Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social

 

 

A Rede de Tecnologia Social (RTS) tem duas características que a diferenciam de outras iniciativas em curso no país, orientadas à dimensão científico-tecnológica. A primeira é o marco analítico-conceitual que conforma o que aqui denominamos "tecnologia social" (TS). A segunda é justamente seu caráter de rede. Sem ser excludente àquelas iniciativas, a RTS se articula, em função dessas características, como uma alternativa mais eficaz para a solução dos problemas sociais relacionados a essa dimensão e como um vetor para a adoção de políticas públicas que abordem a relação ciência-tecnologia-sociedade (CTS) num sentido mais coerente com a nossa realidade e com o futuro que a sociedade deseja construir.

Este capítulo, escrito por participantes da RTS que se têm dedicado a temas relacionados à TS no plano acadêmico, (1) tem por objetivo proporcionar ao leitor um conceito de TS que lhe permita o entendimento da proposta de trabalho da RTS e, em conjunto com outros elementos, provoque sua adesão à mesma.

Para isso, trata da primeira dessas características – o marco analítico-conceitual da TS –, buscando precisar como ele pode ser construído mediante contribuições de natureza bastante diversa até originar o conceito de TS adotado pela rede. Isso é feito tendo como referência a evolução da reflexão sobre temas relacionados à TS, levada a cabo em níveis internacional e nacional, e o processo de discussão em curso no âmbito da RTS sobre como eles deveriam ser reinterpretados – temporal e espacialmente – de modo a propor, mais do que um conceito propriamente dito, um marco analítico-conceitual adequado a seus propósitos e capaz de conferir-lhe a solidez que requer para abrir espaço num ambiente ainda adverso, pois alinhado com os princípios da tecnologia convencional (TC), a partir do qual, por oposição, a TS vem sendo concebida como alternativa.

É também objetivo deste capítulo mostrar como o marco analítico-conceitual da TS hoje disponível, cujos contornos aqui se procura esboçar, possibilita empreender a construção dessa alternativa de modo muito mais efetivo do que no passado, além de mostrar como se dá sua influência na conformação da segunda característica da RTS, o que é feito na seção final do capítulo, fazendo com que ela possa assumir conformações que a diferenciam de redes similares.

O capítulo se inicia mostrando como aqueles temas estavam sendo abordados pelo movimento da tecnologia apropriada (TA) e a forma como esse movimento estava sendo criticado no início dos anos 1980, quando perde importância como elemento viabilizador, no plano tecnológico, de um estilo alternativo de desenvolvimento no âmbito dos países periféricos.

Em seguida, em sua quarta e mais longa seção, aborda os desenvolvimentos teóricos que foram surgindo desde então ao longo da trajetória de consolidação do campo dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT) (2) e que, partindo de matrizes disciplinares e concepções ideológicas bastante diferentes, parecem aportar elementos para o processo de elaboração de um marco analítico-conceitual da TS com os atributos de interdisciplinaridade, pluralidade e efetividade, necessários para a construção, em bases sólidas, da RTS.

A figura a seguir, concebida durante uma das reuniões da RTS, ilustra o percurso que segue o texto, mostrando como o marco analítico-conceitual da TS pode ter sua construção entendida a partir da incorporação ao movimento da TA dessas críticas e contribuições. Nela aparece, no centro de uma espiral que procura denotar um processo cumulativo, a visão predominante da TA nos anos 1970. À sua volta, ao longo de cada uma das seis setas que para ela convergem, os elementos que se considera importante individualizar como conformadores do marco analítico-conceitual da TS, o qual aparece representado como uma culminação de um processo em curso, de crescente complexidade e riqueza. Cada um desses elementos – crítica da TA, economia da inovação, sociologia da inovação, filosofia da tecnologia etc. – encontra-se associado aos autores cuja contribuição foi considerada central e a palavras-chave que a identificam.

 

Contribuições ao marco analítico-conceitual da TS

Figura 1

 

A apresentação desses desenvolvimentos se dá de forma sumária, apenas ao nível do que parece suficiente para que o leitor interessado possa acompanhar a linha de argumentação e possa ampliar sua compreensão acerca dos mesmos a partir da bibliografia indicada. Não obstante sua importância, o quinto e o sexto desenvolvimentos não são abordados neste texto.

A quarta seção introduz o conceito de adequação sociotécnica, cuja formulação pretende atender ao objetivo de incorporar de modo articulado esses desenvolvimentos ao marco analítico- conceitual da TS e servir como base de operacionalização da TS.

 

A TA

A Índia do final do século XIX é reconhecida como o berço do que veio a se chamar no Ocidente de TA. O pensamento dos reformadores daquela sociedade estava voltado para a reabilitação e o desenvolvimento das tecnologias tradicionais, praticadas em suas aldeias, como estratégia de luta contra o domínio britânico. Entre 1924 e 1927, Gandhi dedicou-se a construir programas, visando à popularização da fiação manual realizada em uma roca de fiar reconhecida como o primeiro equipamento tecnologicamente apropriado, a Charkha, como forma de lutar contra a injustiça social e o sistema de castas que a perpetuava na Índia. Isso despertou a consciência política de milhões de habitantes das vilas daquele país sobre a necessidade da autodeterminação do povo e da renovação da indústria nativa hindu, o que pode ser avaliado pela significativa frase por ele cunhada: "Produção pelas massas, não produção em massa".

