região, em conjunto com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), resgatando o seu papel histórico de lembrar Canudos numa época que falar do assunto causava pavor e medo aos moradores da região, já que a mídia nacional em algumas manchetes de jornal colocava "Sem Terra restam Canudos" e "A Igreja resgatou Canudos". Em tom de desabafo por sua ausência nestas comemorações, são elencadas algumas questões que marcam a disputa em torno da memória de Canudos: "Nós do Movimento resgatamos Canudos e o arrancamos das águas. Por isso levamos muita porrada, porque era proibido falar disto"; "A Igreja e as elites ignoram a gente, mas usam o que nós fazemos: cânticos, livros, apresentações, etc." e "Reduzem Canudos a uma questão de terra e não é só isso. Canudos é também uma questão de fé, modelo de organização e vivência comunitária".

A ausência do MHPC nestas comemorações mostrava mais desafetos pessoais entre o padre Enoque Oliveira e os membros das dioceses da região do que propriamente uma divergência de fundo sobre Canudos - ambos abordam-no como "terra da promissão" -, ocasionando um certo empobrecimento dos festejos pela sua larga experiência com os camponeses da região.

A Romaria de Canudos organizada pelas dioceses da Igreja Católica da região do Sertão de Canudos guarda algumas especificidades com relação a outras romarias. Ela não é feita para homenagear um santo, mas a memória da experiência social igualitária de Belo Monte, liderada por Antônio Conselheiro. Como mencionado, a celebração se assemelha à promovida pelo Movimento de Canudos, desde 1984, quando ainda era feita em conjunto, com depoimentos, apresentações teatrais, recitais de poesias e a missa propriamente dita. Sua marca registrada é a simplicidade, valorizando os elementos do cotidiano sertanejo - mandacaru, sandália de couro, a cabaça - e, simbolicamente, realçando a "opção pelos pobres" feita pelas dioceses da região.

Em 1993, a fala de um dos próceres da Teologia da Libertação no Brasil, Dom Pedro Casaldáliga, como que coroava a releitura feita pela hierarquia católica sobre Canudos e seu líder, Antônio Conselheiro, iniciada, em 1984, com a primeira Missa pelos Mártires de Canudos:

"Outubro de 1993. Levantando a poeira, memória e esperança, a Romaria do primeiro centenário de Canudos chega a esta terra estigmatizada como região da seca, chão da morte, domínio de coronéis, a terra proibida do Nordeste. Cerca de dez mil pessoas vêm de muita parte. Com muitas bandeiras, mas uma só fé. A Romaria vem para contestar todos esses estigmas, celebrando a memória de Antônio Conselheiro e seu movimento de libertação" 23.

Por outro lado, a participação do MST na comemoração do centenário fez com que Canudos se tornasse símbolo nacional da reforma agrária - "Canudos era um oásis no deserto da fome brasileira". Na leitura que este Movimento elabora da epopéia de Canudos, presente em cartilha comemorativa ao centenário, Antônio Conselheiro é o líder sertanejo que desafiou a Monarquia, a República e os coronéis para fincar nas terras de um grande latifúndio baiano, as raízes de uma comunidade com características igualitárias. Nesta direção, o modo de vida no antigo arraial está representado hoje pelo sonho do socialismo no campo, e Conselheiro como mártir desta luta.

Em poema publicado na Agenda 97 do MST, Sanuza Motta reafirma esta imagem:

"A luta de Canudos
É chama ardente na
memória
De toda classe

trabalhadora
Que faz esta história
Impulsionada pelo anseio
De alcançarmos a vitória
Este país é regido
Pela selvagem capitalismo
Latifúndios e empresários
Com todo o seu cinismo
Camponeses e operários
Com um forte otimismo
Brota o verde do galho
seco
Viva o socialismo"
.

Neste sentido, a história de Canudos faz parte da tradição revolucionária brasileira, que renasce nas lutas do Contestado, na divisa de Santa Catarina e Paraná, nas Ligas Camponesas, nas ULTABs (União dos Trabalhadores Agrícolas do Brasil), lideradas pelo Partido Comunista Brasileiro nas décadas de 1950 e 1960, nos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Dentro da complexa galeria de heróis que compõe a mística do MST, Antônio Conselheiro convive ao lado de Emiliano Zapata, Che Guevara, Zumbi dos Palmares e Jesus Cristo, como pode ser observada em uma das músicas mais cantadas pelos militantes do MST, intitulada "Adelante Compañeros".

