A teoria crítica da tecnologia

Partindo do mesmo tipo de postura em relação à TC que adotou o movimento da TA, mas segundo orientação disciplinar próxima à da filosofia da tecnologia, Andrew Feenberg (1999, 2002) explora uma linha de argumentação radical (no sentido etimológico original: de ir à raiz da questão) que nos leva a uma agenda propositiva e concreta sobre como os partidários da TS deveriam atuar a fim de potencializar seu desenvolvimento e crescente adoção. Para tanto, retoma um debate centrado na crítica à visão do marxismo tradicional acerca da tecnologia que havia ficado parado nos anos 1970 em meio ao enfrentamento entre a linha soviética e a chinesa de construção do socialismo (Novaes e Dagnino, 2004). Embora outros autores tenham participado desse debate (inclusive o já citado David Dikson), devido à interlocução que mantêm com interpretações de grande impacto no meio acadêmico, como a da Escola de Frankfurt e a do construtivismo, e a perspectiva inovadora e abarcante de sua contribuição, vamos nos limitar à contribuição de Feenberg, concentrando-nos nos dois livros indicados.

A forma como Andrew Feenberg aborda a relação CTS sugere a existência de uma interlocução, ainda que nem sempre explicitada, com a visão da construção social da tecnologia. Tal interlocução pode ser entendida como uma paulatina "politização" no macronível de análise da trajetória explicativa proposta por essa visão, no sentido da explicitação do conteúdo de classe que medeia essa relação e que – inclusive pela opção metodológica que faz por um micronível de análise – fica obscurecida.

Um aporte do marxismo à idéia da construção social da tecnologia poderia começar com a importância que este confere ao conceito de grupo social relevante e ao conceito de flexibilidade interpretativa, que termina por outorgar um sentido específico e consoante com seus interesses ao objeto em construção quando do estágio de "fechamento". Se associarmos o conceito de elite de poder (Ham e Hill, 1993) ao de grupo social relevante, particularizando seu campo de abrangência para o que o construtivismo social denomina "marco tecnológico" – que vincula o ambiente social ao processo de concepção de um artefato –, talvez seja possível estabelecer uma relação analiticamente produtiva com a interpretação marxista moderna da relação CTS (Dagnino, 2002b).

O construtivismo, ao argumentar que o desenvolvimento tecnológico envolve conflito e negociação entre grupos sociais com concepções diferentes acerca dos problemas e soluções, desafia a visão até então fortemente dominante entre os estudiosos da dinâmica tecnológica. A partir da crítica que faz, a escolha de cada engrenagem ou alavanca, a configuração de cada circuito ou programa não podiam mais ser entendidos como determinados somente por uma lógica técnica inerente, e sim por uma configuração social específica que serve de unidade e escolha.

Feenberg, pautando-se principalmente na interpretação do construtivismo, e insatisfeito com a visão pessimista da Escola de Frankfurt de que "só um deus pode nos salvar da catástrofe tecnocultural" que a tecnologia capitalista tende a provocar, formula o que ele chama de "teoria crítica da tecnologia". Para caracterizar o modo como se dá sua interlocução com o construtivismo, apresentamos detalhadamente alguns dos conceitos centrais que ele utiliza.

O primeiro é o de subdeterminação, que se baseia na idéia de que nem todos os processos sociais cumulativos de longo prazo de maturação se dão em função de imperativos funcionais.

Exemplos disso, analisados pela teoria econômica, são as expectativas inflacionárias, as profecias autocumpridas dos mercados financeiros, o efeito de bola-de-neve que ocorre quando começa a cair o preço de propriedades urbanas. Pinch e Bijker (1990), ao apontarem que, quando existe mais de uma solução puramente técnica para um problema, a escolha entre elas tornase ao mesmo tempo técnica e política, sugerindo que as implicações políticas da escolha passarão a estar incorporadas na tecnologia que dela resulta, implicitamente aceitam a idéia de "subdeterminação".

Outro conceito central presente na explicação de Feenberg (1999) sobre a relação entre tecnologia e sociedade é o de poder tecnocrático, relativo à capacidade de controlar decisões de natureza técnica. A origem do poder tecnocrático estaria na substituição das técnicas e da divisão de trabalho tradicionais engendradas durante a emergência do capitalismo – poder que funda um novo tipo de organização (a empresa) e cria, dentro desse capitalismo nascente, um novo lugar na divisão de trabalho: o lugar do empresário-capitalista e, depois, o do gerente e o do engenheiro. O resultado cumulativo da introdução de métodos e técnicas que reforçam o controle do capitalista sobre o processo de trabalho é a tendência à desqualificação crescente do trabalho e do trabalhador direto e a mecanização, a qual vem a consolidar o poder dos capitalistas nas novas forças de organização social que criaram.

