Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 

A loucura real e visionária de Dom Sebastião em mensagem (página 2)

Cladismari Zambon de Moraes

 

Pessoa defende a tese de que a decadência das instituições portuguesas prenunciava o mais forte indício de que estava por surgir um poeta que superasse a narrativa camoniana e conduzisse o povo à liberdade, do cativeiro da decadência em que Portugal se encontrava. Sua intenção, de fato, não era anunciar o aparecimento de um poeta isolado nem o de uma obra capaz de superar a de Camões, mas, sim, o de uma obra poética que reunisse o espírito português, então disperso e estagnado, marcando o início de uma nova era de grandes e surpreendentes conquistas. Portugal pode considerar-se um exemplo a ser seguido pelo mundo. Pessoa pretendia que esse sentimento tivesse um caráter mais globalizado, chamando a atenção da humanidade. E é nesse sentido de universalidade que a obra de Pessoa desenvolve sua especulação filosófica.

Fernando Pessoa escreve "Mensagem" em sua fase mais transcendental. É seu único livro em língua portuguesa, composto durante um período de mais de vinte anos – entre 1913 e 1934. Por meio de Pessoa eclodiu o grito incontido na alma portuguesa, ávida de arregimentação do espírito cívico de reconstrução de Portugal, semelhante ao período dos grandes descobrimentos daquela nação.

Os poemas do livro estão organizados de forma a compor uma epopéia fragmentária, em que o conjunto dos textos líricos acaba formando um elogio de teor épico a Portugal. Traçando a história do seu país, Pessoa envereda por um nacionalismo místico de caráter sebastianista. Está dividido em três partes: Brasão, Mar português e O Encoberto. Estruturado de maneira extremamente complexa, Mensagem tem uma forte carga simbólica e faz alusão a vários momentos por que passa a nação portuguesa. O título original era Portugal mas, quase no último momento, decide mudar de título, a pretexto de que o nome de sua pátria estava "prostituído e com os pés feridos", mas na verdade o faz para melhor salientar que a epopéia da salvação nacional é, em sentido figurado, a aventura da salvação da alma pessoal: esse livro épico e mítico é antes de mais nada espiritualista e místico.

Bosi, em sua obra O ser e o tempo da poesia, nos aponta a ressacralização da memória mais profunda da comunidade presente na poesia mítica como uma resposta ao presente estéril. Quando a mitologia tradicional falha ou não se adequa a esse projeto de recusa, é sempre possível sondar e remexer as camadas da psique individual. "

A poesia trabalhará, então, a linguagem da infância recalcada, a metáfora do desejo, o texto do Inconsciente, a grafia do sonho." (BOSI 2000: 174)

"Ah, quanto mais ao povo a alma falta, Mais a minha alma atlântica se exalta

E entorna,

E em mim, num mar que não tem tempo ou ‘spaço,

Vejo entre a cerração teu vulto baço

Que torna"

[Fernando Pessoa, "A última nau" (Mensagem)]

"O sonho é ver as formas invisíveis

Da distância imprecisa, e, com sensíveis

Movimentos da esperança e da vontade,

Buscar na linha fria do horizonte

A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –

Os beijos merecidos da verdade"

[Fernando Pessoa, "Horizonte" (Mensagem)]

Mensagem parte de um arquétipo mítico vazio, o Encoberto, para a tentativa de historicizar esse mesmo arquétipo mítico vazio. É o que Carlos Reis (2001: 94) nos aponta ao falar em imaginário cultural na obra literária como uma forma de valorizar nela sua capacidade de referência aos mitos culturais reiteradamente enunciados: o ascendente da tradição, o prestígio do clássico e a relevância de temas literários multisseculares (amor, tempo, morte, etc.). García Berrio refere-se também a esse imaginário cultural que aprofunda os poderes de ressonância poética das realizações literárias anteriores, consolidadas em sua dimensão de mitos artísticos (BERRIO 2000: 362). Assim, ao compreendermos Mensagem como uma epopéia que parte da consciência de um vazio histórico, da consciência de uma trajetória histórica já cumprida e esvaziada para a proposta final de re-historicizar essa história vazia, percebe-se o empenho de Pessoa em recolocar esse contexto de nação enquanto história, enquanto mito em um novo contexto histórico.

Pode-se perceber essa tentativa de atualização do mito claramente no verso final: "É a hora!". É a hora de quê? É a hora de participar de uma nova formulação de história que não está no plano dessa história já cumprida. Afinal de contas, como se lê em "O Infante", o primeiro dos poemas da segunda parte da Mensagem:

"Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!"

Cumprir-se Portugal como? De que forma? Em que perspectiva? Na perspectiva que está definida no poema "A Prece", com que o poeta finaliza também a segunda parte, "Mar Português", e diz:

"Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —,

Com que a chama do esforço se remoça,

E outra vez conquistaremos a Distância —

Do mar ou outra, mas que seja nossa!"

Nesse sentido Pessoa busca grandes figuras da história portuguesa no intuito de levar à consciência dos portugueses as ações sobre-humanas dos seus antepassados, exemplos de uma loucura virada para o futuro (LIND 1981: 480). Nos versos de Mensagem, esta loucura criadora já não é uma particularidade dos poetas, dos fundadores de religiões ou dos filósofos. Pertence a todos aqueles que tentam realizar um grande projeto nacional e que não se satisfazem unilateralmente nos gozos de uma sociedade de consumo. Esta atitude culmina na poesia dedicada a Dom Sebastião (Brasão).

D.SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL

"Louco, sim, louco, porque quis grandeza

Qual a Sorte a não dá.