"Che, Zumbi, Antônio Conselheiro,
Na luta por justiça
Nós somos companheiros
" 24.

Baseando-se na historiografia marxista, especialmente a obra de Edmundo Moniz, o MST conta a história de Canudos pelo viés da luta pela terra, repassando-a às escolas de centenas de acampamentos existentes no país, através de cartilhas. Assim, a luta de Antônio Conselheiro serve de fermento e ideal para a atuação hoje do MST, "até que o sonho do povo trabalhador de Canudos se realize: que se dividam as terras, que se realize a Reforma Agrária e que se organize uma sociedade mais justa e igualitária no Brasil"25.

É interessante mencionar que, quando da ocupação da Fazenda Quissamã, de propriedade da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias), em 1991, no município de Nossa Senhora do Socorro, em Sergipe, o MST introduziu uma nova experiência de assentamento no estado, através da organização coletiva, desde a apropriação e uso do solo, passando pela organização do trabalho e a organização social, evidenciando uma concepção política de construção de uma sociedade socialista. O modelo inspirador para esta guinada política do MST em Sergipe foi a experiência igualitária e coletiva de Canudos. Como homenagem, foi criado um Centro de Capacitação Canudos (CECAC), que forma militantes do MST de todo o Nordeste, com cursos periódicos. Certamente, a presença de militantes do Movimento Histórico e Popular de Canudos e do Partido dos Trabalhadores nesta iniciativa fortaleceu a perspectiva de Canudos como exemplo de reforma agrária, antes mesmo que a Secretaria Nacional do MST incorporasse esta leitura, transformando-o em símbolo nacional durante a comemoração do centenário de fundação de Belo Monte, em 1993.

Em 1993, por ocasião do Centenário, foi organizado um Seminário "100 Anos de Canudos: A conquista da Terra", promovido pela Universidade Federal de Sergipe, Sindicato dos Bancários de Sergipe e o MST, no qual, durante dois dias, reiterou-se, através de depoimentos, palestras, cantorias e filmes, a luta de Canudos como exemplo de reforma agrária e experiência igualitária.

Como bem observou o professor José Maria de Oliveira Silva, é do imaginário do sertão paraíso, enraizado no folclore e na tradição milenarista, que a utopia socialista, presente tanto nas Romarias e Celebrações, como na historiografia, vai combinar o passado com o presente, fabricando e difundindo no seio das massas populares o novo mito político de Conselheiro, numa bricolage, reunindo experiências, narrativas na literatura, no cinema, nos movimentos sociais. Nessas interpretações sobre a história de Canudos, a imagem de Belo Monte como a ‘Canaã Sagrada’ é revalorizada pelo igualitarismo socialista como uma experiência comunitária de ‘partilha’ de tudo o que era produzido26.

O PROJETO CANUDOS E O PARQUE ESTADUAL DE CANUDOS

De outro lado, vislumbramos uma outra vertente, próxima a instituições ligadas ao Governo do Estado da Bahia e ao Exército brasileiro, que, com seus intelectuais orgânicos, elaboram um questionamento tácito do caráter igualitário da experiência social de Canudos, tal como propugnada pela esquerda, e cuja ênfase de análise recai sobre a Guerra de Canudos em si. Neste sentido, algumas instituições - entre as quais, a Secretaria da Cultura e do Turismo do Estado da Bahia e a Universidade Estadual da Bahia (Uneb) - intencionam a preservação dos locais dos confrontos entre conselheiristas e as forças federais, através da criação do Parque Estadual de Canudos (PEC), com o objetivo de explorar turisticamente a região.

Segundo Edivaldo Boaventura, secretário da Educação e Cultura do Estado da Bahia à época de criação do PEC, instituído pelo Decreto nº 33.333 de 30 de junho de 1986 do então governador João Durval, coube a Renato Ferraz, pesquisador do Centro de Estudos Euclides da Cunha/Uneb, a sugestão de se criar um parque, ainda em 1985, para preservação do sítio bélico.

O Parque está localizado na porção NE do Estado da Bahia, no município de Canudos, tendo como limite oeste o rio das Umburanas, a norte o Açude de Cocorobó, a leste área da Universidade Federal da Bahia, a sul a BR-235, perfazendo uma área de aproximadamente 18 km2. As cidades mais próximas são as de Uauá a oeste, Caraíbas ao norte, Euclides da Cunha a sul e Canudos a leste.

