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Cônscia de sua condição, Isaura procurava ser humilde como qualquer outra escrava, porque a despeito de sua rara beleza e dos dotes de seu espirito, os fumos da vaidade não lhe intumesciam o coração, nem turvavam-lhe a luz de seu natural bom senso. Não obstante porém toda essa modéstia e humildade transiuzia-lhe, mesmo a despeito dela, no olhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade e orgulho nativo, proveniente talvez da consciência de sua superioridade, e ela sem o querer sobressaía entre as outras, bela e donosa, pela correção e nobreza dos traços fisionômicos e por certa distinção nos gestos e ademanes. Ninguém diria que era uma escrava, que trabalhava entre as companheiras, e a tomaria antes por uma senhora moça, que, por desenfado, fiava entre as escravas. Parecia a garça-real, alçando o colo garboso e altaneiro, entre uma chusma de pássaros vulgares.

As outras escravas a contemplavam todas com certo interesse e comiseração, porque de todas era querida, menos de Rosa, que lhe tinha inveja e aversão mortal. Em duas palavras o leitor ficará inteirado do motivo desta malevolência de Rosa. Não era só pura inveja; havia aí alguma coisa de mais positivo, que convertia essa inveja em ódio mortal.

Rosa havia sido de há muito amásia de Leôncio, para quem fora fácil conquista, que não lhe custou nem rogos nem ameaças. Desde que, porém, inclinou-se a Isaura, Rosa ficou inteiramente abandonada e esquecida.

A gentil mulatinha sentiu-se cruelmente ferida em seu coração com esse desdém, e como era maligna e vingativa, não podendo vingar-se de seu senhor, jurou descarregar todo o peso de seu rancor sobre a pessoa de sua infeliz rival.

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- Um raio que te parta, maldito! - Má lepra te consuma, coisa ruim! - Uma cascavel que te morda a língua, cão danado! - Estas e outras pragas vomitavam as escravas resmungando entre si contra o feitor, apenas este voltou-lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado entre os escravos; um carrasco não carrega com tantos ódios.

abominado mais do que o senhor cruel, que o muniu do azorrague desapiedado para açoitá-los e acabrunhá-los de trabalhos. É assim que o paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença para revoltar-se contra o algoz, que a executa.

Como já dissemos, coube em sorte a Isaura sentar-se perto de Rosa. Esta assestou logo contra sua infeliz companheira a sua bateria de ditérios e remoques sarcásticos e irritantes.

- Tenho bastante pena de você, Isaura. disse Rosa para dar começo às operações.

- Deveras! - respondeu Isaura, disposta a opor às provocações de Rosa toda a sua natural brandura e paciência. Pois por quê, Rosa?...

- Pois não é duro mudar-se da sala para a senzala, trocar o sofá de damasco por esse cepo, o piano e a almofada de cetim por essa roda? Por que te enxotaram de lá, Isaura?

- Ninguém me enxotou, Rosa; você bem sabe. Sinhá Malvina foi-se embora em companhia de seu irmão para a casa do pai dela.

Portanto nada tenho que fazer na sala, e é por isso que venho aqui trabalhar com vocês.

- E por que é que ela não te levou, você, que era o ai-jesus dela?... Ah! Isaura, você cuida que me embaça, mas está muito enganada; eu sei de tudo. Você estava ficando muito aperaltada, e por isso veio aqui para conhecer o seu lugar - Como és maliciosa! - replicou Isaura sorrindo tristemente, mas sem se alterar; pensas então que eu andava muito contente e cheia de mim por estar lá na sala no meio dos brancos?... como te enganas!... se me não perseguires com a tua má língua, como principias a fazer, creio que hei de ficar mais satisfeita e sossegada aqui.

- Nessa não creio eu; como é que você pode ficar satisfeita aqui, se não acha moços para namorar?

- Rosa, que mal te fiz eu, para estares assim a amofinar-me com essas falas?...

- Olhe a sinhá, não se zangue!... perdão, dona Isaura; eu pensei que a senhora tinha esquecido os seus melindres lá no salão.

- Podes dizer o que quiseres, Rosa; mas eu bem sei, que na sala ou na cozinha eu não sou mais do que uma escrava como tu. Também deves-te lembrar, que se hoje te achas aqui, amanhã sabe Deus onde estarás. Trabalhemos, que é nossa obrigação. deixemos dessas conversas que não têm graça nenhuma.

Neste momento ouvem-se as badaladas de uma sineta; eram três para quatro horas da tarde; a sineta chamava os escravos a jantar. As escravas suspendem seus trabalhos e levantam-se; Isaura porém não se move, e continua a fiar.

- Então? - diz-lhe Rosa com o seu ar escarninho, - você não ouve, Isaura? são horas; vamos ao feijão.

- Não, Rosa; deixem-me ficar aqui; não tenho fome nenhuma.

Fico adiantando minha tarefa, que principiei muito tarde.

- Tem razão; também uma rapariga civilizada e mimosa como você não deve comer do caldeirão dos escravos. Quer que te mande um caldinho, um chocolate?...

- Cala essa boca, tagarela! - bradou a crioula velha, que parecia ser a priora daquele rancho de fiandeiras. - Forte lingüinha de víbora!... deixa a outra sossegar. Vamos, minha gente.

As escravas retiraram-se todas do salão, ficando só Isaura, entregue ao seu trabalho e mais ainda às suas tristes e inquietadoras reflexões. O fio se estendia como que maquinalmente entre seus dedos mimosos, enquanto o pezinho nu e delicado, abandonando o tamanquinho de marroquim, pousava sobre o pedal da roda, a que dava automático impulso. A fronte lhe pendia para um lado como açucena esmorecida, e as pálpebras meio cerradas eram como véus melancólicos, que encobriam um pego insondável de tristura e desconforto. Estava deslumbrante de beleza naquela encantadora e singela atitude.

- Ah! meu Deus! - pensava ela; nem aqui posso achar um pouco de sossego!... em toda parte juraram martirizar-me!... Na sala, os brancos me perseguem e armam mil intrigas e enredos para me atormentarem. Aqui, onde entre minhas parceiras, que parecem me querer bem, esperava ficar mais tranqüila, há uma, que por inveja, ou seja lá pelo que for, me olha de revés e só trata de achincalhar-me.

Meu Deus! meu Deus!... já que tive a desgraça de nascer cativa, não era melhor que tivesse nascido bruta e disforme, como a mais vil das negras, do que ter recebido do céu estes dotes, que só servem para amargurar-me a existência?

Isaura não teve muito tempo para dar larga expansão às suas angustiosas reflexões. Ouviu rumor na porta, e levantando os olhos viu que alguém se encaminhava para ela.

- Ai! meu Deus! - murmurou consigo. - Aí temos nova importunação! nem ao menos me deixam ficar sozinha um instante.

Quem entrava era, sem mais nem menos, o pajem André, que já vimos em companhia do feitor, e que mui ancho, empertigado e petulante se foi colocar defronte de Isaura.

- Boa tarde, linda Isaura. Então, como vai essa flor? - saudou o pachola do pajem com toda a faceirice.

- Bem, respondeu secamente Isaura.

- Estás mudada?... tens razão, mas é preciso ir-se acomodando com este novo modo de vida. Deveras que para quem estava acostumada lá na sala, no meio de sedas e flores e águas-de-cheiro, há de ser bem triste ficar aqui metida entre estas paredes enfumaçadas que só tresandam a sarro de pito e morrão de candeia.

- Também tu, André, vens por tua vez aproveitar-te da ocasião para me atirar lama na cara?...

- Não, não, Isaura; Deus me livre de te ofender; pelo contrário, dói-me deveras dentro do coração ver aqui misturada com esta corja de negras beiçudas e catinguentas uma rapariga como tu, que só merece pisar em tapetes e deitar em colchões de damasco. Esse senhor Leôncio tem mesmo um coração de fera.

- E que te importa isso? eu estou bem satisfeita aqui.

- Qual!... não acredito; não é aqui teu lugar. Mas também por outra banda estimo bem isso.

- Por quê?

- Porque, enfim, Isaura, a falar-te a verdade, gosto muito de você, e aqui ao menos podemos conversar mais em liberdade...

- Deveras!... declaro-te desde já que não estou disposta a ouvir tuas liberdades.

- Ah! é assim! - exclamou André todo enfunado com este brusco desengano. - Então a senhora quer só ouvir as finezas dos moços bonitos lá na sala!... pois olha, minha camarada, isso nem sempre pode ser, e cá da nossa laia não és capaz de encontrar rapaz de melhor figura do que este seu criado. Ando sempre engravatado, enluvado, calçado, engomado, agaloado, perfumado, e o que mais e, - acrescentou batendo com a mão na algibeira, - com as algibeiras sempre a tinir. A Rosa, que também é uma rapariguinha bem bonita, bebe os ares por mim; mas coitada!... o que é ela ao pé de você?...

Enfim, Isaura, se você soubesse quanto bem te quero, não havias de fazer tão pouco caso de mim. Se tu quisesses, olha... escuta.

E dizendo isto o maroto do pajem, avizinhando-se de Isaura, foi-lhe lançando desembaraçadamente o braço em torno do colo, como quem queria falar-lhe em segredo, ou talvez furtar-lhe um beijo.

- Alto lá! - exclamou Isaura repelindo-o com enfado. – Está ficando bastante adiantado e atrevido. Retire-se daqui, se não irei dizer tudo ao senhor Leôncio.

- Oh! perdoa, Isaura; não há motivo para você se arrufar assim.

És muito má, para quem nunca te ofendeu, e te quer tanto bem. Mas deixa estar, que o tempo há de te amaciar esse coraçãozinho de pedra.