Por ser o resultado de um processo tendencial e contingente, ainda que despossuído de um fundamento (direcionalidade) preciso, o conceito de poder tecnocrático pode ser entendido como aparentado ao de "subdeterminação". É de forma coerente com essa visão que Feenberg interpreta a maneira como o capitalismo atua em relação ao processo de seleção técnica.

Segundo ele, a explicação já estava presente na obra de Marx, na qual há em algumas passagens argumentos que dão a entender que a escolha entre alternativas técnicas é feita não em função de critérios técnicos, mas sociais. No volume I de O capital, Marx afirma, baseado na análise que realizou da mudança técnica que ocorria na Inglaterra: "Poder-se-ia escrever toda uma história dos inventos que, a partir de 1830, surgiram apenas como armas do capital contra os motins operários" (Marx, 1996).

Essa passagem sugere uma questão importante: ao introduzir inovações, o capitalista não estaria buscando só a acumulação de capital, mas também o controle do processo de produção no interior da empresa. Suas decisões técnicas seriam tomadas com o objetivo de reforçar seu poder e manter sua capacidade de tomar, no futuro, decisões semelhantes.

Generalizando, para trazer ao campo de nossa preocupação a crítica do marxismo contemporâneo ao socialismo real, poderseia entender a degenerescência burocrática como o resultado da utilização, num contexto em que os meios de produção já não eram propriedade privada e não existiam relações fabris de assalariamento, de uma tecnologia que não podia prescindir do controle do capitalista sobre a produção. Isso teria levado à criação de seu sucedâneo – o burocrata do socialismo soviético – que cedo se apoiaria no controle do processo produtivo no chão-defábrica que lhe era outorgado para auferir benefícios políticos e econômicos no macronível, dando origem às tristemente célebres "nomenclaturas". Nessa interpretação, a posse da iniciativa técnica (ou o controle das decisões de natureza técnica) tem um poder de determinação semelhante e complementar à posse do capital. Ela é o que assegura ao capitalista seu lugar privilegiado – como classe – na pirâmide socioeconômica e de poder político na sociedade capitalista.

A manutenção do controle técnico não seria então o efeito de um imperativo tecnológico, mas da maximização do poder de classe sob as circunstâncias especiais de sociedades capitalistas.

Essa situação permite entender o modo específico pelo qual se dá o conflito social na esfera técnica: se alternativas tecnicamente comparáveis têm implicações distintas em termos da distribuição do poder, e se ocorre alguma disputa entre trabalhadores e capitalistas (ou seus representantes técnicos, os engenheiros), tende a ser escolhida aquela que favorece o controle do processo por estes últimos.

Embora um tanto distante da situação que nos envolve, em que o que está em discussão é a necessidade de contar com uma TS capaz de alavancar um estilo alternativo de desenvolvimento, esse tipo de reflexão guarda com ela uma semelhança, uma vez que a TC tende a dificultar sua construção.

Outro conceito importante na trajetória explicativa desenvolvida por Feenberg (1999) é o de "autonomia operacional", usado para descrever esse processo de acumulação do poder e que denota tanto os agentes como as estruturas sociais nele envolvidas.

Esse processo iterativo de seleção entre alternativas técnicas viáveis de maneira a maximizar a capacidade de iniciativa técnica, que leva à preservação e à ampliação da autonomia operacional na empresa e da hegemonia na sociedade como um todo, estaria no núcleo do código técnico capitalista.

Outro conceito – "indeterminismo" – é usado para apontar a flexibilidade e a capacidade de adaptação a demandas sociais diferentes que possuem os sistemas técnicos. Esse conceito, que num certo sentido opõe-se aos anteriores e abre uma perspectiva especialmente importante para esta discussão, permite explicar por que o desenvolvimento tecnológico não é unilinear e, ao contrário, pode se ramificar em muitas direções e prosseguir ao longo de mais de uma via.

A importância política da posição de Feenberg é clara: se existem sempre muitas potencialidades técnicas que se vão manter inexploradas, não são os imperativos tecnológicos os que estabelecem a hierarquia social existente. A tecnologia passa então a ser entendida como um espaço da luta social no qual projetos políticos alternativos estão em pugna, e o desenvolvimento tecnológico é delimitado pelos hábitos culturais enraizados na economia, na ideologia, na religião e na tradição. O fato de esses hábitos estarem tão profundamente arraigados na vida social a ponto de se tornarem naturais, tanto para os que são dominados como para os que dominam, é um aspecto da distribuição do poder social engendrado pelo capital que sanciona a hegemonia como forma de dominação.