Ainda segundo Boaventura, no PEC, considerado de grande importância quanto aos aspectos ecológicos, arqueológicos, científicos, históricos e educacionais, funcionaria um museu, laboratório de arqueologia, estação experimental de agronomia, estação experimental de metereologia e outras instituições relacionadas à preservação da área, especialmente voltadas para o turismo cultural. Neste sentido, a grande contribuição para a realidade sertaneja seria o estudo interdisciplinar das comunidades do Sertão de Canudos27.

No governo de Nilo Coelho, através do Decreto 2.650 de 1989, foi concluída a desapropriação de mais de 1.300 hectares de terras devolutas do município de Canudos, com vistas a implantação do parque arqueológico e histórico. É incluído neste decreto, em seu artigo 4º, a garantia da permanência dos posseiros cadastrados pela Uneb, tranqüilizando-os sobre possíveis expulsões28.

A demarcação preservou o local onde ocorreram os últimos confrontos entre as forças do Exército e das Polícias Militares e os conselheiristas, onde estão presentes vários vestígios arqueológicos. Ingressando pelo riacho das Umburanas, seu ponto mais elevado é o Alto do Mário, cenário de vários combates entre a 3ª e 4ª expedições militares e o séquito de Conselheiro. Foi lá que o Coronel Moreira César morreu. Por trás, localiza-se o chamado Vale da Morte, onde foram enterrados muitos combatentes. Entre o Alto do Mário e o Belo Monte havia os alicerces da Fazenda Velha, importante registro arqueológico ocupada, com facilidade, pela 3ª expedição e que, durante a quarta, sofreu grande resistência por parte dos conselheiristas.

Na direção ao Norte, encontra-se o Alto do Trabubu, local onde após o combate de Cocorobó, a coluna Savaget, vinda de Aracaju, manteve o derradeiro combate com as forças de Antônio Conselheiro, antes de se juntar as tropas de do general Artur Oscar. Segundo testemunhas orais, a habitação em ruínas é do "tempo da guerra".

Fora do parque encontram-se as serras de Cocorobó, Angico e Cambaio. Curiosamente, esta última foi palco da derrota da 2ª expedição liderada pelo major Febrônio de Brito.

Paralelo à criação do Parque, o Centro de Estudos Euclydes da Cunha, ligado à Uneb, lançou-se num dos projetos mais ambiciosos de resgate da memória regional, partindo da história de Canudos - levantamento arqueológico, programas de caráter didático-pedagógico, levantamento de registros orais. O projeto atraiu verbas do CNPq, do governo baiano, e a atenção de universidades norte-americanas (Miami e Nova York). Todavia, ainda hoje não está consolidado o Parque e os resultados do Projeto Canudos como um todo são parciais.

Desde 1985, a presença da Uneb na região tem sido intensa, buscando intervir no debate sobre o desenvolvimento sócio-econômico e cultural do área de influência do Parque Estadual de Canudos, seja através das Semanas Culturais de Canudos, iniciadas em 1991, ou do I Seminário de Desenvolvimento Sócio-Econômico de Canudos, realizado em conjunto com a Prefeitura Municipal de Canudos e entidades da sociedade civil da cidade, resultando inclusive na famosa Carta de Canudos, editada em julho de 1992.

Mas uma de suas iniciativas mais importantes foi o lançamento da Cartilha Histórica de Canudos, no dia 4 de outubro de 1991, confeccionada por técnicos do CEEC, em conjunto com a Prefeitura Municipal de Canudos e inserida dentro das comemorações do centenário do final da guerra. Em 51 páginas, divididas em cinco capítulos, os historiadores Renato Ferraz, Manoel Neto e José Pinheiro retratam a trajetória de Antônio Conselheiro, privilegiando a Guerra de Canudos. A iniciativa da edição da Cartilha partiu da Prefeitura Municipal, a fim de cumprir a exigência da Lei Orgânica do Município que obriga o estudo da história da região nas escolas de 1º e 2º graus. Além disso, os técnicos do CEEC foram responsáveis pelo treinamento dos professores da rede municipal de ensino, visando adaptá-la ao curriculum escolar.

Segundo Patrícia Pinho, em suas entrevistas com os jovens canudenses, percebeu-se claramente a influência da cartilha. Os estudantes lêem-na como um manual, à qual recorrem para conferir nomes, datas e dados históricos. Há uma preocupação de narrar, com precisão, os nomes e lugares envolvidos na Guerra de Canudos.

Ao transmitir as informações sobre a história de Canudos, a Cartilha influencia o imaginário dos jovens canudenses e os instiga a procurar outras fontes como a memória dos mais velhos29.