Adeus; eu já me vou embora; mas olha lá, Isaura; pelo amor de Deus, não vá dizer nada a ninguém. Deus me livre que sinhó moço saiba do que aqui se passou; era capaz de me enforcar. O que vale, - continuou André consigo e retirando-se, - o que vale é que neste negócio parece-me que ele anda tão adiantado como eu.

Pobre Isaura! sempre e em toda parte esta contínua importunação de senhores e de escravos, que não a deixam sossegar um só momento! Como não devia viver aflito e atribulado aquele coração!

Dentro de casa contava ela quatro inimigos, cada qual mais porfiado em roubar-lhe a paz da alma, e torturar-lhe o coração: três amantes, Leôncio, Belchior, e André, e uma êmula terrível e desapiedada, Rosa. Fácil lhe fora repelir as importunações e insolências dos escravos e criados; mas que seria dela, quando viesse o senhor?!...

De feito, poucos instantes depois Leôncio, acompanhado pelo feitor, entrava no salão das fiandeiras. Isaura, que um momento suspendera o seu trabalho, e com o rosto escondido entre as mãos se embevecia em amargas reflexões, não se apercebera da presença deles.

- Onde estão as raparigas que aqui costumam trabalhar?... perguntou Leôncio ao feitor, ao entrar no salão.

- Foram jantar, senhor; mas não tardarão a voltar.

- Mas uma cá se deixou ficar... ah! é a Isaura... Ainda bem! - refletiu consigo Leôncio, - a ocasião não pode ser mais favorável; tentemos os últimos esforços para seduzir aquela empedernida criatura.

Logo que acabem de comer, - continuou ele dirigindo-se ao feitor, - leve-as para a colheita do café. Há muito que eu pretendia recomendar-lhe isto e tenho-me esquecido. Não as quero aqui mais nem um instante; isto é um lugar de vadiação, em que perdem o tempo sem proveito algum, em continuas palestras. Não faltam por aí tecidos de algodão para se comprar.

Mal o feitor se retirou, Leôncio dirigiu-se para junto de Isaura.

- Isaura! murmurou com voz meiga e comovida.

- Senhor! - respondeu a escrava erguendo-se sobressaltada; depois murmurou tristemente dentro d'alma: - meu Deus! é ele!... é chegada a hora do suplício.

Capítulo 8

Agora nos é indispensável abandonar por alguns instantes Isaura em sua penível situação diante de seu dissoluto e bárbaro senhor para informarmos o leitor sobre o que ocorrera no seio daquela pequena família, e em que pé ficaram os negócios da casa, depois que a notícia da morte do comendador, estalando como uma bomba no meio das intrigas domésticas, veio dar-lhes dolorosa diversão no momento em que elas, refervendo no mais alto grau de ebulição, reclamavam forçosamente um desenlace qualquer.

Aquela morte não podia senão prolongar tão melindrosa e deplorável situação, pondo nas mãos de Leôncio toda a fortuna patema, e desatando as últimas peias que ainda o tolhiam na expansão de seus abomináveis instintos.

Leôncio e Malvina estiveram de nojo encerrados em casa por alguns dias, durante os quais parece que deram tréguas aos arrufos e despeitos recíprocos. Henrique, que queria absolutamente partir no dia seguinte, cedendo enfim aos rogos e instâncias de Malvina, consentiu em ficar-lhe fazendo companhia durante os dias de nojo.

- Conforme for o procedimento de meu marido, disse-lhe ela, - iremos juntos. Se por estes dias não der liberdade e um destino qualquer a Isaura, não ficarei mais nem um momento em sua casa.

Leôncio encerrado em seu quarto a ninguém falou, nem apareceu durante alguns dias, e parecia mergulhado no mais inconsolável e profundo pesar. Entretanto, não era assim. É verdade que Leôncio não deixou de sofrer certo choque, certa surpresa, que não golpe doloroso, com a noticia do falecimento de seu pai; mas no fundo d'alma, - força é dizê-lo, - passado o primeiro momento de abalo e consternação chegou até a estimar aquele acontecimento, que tanto a propósito vinha livrá-lo dos apuros em que se achava enleado em face de Malvina e de Miguel. Portanto, durante a sua reclusão, em vez de entregar-se à dor que lhe deveria causar tão sensível golpe, Leôncio, que por maneira nenhuma podia resignar-se a desfazer-se de Isaura, só meditava os meios de safar-se das dificuldades, em que se achava envolvido, e urdia planos para assegurar-se da posse da gentil cativa. As dificuldades eram grandes, e constituíam um nó, que poderia ser cortado, mas nunca desatado. Leôncio havia reconhecido a promessa que seu pai fizera a Miguel, de alforriar Isaura mediante a soma enorme de dez contos de réis.

Miguel tinha pronta essa quantia, e lha tinha vindo meter nas mãos, reclamando a liberdade de sua filha. Leôncio reconhecia também, e nem podia contestar, que sempre fora voto de sua falecida mãe deixar livre Isaura por sua morte. Por outro lado Malvina, sabedora de sua paixão e de seus sinistros intentos sobre a cativa, justamente irritada, exigia com império a imediata alforria da mesma. Não restava ao mancebo meio algum de se tirar decentemente de tantas dificuldades senão libertando Isaura. Mas Leôncio não podia se conformar com semelhante idéia. O violento e cego amor, que Isaura lhe havia inspirado, o incitava a saltar por cima de todos os obstáculos, a arrostar todas as leis do decoro e da honestidade, a esmagar sem piedade o coração de sua meiga e carinhosa esposa, para obter a satisfação de seus frenéticos desejos. Resolveu pois cortar o nó, usando de sua prepotência, e protelando indefinidamente o cumprimento de seu dever, assentou de afrontar com cínica indiferença e brutal sobranceria as justas exigências e exprobrações de Malvina.

Quando esta, depois de deixar passar alguns dias em respeito à dor de que julgava seu marido acabrunhado, lhe tocou naquele melindroso negócio:

- Temos tempo, Malvina, - respondeu-lhe o marido com toda a calma. - É-me preciso em primeiro lugar dar balanço e fazer o inventário da casa de meu pai. Tenho de ir à corte arrecadar os seus papéis e tomar conhecimento do estado de seus negócios. Na volta e com mais vagar trataremos de Isaura.

Ao ouvir esta resposta o rosto de Malvina cobriu-se de palidez mortal; ela sentiu esfriar-lhe o coração apertado entre as mãos geladas do mais pungente dissabor, como se ali se esmoronasse de repente todo o sonhado castelo de suas aventuras conjugais. Ela esperava que o marido fulminado por tão doloroso golpe naqueles dias de amarga meditação e abatimento, retraindo-se no santuário da consciência, reconhecesse seus erros e desvanos, implorasse o perdão deles, e se propusesse a entrar nas sendas do dever e da honestidade. As frias desculpas e fúteis evasivas do marido vieram submergi-la de chofre no mais amargo e profundo desalento.

- Como?! - exclamou ela com um acento que exprimia a um tempo altiva indignação e o mais entranhado desgosto. - Pois ainda hesitas em cumprir tão sagrado dever?... se tivesses alma, Leôncio, terias considerado Isaura como tua irmã, pois bem sabes que tua mãe a amava e idolatrava como a uma filha querida, e que era seu mais ardente desejo libertá-la por sua morte e deixar-lhe um legado considerável, que lhe assegurasse o futuro. Sabes também que teu pai havia feito promessa solene ao pai de Isaura de dar-lhe alforria pela quantia de dez contos de réis, e Miguel já te veio pôr nas mãos essa exorbitante quantia. Sabes tudo isto, e ainda vens com dúvidas e demoras!...

Oh! isto é muito!... não vejo motivo nenhum para demorar o cumprimento de um dever de que há muito tempo já devias ter-te desempenhado.

- Mas para que semelhante pressa?... não me dirás Malvina? - replicou Leôncio com a maior brandura e tranqüilidade. - De que proveito pode ser agora a liberdade para Isaura? porventura não está ela aqui bem? é maltratada?... sofre alguma privação?... não continua a ser considerada antes como uma filha da família, do que como uma escrava? queres que desde já a soltemos à toa por esse mundo?... assim decerto não cumpriremos o desejo de minha mãe, que tão solicita se mostrava pela sorte futura de Isaura. Não, minha Malvina; não devemos por ora entregar Isaura a si mesma. É preciso primeiro assegurar-lhe uma posição decente, honesta e digna de sua beleza e educação, procurando-lhe um bom marido, e isso não se arranja assim de um dia para outro.

- Que miserável desculpa, meu amigo!... Isaura por ora não precisa de marido para protegê-la; tem o pai, que é homem muito de bem,e acaba de dar provas de quanto adora sua filha. Entreguemo-la ao senhor Miguel, que ficará em muito boas mãos, e debaixo de muito boa sombra.

- Pobre do senhor Miguel! - replicou Leôncio com sorriso desdenhoso. - Terá bons desejos, não duvido; mas onde estão os meios, de que dispõe, para fazer a felicidade de Isaura, rincipalmente agora em que decerto empenhou os cabelos da cabeça para arranjar a alforria da filha, se é que isso não proveio de esmolas, que lhe fizeram, como me parece mais certo.

Por única resposta Malvina abanou tristemente a cabeça e suspirou.

