"A Nação reconhecerá o passado obscuro
Imortalizaste Canudos - Belo Monte!
Pelas águas do Cocorobó, a grande fonte
Tu serás coberto, mas não a tua história
Como herói, teu nome será lembrado
Na audácia dos jagunços, na fúria dos soldados
Nas fitas de cinema, nos ‘bronzes da memória’... ".
José Aras1
O belo e quase profético poema de José Aras evidencia o impacto da construção do açude do Cocorobó, terminada em 1968 e prevista desde o final dos anos 30, sobre a memória coletiva dos habitantes da região da Velha Canudos, bem como no imaginário historiográfico e cultural brasileiro. A submersão da cidade sob as águas do açude fez com que, ao contrário do que intencionara o Estado autoritário, cujo objetivo era apagar da memória popular lembranças de sua história, emergisse uma intensa produção cultural, abordando o tema de diferentes modos e versões.
As principais matrizes discursivas sobre a Guerra de Canudos, identificadas pelo professor José Maria de Oliveira Silva, foram a tradição euclidiana e a de viés marxista, permeando toda a produção cultural contemporânea: história, literatura, quadrinhos, canções populares, fitas de cinema e vídeo, peças de teatro. Tomando os anos 40 como o início da redescoberta da história de Canudos, o Autor busca perceber se as novas interpretações questionam ou se inserem dentro dos quadros de uma tradição historiográfica euclidiana, consolidada desde a publicação do livro Os Sertões, em 1902.
De um lado, ele aponta a continuidade da tradição messiânica e milenarista, presente na referida obra euclidiana, em historiadores, pesquisadores da cultura popular, poetas e romancistas como José Calasans, Nertan Macedo, Odorico Tavares, Roger Bastide, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Robert Levine, Vargas Llosa, entre outros, desde o final dos anos 40 até os dias atuais. Por outro lado, José Mª Silva mostra a possível "ruptura" - talvez fosse melhor identificá-la como releitura - da tradição euclidiana pela historiografia marxista, introduzindo novos paradigmas de análise para os movimentos camponeses do passado - luta de classes, movimentos pré-políticos, revolução utópica e socialista -, presente nas obras de Rui Facó e Edmundo Moniz, mas também em poetas populares como Manoel Inácio do Nascimento, Enoque Araújo, Ivanildo Vilanova e Sanuza Motta, entre outros.
É no confronto entre estas matrizes discursivas que emergem uma multiplicidade de abordagens e versões sobre a experiência social de Canudos e a liderança de Antônio Conselheiro, indo desde o imaginário construído pela historiografia oficial e parte da tradição euclidiana sobre uma sociedade miserável, ignorante, antro de bandidos e fanáticos, guiados por um louco bronco - fruto do abismo cultural entre o sertão/barbárie e o litoral/civilização; até o resgate positivo de Canudos como Aldeia Sagrada, Canãa nordestina, Nova Jerusalém, símbolo de uma reforma agrária possível no século passado, e Antônio Conselheiro como reformador social2.
Como estas matrizes discursivas se manifestam dentro da produção cultural nas comemorações dos centenários da Guerra de Canudos (1993-1997)? Existem outras possibilidades de leitura da história de Canudos por outros grupos sociais e instituições dentro da memória instituinte? Até que ponto a memória popular produz uma memória alternativa à leitura da historiografia oficial?
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