Dentro das comemorações do centenário de fundação de Belo Monte, a Uneb, em conjunto com a prefeitura local e apoio do 35º Batalhão de Infantaria do Exército, organizou a III Semana Cultural de Canudos, realizada entre os dias 7 e 13 de junho de 1993, coincidindo com a provável chegada de Antônio Conselheiro a Canudos e com a trezena de Santo Antônio, santo padroeiro da cidade de Canudos.

Para participar da Semana Cultural, a Uneb deslocou, em ônibus fretados, um grupo de aproximadamente 250 pessoas, formado por professores, estudantes, artistas e curiosos de Salvador e outras localidades onde a universidade mantém cursos.

Sérgio Guerra identificou no cartaz deste evento um sintoma claro da deformação da historiografia oficial sobre Canudos, quando o mesmo reproduz a escultura de Mário Cravo Jr., que se encontra depositada no Museu de Arte Moderna da Bahia, numa vibrante imagem de Antônio Conselheiro em destaque, como que subindo aos céus, enquanto por trás dele se encontram os camponeses combatentes de Canudos diluídos em tons esmaecidos. Nesta versão, o líder se sobrepunha à utopia igualitária30.

Além de atividades acadêmicas, um "arraial" foi armado na praça principal da cidade, com barracas de artesanato, bebidas e comidas típicas que divulgavam a figura de Antônio Conselheiro, por meio de camisetas, "bottons", esteiras pintadas à mão, murais, etc. Segundo o depoimento de Patrícia Pinho, o tema de Canudos, seus personagens, lugares e acontecimentos da Guerra estavam presentes nos nomes das barracas. Em meio a muito forró e apresentação de quadrilhas juninas, a história de Canudos se fazia presente nas peças de teatro, na música e na dança.

Segundo a autora, durante a apresentação da peça "Canudos: A Guerra do Sem Fim", dirigida por Paulo Dourado, houve grande excitação entre os canudenses. "No momento em que os atores representaram a guerra, a platéia gritava entusiasmada ‘Dá-lhe Canudos’, ‘Mata esses soldados tudo fio de uma égua’. Algumas senhoras idosas que assistiam à peça começaram a chorar quando o povo do Conselheiro foi morrendo. No final, quando os atores desceram do palco, muitas pessoas se aproximaram do velho ator que representou Antônio Conselheiro - vestido tal qual o líder, com uma túnica azul e um chapéu largo daonde (sic) pendiam longas e coloridas fitas, barba e cabelos brancos compridos - para pedir-lhe a benção!"31.

Entretanto, os excessivos gastos com a III Semana Cultural de Canudos foram bastante criticados pela imprensa baiana, pois aconteceu num momento de grande seca e sem um envolvimento direto das comunidades em sua organização. Daí o evento ser conhecido como realização dos de "fora". Esta ausência da participação da comunidade canudense também pode ser compreendida pela presença do Exército, dando apoio logístico através da montagem do acampamento. Em contraste, há intensa presença da comunidade na trezena de Santo Antônio, organizada pela paróquia local.

O próprio prefeito de Canudos, Manoel Adriano Filho, criticou o fausto do evento, pois enquanto os patrocinadores gastam aproximadamente Cr$4 bilhões na organização da Semana, quatro mil camponeses, atingidos pela seca, estavam passando fome no município, dos quais Cr$500 milhões eram provenientes da prefeitura. Segundo o prefeito, ele foi voto vencido na Câmara Municipal na votação para a liberação da verba.

Enoque Oliveira, coordenador do Movimento Histórico e Popular de Canudos, afirmou que o desperdício do evento comprovava sua tese da existência de três Canudos e que a intelectualidade da Uneb "evita discutir os problemas cara a cara com o sertanejo". Entretanto, ele considerou importante qualquer investimento cultural para se resgatar a história da região32.

É interessante observar, como noticiado pela imprensa baiana, que durante a criação do Parque Estadual de Canudos, além do mencionado secretário de Educação, do coordenador do Projeto, Renato Ferraz, do reitor da Uneb, José Edelzuito Soares, e Yara Ataíde, coordenadora do CEEC, percebemos na comitiva que visita a região a massiva presença militar, na pessoa do comandante militar do Nordeste, general Fernando Cerqueira Lima, general-de-divisão, Antenor de Santa Cruz Abreu, comandante da 6ª região militar, e o general-de-brigada, Alberto Evilásio de Barros Gondim, chefe do Estado-Maior do Comando Militar do Nordeste, demonstrando o interesse estratégico militar de ocupação do Sertão de Canudos33.