Todavia quis ainda acreditar na sinceridade das palavras de seu marido, fingiu-se satisfeita e retirou-se sem dar mostras de agastamento. Não podia, porém, prolongar por mais tempo aquela situação para ela tão humilhante, tão cheia de ansiedade e desgosto, e no outro dia insistiu ainda com mais força sobre o mesmo objeto. Teve em resposta as mesmas evasivas e moratórias. Leôncio afetava mesmo tratar desse negócio com certa indiferença desdenhosa, como quem estava definitivamente resolvido a fazer o que quisesse. Malvina desta vez não pôde conter-se, e rompeu com seu marido. Este, como já friamente havia deliberado, aparou os raios da cólera feminina no escudo de uma imprudência cínica e galhofeira, o que levou ao último grau de exacerbação a cólera e o despeito de Malvina.

No outro dia Malvina, sem dar satisfação alguma a quem quer que fosse, deixava precipitadamente a casa de Leôncio, e partia em companhia de seu irmão Henrique a caminho do Rio de Janeiro, jurando no auge da indignação nunca mais pôr os pés naquela casa, onde era tão vilmente ultrajada, e varrer para sempre da lembrança a imagem de seu desleal e devasso marido. No assomo do despeito não calculava se teria forças bastantes para levar a efeito aqueles frenéticos juramentos, inspirados pela febre do ciúme e da indignação; ignorava que nas almas tenras e bondosas como a sua o ódio se desvanece muito mais depressa do que o amor; e o amor, que Malvina consagrava a Leôncio, a despeito de seus desmandos e devassidões, era muito mais forte do que o seu ressentimento, por mais justo que este fosse.

Leôncio por seu lado, levando por diante o seu plano de opor aos assomos da esposa a mais inerte e cínica indiferença, viu de braços cruzados e sem fazer a minima observação, os preparativos daquela rápida viagem, e recostado ao alpendre, fumando indolentemente o seu charuto, assistiu à partida de sua mulher, como se fora o mais indiferente dos hóspedes.

Entretanto, essa indiferença de Leôncio nada tinha de natural e sincera; não que ele sentisse pesar algum pela brusca partida de sua mulher; pelo contrário, era júbilo, que sentia com a realização daquela caprichosa resolução de Malvina, que assim lhe abandonava o campo inteiramente livre de embaraços, para prosseguir em seus nefandos projetos sobre a infeliz Isaura. Com aquele fingido pouco-caso, conseguia disfarçar o prazer e satisfação, em que lhe transbordava o coração; e como era aforismo adotado e sempre posto em prática por ele, posto que em circunstâncias menos graves, - que contra as cóleras e caprichos femininos não há arma mais poderosa do que muito sangue-frio e pouco-caso, Malvina não pôde descobrir no fundo daquela afetada indiferença o júbilo intenso em que nadava a alma de seu marido.

O que era feito porém da nobre e infeliz Isaura durante esses longos dias de luto, de consternação, de ansiedade e dissabores?

Desde que ouviu a leitura da carta, em que se noticiava a morte do comendador, Isaura perdeu todas as lisonjeiras esperanças que um momento antes Miguel fizera desabrochar em seu coração. Transida de horror, compreendeu que um destino implacável a entregava vítima indefesa entre as mãos de seu tenaz e desalmado perseguidor. Sabedora da miseranda sorte de sua mãe, não encontrava em sua imaginação abalada outro remédio a tão cruel situação senão resignar-se e preparar-se para o mais atroz dos martírios. Um cruel desalento, um pavor mortal apoderou-se de seu espírito, e a infeliz, pálida, desfeita, e como que alucinada, ora vagava à toa pelos campos, ora escondida nas mais espessas moitas do pomar, ou nos mais sombrios recantos das alcovas, passava horas e horas entre sustos e angústias, como a tímida lebre, que vê pairando no céu a asa sinistra do gavião de garras sangrentas.

Quem poderia ampará-la? onde poderia encontrar proteção contra as tirânicas vontades de seu libertino e execrável senhor? Só duas pessoas poderiam ter por ela comiseração e interesse; seu pai e Malvina. Seu pai, obscuro e pobre feitor, não tendo ingresso em casa de Leôncio, e só podendo comunicar-se com ela a custo e furtivamente, em pouco ou nada podia valer-lhe. Malvina, que sempre a havia tratado com tanta bondade e carinho, ai! a própria Malvina, depois da cena escandalosa em que colhera seu marido, dirigindo a Isaura palavras enternecidas, começou a olhá-la com certa desconfiança e afastamento, terrível efeito do ciúme, que torna injustas e rancorosas as almas ainda as mais cândidas e benevolentes A senhora, com o correr dos dias, tornava-se cada vez menos tratável e benigna para com a escrava, que antes havia tratado com carinho e intimidade quase fraternal.

Malvina era boa e confiante, e nunca teria duvidado da inocência de Isaura, se não fosse Rosa, sua terrível êmula e figadal inimiga.

Depois do desaguisado, de que Isaura foi causa inocente, Rosa ficou sendo a mucama ou criada da câmara de Malvina, e esta às vezes desabafava em presença da maligna mulata os ciúmes e desgostos que lhe ferviam e transvazavam do coração.

- Sinhá está-se fiando muito naquela sonsa... - dizia-lhe a maliciosa rapariga. - Pois fique certa que não são de hoje esses namoricos; há muito tempo que eu estou vendo essa impostora, que diante da sinhá se faz toda simplória, andar-se derretendo diante de sinhô moço.

Ela mesmo é que tem a culpa de ele andar assim com a cabeça virada.

Estes e outros quejandos enredos, que Rosa sabia habilmente insinuar nos ouvidos de sua senhora, eram bastantes para desvairar o espírito de uma cândida e inexperiente moça como Malvina, e foram produzindo o resultado que desejava a perversa mulatinha.

Acabrunhada com aquele novo infortúnio, Isaura fez algumas tentativas para achegar-se de sua senhora, e saber o motivo por que lhe retirava a afeição e confiança, que sempre lhe mostrara, e a fim de poder manifestar sua inocência. Mas era recebida com tal frieza e altivez, que a infeliz recuava espavorida para de novo ir mergulhar-se mais fundo ainda no pego de suas angústias e desalentos.

Todavia, enquanto Malvina se conservava em casa, era sempre uma salvaguarda, uma sombra protetora, que amparava Isaura contra as importunações e brutais tentativas de Leôncio. Por menor que fosse o respeito, que lhe tinha o marido, ela não deixava de ser um poderoso estorvo ao menos contra os atos de violência, que quisesse pôr em prática para conseguir seus execrandos fins. Isaura ponderava isso tudo, e é custoso fazer-se idéia do estado de terror e desfalecimento em que ficou aquela pobre alma quando viu partir sua senhora, deixando-a inteiramente ao desamparo, entregue sem defesa aos insanos e bárbaros caprichos daquele que era seu senhor, amante e algoz ao mesmo tempo.

De feito, Leôncio mal viu sumir-se a esposa por trás da última colina, não podendo conter mais a expansão de seu satânico júbilo, tratou logo de pôr o tempo em proveito, e pôs-se a percorrer toda a casa em procura de Isaura. Foi enfim dar com ela no escuro recanto de uma alcova, estendida por terra, quase exânime, banhada em pranto e arrancando do peito soluços convulsivos.

Poupemos ao leitor a narração da cena vergonhosa que aí se deu.

Contentemo-nos com dizer que Leôncio esgotou todos os meios brandos e suasivos ao seu alcance para convencer a rapariga que era do interesse e dever dela render-se a seus desejos. Fez as mais esplêndidas promessas, e os mais solenes protestos; abaixou-se até às mais humildes súplicas, e arrastou-se vilmente aos pés da escrava, de cuja boca não ouviu senão palavras amargas, e terríveis exprobrações; e vendo enfim que eram infrutíferos todos esses meios, retirou-se cheio de cólera, vomitando as mais tremendas ameaças.

Para dar a essas ameaças começo de execução, nesse mesmo dia mandou pô-la trabalhando entre as fiandeiras, onde a deixamos no capítulo antecedente. Dali teria de ser levada para a roça, da roça para o tronco, do tronco para o pelourinho, e deste certamente para o túmulo, se teimasse em sua resistência às ordens de seu senhor.

Capítulo 9

Leôncio impaciente e com o coração ardendo nas chamas de uma paixão febril e delirante não podia resignar-se a adiar por mais tempo a satisfação de seus libidinosos desejos. Vagando daqui para ali por toda a casa como quem dava ordens para reformar o serviço doméstico, que dai em diante ia correr todo por sua conta, não fazia mais do que espreitar todos os movimentos de Isaura, procurando ocasião de achá-la a sós para insistir de novo e com mais força em suas abomináveis pretensões. De uma janela viu as escravas fiandeiras atravessarem o pátio para irem jantar, e notou a ausência de Isaura.

- Bom!... vai tudo às mil maravilhas, murmurou Leôncio com satisfação; nesse momento passava-lhe pela mente a feliz lembrança de mandar o feitor levar as outras escravas para o cafezal, ficando ele quase a sós com Isaura no meio daqueles vastos e desertos edifícios.

Dir-me-ão que, sendo Isaura uma escrava, Leôncio, para achar-se a sós com ela não precisava de semelhantes subterfúgios, e nada mais tinha a fazer do que mandá-la trazer à sua presença por bem ou por mal. Decerto ele assim podia proceder, mas não sei que prestígio tem, mesmo em uma escrava, a beleza unida à nobreza da alma, e à superioridade da inteligência, que impõe respeito aos entes ainda os mais perversos e corrompidos. Por isso Leôncio, a despeito de todo o seu cinismo e obcecação, não podia eximir-se de render no fundo d'alma certa homenagem à beleza e virtudes daquela escrava excepcional, e de tratá-la com mais alguma delicadeza do que às outras.

- Isaura, - disse Leôncio, continuando o diálogo que deixamos apenas encetado, - fica sabendo que agora a tua sorte está inteiramente entre as minhas mãos.