Ainda sobre as origens do movimento da TA, é interessante a opinião de Amílcar Herrera, um dos poucos pesquisadores latino-americanos que se dedicaram ao tema. Para ele,

o conceito de desenvolvimento de Gandhi incluía uma política científica e tecnológica explícita, que era essencial para sua implementação. A insistência de Gandhi na proteção dos artesanatos das aldeias não significava uma conservação estática das tecnologias tradicionais. Ao contrário, implicava o melhoramento das técnicas locais, a adaptação da tecnologia moderna ao meio ambiente e às condições da Índia, e o fomento da pesquisa científica e tecnológica, para identificar e resolver os problemas importantes imediatos. Seu objetivo final era a transformação da sociedade hindu, através de um processo de crescimento orgânico, feito a partir de dentro, e não através de uma imposição externa. Na doutrina social de Gandhi o conceito de tecnologia apropriada está claramente definido, apesar de ele nunca ter usado esse termo (1983, p. 10-11).

As idéias de Gandhi foram aplicadas também na República Popular da China e, mais tarde, influenciaram um economista alemão – Schumacher – que cunhou a expressão "tecnologia intermediária" para designar uma tecnologia que, em função de seu baixo custo de capital, pequena escala, simplicidade e respeito à dimensão ambiental, seria mais adequada para os países pobres. O Grupo de Desenvolvimento da Tecnologia Apropriada, criado por ele, e a publicação em 1973 do livro Small is beautiful: economics as if people mattered, traduzido para mais de quinze idiomas, causaram grande impacto, tornando-o conhecido como o introdutor do conceito de TA no mundo ocidental.

Não obstante, num plano que poderia ser considerado mais propriamente teórico, vários pesquisadores dos países avançados preocupados com as relações entre a tecnologia e a sociedade já haviam percebido o fato de que a TC, aquela tecnologia que a empresa privada desenvolve e utiliza, não é adequada à realidade dos países periféricos. Essa preocupação pode ter sua origem datada, para não ir mais longe, na preocupação dos economistas neoclássicos com a "questão da escolha de técnicas" e com o "preço relativo dos fatores de produção", tão importantes para a abordagem do tema do desenvolvimento econômico em países periféricos nos anos 1960.

Foi de fato essa preocupação que originou a reflexão que nos anos 1970 abrangeu outras profissões: a da tecnologia intermediária de Schumacher ou da TA, como passou a ser mais genérica e inclusivamente denominada. O movimento da TA, ao alargar a perspectiva anterior – da tecnologia intermediária, que considerava tecnocrática –, incorporar aspectos culturais, sociais e políticos à discussão e propor uma mudança no estilo de desenvolvimento (Dagnino, 1976), avançou numa direção que nos interessa discutir.

Durante as décadas de 1970 e 1980, houve grande proliferação de grupos de pesquisadores partidários da idéia da TA nos países avançados e significativa produção de artefatos tecnológicos baseados nessa perspectiva. Embora o objetivo central da maioria desses grupos fosse minimizar a pobreza nos países do Terceiro Mundo, a preocupação com as questões ambientais e com as fontes alternativas de energia, de forma genérica e, também, referida aos países avançados, era relativamente freqüente.

As expressões que foram sendo formuladas tinham como característica comum o fato de serem geradas por diferenciação à TC, em função da percepção de que esta não tem conseguido resolver, podendo mesmo agravar, os problemas sociais e ambientais.

Cada uma delas refletia os ambientes em que emergia a preocupação com a inadequação da TC. Algumas indicavam a necessidade de minorar essa inadequação para solucionar problemas conjunturais e localizados, até que as regiões ou populações envolvidas pudessem ser incorporadas a uma rota de desenvolvimento tida como desejável. Esse é o caso da tecnologia intermediária, popularizada por Schumacher.

Outras expressões foram criadas no interior de movimentos que, com maior grau de radicalidade, criticavam o contexto socioeconômico e político que emoldura a relação CTS. Por entenderem essa inadequação como algo estrutural e sistêmico, procuravam expressar o caráter alternativo em relação a esse contexto que tinha o cenário que se desejava construir.

A inclusividade do movimento da TA pode ser avaliada pela quantidade de expressões, cada uma denotando alguma especificidade, cunhadas para fazer referência à TA. Entre elas, citamse:

tecnologia alternativa, tecnologia utópica, tecnologia intermediária, tecnologia adequada, tecnologia socialmente apropriada, tecnologia ambientalmente apropriada, tecnologia adaptada ao meio ambiente, tecnologia correta, tecnologia ecológica, tecnologia limpa, tecnologia não-violenta, tecnologia não-agressiva ou suave, tecnologia branda, tecnologia doce, tecnologia racional, tecnologia humana, tecnologia de auto-ajuda, tecnologia progressiva, tecnologia popular, tecnologia do povo, tecnologia orientada para o povo, tecnologia orientada para a sociedade, tecnologia democrática, tecnologia comunitária, tecnologia de vila, tecnologia radical, tecnologia emancipadora, tecnologia libertária, tecnologia liberatória, tecnologia de baixo custo, tecnologia da escassez, tecnologia adaptativa, tecnologia de sobrevivência e tecnologia poupadora de capital. Essas concepções, de alguma forma, tentam, na sua origem, diferenciar-se daquelas tecnologias consideradas de uso intensivo de capital e poupadoras de mão-de-obra, objetando-se ao processo de transferência massiva de tecnologia de grande escala, característico dos países desenvolvidos, para os países em desenvolvimento, que podem criar mais problemas do que resolvê-los (Brandão, 2001, p. 13).