Além de atuar nas Semanas Culturais da Uneb e da sua preocupação geopolítica com a região, o Exército brasileiro também tenta reconstruir sua imagem diante da população local, através de eventos como o da Ação Cívico-Social 96 (Aciso), compreendendo atividades de atendimento médico-odontológico, palestras educativas, medicamentos gratuitos e recuperação de escolas.

Segundo reportagem feita por Vera Schumann, a Aciso é realizada pelo Exército, sendo interrompida às vezes por falta de recursos. No ano passado foi ampliada com a parceria das secretarias estaduais da Agricultura e do Trabalho, promovendo orientação para melhoramento do rebanho caprino e bovino e das culturas típicas da região, como o umbu e a palma, para a alimentação humana e animal. Numa leitura simpática à atuação do Exército na região, a articulista afirma que, alheia aos eventos intelectuais comemorativos ao centenário da guerra de Canudos, os habitantes da região lamentavam que, a despeito de constarem na mídia, a realidade local não mude. Daí a importância que deram a ação do Exército no mês de novembro do ano passado, quando usufruíram de alguns dos preceitos básicos da cidadania: saúde e educação34.

Por outro lado, é interessante observar que a ação criminosa das forças legalistas foi tão evidente que hoje o Exército já admite que houve um "massacre" em Canudos. Segundo o coronel da reseva Davis Ribeiro de Sena, em depoimento prestado no filme de Antônio Olavo, houve um "extermínio". Sob sua ótica, Canudos era uma secessão que deveria ser debelada. Contudo, a maneira açodada como foi realizada é que deve ser questionada. Este coronel foi consultor militar para o filme de Sérgio Rezende sobre a Guerra de Canudos, a ser lançado brevemente, bem como prepara um livro e um álbum sobre o centenário a pedido do Exército brasileiro35.

Portanto, o projeto do Parque Estadual de Canudos dialoga com a memória instituída, cuja inspiração é eminentemente histórico-militar, como se pode perceber em algumas publicações ligadas ao projeto. Em artigo publicado na Revista Canudos do Centro de Estudos Euclydes da Cunha, da Uneb, Paulo Zanettini, coordenador do Projeto de Arqueologia Histórica, afirma que o projeto de constituição do Parque Estadual de Canudos teve como o objetivo primordial o registro e mapeamento de ocorrênciais associadas aos conflitos bélicos: fragmentos de louças, vidros, elementos metálicos (projéteis, cápsulas, pentes, cantis), estruturas de dimensões variadas (tocas, trincheiras), áreas de sepultamento. A intenção era obter um quadro referencial do campo de batalha com relação a ambas as facções envolvidas.

Os objetivos do Projeto de Arqueologia Histórica estão explicitados no livro recentemente publicado pela Ceec/Uneb comprovam esta assertiva: formular uma cartografia da guerra (3ª e 4ª expedições) com base na distribuição espacial dos vestígios arqueológicos e "features" superficiais (trincheiras, ruínas), reconstruir as técnicas de matança e tratamento dos mortos, empregados por ambas as facções, através dos vestígios ósseos e reconstituir o cotidiano nos acampamentos militares, sobretudo no que se refere à questão da organização espacial e da subsistência36.

Segundo o arqueólogo, é necessário realizar uma avaliação do material arqueológico levantado em 1987/88 para que se possa ter uma dimensão do impacto promovido com a visita não controlada na área, motivada por diversos grupos e entidades preocupados em perpetuar a memória desse episódio marcante de nossa história popular.

Zanettini critica a atitude "politicamente correta" das comemorações desencadeadas pela Igreja Católica e movimentos sociais na região a partir do centenário, por ocasionarem efeitos "danosos" e muitas vezes irreversíveis ao Parque, como no caso do Vale da Morte, quando sítios funerários foram depredados37.

Por outro lado, Renato Ferraz contesta a imagem de uma Canudos igualitária, afirmando que a cidade de Belo Monte não difereria das outras cidades nordestinas da época, no que se refere aos seus aspectos urbanos e de organização social. Sua interpretação se aproxima da de intelectuais ligados ao Exército, como o coronel Davis Ribeiro, quando reitera que Conselheiro não reconheceu o governo republicano e, portanto, pode-se considerar Canudos como uma cidadela independente dentro do Brasil. Ferraz destaca ainda a estratégia utilizada pelos conselheiristas contra o Exército como a "tática de guerrilhas".