- Sempre esteve, senhor, - respondeu humildemente Isaura.

- Agora mais que nunca. Meu pai é falecido, e não ignoras que sou eu o seu único herdeiro. Malvina por motivos, que sem dúvida terás adivinhado, acaba de abandonar-me, e retirou-se para a casa de seu pai. Sou eu, pois, que hoje unicamente governo nesta casa, e disponho do teu destino. Mas também, Isaura, de tua vontade unicamente depende a tua felicidade ou a tua perdição.

- De minha vontade!... oh! não, senhor; minha sorte depende unicamente da vontade de meu senhor.

- E eu bem desejo - replicou Leôncio com a mais terna inflexão de voz, - com todas as forças de minha alma, tornar-te a mais feliz das criaturas; mas como, se me recusas obstinadamente a felicidade, que tu, só tu me poderias dar?...

- Eu, senhor?! oh! por quem é, deixe a humilde escrava em seu lugar; lembre-se da senhora D. Malvina, que é tão formosa, tão boa, e que tanto lhe quer bem. É em nome dela que lhe peço, meu senhor; deixe de abaixar seus olhos para uma pobre cativa, que em tudo está pronta para lhe obedecer, menos nisso, que o senhor exige...

- Escuta, Isaura; és muito criança, e não sabes dar ás coisas o devido peso. Um dia, e talvez já tarde, te arrependerás de ter rejeitado o meu amor.,

- Nunca! - exclamou Isaura. - Eu cometeria uma traição infame para com minha senhora, se desse ouvidos às palavras amorosas de meu senhor.

- Escrúpulos de criança!.., escuta ainda, Isaura. Minha mãe vendo a tua linda figura e a viveza de teu espírito, - talvez por não ter filha alguma, - desvelou-se em dar-te uma educação, como teria dado a uma filha querida. Ela amava-te extremosamente, e se não deu-te a liberdade foi com o receio de perder-te; foi para conservar-te sempre junto de si. Se ela assim procedia por amor, como posso eu largar-te de mão, eu que te amo com outra sorte de amor muito mais ardente e exaltado, um amor sem limites, um amor que me levará à loucura ou ao suicídio, se não... mas que estou a dizer!... Meu pai, - Deus lhe perdoe, - levado por uma sórdida avareza, queria vender tua liberdade por um punhado de ouro, como se houvesse ouro no mundo que valesse os inestimáveis encantos, de que os céus te dotaram.

Profanação!... eu repeliria, como quem repele um insulto, todo aquele que ousasse vir oferecer-me dinheiro pela tua liberdade. Livre és tu, porque Deus não podia formar um ente tão perfeito para votá-lo à escravidão. Livre és tu, porque assim o queria minha mãe, e assim o quero eu. Mas, Isaura, o meu amor por ti é imenso; eu não posso, eu não devo abandonar-te ao mundo. Eu morreria de dor, se me visse forçado a largar mão da jóia inestimável, que o céu parece ter-me destinado, e que eu há tanto tempo rodeio dos mais ardentes anelos de minha alma...

- Perdão, senhor; eu não posso compreendé-lo; diz-me que sou livre, e não permite que eu vá para onde quiser, e nem ao menos que eu disponha livremente de meu coração?!

- Isaura, se o quiseres, não serás somente livre; serás a senhora, a deusa desta casa. Tuas ordens, quaisquer que sejam, os teus menores caprichos serão pontualmente cumpridos; e eu, melhor do que faria o mais terno e o mais leal dos amantes, te cercarei de todos os cuidados e carinhos, de todas as adorações, que sabe inspirar o mais ardente e inextinguível amor. Malvina me abandona!... tanto melhor! em que dependo eu dela e de seu amor, se te possuo?! Quebrem-se de uma vez para sempre esses laços urdidos pelo interesse! esqueça-se para sempre de mim, que eu nos braços de minha Isaura encontrarei sobeja ventura para poder lembrar-me dela.

- O que o senhor acaba de dizer me horroriza. Como se pode esquecer e abandonar ao desprezo uma mulher tão amante e carinhosa, tão cheia de encantos e virtudes, como sinhá Malvina? Meu senhor, perdoe-me se lhe falo com franqueza; abandonar uma mulher bonita, fiel e virtuosa por amor de uma pobre escrava, seria a mais feia das ingratidões.

A tão severa e esmagadora exprobração, Leôncio sentiu revoltar-se o seu orgulho. escrava insolente! - bradou cheio de cólera. – Que eu suporte sem irritar-me os teus desdéns e repulsas, ainda vá: mas repreensões!... com quem pensas tu que falas?...

- Perdão! senhor!... exclamou Isaura aterrada e arrependida das palavras que lhe tinham escapado.

- E, entretanto, se te mostrasses mais branda comigo... mas não, é muito aviltar-me diante de uma escrava; que necessidade tenho eu de pedir aquilo que de direito me pertence? Lembra-te, escrava ingrata e rebelde, que em corpo e alma me pertences, a mim só e a mais ninguém. És propriedade minha; um vaso, que tenho entre as minhas mãos e que posso usar dele ou despedaçá-lo a meu sabor,

- Pode despedaçá-lo, meu senhor; bem o sei; mas, por piedade, não queira usar dele para fins impuros e vergonhosos. A escrava também tem coração, e não é dado ao senhor querer governar os seus afetos.

- Afetos!... quem fala aqui em afetos?! Podes acaso dispor deles?...

- Não, por certo, meu senhor; o coração é livre; ninguém pode escravizá-lo, nem o próprio dono.

- Todo o teu ser é escravo; teu coração obedecerá, e se não cedes de bom grado, tenho por mim o direito e a força... mas para quê? para te possuir não vale a pena empregar esses meios extremos.

Os instintos do teu coração são rasteiros e abjetos como a tua condição; para te satisfazer far-te-ei mulher do mais vil, do mais hediondo de meus negros.

- Ah! senhor! bem sei de quanto é capaz. Foi assim que seu pai fez morrer de desgosto e maus-tratos a minha pobre mãe; já vejo que me é destinada a mesma sorte. Mas fique certo de que não me faltarão nem os meios nem a coragem para ficar para sempre livre do senhor e do mundo.

- Oh! - exclamou Leôncio com satânico sorriso, - já chegaste a tão subido grau de exaltação e romantismo!... isto em uma escrava não deixa de ser curioso. Eis o proveito que se tira de dar educação a tais criaturas! Bem mostras que és uma escrava, que vives de tocar piano e

ler romances. Ainda bem que me preveniste; eu saberei gelar a ebulição desse cérebro escaldado. Escrava rebelde e insensata, não terás mãos nem pés para pôr em prática teus sinistros intentos. Olá, André, - bradou ele e apitou com força no cabo do seu chicote.

- Senhor! - bradou de longe o pajem, e um instante depois estava em presença de Leôncio.

- André, - disse-lhe este com voz seca e breve - traze-me já aqui um tronco de pés e algemas com cadeado.

- Virgem santa! - murmurou consigo André espantado. – Para que será tudo isto?... ah! pobre Isaura!...

- Ah! meu senhor, por piedade! - exclamou Isaura, caindo de joelhos aos pés de Leôncio, e levantando as mãos ao céu em contorções de angústia; pelas cinzas ainda quentes de seu pai, há poucos dias falecido, pela alma de sua mãe, que tanto lhe queria, não martirize a sua infeliz escrava. Acabrunhe-me de trabalhos, condene-me ao serviço o mais grosseiro e pesado, que a tudo me sujeitarei sem murmurar; mas o que o senhor exige de mim, não posso, não devo fazê-lo, embora deva morrer.

- Bem me custa tratar-te assim, mas tu mesma me obrigas a este excesso. Bem vês que me não convém por modo nenhum perder uma escrava como tu és. Talvez ainda um dia me serás grata por ter-te impedido de matar-te a ti mesma.

- Será o mesmo! - bradou Isaura levantando-se altiva, e com o acento rouco e trémulo da desesperação, - não me matarei por minhas próprias mãos, mas morrerei às mãos de um carrasco.

Neste momento chega André trazendo o tronco e as algemas, que deposita sobre um banco, e retira-se imediatamente.

Ao ver aqueles bárbaros e aviltantes instrumentos de suplício turvaram-se os olhos a Isaura, o coração se lhe enregelou de pavor, as pernas lhe desfaleceram, caiu de joelhos e debruçando-se sobre o tamborete, em que fiava, desatou uma torrente de lágrimas.

- Alma de minha sinhá velha! - exclamou com voz entrecortada de soluços, - valei-me nestes apuros; valei-me lá do céu, onde estais, como me valíeis cá na Terra.

- Isaura, - disse Leôncio com voz áspera apontando para os instrumentos de suplício, - eis ali o que te espera, se persistes em teu louco emperramento. Nada mais tenho a dizer-te; deixo-te livre ainda, e fica-te o resto do dia para refletires. Tens de escolher entre o meu amor e o meu ódio. Qualquer dos dois, tu bem sabes, são violentos e poderosos. Adeus!...

Quando Isaura sentiu que seu senhor se havia ausentado, ergueu o rosto, e levantando ao céu os olhos e as mãos juntas, dirigiu à Rainha dos anjos a seguinte fervorosa prece, exalada entre soluços do mais íntimo de sua alma:

- Virgem senhora da Piedade, Santíssima Mãe de Deus!... vós sabeis se eu sou inocente, e se mereço tão cruel tratamento. Socorrei-me neste transe aflitivo, porque neste mundo ninguém pode valer-me.

