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Em torno do linchamento (página 2)

Rômulo de Andrade Moreira

 

Em nosso Estado, principalmente na Capital, os linchamentos viraram notícia corriqueira nas páginas policiais, infensos até a maiores comoções.Segundo o jornal O Globo, na edição de 10 de julho do ano de 1995, doze pessoas, nove das quais em Salvador, "já foram espancadas até a morte este ano na Bahia", informando que "há três anos o número de linchamentos vem aumentando", sendo que "em alguns casos as vítimas eram suspeitas de pequenos furtos".O fenômeno se repete ainda hoje e de forma mais constante, bastando uma aligeirada pesquisa nas páginas policiais dos nossos jornais diários.

A cifra impressiona...Feitas estas primeiras considerações, muito mais ilustrativas, entendemos que o linchamento envolve três aspectos principais: a crueldade, a covardia e a inutilidade de sua prática.É cruel porque se mata lentamente, minando as forças do agredido com golpes sucessivos e nos diversos órgãos do corpo, utilizando-se dos mais diferentes instrumentos, arruinando-lhe paulatinamente e deixando o infeliz sentir vagarosamente a dor e a morte. Normalmente, o espetáculo aterrador finda-se com a cremação do que sobrou da matéria, como uma láurea aos vencedores. Nada mais pungente, portanto.Já a covardia se traduz no fato de que se reúnem vários homens e atacam um, dois ou, no máximo, três, atitude de todo pusilânime. A falta de coragem salta aos olhos quando atentamos para o fato de que o linchamento é sempre precedido pelo ajuntamento dos executores, nunca agindo isoladamente. Não que pregamos, em absoluto, intrepidez no agir ou bravura no fazer a "justiça com as próprias mãos", posto que tal procedimento, solitariamente ou em grupo, é sempre detestável, além de defeso pelo Direito, salvo em casos especialíssimos, permitidos e especificados em lei, entre os quais não se encontra a execução sumária de indivíduos indefesos.Assim, é lógico que, numericamente inferiorizada, a vítima do linchamento chance nenhuma possui de defesa fato este, inclusive, também qualificador do homicídio cometido, ao lado da torpeza e da crueldade (cfr. Código Penal Art. 121, § 2º., I, II e IV).Sentimos, ainda, que o linchamento é exercício inútil, tendo em vista que apenas na aparência solucionaria a criminalidade. O pensamento de que se matando um delinqüente, sumariamente ou não, caminha-se para a solução da delinqüência, é tacanho, falacioso e está superado (é como imaginar, inocentemente, que a transposição das águas do Velho Chico solucionaria a problemática da seca no Nordeste).A questão, para nós, deve ser encarada sob um outro aspecto, haja vista que consideramos tremendamente nocivo para um estado de direito que a sua sociedade dissemine o jus puniendi como um direito posto à disposição dos cidadãos quando, na verdade, ele pertence tão-somente ao Estado.

Este fato apenas gera uma descrença progressiva nos poderes constituídos (o que já ocorre) a ensejar um perigoso processo de "cada um por si", aumentando, sem dúvidas, o grau de violência no País. Assim, visto também por esse prisma, infrutuoso é o linchamento.Na presente análise (diga-se de passagem, inteiramente despretensiosa), há algo que não pode ser olvidado: a causa da contumácia dos linchamentos. Temos para nós, a priori, que o aumento indiscriminado da criminalidade, aliado à falta de confiança da população na punição dos infratores (fatos estes incontestes), dão a motivação para atos dessa natureza. A crença de que a polícia não pode dar cabo à violência (o que, diga-se de passagem, é verdade, ante a própria natureza humana e, principalmente, ao estado de miséria em vive a nossa população) nem, ao menos, reduzi-la a níveis suportáveis (esta sim, circunstância perfeitamente factível diante dos mecanismos postos à disposição da organização estatal), acarreta a revolta e o desejo de dizer o Direito motu proprio, sem aguardar que o faça o organismo político.Nesse ponto resulta exatamente o maior erro de quem participa de um linchamento (e de quem o aplaude ou o aceita): o mesmo órgão (o grupo agressor) acusa, defende, julga e executa, tal como na Inquisição, sem que seja dado ao "réu", por si próprio ou por terceiro, ensejo em defender-se, expurgando -se do Estado o devido processo legal, garantia está insculpida na própria Constituição Federal, no seu art. 5º, LIV, princípio, aliás, existente desde a Constituição Americana de 1791 (due process of law) e segundo o qual é vedado o julgamento de um cidadão sem que lhe seja assegurado um processo legalmente constituído, garantindo-se, absoluta e inarredavelmente, o seu direito à mais ampla e irrestrita defesa.