Também o professor Calasans, como já citado anteriormente, questiona a existência de uma sociedade igualitária em Canudos, em virtude da presença marcante no seio da comunidade de ricos comerciantes, além da existência da comercialização de casas38.

A resistência das comunidades envolvidas com a Igreja Católica e o Movimento de Canudos com relação ao projeto do Parque Estadual de Canudos foi enorme, tanto pela referida presença militar, como, principalmente, pela proposta de cercá-lo. Como uma das principais bandeiras de luta do Movimento de Canudos era a derrubada de cerca e a defesa das áreas de "fundo de pasto", não se poderia admitir o isolamento de uma área que era considerada um bem comum para as comunidades do Sertão de Canudos. Segundo Antônio Callado, citando um morador desta região, "o problema (...) não é propriamente de seca e sim de cerca"39.

João Régis, 90 anos, morador da Fazenda Umburana, próxima ao Alto do Mário, lembra que a idéia de cercar o Parque surgiu de Renato Ferraz, coordenador do Projeto Canudos da Uneb, e que a resistência dos moradores fora motivada porque eles não poderiam cortar "um pau de madeira" ou ainda que para pescar teriam que possuir um documento autorizando a entrada no Parque. Com o apoio do padre Tiago, pároco da cidade de Canudos, cerca de 40 moradores da área relativa ao Parque enviaram um abaixo assinado para o Presidente da República, conseguindo permanecer no local. Entretanto, o morador suspeita que há a possibilidade de que seja cercado o Parque, por causa dos marcos de concreto que o circundam. "Se cercar, pronto, é um fracasso pra pobreza"40.

Por outro lado, esta resistência também foi ocasionada pela falta de diálogo da direção do Projeto com as comunidades da região, que não conseguiram compreender a importância da criação de um museu eco-turístico, principalmente pela falta de informações sobre seu envolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante as comemorações dos centenários, os eventos realizados por diferentes entidades e instituições na região do Sertão de Canudos têm incentivado à reflexão entre os canudenses da necessidade de se conhecer a história de Canudos como elemento central de sua identidade, excitando seu imaginário social. Como ficou claro no trecho do poema de José Aras, que serviu de epígrafe para este ensaio, a desapropriação de um espaço vivenciado pelos habitantes da região em torno de um passado comum - a Velha Canudos reconstruída -, em vias de ser transformado e desalojado pelo açude do Cocorobó no final da década de 1960, acabou por excitar a lembrança dos mais velhos, reafirmando a assertiva de M. Halbwachs de que "Não há memória coletiva que não se desenrole num quadro espacial"41.

Estes depoimentos vão ser recuperados como possibilidade de uma memória alternativa por uma vertente, próxima da matriz marxista, composta de diversos segmentos sociais que objetivam, no contexto das comemorações, resgatar a experiência social desenvolvida por Antônio Conselheiro, no sentido de caracterizá-la como uma experiência igualitária de sociedade e uma possibilidade de poder alternativo no seu confronto com a ordem coronelística vigente à época: Igreja Católica, em sua ala progressista; o Movimento Histórico e Popular de Canudos; o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), alguns segmentos intelectuais ligados às universidades da região (Sergipe, Bahia e Pernambuco), militantes do movimento sindical baiano e sergipano, além de artistas e o "povo da terra".

É interessante observar que, à época do Massacre de Eldorado dos Carajás, foi estabelecida pela imprensa a ponte entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra com Canudos. Na fala do diretor de teatro, Antunes Filho, "Canudos é oportuno porque permite discutir o problema dos sem-terra"42.

A grande polêmica sobre esta associação se dá no anteriormente mencionado filme de Antônio Olavo, durante a comemoração da fundação de Belo Monte, quando vários depoimentos de estudiosos da história de Canudos tendem a divergir sobre o aspecto igualitário e socialista da comunidade de Belo Monte, tal como reconstruído pelos movimentos sociais, partidos políticos de esquerda e Igreja Católica da região. Temos os relatos de Renato Ferraz e José Calasans que propõem a existência de uma comunidade em Canudos próxima das outras cidades nordestinas, duvidando da imagem construída pela esquerda de uma sociedade igualitária e exemplo de reforma agrária.