Livrai-me das garras de um algoz, que ameaça não só a minha vida, como a minha inocência e honestidade. Iluminai-lhe o espírito e infundi-lhe no coração brandura e misericórdia para que se compadeça de sua infeliz cativa. É uma humilde escrava que com as lágrimas nos olhos e a dor no coração vos roga pelas vossas dores sacrossantas, pelas chagas de vosso Divino Filho: valei-me por piedade.

Quanto Isaura era formosa naquela suplicante e angustiosa atitude! oh! muito mais bela do que em seus momentos de serenidade e prazer!... se a visse então, Leôncio talvez sentisse abrandar-se o férreo e obcecado coração. Com os olhos arrasados em lágrimas, que em fio lhe escorregavam pelas faces desbotadas, entreaberta a boca melancólica, que lhe tremia ao passar da prece murmurada entre soluços, atiradas em desordem pelas espáduas as negras e opulentas madeixas, voltando para o céu o busto mavioso plantado sobre um colo escultural, ofereceria ao artista inspirado o mais belo e sublime modelo para a efígie da Mãe Dolorosa, a quem nesse momento dirigia suas ardentes súplicas. Os anjos do céu, que por certo naquele instante adejavam em torno dela agitando as asas de ouro e carmim, não podiam deixar de levar tão férvida e dolorosa prece aos pés do trono da Consoladora dos aflitos.

Absorvida em suas mágoas Isaura não viu seu pai, que, entrando pelo salão a passos sutis e cautelosos, encaminhava-se para ela.

- Oh! felizmente ela ali está, - murmurava o velho, - o algoz aqui também andava! oh! pobre Isaura!... que será de ti?!...

- Meu pai por aqui!... - exclamou a infeliz ao avistar Miguel. -

Venha, venha ver a que estado reduzem sua filha.

- Que tens, filha?... que nova desgraça te sucede?

- Não está vendo, meu pai?... eis ali a sorte, que me espera, - respondeu ela apontando para o tronco e as algemas, que ali estavam ao pé dela.

- Que monstro, meu Deus!... mas eu já esperava por tudo isto...

- É esta a liberdade que pretende dar àquela que a mãe dele criou com tanto amor e carinho. O mais cruel e aviltante cativeiro, um martírio continuado da alma e do corpo, eis o que resta à sua desventurada filha... Meu pai, não posso resistir a tanto sofrimento!... restava-me um recurso extremo; esse mesmo vai-me ser negado. Presa, algemada, amarrada de pés e mãos!... oh!... meu pai! meu pai!... isto é horrível!...

Meu pai, a sua faca, - acrescentou depois de ligeira pausa com voz rouca e olhar sombrio, - preciso de sua faca.

- Que pretendes fazer com ela, Isaura? que louco pensamento é o teu?...

- Dê-me essa faca, meu pai; eu não usarei dela senão em caso extremo; quando o infame vier lançar-me as mãos para deitar-me esses ferros, farei saltar meu sangue ao rosto vil do algoz.

- Não, minha filha; não serão necessários tais extremos. Meu coração já adivinhava tudo isto, e já tenho tudo prevenido. O dinheiro, que não serviu para alcançar a tua liberdade, vai agora prestar-nos para arrancar-te às garras desse monstro. Tudo está já disposto, Isaura. Fujamos.

- Sim, meu pai, fujamos; mas como? para onde?

- Para longe daqui, seja para onde for; e já, minha filha, enquanto não suspeitem coisa alguma, e não te carregam de ferros.

- Ah! meu pai, tenho bem medo; se nos descobrem, qual será a minha sorte!...

- A empresa é arriscada, não posso negar-te; mas ânimo. Isaura; é nossa única tábua de salvação; agarremo-nos a ela com fé, e encomendemo-nos à divina providência. Os escravos estão na roça; o feitor levou para o cafezal tuas companheiras, teu senhor saiu a cavalo com o André; não há talvez em toda a casa senão alguma negra lá pelos cantos da cozinha. Aproveitemos a ocasião, que parece mesmo nos vir das mãos de Deus, no momento em que aqui estou chegando. Eu já preveni tudo.

Lá no fundo do quintal à beira do rio está amarrada uma canoa; é quanto nos basta. Tu sairás primeiro e irás lá ter por dentro do quintal; eu sairei por fora alguns instantes depois e lá nos encontraremos. Em menos de uma hora estaremos em Campos, onde nos espera um navio, de que é capitão um amigo meu, e que tem de seguir viagem para o Norte nesta madrugada. Quando romper o dia, estaremos longe do algoz que te persegue. Vamo-nos, Isaura; talvez por esse mundo encontremos alguma alma piedosa, que melhor do que eu te possa proteger.

- Vamo-nos, meu pai; que posso eu recear?... posso acaso ser mais desgraçada do que já sou?...

Isaura, cosendo-se com a sombra do muro, que rodeava o pátio, abriu o portão, que dava para o quintal, e desapareceu. Momentos depois Miguel rodeando por fora os edifícios costeava o quintal, e achava-se com ela à margem do rio.

A canoa vogando sutilmente bem junto à barranca, impelida pelo braço vigoroso de Miguel, em poucos minutos perdeu de vista a fazenda.

Capitulo 10

Já são passados mais de dois meses depois da fuga de Isaura, e agora, leitores, enquanto Leôncio emprega diligências extraordinárias e meios extremos, e desatando os cordões da bolsa, põe em atividade a polícia e uma multidão de agentes particulares para empolgar de novo a presa, que tão sorrateiramente lhe escapara, façamo-nos de vela para as províncias do Norte, onde talvez primeiro que ele deparemos com a nossa fugitiva heroína.

Estamos no Recife. É noite e a formosa Veneza da América do Sul, coroada de um diadema de luzes, parece surgir dos braços do oceano, que a estreita em carinhoso amplexo e a beija com amor. É uma noite festiva: em uma das principais ruas nota-se um edifício esplendidamente iluminado, para onde concorre grande número de cavalheiros e damas das mais distintas e opulentas classes. É um lindo prédio onde uma sociedade escolhida costuma dar brilhantes e concorridos saraus. Alguns estudantes dos mais ricos e elegantes, também costumam descer da velha Olinda em noites determinadas, para ali virem se espanejar entre os esplendores e harmonias, entre as sedas e perfumes do salão do baile; e aos meigos olhares e angélicos sorrisos das belas e espirituosas pernambucanas, esquecerem por algumas horas os duros bancos da Academia e os carunchosos praxistas.

Suponhamos que também somos adeptos daquele templo de Terpsícore, entremos por ele a dentro, e observemos o que por aí vai de curioso e interessante. Logo na primeira sala encontramos um grupo de elegantes mancebos, que conversam com alguma animação. Escutemo-los.

- É mais uma estrela que vem brilhar nos salões do Recife, - dizia Álvaro, - e dar lustre a nossos saraus. Não há ainda três meses, que chegou a esta cidade, e haverá pouco mais de um, que a conheço.

Mas creia-me, Dr. Geraldo, é ela a criatura mais nobre e encantadora que tenho conhecido. Não é uma mulher; é uma fada, é um anjo, é uma deusa!...

- Cáspite! - exclamou o Dr. Geraldo; fada! anjo! deusa!... São portanto três entidades distintas, mas por fim de contas verás que não passa de uma mulher verdadeira. Mas dize-me cá, meu Álvaro; esse anjo, fada, deusa, mulher ou o que quer que seja, não te disse de onde veio, de que família é, se tem fortuna, etc., etc., etc.?

- Pouco me importo com essas coisas, e poderia responder-te que veio do céu, que é da família dos anjos, e que tem uma fortuna superior a todas as riquezas do mundo: uma alma pura, nobre e inteligente, e uma beleza incomparável. Mas sempre te direi que o que sei de positivo a respeito dela é que veio do Rio Grande do Sul em companhia de seu pai, de quem é ela a única família; que seus meios são bastantemente escassos, mas que em compensação ela é linda como os anjos, e tem o nome de Elvira, - Elvira! - observou o terceiro cavalheiro - bonito nome na verdade!... mas não poderás dizer-nos, Álvaro, onde mora a tua fada?...

- Não faço mistério disso; mora com seu pai em uma pequena chácara no bairro de Santo Antônio, onde vivem modestamente, evitando relações, e aparecendo mui raras vezes em público. Nessa chácara, escondida entre moitas de coqueiros e arvoredos, vive ela como a violeta entre a folhagem, ou como fada misteriosa em uma gruta encantada.

- É célebre! - retorquiu o doutor - mas como chegaste a descobrir essa ninfa encantada, e a ter entrada em sua gruta misteriosa?

- Eu vos conto em duas palavras. Passando eu um dia a cavalo por sua chácara, avistei-a sentada em um banco do pequeno jardim da frente. Surpreendeu-me sua maravilhosa beleza. Como viu que eu a contemplava com demasiada curiosidade, esgueirou-se como uma borboleta entre os arbustos floridos e desapareceu. Formei o firme propósito de vê-la e de falar-lhe, custasse o que custasse. Por mais, porém, que indagasse por toda a vizinhança, não encontrei uma só pessoa que se relacionasse com ela e que pudesse apresentar-me. Indaguei por fim quem era o proprietário da chácara, e fui ter com ele. Nem esse podia dar-me informações, nem servir-me em coisa alguma. O seu inquilino vinha todos os meses pontualmente adiantar o aluguel da chácara; eis tudo quanto a respeito dele sabia. Todavia continuei a passar todas as tardes por defronte do jardim, mas a pé para melhor poder surpreendêla e admirá-la; quase sempre, porém, sem resultado. Quando acontecia estar no jardim, esquivava-se sempre às minhas vistas como da primeira vez. Um dia, porém, quando eu passava, caiu-lhe o lenço ao levantar-se do banco; a grade estava aberta; tomei a liberdade de penetrar no jardim, apanhei o lenço, e corri a entregar-lho, quando já ela punha o pé na soleira de sua casa. Agradeceu-me com um sorriso tão encantador, que estive em termos de cair de joelhos a seus pés; mas não mandou-me entrar, nem fez-me oferecimento algum.