As tecnologias efetivamente empregadas seriam selecionadas, entre as muitas configurações possíveis, segundo um processo pautado pelos códigos sociotécnicos estabelecidos pela correlação de forças sociais e políticas que delimitam o espaço de sua consolidação. Os conceitos apresentados permitem entender por que a tecnologia, uma vez estabelecida ou "fechada" (no jargão do construtivismo), passa a validar materialmente esses códigos sociotécnicos.

Uma maneira simples de situar o conjunto de aspectos constitutivos da teoria crítica no âmbito das perspectivas que se expressam em nossa sociedade sobre o tema se dá mediante um plano dividido em quatro quadrantes por dois eixos onde se representa a posição dessas perspectivas em relação a duas questões fundamentais: a da neutralidade e a do determinismo. Na figura a seguir, o eixo vertical – da neutralidade – representa no extremo superior a percepção que considera a tecnologia como neutra, isto é, livre de valores (ou interesses) econômicos, políticos, sociais ou morais. No extremo inferior, a que a entende como condicionada por valores. Segundo a percepção neutra, um dispositivo técnico é simplesmente uma concatenação de mecanismos causais; não há qualquer coisa semelhante a um propósito. Já para a percepção que entende a tecnologia como condicionada por valores, elas, na condição de entidades sociais, têm um modo especial de carregar valor em si próprias.

No eixo horizontal – do determinismo – representa-se, no extremo esquerdo, a percepção que considera a tecnologia como autônoma e, no direito, a que a entende como controlada pelo homem. De acordo com esta última, teríamos liberdade para decidir como a tecnologia se desenvolverá; dependeria de nós o próximo passo da evolução dos sistemas técnicos, pois seriam humanamente controláveis: nossas intenções determinam os próximos passos de sua evolução. Conforme a primeira, a invenção e o desenvolvimento tecnológico teriam suas próprias leis imanentes; nós apenas as seguiríamos.

Uma vez que os entendimentos a respeito da natureza do conhecimento tecnológico (ou, com mais propriedade, tecnocientífico) representados nos dois eixos são independentes, a combinação das quatro percepções extremas, duas a duas, dá origem a quatro visões que podem ser representadas em cada um dos quadrantes delimitados pelos dois eixos, tal como mostrado na figura a seguir.

 

Fonte: Elaborado pelo autor a partir das proposições de Andrew Feenberg.

A primeira dessas quatro visões é a do instrumentalismo, que combina as percepções do controle humano da tecnologia e da neutralidade de valores. É uma visão moderna padrão, que concebe a tecnologia como uma ferramenta ou instrumento da espécie humana mediante o qual satisfazemos nossas necessidades, determinando a direção do desenvolvimento tecnológico de acordo com nossa vontade. Qualquer tecnologia pode, portanto, ser utilizada indistintamente para atuar sob qualquer perspectiva de valor (ou, de modo simplista, para o bem ou para o mal).

A segunda visão é a do determinismo, que combina autonomia e neutralidade. É a visão marxista tradicional segundo a qual o avanço tecnológico (ou o desenvolvimento das forças produtivas) é a força motriz da história. A tecnologia não é controlada pelo homem; é ela que molda a sociedade mediante as exigências de eficiência e progresso. A tecnologia utiliza o avanço do conhecimento do mundo natural para servir à humanidade.

Cada descoberta se orienta em direção a algum aspecto de nossa natureza, satisfazendo alguma necessidade humana ou estendendo nossas faculdades.

A terceira é a do substantivismo, que entende a tecnologia como dotada de autonomia e portadora de valores. É a visão crítica do marxismo tradicional proposta pela Escola de Frankfurt.

O pressuposto da neutralidade do avanço tecnológico defendido pelo instrumentalismo atribui um valor formal à tecnologia condicionado pela busca da eficiência, a qual pode servir a qualquer concepção acerca da melhor forma de viver. Já o compromisso com uma concepção específica do bem-viver conferiria à tecnologia um valor substantivo e ela deixaria de ser meramente instrumental, como entende o instrumentalismo. Em conseqüência, não poderia ser usada para diferentes propósitos de indivíduos ou sociedades que divirjam sobre o que seja o bem-viver. Ela deixará de ser um mero instrumento adequado a qualquer conjunto de valores. Carregará consigo valores que têm o mesmo caráter exclusivo das crenças religiosas.

Uma vez que uma sociedade segue o caminho do desenvolvimento tecnológico, inevitavelmente se transforma em uma sociedade tecnológica, que se afina com seus valores imanentes como a eficiência, o controle e o poder. Valores divergentes dos tradicionais – alternativos – não conseguiriam sobreviver ao desafio da tecnologia.