Embutidas nessas concepções de tecnologia foram estabelecidas características como: a participação comunitária no processo decisório de escolha tecnológica, o baixo custo dos produtos ou serviços finais e do investimento necessário para produzilos, a pequena ou média escala, a simplicidade, os efeitos positivos que sua utilização traria para a geração de renda, saúde, emprego, produção de alimentos, nutrição, habitação, relações sociais e para o meio ambiente (com a utilização de recursos renováveis). Passou-se, enfim, a identificar a TA a "um conjunto de técnicas de produção que utiliza de maneira ótima os recursos disponíveis de certa sociedade maximizando, assim, seu bem-estar" (Dagnino, 1976, p. 86).

Em função de suas características de maior intensidade de mão-de-obra, uso intensivo de insumos naturais, simplicidade de implantação e manutenção, respeito à cultura e à capacitação locais etc., a TA seria capaz de evitar os prejuízos sociais (e ambientais) derivados da adoção das TCs e, adicionalmente, diminuir a dependência em relação aos fornecedores usuais de tecnologia para os países periféricos.

O movimento da TA, embora não tivesse sido delineado dessa forma, foi uma importante inovação em termos da teoria do desenvolvimento econômico. A redução da heterogeneidade estrutural dos países periféricos era entendida como demandando um ataque diferenciado, "nas duas pontas" – a "atrasada" e rural e a "moderna" e urbana –, e não algo a ser deixado ao sabor da paulatina difusão de um padrão de modernidade como efeito de transbordamento ou de "mancha de óleo". Este, na realidade, passou a ser duramente criticado, inclusive, pela linha mais "ghandiana" do movimento. No plano tecnológico, em que imperava sem questionamento o modelo da cadeia linear de inovação que supunha que à pesquisa científica seguiria a tecnológica, o desenvolvimento econômico e depois o social, este passava a ser visto como um objetivo imediato, em si mesmo, e não com um resultado ex post de uma reação em cadeia catalisada pelo acúmulo de massa crítica científica.

A preocupação com o desemprego abriu uma interessante linha de investigação, lamentavelmente não perseguida com a ênfase devida posteriormente. Ainda que não de maneira explícita, a idéia da TA supunha que o desemprego nos países periféricos não poderia ser evitado por uma ação contrabalançadora nos "setores modernos" da economia. Neles não tendia a ocorrer o mecanismo virtuoso observado nos países centrais, onde a introdução de tecnologias de maior produtividade criava, dada a então relativamente baixa taxa de substituição tecnológica, oportunidades de emprego, de remuneração freqüentemente superior, em novos ramos industriais. Não seria no "setor moderno" que o combate ao desemprego poderia ser travado. O "vazamento" das atividades mais intensivas em tecnologia, de maior valor adicionado e remuneração para o exterior – característica da situação de dependência –, e a escassa probabilidade de que os "desempregados tecnológicos" de inadequada qualificação pudessem ser retreinados e reincorporados à produção eram visualizados como um sério obstáculo. O desemprego demandava um tratamento global que ia, na realidade, no sentido contrário ao que propunha o "neoludismo" imputado por seus críticos ao movimento da TA. Tratava-se de proporcionar tecnologias aos que não tinham acesso aos fluxos usuais pelos quais elas se difundem.

A preocupação com o desemprego angariou para o movimento da TA importantes aliados, tanto no âmbito dos países avançados (talvez por antever os problemas migratórios que poderia causar) quanto no plano supranacional. Exemplo significativo é o da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que se envolveu com o tema, pelo menos em nível teórico, apoiando considerável número de estudos de caso avaliando a utilização e o desenvolvimento de TA realizados principalmente na Ásia e na África. Eles mostraram o melhor desempenho das tecnologias intensivas em mão-de-obra em termos de seu impacto social e econômico.

Talvez tenham sido esses aliados externos, mais do que os quase inexistentes estímulos internos, os responsáveis pelas escassas pesquisas científicas e tecnológicas em TA desenvolvidas por pesquisadores dos países periféricos com maior sensibilidade social. Deve-se reconhecer que, embora ingênua em seu pressuposto, e apesar de pouco coerente com o mainstream, a idéia da TA dava vazão ao compromisso social e à busca de originalidade na seleção de temas de pesquisa de um segmento da comunidade de pesquisa desses países.

 

As críticas ao movimento da TA

A maior parte das críticas feitas à TA foi formulada a partir de uma posição fundamentada nas idéias da neutralidade da ciência e do determinismo tecnológico criticadas no item deste capítulo dedicado à contribuição proveniente da filosofia da tecnologia. Por entenderem a ciência como uma incessante e interminável busca da verdade livre de valores e a tecnologia como tendo uma evolução linear e inexorável em busca da eficiência, os críticos da TA não podiam perceber seu significado.

Em vez de entendê-la como o embrião de uma superação do pessimismo da Escola de Frankfurt e da miopia do marxismo oficial, eles a visualizavam como uma ridícula volta ao passado (Novaes e Dagnino, 2004).