- Esse lenço, Álvaro, - atalhou um cavalheiro, - decerto ela o deixou cair de propósito, para que pudesses vê-la de perto e falar-lhe. É um apuro de romantismo, um delicado rasgo de coquetterie.

- Não creio; não há naquele ente nem sombra de coquetterie; tudo nela respira candura e singeleza. O certo é que custei a arrancar meus pés daquele lugar, onde uma força magnética me retinha, e que parecia rescender um misterioso eflúvio de amor, de pureza e de aventura...

Álvaro pára em sua narrativa, como que embevecido em tão suaves recordações.

- E ficaste nisso, Alvaro! - perguntava outro cavalheiro; - o teu romance está-nos interessando; vamos por diante, que estou aflito por ver a peripécia...

- A peripécia?.., oh! essa ainda não chegou, e nem eu mesmo sei qual será. Esgotei enfim os estratagemas possíveis para ter entrada no santuário daquela deusa; mas foi tudo baldado. O acaso enfim veio em meu socorro, e serviu-me melhor do que toda a minha habilidade e diligência. Passeando eu uma tarde de carro no bairro de Santo Antônio, pelas margens do Beberibe, passeio que se tornara para mim uma devoção, avistei um homem e uma mulher navegando a todo pano em um pequeno bote.

Instantes depois o bote achou-se encalhado em um banco de areia.

Apeei-me imediatamente, e tomando um escaler na praia, fui em socorro dos dois navegantes que em vão forcejavam por safar a pequena embarcação. Não podem fazer idéia da deliciosa surpresa que senti, ao reconhecer nas duas pessoas do bote a minha misteriosa da chácara e seu pai...

- Por essa já eu esperava; entretanto o lance não deixa de ser dramático; a história de seus amores com a tal fada misteriosa vai tomando visos de um poema fantástico.

- Entretanto, é a pura realidade. Como estavam molhados e enxovalhados, convidei-os a entrarem no meu carro. Aceitaram depois de muita relutância, e dirigimo-nos para a casa deles. É escusado contarvos o resto desde então, se bem que com algum acanhamento foi-me franqueado o umbral da gruta misteriosa.

- E pelo que vejo, - interrogou o doutor, - amas muito essa mulher?

- Se amo! adoro-a cada vez mais, e o que é mais, tenho razões para acreditar que ela... pelo menos não me olha com indiferença.

- Deus queira que não andes embaído por alguma Circe de bordel, por alguma dessas aventureiras, de que há tantas pelo mundo, e que, sabendo que és rico, arma laços ao teu dinheiro! Esse afastamento da sociedade, esse mistério, em que procuram tão cuidadosamente envolver a sua vida, não abonam muito em favor deles.

- Quem sabe se são criminosos que procuram subtrair-se às pesquisas da polícia? - observou um cavalheiro.

- Talvez moedeiros falsos, - acrescentou outro.

- Tenho má-fé, - continuou o doutor - todas as vezes que vejo uma mulher bonita viajando em países estranhos em companhia de um homem, que de ordinário se diz pai ou irmão dela. O pai de tua fada, Álvaro, se é que é pai, é talvez algum cigano, ou cavalheiro de indústria, que especula com a formosura de sua filha.

- Santo Deus!... misericórdia! - exclamou Álvaro. - Se eu adivinhasse que veria a pessoa daquela criatura angélica apreciada com tanta atrocidade, ou antes tão impiamente profanada, quereria antes ser atacado de mudez, do que trazê-la à conversação. Creiam, que são demasiado injustos para com aquela pobre moça, meus amigos. Eu a julgaria antes uma princesa destronizada, se não soubesse que é um anjo do céu. Mas vocês em breve vão vê-la, e eu e ela estaremos vingados; pois estou certo que todos a uma voz a proclamarão uma divindade. Mas o pior é que desde já posso contar com um rival em cada um de vocês.

- Por minha parte, disse um dos cavalheiros, - pode ficar tranqüilo, pois sempre tive horror às moças misteriosas.

- E eu, que não sou mais do que um simples mortal, tenho muito medo de fadas, - acrescentou o outro.

- E como é, perguntou o Dr. Geraldo, - que vivendo ela assim arredada da sociedade, pôde resolver-se a deixar a sua misteriosa solidão, para vir a este baile tão público e concorrido?...

- E quanto não me custou isso, meu amigo! - respondeu Álvaro. - Veio quase violentada. Há muito tempo que procuro convencê-la por todos os modos, que uma senhora jovem e formosa, como é ela, escondendo seus encantos na solidão, comete um crime, contrário às vistas do Criador, que formou a beleza para ser vista, admirada e adorada; pois sou o contrário desses amantes ciumentos e atrabiliários, que desejariam ter suas amadas escondidas no âmago da terra. Argumentos, instâncias, súplicas, tudo foi perdido; pai e filha recusavam-se constantemente a aparecerem em público, alegando mil diversos pretextos. Vali-me por fim de um ardil; fiz-lhes acreditar que aquele modo de viver retraído e sem contato com a sociedade em um país, onde eram desconhecidos, já começava a dar que falar ao público e a atrair suspeitas sobre eles, e que até a polícia começava a olhá-los com desconfiança: mentiras, que não deixavam de ter sua plausibilidade...

- E tanta, - interrompeu o doutor. - que talvez não andem muito longe da verdade.

- Fiz-lhes ver, - continuou Álvaro, - que por infundadas e fúteis que fossem tais suspeitas, era necessário arredá-las de si, e para isso cumpria-lhes absolutamente freqüentar a sociedade. Este embuste produziu o desejado efeito.

- Tanto pior para eles, - retorquiu o doutor; - eis aí um indício bem mau, e que mais me confirma em minhas desconfianças. Fossem eles inocentes, e bem pouco se importariam com as suspeitas do público ou da policia, e continuariam a viver como dantes.

- Tuas suspeitas não têm o menor fundamento, meu doutor. Eles têm poucos meios, e por isso evitam a sociedade, que realmente, impõe duros sacrifícios às pessoas desfavorecidas da fortuna, e eles... mas ei-los, que chegam... Vejam e convençam-se com seus próprios olhos.

Entrava nesse momento na ante-sala uma jovem e formosa dama pelo braço de um homem de idade madura e de respeitável presença.

- Boa noite, senhor Anselmo!... boa noite, D. Elvira!... felizmente ei-los aqui! - isto dizia Álvaro aos recém-chegados, separando-se de seus amigos, e apressurando-se para cumprimentar a aqueles com toda a amabilidade e cortesia. Depois oferecendo um braço a Elvira e outro ao senhor Anselmo, os vai conduzindo para as salas interiores, por onde já turbilhona a mais numerosa e brilhante sociedade. Os três interlocutores de Álvaro, bem como muitas outras pessoas, que por ali se achavam, puseram-se em ala para verem passar Elvira, cuja presença causava sensação e murmurinho, mesmo entre os que não estavam prevenidos.

- Com efeito!... é de uma beleza deslumbrante! Que porte de rainha!...

- Que olhos de andaluza!...

- Que magníficos cabelos!

- E o colo!... que colo!... não reparaste?...

- E como se traja com tão elegante simplicidade! - assim murmuravam entre si os três cavalheiros como impressionados por uma aparição celeste.

- E não reparaste, - acrescentou o Dr. Geraldo, - naquele feiticeiro sinalzinho, que tem na face direita?... Álvaro tem razão; a sua fada vai eclipsar todas as belezas do salão. E tem de mais a mais a vantagem da novidade, e esse prestígio do mistério, que a envolve. Estou ardendo de impaciência por lhe ser apresentado; desejo admirá-la mais de espaço.

Neste tom continuaram a conversar, até que, passados alguns minutos, Álvaro, tendo cumprido a grata comissão de apresentador daquela nova pérola dos salões, estava de novo entre eles.

- Meus amigos, - disse-lhes ele com ar triunfante. - convido-os para o salão. Quero já apresentar-lhes D. Elvira para desvanecer de uma vez para sempre as injuriosas apreensões, que ainda há pouco nutriam a respeito do ente o mais belo e mais puro, que existe debaixo do Sol, se bem que estou certo que só com a simples vista ficaram penetrados de assombro até a medula dos ossos.

Os quatro cavalheiros se retiraram e desapareceram no meio do turbilhão das salas interiores. Foram, porém, imediatamente substituídos por um grupo de lindas e elegantes moças, que cintilantes de sedas e pedrarias como um bando de aves-do-paraíso, passeavam conversando.

O assunto da palestra era também D. Elvira; mas o diapasão era totalmente diverso, e em nada se harmonizava com o da conversação dos rapazes. Nenhum mal nos fará escutá-las por alguns instantes.

- Você não saberá dizer-nos, D. Adelaide, quem é aquela moça, que ainda há pouco entrou na sala pelo braço do senhor Álvaro?

- Não, D. Laura; é a primeira vez que a vejo, parece-me que não é desta terra.

- Decerto; que ar espantado tem ela!... parece uma matuta, que nunca pisou em um salão de baile; não acha, D. Rosalina?

- Sem dúvida!.., e você não reparou na toilette dela?... meu Deus!... que pobreza! a minha mucama tem melhor gosto para se trajar.

Aqui a D. Emília é que talvez saiba quem ela é.