O determinismo é otimista, no sentido de que ao aceitar, como fazem o marxismo tradicional e os teóricos da modernização do pós-guerra, a afirmação de que a tecnologia é o servo neutro das necessidades humanas, idealizam um final sempre feliz para a história da espécie. O substantivismo é pessimista: a autonomia da tecnologia é ameaçadora e malévola. Uma vez libertada, a tecnologia se torna cada vez mais imperialista, controlando, um após o outro, cada domínio da vida social.

A quarta visão é a da teoria crítica, que combina as percepções da tecnologia como humanamente controlada e como portadora de valores. Reconhece as conseqüências catastróficas do desenvolvimento tecnológico ressaltadas pelo substantivismo, mas ainda assim vê na tecnologia uma promessa de liberdade.

O problema não estaria na tecnologia como tal, mas em nosso fracasso, até o momento, em criar instituições apropriadas ao exercício do controle humano sobre ela. Tal visão, pois, concorda parcialmente com o instrumentalismo (a tecnologia é controlável) e com o substantivismo (a tecnologia é condicionada por valores).

Segundo a teoria crítica, a tecnologia existente "emolduraria" não apenas um estilo de vida, mas muitos possíveis estilos diferentes, cada um refletindo diferentes escolhas de design e diferentes extensões da mediação tecnológica. De fato, embora todos os quadros tenham molduras, não é por isso que estão no museu. As molduras são suportes para os quadros que elas delimitam.

A eficiência "emolduraria" qualquer tecnologia, mas não determinaria os valores compreendidos dentro da moldura.

Isto é, apesar de as sociedades modernas terem sempre visado à eficiência naqueles domínios em que aplicam a tecnologia, afirmar que os domínios de aplicação possível da tecnologia não podem compreender nenhum outro valor significativo além da eficiência é negligenciar a capacidade de reprojetamento da tecnologia que a sociedade pode vir a desenvolver.

A eficiência é uma moldura (valor formal) que pode carregar diversos tipos diferentes de valores substantivos. Na teoria crítica, as tecnologias não são vistas como ferramentas, mas como suportes para estilos de vida. A teoria crítica da tecnologia abre-nos a possibilidade de pensar essas escolhas e de submetêlas a controles mais democráticos.

 

A adequação sociotécnica como operacionalização da TS

Esta seção apresenta o conceito de adequação sociotécnica (AST), tributário das idéias desenvolvidas até aqui. Partindo do movimento da TA, das críticas que lhe foram formuladas e das contribuições acima apresentadas, a AST pretende aportar ao marco da TS com uma dimensão processual, uma visão ideológica e um elemento de operacionalidade delas derivadas que não se encontrava presente naquele movimento. Ao transcender a visão estática e normativa, de produto já idealizado, e introduzir a idéia de que a TS é em si mesma um processo de construção social e, portanto, político (e não apenas um produto) que terá de ser operacionalizado nas condições dadas pelo ambiente específico onde irá ocorrer, e cuja cena final depende dessas condições e da interação passível de ser lograda entre os atores envolvidos, a AST confere ao marco da TS características que parecem fundamentais para o sucesso da RTS.

Uma das origens do conceito da AST é a necessidade de criar um substrato cognitivo-tecnológico a partir do qual atividades não inseridas no circuito formal da economia poderão ganhar sustentabilidade e espaço crescente em relação às empresas convencionais (Dagnino, 2002a).

A AST pode ser concebida por semelhança ao processo (denominado por alguns "processo de aprendizado" e por outros "tropicalização") extensivamente abordado na literatura latinoamericana (e, posteriormente, mundial) sobre economia da tecnologia desde os anos 1960, de adaptação da tecnologia proveniente dos países centrais a nossas condições técnico-econômicas (preço relativo dos fatores capital e trabalho; disponibilidade de matérias-primas, peças de reposição e mão-de-obra qualificada; tamanho, capacidade aquisitiva, nível de exigência dos mercados; condições edafoclimáticas etc.) (Katz e Cibotti, 1976).

Nesse sentido, a AST pode ser compreendida como um processo que busca promover uma adequação do conhecimento científico e tecnológico (esteja ele já incorporado em equipamentos, insumos e formas de organização da produção, ou ainda sob a forma intangível e mesmo tácita) não apenas aos requisitos e finalidades de caráter técnico-econômico, como até agora tem sido o usual, mas ao conjunto de aspectos de natureza socioeconômica e ambiental que constituem a relação CTS.

No contexto da preocupação com a TS, a AST teria por objetivo adequar a TC (e, inclusive, conceber alternativas) aplicando critérios suplementares aos técnico-econômicos usuais a processos de produção e circulação de bens e serviços em circuitos não-formais, situados em áreas rurais e urbanas (como as RESs) visando a otimizar suas implicações.