Se desconsiderarmos esse tipo de crítica, e buscarmos no outro extremo uma formulação baseada num questionamento à neutralidade do determinismo tecnológico, vamos encontrar David Dickson (1978), sem dúvida o autor que mais longe foi na crítica à TC e na proposição de uma visão alternativa. Em seu livro Tecnologia alternativa, argumenta que os problemas contemporâneos associados à tecnologia provêm não apenas dos usos para os quais é empregada, mas também de sua própria natureza. A tecnologia cumpriria uma dupla função: no nível material, mantém e promove os interesses dos grupos sociais dominantes na sociedade em que se desenvolve; no nível simbólico, apóia e propaga a ideologia legitimadora desta sociedade, sua interpretação do mundo e a posição que nele ocupam.

Sua aguda crítica à visão determinista que apregoa a superioridade da TC é bem caracterizada neste trecho:

A partir da Revolução Industrial, e particularmente durante os últimos cinqüenta anos, passou a ser geralmente aceito o fato de que uma tecnologia em contínuo desenvolvimento é a única que oferece possibilidades realistas de progresso humano. O desenvolvimento tecnológico, que inicialmente consistiu na melhora das técnicas artesanais tradicionais, e que posteriormente se estendeu à aplicação do conhecimento abstrato aos problemas sociais, prometeu conduzir a sociedade pelo caminho que leva a um próspero e brilhante futuro.

O desenvolvimento da tecnologia tem servido inclusive como indicador do progresso geral do desenvolvimento social, fazendo com que se tenda a julgar as sociedades como avançadas ou atrasadas segundo seu nível de sofisticação tecnológica (Dickson, 1978).

Criticando a idéia de linearidade, que interpreta a mudança social como determinada pela mudança técnica, ele mostra como ela se relaciona a uma equivocada assimilação entre a "história da civilização" e a "história da tecnologia". Segundo ele,

a história da civilização, com sua visão unidimensional de progresso, implica que as sociedades podem ser consideradas primitivas ou avançadas segundo seu nível de desenvolvimento tecnológico. Essa interpretação encontra-se na base de quase todas as investigações culturais e antropológicas levadas a cabo até os primeiros anos de nosso século, e é ainda a mais utilizada para indicar níveis de "desenvolvimento" (também é a descrição mais popular nos livros de textos escolares, assegurando deste modo que essa interpretação seja mantida pelo sistema educacional). O modelo implícito de evolução social é baseado freqüentemente no conceito de determinismo tecnológico, isto é, a idéia de que o desenvolvimento social se encontra determinado quase inteiramente pelo tipo de tecnologia que uma sociedade inventa, desenvolve, ou que nela é introduzido.

Uma das críticas ao movimento da TA, nem todas desprovidas de "segundas intenções", era a de que ela deveria ser considerada mais um resultado de um "sentimento de culpa" de pesquisadores e empresários aposentados do Primeiro Mundo do que uma iniciativa capaz de alterar significativamente a situação que denunciava. De fato, a imensa maioria dos grupos de pesquisadores de TA está situada nos países do Primeiro Mundo, tendo sido muito escassa a incidência de seu trabalho nas populações do Terceiro Mundo. Também foi escassa a participação da comunidade de pesquisa desses países (com exceção da Índia) nesse movimento.

Essa crítica sugere o que talvez tenha sido (e continue sendo) sua principal debilidade: o pressuposto de que o simples alargamento do leque de alternativas tecnológicas à disposição dos países periféricos poderia alterar a natureza do processo (e dos critérios capitalistas) que preside à adoção de tecnologia.

Mesmo sem acatar o determinismo marxista do movimento da TA que postularia que o "desenvolvimento das forças produtivas" é incapaz de transformar as "relações sociais de produção" quando não acompanhado por uma mudança política tão significativa como a que implica a "destruição do capitalismo", é possível mostrar a fragilidade daquele pressuposto.

Defensores de TA não compreenderam por que o desenvolvimento de tecnologias alternativas era uma condição apenas necessária – e não suficiente – para sua adoção pelos grupos sociais que pretendiam beneficiar. Em conseqüência, não foram capazes de conceber processos de geração e difusão de conhecimentos alternativos aos usuais que pudessem, por meio do envolvimento dos atores sociais interessados na mudança de estilo de desenvolvimento que propunham, fazer com que a TA fosse, de fato, adotada e, muito menos, que tais processos fossem se incorporando, como força motora, num movimento auto-sustentado semelhante ao que caracteriza a TC (Herrera, 1983).

Não obstante, assim como outros aspectos normativos do movimento da TA, o tratamento do problema do desemprego que propugnava supunha reformas no modelo de acumulação capitalista periférico que, ainda que não fossem radicais, não eram aceitas pelos interesses dominantes. Daí talvez seu escasso significado para a política de ciência & tecnologia (PCT) latino americana (Dagnino, 1998).

O "pluralismo tecnológico" defendido pelo movimento foi percebido por críticos da esquerda como sintoma de seu conservadorismo, na medida em que estaria apenas propondo um down grading da TC, o qual seria, em última instância, funcional aos interesses de longo prazo dos que apoiavam as estruturas de poder injustas que predominavam no Terceiro Mundo.