- Eu? por quê? é a primeira vez que a vejo, mas o senhor Álvaro já me tinha dado notícias dela, dizendo que era um assombro de beleza.

Não vejo nada disso; é bonita, mas não tanto, que assombre.

- Aquele senhor Álvaro sempre é um excêntrico, um esquisito; tudo quanto é novidade o seduz. E onde iria ele escavar aquela pérola, que tanto o traz embasbacado?...

- Veio de arribação lá dos mares do Sul, minha amiga, e a julgar pelas aparências não é de todo má.

- Se não fosse aquela pinta negra, que tem na face, seria mais suportável.

- Pelo contrário, D. Laura; aquele sinal é que ainda lhe dá certa graça particular...

- Ah! perdão, minha amiga; não me lembrava que você também tem na face um sinalzinho semelhante; esse deveras fica-te muito bem, e dá-te, muita graça; mas o dela, se bem reparei, é grande demais; não parece uma mosca, mas sim um besouro, que lhe pousou na face.

- A dizer-te a verdade, não reparei bem. Vamos, vamos para o salão; é preciso vê-la mais de perto, estudá-la com mais vagar para podermos dar com segurança a nossa opinião.

E, dito isto, lá se foram elas com os braços enlaçados, formando como longa grinalda de variegadas flores, que lá se foi serpeando perder-se entre a multidão.

Capitulo 11

Álvaro era um desses privilegiados, sobre quem a natureza e a fortuna parece terem querido despejar à porfia todo o cofre de seus favores. Filho único de uma distinta e opulenta família, na idade de vinte e cinco anos, era órfão de pai e mãe, e senhor de uma fortuna de cerca de dois mil contos.

Era de estatura regular, esbelto, bem feito e belo, mais pela nobre e simpática expressão da fisionomia do que pelos traços físicos, que entretanto não eram irregulares. Posto que não tivesse o espírito muito cultivado, era dotado de entendimento lúcido e robusto, próprio a elevar-se à esfera das mais transcendentes concepções. Tendo concluído os preparatórios, como era filósofo, que pesava gravemente as coisas, ponderando que a fortuna de que pelo acaso do nascimento era senhor, por outro acaso lhe podia ser tirada, quis para ter uma profissão qualquer, dedicar-se ao estudo do Direito. No primeiro ano, enquanto pairava pelas altas regiões da filosofia do direito, ainda achou algum prazer nos estudos acadêmicos; mas quando teve de embrenhar-se no intrincado labirinto dessa árida e enfadonha casuística do direito positivo, seu espírito eminentemente sintético recuou enfastiado, e não teve ânimo de prosseguir na senda encetada. Alma original, cheia de grandes e generosas aspirações, aprazia-se mais na indagação das altas questões políticas e sociais, em sonhar brilhantes utopias, do que em estudar e interpretar leis e instituições, que pela maior parte, em sua opinião, só tinham por base erros e preconceitos os mais absurdos.

Tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista.

Com tais idéias Álvaro não podia deixar de ser abolicionista exaltado, e não o era só em palavras. Consistindo em escravos uma não pequena porção da herança de seus pais, tratou logo de emancipá-los todos. Como porém Álvaro tinha um espírito nimiamente filantrópico, conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta submissão para o gozo da plena liberdade, organizou para os seus libertos em uma de suas fazendas uma espécie de colônia, cuja direção confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida podiam resultar grandes vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio Álvaro.

A fazenda lhes era dada para cultivar, a título de arrendamento, e eles sujeitando-se a uma espécie de disciplina comum, não só preservavam-se de entregar-se à ociosidade, ao vício e ao crime, tinham segura a subsistência e podiam adquirir algum pecúlio, como também poderiam indenizar a Álvaro do sacrifício, que fizera com a sua emancipação. Original e excêntrico como um rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quaker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração impressionável, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa pureza ideal, próprios das almas elevadas e dos corações bem formados.

Entretanto, Álvaro ainda não havia encontrado até ali a mulher que lhe devia tocar o coração, a encarnação do tipo ideal, que lhe sorria nos sonhos vagos de sua poética imaginação. Com tão excelentes e brilhantes predicados, Álvaro por certo devia ser objeto de grande preocupação no mundo elegante, e talvez o almejo secreto, que fazia palpitar o coração de mais de uma ilustre e formosa donzela. Ele, porém, igualmente cortês e amável para com todas, por nenhuma delas ainda havia dado o mínimo sinal de predileção.

Pode-se fazer idéia do desencanto, do assombro, da terrível decepção que reinou nos círculos das belas pernambucanas ao verem o vivo interesse e solicitude de que Álvaro rodeava uma obscura e pobre moça; a deferência com que a tratava, e os entusiásticos elogios que sem rebuço lhe prodigalizava. Juno e Palas não ficaram tão despeitadas, quando o formoso Páris conferiu a Vênus o prêmio da formosura.

Já antes daquele sarau, Álvaro em alguns círculos de senhoras havia falado de Elvira em termos tão lisonjeiros e mesmo com certa eloquência apaixonada, que a todas surpreendeu e inquietou. As moças ardiam por ver aquele protótipo de beleza, e já de antemão choviam sobre a desconhecida e o seu campeão mil chascos e malignos apodos. Quando, porém, a viram, apesar dos contrafeitos e desdenhosos sornsos que apenas lhes roçavam a flor dos lábios, sentiram uma desagradável impressão pungir-lhes no íntimo do coração. Peço perdão às belas, de minha rude franqueza; a vaidade é, com bem raras exceções, companheira inseparável da beleza e onde se acha a vaidade, a inveja, que sempre a acompanha mais ou menos de perto, não se faz esperar por muito tempo. A beleza da desconhecida era incontestável; sua modéstia e timidez em nada prejudicavam a singela e nativa elegância de que era dotada; o traje simples e mesmo pobre em relação ao luxo suntuoso, que a rodeava assentava-lhe maravilhosamente, e realçava-lhe ainda mais os encantos naturais. O efeito deslumbrante, que Elvira produziu logo ao primeiro aspecto, e o empenho com que Álvaro procurava fazer sobressaltar os sedutores atrativos de Elvira, como de propósito para eclipsar as outras belezas do salão, eram de sobejo para irritar-lhes a vaidade e o amor-próprio. Uma e outra deviam ser naquela noite o alvo de mil olhares desdenhosos, de mil sorrisos zombeteiros, e acerados epigramas.

Álvaro nem dava fé da mal disfarçada hostilidade com que ele e a sua protegida, - podemos dar-lhe esse nome, - eram acolhidos naquela reunião; mas a tímida e modesta Elvira, que em parte alguma encontrava lhaneza e cordialidade, achava-se mal naquela atmosfera de fingida amabilidade e cortesania, e em cada olhar via um escárnio desdenhoso, em cada sorriso um sarcasmo.

Já sabemos quem era Álvaro; agora travemos conhecimento com o seu amigo, o Dr. Geraldo.

Era um homem de trinta anos; bacharel em Direito e advogado altamente conceituado no foro do Recife. Entre as relações de Álvaro era a que cultivava com mais afeto e intimidade; uma inteligência de bom quilate, firme e esclarecida, um caráter sincero, franco e cheio de nobreza, davam-lhe direito a essa predileção da parte de Álvaro. Seu espírito prático e positivo, como deve ser o de um consumado jurisconsulto, prestando o maior respeito às instituições e mesmo a todos os preconceitos e caprichos da sociedade, estava em completo antagonismo com as idéias excêntricas e reformistas de seu amigo; mas esse antagonismo, longe de perturbar ou arrefecer a recíproca estima e afeição, que entre eles reinava, servia antes para alimentá-las e fortalecê-las, quebrando a monotonia que deve reinar nas relações de duas almas sempre acordes e uníssonas em tudo. Estas tais por fim de contas, vendo que o que uma pensa, a outra também pensa, o que uma quer, a outra igualmente quer, e que nada têm a se comunicarem, enjoadas de tanto se dizerem - amém, - ver-se-ão forçadas a recolherem-se ao silêncio e a dormitarem uma em face da outra; plácida, cômoda e sonolenta amizade!... De mais, a contrariedade de tendências e opiniões são sempre de grande utilidade entre amigos, modificando-se e temperando-se umas pelas outras.

É assim que muitas vezes o positivismo e o senso prático do Dr. Geraldo serviam de corretivo às utopias e exaltações de Álvaro, e vice-versa.

Da boca do próprio Álvaro já ouvimos por que acaso veio ele conhecer D. Elvira, e como conseguiu levá-la ao sarau, a que ainda continuamos a assistir.

- Meu pai, - dizia uma jovem senhora a um homem respeitável, em cujo braço se arrimava, entrando na ante-sala, onde ainda nos conservamos de observação. - Meu pai, fiquemos por aqui um pouco nesta sala, enquanto está deserta. Ah! meu Deus! - continuou ela com voz abafada, depois de se terem sentado junto um do outro; - que vim eu aqui fazer, eu pobre escrava, no meio dos saraus dos ricos e dos fidalgos!... este luxo, estas luzes, estas homenagens, que me rodeiam, me perturbam os sentidos e causam-me vertigem. É um crime que cometo, envolvendo-me no meio de tão luzida sociedade; é uma traição, meu pai; eu o conheço, e sinto remorsos... Se estas nobres senhoras adivinhassem que ao lado delas diverte-se e dança uma miserável escrava fugida a seus senhores!... Escrava! - exclamou levantando-se - escrava!... afigura-se-me que todos estão lendo, gravada em letras negras em minha fronte, esta sinistra palavra!... fujamos daqui, meu pai, fujamos! esta sociedade parece estar escarnecendo de mim; este ar me sufoca... fujamos.