Entre os critérios que conformariam o novo código sociotécnico (alternativo ao código técnico-econômico convencional) a partir do qual a TC seria desconstruída e reprojetada dando origem à TS, pode-se destacar além daqueles presentes no movimento da TA: a participação democrática no processo de trabalho, o atendimento a requisitos relativos ao meio ambiente Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social (mediante, por exemplo, o aumento da vida útil das máquinas e equipamentos), à saúde dos trabalhadores e dos consumidores e à sua capacitação autogestionária.

O conceito de AST pode ser entendido com o concurso do diferencial proporcionado pelo construtivismo. Segundo esse enfoque, "construção sociotécnica" é o processo pelo qual artefatos tecnológicos vão tendo suas características definidas por meio de uma negociação entre "grupos sociais relevantes", com preferências e interesses diferentes, no qual critérios de natureza distinta, inclusive técnicos, vão sendo empregados até chegar a uma situação de "estabilização" e "fechamento" (Bijker, 1995).

Nesse sentido, a AST pode ser entendida como um processo "inverso" ao da construção, em que um artefato tecnológico ou uma tecnologia sofreria um processo de adequação aos interesses políticos de grupos sociais relevantes distintos daqueles que o originaram (a ênfase na expressão "políticos" marca a escassa atenção que, segundo Winner (1999), o construtivismo dá ao caráter político das escolhas feitas pelos grupos relevantes).

Assim definido, como um processo e não como um resultado (uma tecnologia desincorporada ou incorporada em algum artefato) ou um insumo, o conceito permite abarcar uma multiplicidade de situações, o que denominaremos a seguir "modalidades" de AST.

As modalidades de AST Buscando operacionalizar o conceito de AST, julgou-se conveniente definir modalidades de AST. O número escolhido (sete) não é arbitrário e poderia ser maior (Dagnino e Novaes, 2003).

1) Uso: o simples uso da tecnologia (máquinas, equipamentos, formas de organização do processo de trabalho etc.) antes empregada (no caso de cooperativas que sucederam a empresas falidas), ou a adoção de TC, com a condição de que se altere a forma como se reparte o excedente gerado, é percebido como suficiente.

2) Apropriação: concebida como um processo que tem como condição a propriedade coletiva dos meios de produção (máquinas, equipamentos), implica uma ampliação do conhecimento, por parte do trabalhador, dos aspectos produtivos (fases de produção, cadeia produtiva etc.), gerenciais e de concepção dos produtos e processos, sem que exista qualquer modificação no uso concreto que deles se faz.

3) Revitalização ou repotenciamento das máquinas e equipamentos: significa não só o aumento da vida útil das máquinas e equipamentos, mas também ajustes, recondicionamento e revitalização do maquinário. Supõe ainda a fertilização das tecnologias "antigas" com componentes novos.

4) Ajuste do processo de trabalho: implica a adaptação da organização do processo de trabalho à forma de propriedade coletiva dos meios de produção (preexistentes ou convencionais), o questionamento da divisão técnica do trabalho e a adoção progressiva do controle operário (autogestão).

5) Alternativas tecnológicas: implica a percepção de que as modalidades anteriores, inclusive a do ajuste do processo de trabalho, não são suficientes para dar conta das demandas por AST dos empreendimentos autogestionários, sendo necessário o emprego de tecnologias alternativas à convencional. A atividade decorrente desta modalidade é a busca e a seleção de tecnologias existentes.

6) Incorporação de conhecimento científico-tecnológico existente: resulta do esgotamento do processo sistemático de busca de tecnologias alternativas e na percepção de que é necessária a incorporação à produção de conhecimento científico-tecnológico existente (intangível, não embutido nos meios de produção), ou o desenvolvimento, a partir dele, de novos processos produtivos ou meios de produção, para satisfazer as demandas por AST. Atividades associadas a esta modalidade são processos de inovação de tipo incremental, isolados ou em conjunto com centros de pesquisa e desenvolvimento (P&D) ou universidades.

7) Incorporação de conhecimento científico-tecnológico novo: resulta do esgotamento do processo de inovação incremental em função da inexistência de conhecimento suscetível de ser incorporado a processos ou meios de produção para atender às demandas por AST. Atividades associadas a esta modalidade são processos de inovação de tipo radical que tendem a demandar o concurso de centros de P&D ou universidades e que implicam a exploração da fronteira do conhecimento.