Essa funcionalidade para o modelo de acumulação capitalista dos países periféricos seria conseqüência do fato de que, ao permitir o aumento da produção e o barateamento da força de trabalho, amenizava a já preocupante marginalização social e atenuava o desemprego estrutural socialmente explosivo. Dado que era fundamental para aqueles interesses a manutenção da baixa remuneração dos trabalhadores não-qualificados demandados pela expansão do modelo urbano-industrial implementado, o qual, no limite, poderia ser inviabilizado pela redução do êxodo rural que as TAs causariam, o movimento da TA sofreu um processo de desqualificação e até ridicularização.

É conveniente ressaltar que, embora centrada no objetivo de desenvolvimento social, sua postura era defensiva, adaptativa e não-questionadora das estruturas de poder dominantes nos planos internacional e local. Não propunha, ao contrário do que alegavam seus críticos, uma generalização "miserabilista", "radical" e "retrógrada" do emprego de TA. Este era propugnado nos "setores atrasados", aos quais as TCs não chegavam ou, quando o faziam, resultavam em evidentes distorções sociais e econômicas. Aí, sim, a TA se colocava como uma alternativa à TC. Mais do que isso, seu emprego poderia levar à criação de uma dinâmica de difusão semelhante à dominante, que tinha o "setor moderno" como foco, mas que partindo do "setor atrasado" iria encontrá-la na fronteira entre eles.

O movimento da TA teve algum impacto, se não na implementação, pelo menos na formulação da PCT dos governos latino-americanos (Dagnino, 2004). A necessidade de geração de postos de trabalho que demandassem um investimento menor do que o associado às TCs, sobretudo nos setores mais "atrasados" (produtores de bens que satisfazem necessidades básicas), era corretamente apontada como prioritária nos planos de governo.

Apesar disso, pouco se avançou além do discurso freqüentemente demagógico dos governos autoritários da região, politicamente comprometidos que estavam em afastar qualquer ameaça aos interesses imediatistas das elites locais.

 

As contribuições para o marco analítico-conceitual da TS

O movimento de TA perde momentum no início dos anos 1980, não por acaso, quando se verifica a expansão em todo o mundo do pensamento neoliberal. O fato de o neoliberalismo excluir por definição a idéia de projeto, e mais ainda a consideração de um que envolvia a desconstrução e a negação de um de seus pilares – a TC – como forma de elaboração de um estilo alternativo de desenvolvimento, parece eximir-nos de maiores comentários.

Duas questões merecem destaque para contextualizar e reemergência de temas relacionados à TS num país periférico como o Brasil, no bojo de movimentos como o das Redes de Economia Solidária (RESs), o das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs), que já abrange quase quarenta universidades brasileiras, o das empresas recuperadas, o dos empreendimentos autogestionários, que têm na RTS uma possibilidade de integração.

Por um lado, o cenário político que, em nível internacional, manifestou-se por um processo de globalização unipolar que favorece os detentores do capital nas economias avançadas e penaliza os países periféricos, e, em nível nacional, por um projeto de integração subordinada e excludente que agrava nosso particularmente desigual e predatório estilo de desenvolvimento.

Nesse cenário, e talvez porque para muitos que começam a pôr em prática um outro projeto já esteja clara sua inviabilidade, é natural que se difundisse a preocupação com as bases tecnológicas de um processo que permita a recuperação da cidadania dos segmentos mais penalizados, a interrupção da trajetória de fragmentação social e de estrangulamento econômico interno do país e a construção de um estilo de desenvolvimento mais sustentável. De fato, atores situados ao longo de um amplo espectro de interesses e visões ideológicas, a exemplo dos que participam da RTS, passam a se somar a esses movimentos.

Por outro lado, cabe destacar como, em casos relacionados ao ambiente econômico e tecnológico criado com a difusão do neoliberalismo, foram surgindo desenvolvimentos teóricos que parecem aportar elementos para o processo de elaboração do marco analítico-conceitual hoje disponível para a formulação de um conceito de TS capaz de conferir à RTS algumas das características que demanda.

Esta seção apresenta nossa interpretação acerca de como pode ser entendido o processo de construção do marco analíticoconceitual da TS (daqui em diante, simplesmente, marco da TS). O detalhe com que se explora essa questão se deve à preocupação de evitar o ocorrido no passado, quando conceitos semelhantes foram engendrados sem adequadas contextualização histórico-social e reflexão teórica, restringindo-se por isso a chance de sucesso dos movimentos aos que serviram de base.

Nesse sentido, e sem que se discuta a superioridade da expressão "tecnologia social" como uma "marca" que identifica os propósitos da RTS, consideramos que ela não deve – e nem precisa – ser entendida como um conceito. Na verdade, o importante é que os elementos constitutivos do marco da TS proporcionados pelos desenvolvimentos simbolizados na figura 1 sejam de fato incorporados ao processo de consolidação da rede.

 

A teoria da inovação: a negação de "oferta e demanda" e a inovação social

A contribuição da teoria da inovação é fundamental para a superação de alguns dos defeitos do modelo cognitivo que serviu de substrato para o movimento da TA. Ele critica o pouco realismo e aplicabilidade do modelo de "oferta e demanda" para tratar questões relativas ao "produto" conhecimento e propõe uma perspectiva baseada na interação de atores no âmbito de um processo de inovação, tal como a estilizada pela teoria da inovação. Ademais, mostra como o conceito de inovação pode ser entendido de uma forma distinta daquela para a qual foi concebido, dando lugar ao conceito de inovação social mais adaptado à visão de TS.