Sem esta, qualquer julgamento será execrável; toda decisão referente à liberdade, ao patrimônio ou à vida de uma pessoa, e da qual não se dissocie acusador ou defensor ou qualquer um destes do julgador, não é legitima, não é constitucional...O Professor Heleno Cláudio Fragoso, emérito penalista e defensor ardoroso de presos políticos na época da ditadura, já afirmava que "o Estado detém o monopólio do magistério punitivo, mesmo quando a acusação é promovida pelo ofendido (ação penal privada)", o que significa que o indivíduo, ainda que o bem jurídico atingido seja próprio, não pode, por si só, querer dizer o Direito, sob pena de ingerência indevida nas coisas específicas do Estado (cfr. Lições de Direito Penal – Parte Geral, 9ª. edição, p. 02).No linchamento, ao invés, contraria-se este princípio jurídico, posto que, tal como o concebeu o norte-americano Willian Lynch (1742-1820), linchar é execução sumária, sem prerrogativas de alguma espécie para o indivíduo.Retorna-se, então, aos primórdios da Roma Antiga (753 a.C.), onde "o transgressor era considerado execrável ou maldito (sacer esto), sujeito à vingança dos deuses ou de qualquer pessoa, que poderia matá-lo impunemente", como nos lembra Fragoso (ob. cit. p. 24).Observa-se que este fenômeno, além de nefasto por tudo quanto já dito, também o é pela real possibilidade, não de matar-se um culpado (o que bastaria para sê-lo), mas de se eliminar um inocente, fato bastante provável à vista da precipitação e rapidez em que ocorre o massacre.

Ora, se erros judiciários acontecem nada obstante o referido due process of law, suponha-se em sentenças sumárias? Note-se que no erro cometido por um Juiz de Direito, acena para o sentenciado a possibilidade, até, de uma reparação civil, sem falar na devolução da liberdade física (se ainda for possível, evidentemente). Aqui, ao contrário, no erro perpetrado por juízes de fato, vislumbra- se para o ofendido, tão-somente, a morte ou, em hipótese melhor, a marca indelével da tortura.Outro dado de arrepiar em todos os linchamentos é a falta de punição dos agentes, seja por ser difícil a respectiva identificação, seja pela falta de testemunhas disponíveis ou, ainda, pelo pouco interesse na apuração do delito, pois, ao que parece, a morte de um delinqüente é muito mais cômoda do que o trabalho em averiguar a responsabilidade penal dos responsáveis. A falta de punição, como é lógico, leva à repetição dos atos ilícitos

.Ao final das considerações acima expostas, fica a nossa expectativa de que o Brasil haverá de suplantar a crise social em que está mergulhado, ocasionadora de tantos desníveis sociais que levam, por sua vez, a maioria da população a um estado de miséria total, proporcionando, induvidosamente, este alarmante índice de violência do qual o linchamento é mais uma vertente, dentre tantas outras.É inquestionável que este triste fenômeno, cada vez mais crescente, provém da questão sócio-econômica. Resolvida esta, certamente morrer linchado será tão raro e estranho quanto, por exemplo, morrer de fome...Para que finalizemos com letras mais insignes, transcrevamos, mais uma vez, a lição de um grande jurista brasileiro, um homem que dedicou a sua vida ao Direito e à ordem jurídica:

"Matar alguém é um ato que fere tanto um mandamento ético- religioso como um dispositivo penal. A diferença está em que, no plano jurídico, a sociedade se organiza contra o homicida, através do aparelhamento policial e o Poder Judiciário". (Miguel Reale, in Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 19ª. ed. p. 74).

Rômulo de Andrade Moreira
romuloamoreira[arroba]uol.com.br
Rômulo de Andrade Moreira
Promotor de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público do Estado da Bahia.
Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS na graduação e na pós -graduação (Cursos de Especialização em Direito Público
e em Processo). ]
Pós -graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha e pela UNIFACS (Especialização em Processo, coordenado pelo Professor Calmon de Passos).
Membro da Association Internationale de Droit Penal e do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento do Ministério Público Democrático.



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