 

Considerações finais

Um dos elementos comuns das várias correntes que formaram o movimento da TA é o fato de que as expressões que cunharam por um lado denotam um produto, e não um processo, e por outro têm uma clara visão normativa. Ao formularem as expressões que as identificavam, aquelas correntes as entenderam como "cenas de chegada" que, por oposição, diferenciavamse da "cena inicial" –a TC– no âmbito de um cenário normativo, sem que fosse explicitada a natureza da "trajetória" que as separa. A tecnologia designada pela expressão funcionava como um "farol" situado num cenário futuro sem que uma "bússola" se encontrasse disponível para guiar seu processo de desenvolvimento. A intenção do movimento da TA, de gerar uma tecnologia com atributos previamente conhecidos e especificados, não pôde ser materializada. Gerar um produto adequado a um cenário postulado como desejável, mas como artefato a ser construído, pouco conectado ao contexto socioeconômico e político inicial e à sua provável evolução, era uma meta que se manifestou irrealista. Uma agravante foi a ingênua expectativa, de alguns, de que o emprego de tecnologias alternativas pudesse por si só trazer a mudança do contexto em que elas operavam.

Esse fato parece explicar, por um lado, a semelhança que possuem os artefatos tecnológicos que foram efetivamente produzidos pelas diferentes correntes do movimento da TA, orientados para atacar a problemática do meio rural dos países de muito baixa renda per capita; por outro, seu relativamente escasso sucesso pretérito, e sua insuficiência presente, para o enfrentamento da desigualdade que caracteriza o ambiente crescentemente urbano e miserável de países como o Brasil (Dagnino, 2002a).

Diferentemente das expressões cunhadas pelo movimento da TA, essencialmente normativas, no sentido de idealizar a tecnologia desejada (construir um "farol"), o marco da TS dá atenção ao processo, ao caminho que uma configuração sociotécnica vai desenhando ao longo de um percurso que não tem cena de chegada definida (disponibilizar uma "bússola").

Ao enfatizarem a "tecnologia desejada" (de pequena e média escala, pouco intensiva em capital, não-poluidora etc.) sem prestar muita atenção aos caminhos que poderiam conduzir a ela, os pensadores da TA parecem ter provocado um certo imobilismo.

Não estava sinalizado como se deveria atuar para atingir a tecnologia que propugnavam. Embora caracterizassem, normatizassem e, mesmo, pensassem estar "produzindo" a tecnologia que vislumbraram, o movimento que lideraram não logrou pôr em prática suas idéias; isso ocorreu, em nosso entender, porque não explicitaram como deveria ser organizado o processo que poderia conduzir à sua efetiva aplicação.

É nesse sentido que pode ser útil o processo de AST, que tem de ser construído a partir de uma tecnologia existente, com o realismo que impõe o contexto adverso no plano econômico, político, científico etc., porque enviesado na direção da TC. Isso porque ele não tem um objetivo normativo definido de forma estrita, pois sabemos que o processo de construção sociotécnica nem sempre está em consonância com os projetos e desenhos originais. Porque refutamos, por considerá-la irrealista e ingênua, a idéia de que pode haver uma "oferta" e uma "demanda" de tecnologia. E, adicionalmente, porque entendemos que ou os atores interessados no emprego da TS de fato a constroem em conjunto, ou não haverá TS.

O marco da TS incorpora a idéia, contrária à do senso comum, de que o que existe na realidade é um processo de inovação interativo em que o ator diretamente envolvido com essa função inovativa contém (ou conhece) ao mesmo tempo, por assim dizer, tanto a "oferta" quanto a "demanda" da tecnologia.

Portanto, a inovação tecnológica – e por extensão a TS – não pode ser pensada como algo que é feito num lugar e utilizado em outro, mas como um processo desenvolvido no lugar onde essa tecnologia vai ser utilizada, pelos atores que vão utilizá-la.

Por essa razão, o marco da TS impõe a necessidade de uma agenda de política científica e tecnológica muito mais complexa do que uma proposta de criação de bancos de informação tecnológica semelhantes aos concebidos para disponibilizar TC num ambiente constituído por empresas convencionais previamente existentes e organizadas para otimizar e utilizar TC. Um banco dessa natureza, pelas razões citadas e pelo fato de que o ambiente e os próprios atores que iriam utilizar a informação nele contida estão por constituir-se como tais, teria um impacto bem menor do que aquele associado aos bancos informatizados de TC. Além disso, mesmo quando esses atores tivessem a possibilidade de ter um acesso qualificado à informação, seria escasso o aprendizado decorrente. Eles seriam, na melhor das hipóteses, simples usuários da TS, e não agentes ativos num processo de construção sociotécnica que tivesse como resultado um artefato tecnológico que garantisse o atendimento de suas necessidades e expectativas.

No início deste capítulo, apontamos para o fato de que a RTS tem duas características que a diferenciam de outras iniciativas em curso no país orientadas à dimensão científico-tecnológica.

A primeira é o marco analítico-conceitual da TS que tratamos até aqui, e a segunda é seu caráter de rede.