Foi, também, pouco realista a idéia de que a tecnologia alternativa poderia ser produzida por pessoas que, por partilharem dos valores e objetivos que impregnam o cenário desejável de maior eqüidade, fossem capazes de abandonar procedimentos técnicos profundamente arraigados e alterar procedimentos de concepção (ou de construção sociotécnica) para atender a especificações distintas das que dão origem às TCs.

Mas a suposição adicional, de que esses cientistas e tecnólogos bem-intencionados pudessem posteriormente transferir a tecnologia gerada para um usuário que a demandasse, é também pouco plausível à luz da teoria da inovação. De fato, a inovação supõe um processo em que atores sociais interagem desde um primeiro momento para engendrar, em função de múltiplos critérios (científicos, técnicos, financeiros, mercadológicos, culturais etc.), freqüentemente tácitos e às vezes propositalmente não-codificados, um conhecimento que eles mesmos vão utilizar, no próprio lugar (no caso, a empresa) em que vão ser produzidos os bens e serviços que irão incorporá-lo.

Na realidade, mesmo que o produto pudesse ter seus atributos a priori especificados e por isso pudesse ser produzido ex ante, dificilmente poderia ser transferido e utilizado por outras pessoas com culturas diferentes em ambientes muito distintos daquele onde foi concebido e com um grau de heterogeneidade muito maior do que aquele que existe nos empreendimentos que utilizam a TC. Se a idéia de "oferta e demanda" tem sido abandonada como modelo descritivo e normativo da dinâmica que preside à TC nas empresas privadas, e substituída pela idéia de inovação, que dizer da TS?

O modelo usualmente utilizado para entender a tecnologia nos levaria a conceber a TS como um "produto-meta" a ser desenvolvido por uns, nos ambientes em que usualmente se perseguem resultados de pesquisa, e "oferecido", numa espécie de "mercado de TS", a outros que, supõe-se, encontram-se dispostos a "demandar" esses resultados. A contribuição da teoria da inovação, ao contrário, permite entender que a tecnologia – e especialmente, pelas suas características, a TS – só se constitui como tal quando tiver lugar um processo de inovação, um processo do qual emerja um conhecimento criado para atender aos problemas que enfrenta a organização ou grupo de atores envolvidos. De fato, mesmo nos ambientes mais formalizados da TC e das empresas, tem-se mostrado como é relativamente pouco importante que esse conhecimento seja resultante de alguma pesquisa previamente desenvolvida, sobretudo se ela se deu sem a participação daqueles que efetivamente irão comercializar os produtos que a tecnologia permitirá fabricar.

Da mesma forma e pelas mesmas razões que a teoria da inovação entende cada processo de difusão ou transferência de uma dada tecnologia em uma dada empresa como um processo de inovação com características particulares, cabe considerar o que no jargão dos participantes da RTS se denomina "reaplicação" como um processo específico com aspectos distintivos, próprios, dado pelo caráter do contexto sociotécnico que conota a relação que se estabelece entre os atores com ela envolvidos.

Ao ser o resultado de um casamento previamente existente entre a "oferta" e a "demanda" assegurado por um novo modo de elaboração de projetos de pesquisa, (3) a TS poderia prescindir de certificação ou controle de qualidade. Isso porque essas atividades são demandadas, num determinado processo produtivo, porque existem fases de produção claramente definidas e são distintos os atores por elas responsáveis.

Assim, entendida como um processo de inovação a ser levado a cabo, coletiva e participativamente, pelos atores interessados na construção daquele cenário desejável, a TS se aproxima de algo que se denominou, em outro contexto, "inovação social" (Dagnino e Gomes, 2000). O conceito de inovação social, entendido ali a partir do conceito de inovação – concebido como o conjunto de atividades que pode englobar desde a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico até a introdução de novos métodos de gestão da força de trabalho, e que tem como objetivo a disponibilização por uma unidade produtiva de um novo bem ou serviço para a sociedade –, é hoje recorrente no meio acadêmico e cada vez mais presente no ambiente de policy making.

Esse conceito engloba, portanto, desde o desenvolvimento de uma máquina (hardware) até um sistema de processamento de informação (software) ou de uma tecnologia de gestão – organização ou governo – de instituições públicas e privadas (orgware).

Merecem destaque as condições em que, no Primeiro Mundo, o conceito de inovação foi cunhado e passa a ter como objetivo primordial a competitividade dos países. Lá é onde surge o novo paradigma tecnoeconômico baseado na eletroeletrônica, onde um Estado de bem-estar garante um nível razoável de desenvolvimento social, onde o término da Guerra Fria acirra a concorrência intercapitalista e onde o crescimento depende das oportunidades de exportação e, portanto, da competitividade (sempre entendida em relação ao exterior).

O conceito de "sistema nacional de inovação" foi cunhado nesses países como um modelo descritivo de um arranjo societal típico do capitalismo avançado – arranjo no qual uma teia de atores densa e completa gera, no interior de um ambiente sistêmico propício proporcionado pelo Estado, sinais de relevância que levam ao estabelecimento de relações virtuosas entre pesquisa e produção, à inovação nas empresas e à competitividade do país. Posteriormente se transforma num modelo normativo para que esses países, ao mesmo tempo semelhantes no plano socioinstitucional e complementares no econômico, orientem seus governos e grandes empresas em busca da competitividade.