Vislumbramos aqui as diferentes perspectivas de se trabalhar a memória da Guerra de Canudos na região: uma que pensa Canudos como experiência social e outra como experiência de guerra. No primeiro caso, encontramos a Igreja Católica e os movimentos sociais que tentam construir, a partir das celebrações, uma tradição de lembrar os motivos que levaram ao conflito e que, de certa forma, permanecem presentes até hoje - analfabetismo, mortalidade infantil, concentração fundiária, grilagem, etc. -, discutindo com os camponeses nas suas comunidades a experiência social da cidade de Belo Monte. Neste ano, a Comissão responsável pela Romaria de Canudos escolheu como tema a denúncia do crime perpetrado contra a comunidade camponesa do nordeste da Bahia -"Canudos: 100 anos do massacre no sertão (1897-1997) - Sangue Derramado, Terra Fecundada". A direção nacional do MST também aprovou uma Marcha para Canudos, partindo de Aracaju com a participação de cerca de 800 trabalhadores rurais dos estados de Sergipe, Bahia, Alagoas e Pernambuco. A previsão da chegada da Marcha do MST deverá coincidir com a celebração da Igreja Católica, nos dias 25 e 26 de outubro. No segundo caso, inserimos o Projeto Canudos e a criação do Parque Estadual de Canudos, sob a coordenação da Uneb e o apoio logístico do Exército, que intencionam a preservação local dos combates entre as forças legalistas e conselheiristas, numa inspiração eminentemente histórico-militar, sem o envolvimento direto das comunidades da região no debate dos seus problemas e sobre a utilização do parque. Suas principais fontes de pesquisa têm sido, além dos vestígios arqueológicos, as memórias dos soldados combatentes. O parque foi fundado, oficialmente, no dia 13 de junho deste ano, dentro das comemorações do centenário do final da Guerra de Canudos.

Em nossa consciência social, Canudos não se tornou história, é ainda memória, campo de vivência e luta, briga pelo presente e pelo futuro da República. "Canudos nos traz excelentes elementos para pensar a solidariedade e o comunitarismo como instrumentos de fortalecimento social. Não podemos condenar a Revolta de Canudos ao esquecimento ou à intolerância, porque somos nós quem estamos perdendo. Talvez refletir sobre Canudos, hoje, nos leve a pensar novas formas de cidadania"43 . Afinal de contas, qual sociedade nós queremos?

Notas

1SARA, José. Defendendo o Conselheiro. In: Meu folclore. Euclides da Cunha, Museu do Arraial Bendengó, 3ª ed., 1963, p. 56.

2SILVA, José Maria de Oliveira. Rever Canudos: Historicidade e Religiosidade Popular (1940-1995). São Paulo, FFLCH/USP, 1996 (mimeo). Leitura próxima a do Autor pode ser encontrada em Lori Madden. A Guerra de Canudos na História. Luso-Brazilian Rewiew. v. 30, n. 2, University of Wisconsin, winter 1993.

3SANTOS, Afonso C. M. dos. Memória, História, nação: propondo questões. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 87, out./dez. 1986, p. 6-7.

4NORA, Pierre. Memória Colectiva. In: LE GOFF, J., CHARTIER, R. & REVEL, J. (sob a direção de). A Nova História. Coimbra, Edições Almedina, s/d; ____. Entre Memória e História: A problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, 10: 7-28, dez. 1993 (tradução de Yara Aun Khoury).

5NORA, Pierre. In: LE GOFF, J. (et. alii). op. cit., p. 450.

6NORA, Pierre. Entre Memória e História: A problemática dos lugares. In: op. cit. p. 9.

7SILVA, M. A. da. História: O Prazer em Ensino e Pesquisa. São Paulo, Brasiliense, 1995, p. 70-71; Montenegro, Antônio Torres. História Oral e Memória: a cultura popular revisitada. São Paulo, Contexto, 3ª edição, 1994, p. 18.

8FRISCH, Michael (et. alii). Os Debates sobre Memória e História: Alguns Aspectos Internacionais. In: FERREIRA, Marieta de M. & AMADO, Janaína (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Editora da FGV, 1996, p. 77-78. Ver também SILVA, Marcos A. - op. cit., p. 70-71.

9SILVA, Marcos Antônio da. op. cit., p. 67.

10Então, a memória e a história neste contexto foram, por excelência, os lugares das disputas político-ideológicas na definição das identidades coletivas, especialmente entre os diversos atores sociais emergentes e o Estado. No âmbito da batalha dos trabalhadores no resgate de seu projeto histórico à época, vale lembrar, entre outros exemplos, a experiência do Programa "Memória e Acompanhamento do Movimento Operário" do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), que, entre outras atividades, editou diversas publicações nesta direção, destacando-se o livro Imagens da Luta (1905-1985) sobre a história do movimento sindical e operário no Grande ABC paulista, especialmente em São Bernardo, e a História dos Metalúrgicos de São Caetano. Cf. Tempo e Presença. Rio de Janeiro/São Paulo, n. 232, julho de 1988, p. 12.

