Uma controvérsia politicamente enviesada
O debate em torno do processo de globalização no Brasil (se de fato ele existe) tem sido singularmente marcado por uma espécie de unilateralismo conceitual, no qual o fenômeno tende a ser geralmente caracterizado de modo negativo, como se ele tivesse a capacidade de concentrar, de um lado, todos os vícios sociais e todas as torpezas morais do capitalismo realmente existente, sendo-lhe, na outra ponta, creditadas muito poucas virtudes econômicas, se alguma. Paradoxalmente, tudo se passa como se um pensamento único dominasse esse debate de idéias, impedindo de fato a expressão de argumentos não conformes a essa visão negativa do processo. Contrariamente ao que parece acreditar a coalizão dos altermundialistas – que poderiam ser identificados, à falta de melhor termo, como antiglobalizadores – não há, nem nunca houve, uma expressão uniforme e singular dos argumentos, forças ou grupos que se posicionam, de forma moderada ou aberta, em favor desse processo propriamente indomável e incontrolável (e que eles, de maneira errônea, identificam como representando um vago "consenso de Washington").
Com efeito, não foi possível encontrar, após uma busca bibliográfica, dois ou três ensaios sérios que enfatizassem os aspectos positivos desse fenômeno tão vilipendiado quanto incompreendido. A bem da verdade, quando se admite a ocorrência de tal possibilidade, a situação vem geralmente acompanhada de uma qualificação segundo a qual esse processo tende a excluir os países periféricos (ou dependentes) de seus eventuais benefícios. Não que se pretenda que a literatura "otimista" cante loas indevidas ou ditirambos gratuitos a esse processo de transformação societal, cujos impactos são tão complexos quanto contraditórios, envolvendo sempre, ao mesmo tempo, conseqüências positivas e negativas. Mas a produção acadêmica poderia contemplar, tão simplesmente, algumas das "bondades" – no sentido espanhol do termo – trazidas pela globalização no curso das últimas duas décadas (se tanto) de avanços do "modo global de produção". Ou então dedicar-se a constatar os aspectos positivos, em termos econômicos, políticos e sociais, dessas forças impessoais desencadeadas com redobrado vigor após o término – entre 1989 e 1991 – da alternativa socialista ao sistema capitalista de produção e de intercâmbio. O que se tem, de fato – e que poderia, aliás, ser paradoxalmente considerado como mais uma vitória da globalização –, é uma reorganização global de velhas e novas forças sociais antiglobalizadoras, tão contrárias ao "novo espírito da época" como tinham sido, em suas respectivas épocas, as forças do socialismo e do terceiro-mundismo. Uma comparação perfunctória revelaria, a propósito, que a oposição ao capitalismo ancienne manière nunca teve à sua disposição tendências equivalentes e contrárias tão fortes e disseminadas como essa coalizão global que hoje combate a globalização.
Do exame da literatura disponível, parece claro, pois, que a globalização está longe de ser aceita de modo inquestionado em todas as partes, que ela dificilmente é acolhida favoravelmente por líderes políticos, mesmo numa típica sociedade capitalista, e que não se pode mesmo esperar que ela seja saudada como eminentemente positiva pelos auto-proclamados "filósofos sociais". Ao contrário: ela ainda é vista com desconfiança, quando não com uma certa ojeriza de princípio, como se dela emanassem odores pestilenciais ou vírus nefastos à boa saúde dos indivíduos e sociedades por ela tocados. Prova disso é o imenso succès d’estime e de marketing editorial, junto ao grande público (a começar pelo universitário), do livro de um conhecido economista falsamente alternativo que traz por título, justamente, a "globalização e seus malefícios".
Do ponto de vista do grande público, acusações genéricas contra a globalização merecem acolhida geralmente favorável e acabam atuando como bode expiatório de dificuldades momentâneas ou de crises estruturais enfrentadas por uma dada sociedade. Pouco se exige dessas condenações in abstracto e sem possibilidade de recurso. Elas não vêem sustentadas em provas empíricas, em dados estatísticos relevantes, pesquisas de terreno, correlações causais apoiadas em fatos e números, não são comprovadas mediante alguma demonstração lógica nem são dotadas de fundamentação histórica. Para todos os efeitos, elas cumprem uma função justificatória, do tipo: "eis a origem dos nossos problemas, ela se situa nas engrenagens da globalização".
Existem, provavelmente, elementos psicológicos que explicam essa "fuga da realidade" que o fenômeno da globalização provoca em jovens idealistas e sinceramente devotados às causas humanitárias e que pretendem construir um "outro mundo". Menos compreensível é a atitude de outros, menos jovens, que ressentem (com a força de um transplante de órgãos) a perda das velhas certezas socialistas e dos antigos projetos anti-capitalistas. Melhor deixar essa tarefa explicativa aos "psicanalistas da globalização" – se é que eles já apareceram no mercado – e limitar-se a analisar o problema do ponto de vista dos argumentos de ordem econômica, com todas as limitações que podem existir nessa disciplina que já foi chamada de dismal science, ou ciência lúgubre.
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