Algo parecido ocorreu, também, nos países periféricos como o Brasil, onde se tentou emular a criação de "sistemas nacionais (e locais) de inovação" em busca da competitividade, como se existissem aquelas condições e aquele arranjo societal (Dagnino e Thomas, 2001). O conceito de "sistema" é aqui utilizado num sentido francamente prescritivo (ou normativo). Isto é, como um arranjo a ser construído mediante ações coordenadas e planejadas, de responsabilidade de um tipo particular de Estado que, sem pretender substituir e sim alavancar uma incipiente teia de atores ainda incapaz de gerar fortes sinais de relevância, promova o estabelecimento de relações virtuosas entre pesquisa e produção e um tipo particular de inovação.

O conceito de inovação social é usado em Dagnino e Gomes (2000) para fazer referência ao conhecimento – intangível ou incorporado a pessoas ou equipamentos, tácito ou codificado – que tem por objetivo o aumento da efetividade dos processos, serviços e produtos relacionados à satisfação das necessidades sociais. Sem ser excludente em relação ao anterior, refere-se a um distinto código de valores, estilo de desenvolvimento, "projeto nacional" e objetivos de tipo social, político, econômico e ambiental. Como o anterior, o conceito de inovação social engloba três tipos de inovação: hardware, software e orgware. (4)

 

A abordagem sociotécnica

A abordagem sociotécnica, e em especial o processo de construção sociotécnica, é um elemento central do conceito de "adequação sociotécnica", apresentado mais adiante. E este, como se verá, tem significativa importância para conceber exitosos processos de desenvolvimento de TS. Ao transcender a visão estática e normativa – de produto previamente especificado – que caracteriza os conceitos de TA, e ao destacar a necessidade de iniciar um processo nas condições dadas pelo ambiente específico onde ele terá de ocorrer, a adequação sociotécnica confere ao marco da TS maior solidez e eficácia.

Agrupamos sob essa denominação a perspectiva que se difundiu nas duas últimas décadas influenciada pela visão construtivista surgida no âmbito da nova sociologia da ciência. Privilegiando a observação de processos que ocorrem no micronível com categorias e ferramentas analíticas típicas dos estudos de caso, essa perspectiva foi responsável pela conformação de um novo campo de estudos sobre a tecnologia: a sociologia da tecnologia ou sociologia da inovação (Aguiar, 2002). Nela agrupamos três contribuições – baseadas nos conceitos de sistemas tecnológicos, de Thomas Hughes, de ator-rede, associada a Michael Callon, Bruno Latour e John Law, e de construtivismo social da tecnologia, dos sociólogos da tecnologia Wiebe Bijker e Trevor Pinch – que têm em comum a intenção de "abrir a caixa-preta da tecnologia" e a metáfora que situa a tecnologia junto à sociedade, à política e à economia conformando um "tecido sem costuras" (Hughes, 1986). Coerentemente, elas se negam a identificar relações de causalidade monodirecionais entre "o social" e "o tecnológico" e buscam uma alternativa ao que consideram a tensão paralisante entre o determinismo tecnológico e o determinismo social, incapazes de dar conta da complexidade da mudança tecnológica. Seu argumento central é o de que a tecnologia é socialmente construída por "grupos sociais relevantes" no âmbito do "tecido sem costuras" da sociedade.

A abordagem do ator-rede, extrapolando o conceito convencional de ator, cunha tal expressão para abarcar um conjunto heterogêneo de elementos – animados e inanimados, naturais ou sociais – que se relacionam de modo diverso, durante um período de tempo suficientemente longo, e que são responsáveis pela transformação – incorporação de novos elementos, exclusão ou redefinição de outros, reorientação das relações – ou consolidação da rede por eles conformada (Callon, 1987).

Esse conjunto de elementos estaria, então, formado não apenas pelos inventores, pesquisadores e engenheiros, mas também pelos gerentes, trabalhadores, agências de governo, consumidores, usuários envolvidos com a tecnologia e, mesmo, os objetos materiais (Latour, 1992). Seria então o tratamento desse novo objeto de estudo que não admite uma hierarquia que postule a priori uma relação monocausal – o acionar do ator-rede –, e não da sociedade propriamente dita, nem sequer das relações sociais, o que permitiria entender como se vão conformando simultaneamente a sociedade e a tecnologia. As redes são então entendidas como conformadas pela própria estrutura dos artefatos que elas criam e que proporcionam uma espécie de plataforma para outras atividades.

A observação empírica, caso a caso, dos interesses, negociações, controvérsias, estratégias associados aos elementos humanos, assim como dos aspectos relativos aos demais elementos não-humanos e de sua correspondente resistência e força relativa, seria o ponto de partida para entender a dinâmica de uma sociedade em que as considerações sociológicas e técnicas estariam inextricavelmente ligadas.

A abordagem do construtivismo social, também conhecida como o enfoque da construção social da tecnologia, é a que desenvolveremos com mais detalhes. O construtivismo surgiu em associação com as abordagens do sistema tecnológico e atorrede, tendo em vista as redes que expõem as relações entre os atores sociais e os sistemas técnicos. Sua origem é a sociologia da ciência que, a partir dos anos 1980, passa a se ocupar também da tecnologia como objeto de estudo no âmbito do Programa Forte de Edimburgo (Bloor, 1998).

