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A institucionalização da delação no direito positivo brasileiro (página 2)

Rômulo de Andrade Moreira

 

Mas, não é só.

Ainda mais recentemente, em 03 de maio deste ano, o Presidente Fernando Henrique Cardoso (o sociólogo de esquerda que não gosta de grevista), sancionou a Lei n. 9.034/95, dispondo "sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas."

Tal como o anterior, este instrumento normativo, criado para definir e regular "meios de prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando ", também considera causa compulsória de diminuição da pena a delação de um dos participantes na organização criminosa.

Aliás, na Lei de Crimes Hediondos, o legislador foi mais explícito e utilizou o verbo denunciar como sinônimo da delação, enquanto que nesta segunda norma, preferiu a expressão colaboração espontânea, como que para escamotear a vergonhosa presença da traição premiada em um diploma legal.

Por fim, em 19 de julho deste ano, foi sancionada a Lei n. 9080/95, prevendo, igualmente, a delação como prêmio ao co-autor ou partícipe de crime cometido contra o sistema financeiro nacional ou contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo, quando cometidos em quadrilha ou co-autoria. Agora fala-se em confissão espontânea, o que resulta o mesmo.

Apenas para ilustrar, diga-se que alguns doutrinadores costumam distinguir a delação como aberta ou fechada, aduzindo que naquela primeira o delator aparece e se identifica, inclusive favorecendo-se de alguma forma com o seu gesto, seja na redução da pena, seja no recebimento de recompensa pecuniária; nesta, ao contrário, o delator se assombra no manto do anonimato, "propiciando auxílio desinteressado e sem qualquer perigo ", como assevera Paulo Lúcio Nogueira ( Crimes Hediondos, LEUD, 4a. ed., p. 126).

Afora questões de natureza prática, como, por exemplo, a inutilidade, no Brasil, desse instituto, por conta, principalmente, do fato de que o nosso Estado não tem condições de garantir a integridade física do delator criminis, nem a de sua família, o que serviria como elemento desencorajador (note-se que, conforme informou o ilustrado Damásio E. de Jesus, quando do III Encontro Estadual do Ministério Público do Estado da Bahia, em Comandatuba, no período de 31 de agosto de 1995 a 03 de setembro do mesmo ano, até aquela data, apenas um caso de delação premiada tinha sido por ele visto, quando de um julgamento do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo), aspectos outros, estes de natureza ético-moral, informam a profunda e irremediável infelicidade cometida mais uma vez pelo legislador brasileiro, muito demagógico e pouco cuidadoso quando se trata dos aspectos jurídicos de seus respectivos projetos de lei, como sói acontecer.

Para nós, é tremendamente perigoso que o Direito Positivo de um país permita, e mais do que isso, incentive os indivíduos que nele vivem à prática da traição como meio de obter-se um prêmio ou um favor jurídico.

Se considerarmos que a norma jurídica de um Estado de Direito é o último refúgio do seu povo, no sentido de que as proposições enunciativas nela contidas representam um parâmetro de organização ou conduta das pessoas (a depender de qual norma nos refiramos, se, respectivamente, de segundo ou primeiro graus, no dizer de Bobbio), definindo os limites de suas atuações, é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada, em flagrante incitamento à transgressão de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo.

Que não se corra o perigo, já advertido e vislumbrado pelo poeta Dante Alighieri, lembrado por Miguel Reale, quando filosofa que o "Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a." (in Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 19a. ed. 1991, p. 60).

Diante dessa sombria constatação, como se pode exigir do governado um comportamento cotidiano decente, se a própria lei estabelecida pelos governantes, permite e galardoa um procedimento indecoroso? Como fica o homem de pouca ou nenhuma cultura, ou mesmo aquele desprovido de maiores princípios, diante dessa permissividade imoral ditada pela própria lei, esta mesma lei que, objetiva e obrigatoriamente, tem de ser respeitada e cumprida, sob pena de sanção? Estamos ou não estamos diante de um paradoxo?

É c erto que em outras legislações, inclusive de países desenvolvidos economicamente (embora possuidores de uma sociedade em desencanto, como, por exemplo, a italiana), a figura da delatio já existe há algum tempo (lá, diga-se de passagem, assegura-se inquestionavelmente a vida do denunciante), como ocorre nos Estados Unidos (bargain) e na Itália (pattegiamento), entre outros países. São exemplos, contudo, que não deveriam ser seguidos, pois desprovidos de qualquer caráter moral ou ético, como já acentuamos.