Falando assim a moça, pálida e ofegante, lançava a cada frase olhares inquietos em roda de si, e empuxava o braço de seu pai, repetindo sempre com ansiosa sofreguidão:

- Vamo-nos, meu pai; fujamos daqui.

- Sossega teu coração, minha filha, - respondeu o velho procurando acalmá-la. - Aqui ninguém absolutamente pode suspeitar quem tu és. Como poderão desconfiar que és uma escrava, se de todas essas lindas e nobres senhoras nem pela formosura, nem pela graça e prendas do espirito nenhuma pode levar-te a palma?

- Tanto pior, meu pai; sou alvo de todas as atenções, e esses olhares curiosos, que de todos os cantos se dirigem sobre mim, fazem-me a cada instante estremecer; desejaria até que a terra se abrisse debaixo de meus pés, e me sumisse em seu seio.

- Deixa-te dessas idéias; esse teu medo e acanhamento é que poderiam nos pôr a perder, se acaso houvesse o mais leve motivo de receio. Ostenta com desembaraço todos os seus encantos e habilidades, dança, canta, conversa, mostra-te alegre e satisfeita, que longe de te suporem uma escrava, são capazes de pensar que és uma princesa.

Toma ânimo, minha filha, ao menos por hoje; esta também, assim como é a primeira, será a derradeira vez que passaremos por este constrangimento; não nos é possível ficar por mais tempo nesta terra, onde começamos a despertar suspeitas.

- É verdade, meu pai!... que fatalidade!... - respondeu a moça com uma triste oscilação de cabeça. - Assim pois estamos condenados a vagar de pais em país, sequestrados da sociedade, vivendo no mistério, e estremecendo a todo instante, como se o céu nos tivesse marcado com um ferrete de maldição!... ah! esta partida há de me doer bem no coração!... não sei que encanto me prende a este lugar. Entretanto, terei de dizer adeus eterno a... esta terra, onde gozei alguns dias de prazer e tranqüilidade! Ah! meu Deus!... quem sabe se não teria sido melhor morrer entre os tormentos da escravidão!...

Neste momento entrava Álvaro na ante-sala percorrendo-a com os olhos, como quem procurava alguém.

- Onde se sumiriam? - vinha ele murmurando; - teriam tido a triste lembrança de se irem embora?... oh! não; felizmente ei-los ali! - exclamou alegremente, dando com os olhos nos dois personagens que acabamos de ouvir conversar. - D. Elvira, V. Ex.ª. é modesta demais; vem esconder-se neste recanto, quando devia estar brilhando no salão, onde todos suspiram pela sua presença. Deixe isso para as tímidas e fanadas violetas; à rosa compete alardear em plena luz todos os seus encantos.

- Desculpe-me, - murmurou Isaura - uma pobre moça criada como eu na solidão da roça, e que não está acostumada a tão esplêndidas reuniões, sente-se abafada e constrangida...

- Oh! não... há de acostumar-se, eu espero. As luzes, o esplendor, as harmonias, os perfumes, constituem a atmosfera em que deve brilhar a beleza, que Deus criou para ser vista e admirada. Vim buscá-la a pedido de alguns cavalheiros, que já são admiradores de V. Ex.ª. Para interromper a monotonia das valsas e quadrilhas, costumam aqui as senhoras encantar-nos os ouvidos com alguma canção, ária, modinha, ou seja o que for. Algumas pessoas a quem eu disse, - perdoe-me a indiscrição, filha do entusiasmo - que V. Ex.ª possui a mais linda voz, e canta com maestria, mostram o mais vivo desejo de ouvi-la.

- Eu, senhor Álvaro!... eu cantar diante de uma tão luzida reunião!... por favor, queira dispensar-me dessa nova prova. É em seu próprio interesse que lhe digo; canto mal, sou muito acanhada, e estou certa que irei solenemente desmenti-lo. Poupe-nos a nós ambos essa vergonha.

- São desculpas, que não posso aceitar, porque já a ouvi cantar, e creia-me, D. Elvira, se eu não tivesse a certeza de que a senhora canta admiravelmente, não seria capaz de expô-la a um fiasco. Quem canta como V. Ex.ª não deve acanhar-se, e eu por minha parte peço-lhe encarecidamente que não cante outra coisa, senão aquela maviosa canção da escrava, que outro dia a surpreendi cantando, e afianço a V. Ex.ª que arrebatará os ouvintes.

- Por que razão não pode ser outra? essa desperta-me recordações tão tristes...

- E é talvez por isso mesmo, que é tão linda nos lábios de V. Ex.ª.

- Ai! triste de mim! - suspirou dentro da alma D. Elvira: - aqueles mesmos que mais me amam, tomam-se, sem o saber, os meus algozes!...

Elvira bem quisera escusar-se a todo transe; cantar naquela ocasião era para ela o mais penoso dos sacrifícios. Mas não lhe era mais possível relutar, e lembrando-se do judicioso conselho de seu pai, não quis mais ver-se rogada, e aceitando o braço que Álvaro lhe oferecia, foi por ele conduzida ao piano, onde sentou-se com a graça e elegância de quem se acha completamente familiarizada com o instrumento.

Uma multidão de cabeças curiosas, e de corações palpitando na mais ansiosa expectação, se apinharam em volta do piano; os cavalheiros estavam ansiosos por saberem se a voz daquela mulher correspondia à sua extraordinária beleza; se a fada seria também uma sereia; as moças esperavam, que ao menos naquele terreno, teriam o prazer de ver derrotada a sua formidável êmula, e já contavam compará-la com o pavão da fábula, queixando-se a Juno que, o tendo formado a mais bela das aves, não lhe dera outra voz mais que um guincho áspero e desagradável.

A conjuntura era delicada e solene; a moça achava-se na difícil situação de uma prima-dona, que, precedida de uma grande reputação, faz a sua estréia perante um público exigente e ilustrado. Em tomo dela fazia-se profundo silêncio; as respirações estavam como que suspensas, ao passo que parecia ouvir-se o palpitar de todos os corações no ofego da expectação. Álvaro, apesar de conhecer já a excelência da voz de Elvira e sua maestria no canto, não deixava de mostrar-se inquieto e comovido. Elvira por sua parte pouco se importaria de cantar bem ou mal; desejaria até passar pela moça a mais feia, a mais desengraçada e a mais tola daquela reunião, contanto que a deixassem a um canto esquecida e sossegada. Dir-se-ia que estava debaixo do império de algum terrível pressentimento. Mas Elvira amava a Álvaro, e grata ao delicado empenho, com que este, cheio de solicitude e entusiasmo, se esforçava por apresentá-la como um protótipo de beleza e de talento aos olhos daquela brilhante sociedade, para satisfazê-lo, e não desmentir a lisonjeira opinião, que propalara a respeito dela, desejava cantar o melhor que lhe fosse possível. Era ao triunfo de Álvaro que aspirava mais do que ao seu próprio.

Uma vez sentada ao piano, logo que seus dedos mimosos e flexíveis, pousando sobre o teclado, preludiaram alguns singelos acordes, a moça sentiu-se outra, revelando aos circunstantes maravilhados um novo e original aspecto de sua formosura. A fisionomia, cuja expressão habitual era toda modéstia, ingenuidade e candura, animou-se de luz insólita; o busto admiravelmente cinzelado, ergueu-se altaneiro e majestoso; os olhos extáticos alçavam-se cheios de esplendor e serenidade; os seios, que até ali apenas arfavam como as ondas de um lago em tranqüila noite de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, como oceano encapelado; seu colo distendeu-se alvo e esbelto como o do cisne que se apresta a desprender os divinais gorjeios. Era o sopro da inspiração artística, que, roçando-lhe pela fronte, a transformava em sacerdotisa do belo, em intérprete inspirada das harmonias do céu. Ali sentia-se ela rainha sobre seu trono ideal; ali era Calíope sentada sobre a tripo de sagrada, avassalando o mundo ao som de enlevadoras e inefáveis harmonias. Das próprias inquietações e angústias da alma soube ela tirar alento e inspiração para vencer as dificuldades da árdua situação em que se achava empenhada. Banhou os lábios com as lágrimas do coração, e a voz lhe rompeu do peito com tão original e arrebatadora vibração, em modulações tão puras e suaves, tão repassadas de sublime melancolia, que mais de uma lágrima viu-se rolar pelas faces dos freqüentadores daquele templo dos prazeres, dos risos, e da frivolidade!

Elvira acabava de alcançar um triunfo colossal. Mal terminara o canto, o salão restrugiu entre os mais estrondosos aplausos, e parecia que vinha desabando ao ruído atordoador das palmas e dos vivas!

A fada de Álvaro é também uma sereia; - dizia o Dr. Geraldo a um dos cavalheiros, em cuja companhia já o vimos. - Resume tudo em si... que timbre de voz tão puro e tão suave; julguei-me arrebatado ao sétimo céu, ouvindo as harmonias dos coros angélicos.

- É uma consumada artista... no teatro faria esquecer a Malibran, e conquistaria reputação européia. Álvaro tem razão; uma criatura assim não pode ser uma mulher ordinária, e muito menos uma aventureira... A música dando o sinal para a quadrilha, interrompe a conversação ou não nô-la deixa ouvir.

- D. Elvira, - diz Álvaro dirigindo-se à sua protegida, que já se achava sentada ao pé de seu pai, - lembre-se, que me fez a honra de conceder-me esta quadrilha.

Elvira esforçou-se por sorrir e combater o terrível abatimento, que ao deixar o piano de novo se apoderara de seu espírito.

Tomou o braço de Álvaro, e ambos foram ocupar o seu lugar na quadrilha.

Partes: 1, 2, 3, 4, 5


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