Não coube em mim minha certeza;

Por isso onde o areal está

Ficou meu ser que houve, não o que há.

 

Minha loucura, outros que me a tomem

Com o que nela ia.

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadáver adiado que procria?"

Dom Sebastião é um herói da desgraça, trágico. Marcado não só pela sua tragédia individual de morrer em Alcácer Quibir, aos 24 anos de idade, desmontando o seu projeto de ser o grande imperador do V Império, o grande rei, o grande dominador, mas o herói que carrega consigo na sua morte a tragédia da própria nação, que com ele termina caindo sob domínio da Espanha. Aquele que sonhou a realização do quinto e último império, que seria o império de Cristo sobre a face da Terra, dominando todos os continentes, de Ocidente a Oriente. Termina este rei morto e este reino perdendo a sua própria identidade, a sua própria independência, caindo, em 1580, sob o domínio dos Felipes, de Espanha.

Um herói que "falhou" o empreendimento épico a que Camões e outros o tinham incentivado, falando, em primeira pessoa, do seu sonho de grandeza e assumindo-se orgulhosamente como louco, capaz de partir e de se deixar morrer por uma idéia de grandeza no areal de Alcácer Quibir.

Só que nesse areal ficou apenas o que nele havia de mortal: "Ficou meu ser que houve, não o que há". O que sobreviveu foi, afinal, o mais importante: o ser que há, que permanece, que é imortal: o sonho -loucura – "de querer grandeza / qual a Sorte a não dá".

Afinal, diz este Rei-louco na segunda estrofe, o que é necessário é que outros venham pegar no seu sonho - divina loucura- e o retomem, porque

"Sem a loucura, que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadáver adiado que procria?"

Este final define a loucura, o sonho, como o que distingue o homem da "besta sadia , cadáver adiado que procria". Dá o tom último à Mensagem pessoana: o louvor da loucura que distingue o homem do animal e o faz ir em frente, haja o que houver na busca da realização do sonho.

Mas, o que se entende por loucura? Que distinção podemos fazer entre normalidade e loucura? Vamos buscar na Antipsiquiatria subsídios para nossa discussão. A Antipsiquiatria, segundo Duarte Júnior (1986: 69), é uma proposta formulada pelos psiquiatras David Cooper e Ronald Laing a partir de divergências com relação à Psiquiatria tradicional. A Antipsiquiatria se contrapõe à Psiquiatria tradicional no que diz respeito ao conceito de loucura - uma doença psíquica grave que isola o indivíduo portador de comportamento diferente da norma. Na Antipsiquiatria a normalidade não é o avesso da loucura, mas sim uma forma alienada de existência. Isso porque o normal é definido em termos estatísticos: normal é o que a maioria das pessoas faz, num determinado contexto. Se normalidade é definida estatisticamente, e se as estruturas sociais estão doentes, o indivíduo normal é aquele que se adapta às regras opressivas da sociedade, que não as questiona, que as aceita passivamente. O louco seria uma voz inaudita de resistência a essas regras opressivas.

Na realidade, perante o poder mobilizador da loucura, a morte não passa de contingência física. Tal "divina loucura" é fonte de energia que leva o homem a ser mais do que é, na sua contingência física feita de fraqueza. A morte é muito pouco e não é, de fato, o que pode impedir que o sonho prossiga noutras mãos. Lind (1986: 481) observa nesta poesia de Fernando Pessoa uma viva admiração pela loucura de Dom Sebastião e um desprezo acentuado pelo homem "besta sadia", que passa a vida sem ideais, sem grandes projetos, contentando-se com o gozo materialista - o homem "normal". A loucura de Dom Sebastião soa como um sopro de esperança, uma possibilidade de ruptura com a morte e a estagnação de um povo que conheceu a glória e a depressão. A loucura representa o sonho, um mergulho no desconhecido e encantador mundo de sentimentos e emoções que o poeta nos oferece em palavras e símbolos numa transcrição de seu mundo interior. Dom Sebastião retorna do imaginário popular português como uma promessa de rebeldia e resistência contra a alienação e a estagnação. Afinal, se não fossem os loucos revolucionários ao longo da história da humanidade, muito de nosso avanço tecnológico e científico não teria ocorrido. Só se muda o que não está bom e, por outro lado, toda mudança provoca resistência e medo. Melhor que um "cadáver adiado que procria" é pensar o homem como alguém que pode criar, amar, desejar, arriscar, enfim, viver e até morrer por um ideal.

 

Referências bibliográficas

  • BERRÍO, A. G. Teoria de la literatura: la construcción del significado poético. Madrid: Cátedra, 1989.
  • BOSI, A. O ser o e tempo da poesia, 6a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • COELHO, J. P., A letra e o leitor, 2a. ed. Lisboa: Moraes, 1977.
  • ________, Camões e Pessoa: poetas da utopia. Lisboa: Publicações Europa-América, 1983.
  • ________, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, São Paulo: Verbo/EDUSP, 1977.
  • DUARTE JUNIOR, J.F. A política da loucura, 2a. ed. Campinas: Papirus, 1986.
  • LIMA, L.C. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
  • LIND, G. R., Fernando Pessoa e a loucura. In: Estudos sobre Fernando Pessoa, Vila da Maia: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981.
  • PESSOA, F. Mensagem. Lisboa: Livraria Antônio Maria Pereira, 1934.
  • REIS, C. O conhecimento da literatura: Introdução aos estudos literários. 2a. ed. Coimbra: Almedina, 2001.

 

Cladismari Zambon de Moraes
cladismari[arroba]hotmail.com

http://www.psicopedagogia.com.br
http://geocities.yahoo.com.br/czambon2



 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.