11NORA, Pierre. Memória Colectiva. op. cit. p. 453.

12MAESTRI, Mário. Canudos: história e historiografia (mimeo); MONIZ, Edmundo. A Guerra Social de Canudos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978; ____. Canudos: A luta pela terra. São Paulo, Global, Coleção História Popular, 4ª ed. rev. a ampl., 1986.

13SALEM, Helena (coord.). A Igreja dos Oprimidos. São Paulo, Brasil em Debates, 1981, p. 61-62.

14Revista Veja. 8 de agosto de 1984 p.110/111.

15A Tarde. Salvador, 26/7/1984, p. 6.

16O Estado de São Paulo. São Paulo, n. 667, 23 de maio de 1993, Caderno Especial.

17FERRO, Marc citado por MONTENEGRO, Antônio Torres. op. cit., p. 15.

18SILVA, José M. de O. - op. cit.. p. 237.

19Coordenação do Novo Movimento Histórico de Canudos. Canudos: a sua história e de seu fundador. Salvador, EMQ, 1984; ____. Noventa anos depois... Canudos de novo. Salvador, EMQ, 1986.

20LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi - 1. História e Memória. Porto, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 47.

21GUERRA, Sérgio. Artistas, sindicalistas e comunidades opinam sobre o Movimento de Canudos. In: O Tabuleiro. Serrinha/BA, 15 a 30 de outubro de 1985.

22BONASSA, Elvis Cesar. Canudos renasce das cinzas do Conselheiro. Folha de São Paulo. 25/12/92. p. 6.

23PINHO, Patrícia de Santana. Revisitando Canudos Hoje no Imaginário Popular. Campinas/SP, IFCH/UNICAMP, 1996 (Dissertação de Mestrado), p. 138.

24Canções da Terra. São Paulo, MST, 1994.

25MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Canudos Não Se Rendeu: 100 anos de luta pela terra. São Paulo, s/ed., 1993.

26SILVA, José M. de Oliveira. op. cit., p. 237.

27Jornal da Bahia. Salvador, 24 de julho de 1986, p. 12.

28Diário Oficial. Salvador, 11 de agosto de 1989.

29PINHO, Patrícia. op. cit.. p. 34; Tribuna da Bahia. Salvador, 2 de outubro de 1991.

30GUERRA, Sérgio. O sonho da Canaã nordestina. A Tarde. Salvador, 26/6/1993, p. 5.

31PINHO, Patrícia. op. cit., p. 147.

32A Tarde. Salvador, 12 de junho de 1993, p. 5.

33A Tarde. Salvador, Caderno 2, 15 de fevereiro de 1986, p. 12.

34SCHUMANN, Vera. Exército ajuda resgatar a cidadania em Canudos. A Tarde. Salvador, 24/11/1996, p. 3.

35MEDEIROS, Jotabê. Saga de Canudos ressurge da fé das cinzas. O Estado de São Paulo. São Paulo, 4 de agosto de 1996, Caderno 2.

36UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA/CENTRO DE ESTUDOS DE EUCLIDES DA CUNHA. Arqueologia Histórica de Canudos. Salvador, Uneb, 1996, p. 29.

37ZANETTINI, Paulo Eduardo. Por uma arqueologia de Canudos e dos brasileiros iletrados. Revista Canudos. Salvador, UNEB, v. 1, n. 1, p. 167-172, jul./dez. 1996.

38OLAVO, Antonio. Paixão e Guerra no Sertão de Canudos. Salvador : Portfolium Laboratório de Imagens, 1993.

39CALLADO, Antônio. Há um século o Brasil afunda com Canudos. Folha de São Paulo. São Paulo, 20 de abril de 1996 (Ilustrada), p. 8.

40Depoimento de João Régis ao Autor. 01 de junho de 1997.

41HALBWACHS, Maurice citado por JOUTARD, Ph. Memória Coletiva. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das ciências históricas. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 527.

42Citado em MEDEIROS, Jotabê. op. cit. O Estado de São Paulo. São Paulo, 4 de agosto de 1996, Caderno 2.

43Entrevista com José Murilo de Carvalho. O Estado de São Paulo. São Paulo, n. 667, 23 de maio de 1993, Caderno Especial.

Antônio Fernando de Araújo Sá
antoniofernandosa[arroba]uol.com.br
Depto. de História - Universidade Federal de Sergipe



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