Tão-somente para se argumentar, pode-se dizer que o bem jurídico visado pela delação (a segurança pública), justificaria a sua utilização, ou, em outras palavras, o fim legitimaria o meio. Ocorre que tal princípio é de todo amoralista, aliás, próprio do sistema político defendido pelo escritor e estadista florentino Niccolò Machiavelli (1469-1527), sistema este dito de um realismo satânico, na definição de Frederico II em seu Antimaquiavel, tornando-se sinônimo, inclusive, de procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro, etc., etc...

O próprio Rui Barbosa já afirmava não se dever combater um exagero (no caso a violência desenfreada) com um absurdo (a delação premiada).

Entendemos que o aparelho policial do Estado deve se revestir de toda uma estrutura e autonomia, a fim de poder realizar seu trabalho a contento, sem necessitar de expedientes escusos na elucidação dos delitos.

O aparato policial tem a obrigação de, por si próprio, valer-se de meios legítimos para a consecução satisfatória de seus fins, não sendo necessário, portanto, que uma lei ordinária use do prêmio ao delator (crownwitness), como expediente facilitador da averiguação policial e da efetividade da punição.

Ademais, no próprio Código Penal já existe a figura da atenuante genérica do art. 65, III, b, onde a pena será sempre atenuada quando o agente tiver "procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano", que poderia muito apropriadamente compensar (por assim dizer) uma atitude do criminoso no auxílio à autoridade investigante ou judiciária.

Além da atenuante referida, há o instituto do arrependimento eficaz que, igualmente, beneficia o agente quando este impede, voluntariamente, que o resultado da execução do delito se produza, fazendo-o responder, apenas, pelos atos já praticados (art. 15).

Pode-se, ainda, referir-se ao preceito do art. 16, arrependimento posterior, bem verdade que este limitado àqueles crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, mas, da mesma forma, compensador de uma atitude favorável por parte do delinquente, reduzindo-lhe a pena.

Vê-se, destarte, que o ordenamento jurídico existente e consubstanciado no Código Penal já permitia beneficiar o réu em determinadas circunstâncias, quando demonstrasse " menor endurecimento no querer criminoso, certa sensibilidade moral, um sentimento de humanidade e de justiça que o levam, passado o ímpeto do crime, a procurar detê-lo em seu processo agressivo ao bem jurídico, impedindo-lhe as consequências", como já acentuou o mestre Aníbal Bruno (Direito Penal, 4a. ed. t. III, p. 140, 1984). Não necessitava, portanto, o legislador, em lei extravagante, vir a prever a delação premiada, como causa de diminuição da pena. Também por isso foi inoportuno.

A traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos. A lei, como já foi dito, deve sempre e sempre indicar condutas sérias, moralmente relevantes e aceitáveis, jamais ser arcabouço de estímulo a perfídias, deslealdades, aleivosias, ainda que para calar a multidão temerosa e indefesa (aliás, por culpa do próprio Estado) ou setores economicamente privilegiados da sociedade (no caso da repressão à extorsão mediante sequestro).

Em nome da segurança pública, falida devido à inoperância social do Poder e não por falta de leis repressivas, edita-se um sem número de novos comandos legislativos sem o necessário cuidado com o que se vai prescrever.

Incita-se, então, à traição, este mal que já matou os conjurados delatados pelo crápula Silvério dos Reis; que levou Jesus à cruz por conta da fraqueza de Judas e deu novo alento aos invasores holandeses graças à ajuda infame de Calabar.

Esses traidores históricos, e tantos outros poderiam ser citados, são símbolos do que há de pior na espécie humana; serão sempre lembrados como figuras desprezíveis. Advirta-se, que não estamos a fazer comparações, pois, sequer são, neste caso, cabíveis.

Apenas tencionamos mostrar a nossa indignação com a utilização da ordem jurídica como instrumento incentivador da traição, ainda que se traia um sequestrador, um latrocida ou um estuprador.

Não podemos nos valer de meios esconsos, em nome de quem quer que seja ou de qualquer bem, sob pena, inclusive, de sucumbirmos à promiscuidade da ordem jurídica corrompida, pelo que procuramos, sucintamente, neste trabalho, condenar a delatio premiada introduzida em nosso Direito Positivo.

"Em verdade te digo que hoje, nesta noite, antes que duas vezes cante o galo, tu me negarás três vezes." ( Marcos, 14,30 - Palavras de Jesus a Pedro).

Rômulo de Andrade Moreira
romuloamoreira[arroba]uol.com.br
RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA
Promotor de Justiça, Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais e Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA
Promotor de Justiça, Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais e Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS



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