A RTS é uma rede que se forma a partir da percepção de que as iniciativas orientadas à dimensão científico-tecnológica, tanto as de natureza privada como as de política pública, têm se mostrado incapazes de deter o agravamento dos problemas sociais e ambientais e de promover o desenvolvimento do Brasil.

Uma rede que, mais do que uma issue network – uma rede que se forma em função dos interesses dos que delam participam sobre um determinado assunto –, terá de atuar como uma policy network: uma rede assentada por atores dispostos a incorporar ao modo de governar a relação CTS atualmente em vigor um padrão de governança coerente com seus valores, com seus marcos de referência analítico-conceituais e com o cenário socioeconômico que desejam construir.

Uma rede que terá de integrar os atores e movimentos sociais que se situam numa ponta socioeconômica e cultural aos que, situados numa outra ponta, detêm os recursos cognitivos, políticos e econômicos imprescindíveis para implementar aqueles marcos de referência, materializar a TS e tornar realidade o cenário que a sociedade deseja.

Uma rede que, diferentemente de outras que caracterizam o padrão de governança que tende a se instaurar em outras áreas de política pública, inclui atores situados no interior de um aparelho de Estado sucateado. Atores que, em função da dificuldade de agir a partir dali em consonância com seus valores, visualizam a formação da RTS como uma alternativa viável para, em curto prazo e numa conjuntura adversa para a elaboração de políticas públicas não-convencionais, promover a inclusão social de modo não meramente compensatório, posto que baseado na sustentabilidade econômica de empreendimentos solidários – alternativos aos do circuito formal – que uma tecnologia não-convencional irá propiciar.

Uma rede que terá de encontrar um difícil ponto de união e de equilíbrio entre comunidades epistêmicas, policy communities, burocratas e meros stakeholders e potencializar de modo diferente capacidades de tipos diferentes desses atores diferentes que estão situados em ambientes também diferentes. Dois desses atores, pela dificuldade que seu tratamento envolve, merecem ser citados. Os burocratas deverão ser considerados correias de transmissão das ações concebidas pela RTS para dentro do aparelho de Estado de forma a conferir-lhes viabilidade. Os professores-pesquisadores do complexo público de ensino superior e de pesquisa terão de ser convencidos de que a TS (e a RTS) é uma das poucas rotas de escape ao esvaziamento de suas instituições e o melhor caminho para recuperar legitimidade social, buscar alianças com atores sociais portadores de futuro e realizar seu potencial de produzir conhecimento que, por ser relevante, alcançará a verdadeira qualidade acadêmica que, com razão, buscam e merecem (Dagnino, 2003).

Sem ser excludente às iniciativas em curso no país orientadas à dimensão científico-tecnológica, a RTS se apresenta, em função dessas características e do marco da TS a partir do qual está sendo concebida, como uma alternativa – como uma iniciativa mais eficaz para a solução dos problemas sociais relacionados a essa dimensão e como um vetor para a adoção de políticas públicas que abordem a relação CTS num sentido mais coerente com nossa realidade e com o futuro que a sociedade deseja construir.

Por serem as redes formas inovadoras de construir institucionalidade, e por estar a RTS sendo concebida a partir de uma sólida base conceitual e analítica, ela reúne as características que podem levá-la a preencher uma das lacunas apontadas por Herrera (1983) quando criticava o movimento da TA indicando que, se não houver um arcabouço legal e institucional que lhe dê suporte, ele estaria fadado ao fracasso.

Quando indicamos as razões que levaram à reemergência de temas relacionados à TS no Brasil, mencionamos a possibilidade de que a RTS venha a funcionar como uma instância de integração de movimentos como o das RESs e o das ITCPs. Isso porque poderia vir a fortalecer a crescente consciência que vêm alcançando esses movimentos acerca da necessidade de contar com alternativas à TC capazes de proporcionar sustentabilidade econômica aos empreendimentos autogestionários em relação à economia formal e, em conseqüência, alavancar a expansão da economia solidária. De fato, independentemente do apoio que recebam de políticas de inclusão social, esses empreendimentos não podem prescindir de tecnologia (hardware, orgware e software) alternativa à TC para viabilizar as duas rotas de expansão que a elas se apresentam: a criação de vínculos de compra e venda de bens e serviços para produção e consumo com outras RESs e a progressão na cadeia produtiva integrando atividades a jusante, a montante e transversalmente rumo à constituição de arranjos produtivos locais.

Numa perspectiva mais ambiciosa e de prazo de maturação mais longo, a RTS poderia se consolidar como um espaço privilegiado, com grande impacto social, para a promoção do desenvolvimento e aplicação de TS. Diferentemente de arranjos institucionais (programa, secretaria, agência, fundação de amparo etc.) situados no âmbito governamental e concebidos segundo a lógica do ofertista, uma lógica linear que tem caracterizado a política de C&T, a RTS seria um mecanismo para ação direta e pontual visando à inclusão social.