A tese central do construtivismo, que começa a se estabelecer em 1984, é a de que o caminho que vai de uma idéia brilhante a uma aplicação bem-sucedida é longo e sinuoso, entremeado com alternativas inerentemente viáveis, que foram abandonadas por razões que têm mais a ver com valores e interesses sociais do que com a superioridade técnica intrínseca da escolha final.

As tecnologias e as teorias não estariam determinadas por critérios científicos e técnicos. Haveria geralmente um excedente de soluções factíveis para qualquer problema dado e seriam os atores sociais os responsáveis pela decisão final acerca de uma série de opções tecnicamente possíveis. Mais do que isso: a própria definição do problema freqüentemente mudaria ao longo do processo de sua solução.

As tecnologias seriam construídas socialmente na medida em que os grupos de consumidores, os interesses políticos e outros similares influenciam não apenas a forma final que toma a tecnologia, mas seu conteúdo. Os fundadores do construtivismo – Bijker e Pinch – ilustram esse argumento com a história de um conhecido artefato tecnológico: a bicicleta. Trata-se de um objeto que, como tantos outros, seria hoje visualizado como uma "caixa-preta". De fato, começou sua existência com formas 39 muito distintas, que iam desde um equipamento esportivo até um veículo de carga. Sua roda dianteira mais alta, necessária naquele tempo para alcançar maior velocidade (a força de tração era exercida diretamente na roda dianteira) numa bicicleta usada como equipamento esportivo, causava instabilidade, numa bicicleta empregada como veículo de transporte, ou desconforto para as mulheres com longos vestidos (Pinch e Bijker, 1990).

Em sua forma final, observa-se que rodas de igual tamanho foram sendo paulatinamente adotadas visando à segurança em detrimento da velocidade. Não obstante, durante certo período, os dois projetos que atendiam a necessidades diferentes conviveram lado a lado. Essa temporária ambigüidade do artefato tecnológico bicicleta foi chamada de "flexibilidade interpretativa".

Tal conceito aponta para o fato de que significados radicalmente distintos de um artefato podem ser identificados pelos diferentes grupos sociais relevantes, que outorgam sentidos diversos ao objeto de cuja construção participam. Isso não significa que eles não compartilhem um significado especial do artefato: aquele que é utilizado para referenciar as trajetórias particulares do desenvolvimento que ele percorre.

Por isso identificar e "seguir" os grupos sociais relevantes envolvidos no desenvolvimento de um artefato é o ponto de partida das pesquisas realizadas pela abordagem do contexto que consideraram a possibilidade de a tecnologia ser uma construção social, e não o fruto de um processo autônomo, endógeno e inexorável como concebe o determinismo.

A metáfora do "tecido sem costura", comum a outras abordagens sociotécnicas, origina no âmbito do construtivismo o conceito de conjunto (ensemble) sociotécnico. Ele denota os arranjos entre elementos técnicos e sociais que dão como resultado uma outra entidade, algo mais do que a simples soma desses elementos, que se converte num novo objeto de estudo empregado para explicar tanto a condição tecnológica da mudança social quanto a condição social da mudança tecnológica. Ao relacionar o ambiente social com o projeto de um artefato, cria um "marco de significado" aceito pelos vários grupos sociais envolvidos na própria construção do artefato, que guia sua trajetória de desenvolvimento.

Ao mesmo tempo, explica como o ambiente social influencia o projeto de um artefato e como a tecnologia existente influencia o ambiente social.

O processo de construção sociotécnica, pelo qual artefatos tecnológicos vão tendo suas características definidas por meio de uma negociação entre grupos sociais relevantes, com preferências e interesses diferentes, depois de passar por uma situação de "estabilização" chegaria a um estágio de "fechamento" (Bijker, 1995). Nesse estágio diminui drasticamente a flexibilidade interpretativa, e alguns significados originais desaparecem. Da multiplicidade de visões iniciais emerge um consenso entre os grupos sociais relevantes que reduz a possibilidade de uma inovação radical.

Isso não significa que no projeto mais seguro, "ganhador", da bicicleta, que além de rodas de igual tamanho apresentava soluções tecnológicas particulares, não se tenham introduzido inovações posteriores. Apesar de incrementais, elas levaram a um projeto muito distinto do original. Se não olharmos o produto "final" em perspectiva, teremos a falsa impressão – coerente com o determinismo – de que o modelo de roda alta era uma etapa inicial, tosca e menos eficiente, de um desenvolvimento progressivo. De fato, os dois modelos conviveram durante anos e um não pode ser visto como uma etapa de um desenvolvimento linear que conduziu ao outro. O modelo de roda alta era na verdade a origem de um factível caminho alternativo para o desenvolvimento da bicicleta.

As maneiras diferentes como os grupos sociais interpretam e utilizam um objeto técnico (a bicicleta, no caso) não lhe são extrínsecas.

Produzem, ao longo de seu processo de construção sociotécnica, mudanças na natureza dos objetos. O que o objeto significa para o grupo mais poderoso (um equipamento esportivo ou um meio de transporte?) determina o que virá a ser quando for reprojetado e "melhorado" (segundo a percepção dominante) através do tempo. Por essa razão, só é possível entender o desenvolvimento de um artefato tecnológico estudando o contexto sociopolítico e a relação de forças entre os diversos grupos com ele envolvidos.


 
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