Isso não quer dizer, é claro, que não continue sendo o Estado, numa proporção compreensivelmente muito maior do que no caso da TC, o financiador e viabilizador em última instância da TS. (5) Mesmo porque o Estado – por meio de distintos órgãos e instâncias – deverá estar presente não apenas como intermediador e facilitador das ações envolvendo a utilização da TS pelas populações carentes, mas como demandante de soluções para seu próprio uso que permitam o emprego de seu enorme poder de compra, de forma a melhorar a qualidade dos serviços que presta à sociedade e aumentar a eficiência da "máquina do Estado", induzindo a inovação.

A médio prazo, é importante que a RTS se legitime como a porta de entrada de apoios a projetos de desenvolvimento e aplicação de TS derivados da interação dos atores nela interessados mediante sua relação com o aparelho de Estado, em especial com os órgãos já existentes em diversos ministérios criados para proporcionar recursos financeiros à ampla gama de atividades apontadas neste capítulo. Adicionalmente, na outra ponta de sua ligação com os movimentos sociais, a RTS deve legitimarse como porta de saída de pacotes integrados visando à inclusão social concebidos a partir da identificação de problemas passíveis de serem solucionados com o concurso da TS. Para tudo isso, uma outra ponta – a da comunidade de pesquisa – não pode ser descuidada. Embora sem a importância que tem em outras iniciativas de política de C&T, em que freqüentemente exerce um controle bem maior do que aquele de seus pares no exterior (Dagnino e Gomes, 2002), a comunidade de pesquisa, quando mais não seja pelo fato de que é ela que detém o recurso cognitivo indispensável a nossa empreitada, deve ser tratada de acordo com suas especificidades e idiossincrasias6 de modo a assegurar sua adesão.

 

Referências bibliográficas

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Notas

1. As dissertações de mestrado de dois dos autores – Dagnino (1976) e Brandão (2001) – são uns dos poucos esforços de reflexão acadêmica sobre o tema realizado no Brasil.

2. Nas palavras de Lopez Cerezo (2000, p. 1), um de seus mais conhecidos pesquisadores ibero-americanos, "os estudos sobre ciência, tecnologia e sociedade (CTS) constituem hoje um vigoroso campo de trabalho em que se trata de entender o fenômeno científico-tecnológico no contexto social, tanto em relação com seus condicionantes sociais como no que se refere a suas conseqüências sociais e ambientais. O enfoque geral é de caráter crítico, com respeito à clássica visão essencialista e triunfalista da ciência e da tecnologia, e também de caráter interdisciplinar, concorrendo disciplinas como a filosofia e a história da ciência e da tecnologia, a sociologia do conhecimento científico, a teoria da educação e a economia da permuta técnica. CTS se originou há três décadas a partir de novas correntes de investigação empírica em filosofia e sociologia, e de um incremento da sensibilidade social e institucional sobre a necessidade de uma regulação pública de permuta científico-tecnológica. CTS define hoje um campo de trabalho bem consolidado institucionalmente em universidades, administrações públicas e centros educativos de diversos países industrializados".

3. Algo semelhante ao que estudiosos da relação universidade-empresa têm denominado "modo 2" (Nowotny, Scott e Gibbons, 2001).

4. Mantivemos os anglicismos porque não nos parece valer a pena cunhar outros termos.

5. A esse respeito é importante ressaltar que, grosso modo, o que o governo investe hoje em C&T é praticamente em sua totalidade orientado para desenvolvimento de TC. De fato, mesmo quando se trata do apoio ao desenvolvimento de tecnologias para emprego nos denominados "setores sociais" – saúde, educação etc. –, o enfoque utilizado e as características do conhecimento gerado não são orientados em consonância como o marco de referência analítico-conceitual da TS.

6. Muito se tem escrito ultimamente sobre o comportamento da comunidade de pesquisa e sobre a necessidade de que ela se incorpore ao esforço produtivo dos países. Embora na América Latina a ênfase na interlocução com a empresa privada seja em geral a mesma conferida nos países desenvolvidos, as contribuições indicadas nas setas 5 e 6 da figura 1, não tratadas neste capítulo, avançam num sentido coerente com seus objetivos.

 

Renato Dagnino (*) // Flávio Cruvinel Brandão (**) // Henrique Tahan Novaes (***)
hetanov[arroba]ige.unicamp.br

* Professor titular da Universidade de Campinas (Unicamp).
* * Assessor do Departamento de Ações Regionais para Inclusão Social da Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social.
*** Economista formado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e mestrando no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Universidade de Campinas (Unicamp).


 
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