Estudo Comparado de Sistemas Burocráticos: Conceitos e Perspectivas

Enviado por Simon Schwartzman


Publicado na Revista de Administração Pública, (Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas) vol. 4, 1, janeiro - junho, 1970, 79-100.

1. Introdução

O estudo comparado de sistemas burocráticos nacionais é um campo relativamente novo, promissor e em rápida expansão nas ciências sociais contemporâneas. É um campo que ganha importância, na área da ciência política, na medida em que as estruturas burocráticas governamentais adquirem cada vez maior peso na determinação dos processos políticos dos diversos países1; e na área da administração, na medida em que fica claro para os estudiosos da área que a comparação sistemática entre estruturas empíricas diversas é a única forma de chegar a teorias mais gerais que possam explicar de maneira efetiva as variações aparentemente idiossincrásicas em níveis de eficiência, produtividade, flexibilidade, e dimensões dc cada situação particular.2 A análise comparada de estruturas tão complexas é, entretanto, extremamente difícil se uma atenção cuidadosa não é dada aos conceitos, definições e metodologia utilizados. A maioria dos estudos comparados desse tipo tendem, por isto, a se manterem no nível do ensaio que raramente compara mais de duas estruturas organizacionais, e seu valor quando existe, decorre muito mais da capacidade de insight que das excelências da metodologia empregada pelos autores.

O estudo comparado de burocracias nacionais visa a responder unia série de questões recorrentes na literatura: quando, e em que condições estruturas burocráticas são mais ou menos eficientes? Quando, e em que condições, desempenham um papel político mais ou menos autônomo? Quando e em que condições, tendem a crescer em tamanho e complexidade? Que tipos e formas de autoridade tendem a assumir, em que circunstâncias? Que pautas de comportamento são mais típicas, a que níveis e em que condições? A pesquisa empírica sobre estas questões não pode atacar diretamente estes problemas, sob pena de perder-se em um mar de fenômenos circunstanciais e influências fortuitas que invalidam a maioria dos esforços de generalização. Daí a necessidade de recriar alguns passos, e colocar algumas questões previas: quais são exatamente, nossas unidades de análise? Quais são os fenômenos que queremos explicar, i.é, nossas variáveis dependentes'? Mas, antes, quais são os fenômenos que os explicam, as variáveis independentes? É claro que não existem regras fixas sobre isto, e cada estudioso é livre de definir suas unidades e variáveis de análise conforme seu melhor critério. Mas isto não significa que o exame explícito destas questões preliminares não seja necessário, já que indefinições e erros iniciais tendem a repercutir e a multiplicar-se geometricamente à medida em que a análise avança.

2. A Unidade de Análise

A definição da unidade, ou objeto de análise, é muito mais que uma questão escolástica como as que aparecem freqüentemente no início de manuais de ciências sociais. Podemos ver isto com clareza se distinguimos, de início, uma abordagem funcional de uma abordagem estrutural na conceituação de burocracias nacionais.

A abordagem funcional define seu objeto a partir de suas funções e depois trata de determiná-lo empiricamente. Um exemplo conhecido é o modelo analítico desenvolvido por Gabriel Almond para o estudo comparado de sistemas políticos, que é aplicado para a América Latina em um estudo bem conhecido de G. Blankstein.3 Assim, por exemplo; todos os sistemas políticos têm que suprir uma função de elaboração de leis que seria desempenhada pelo Congresso nos Estados Unidos, pelo Partido Comunista na União Soviética e pelas forças armadas na Argentina. Similarmente, existe uma função genérica de distribuir de forma autoritativa os recursos escassos de uma sociedade (a função política), e uma função de controlar e garantir a execução dos direitos e deveres decorrentes desta distribuição legal (a burocracia pública). Nem todas as sociedades, entretanto, têm uma instituição especificamente orientada para esse objetivo; daí o conceito de diferenciação institucional, que entra necessariamente nas tipologias funcionalistas de sistemas políticos, e traz consigo, muitas vezes dc contrabando supostos evolucionistas que tem como ponto terminal as sociedades ocidentais desenvolvidas de hoje. O estudo comparado dc burocracias nacionais definidas em termos funcionais significa na prática, que a unidade de análise passe a ser as diversas nações ou sociedades existentes no espaço e no tempo.4 Se isto é assim, não cabe perguntar como as burocracias nacionais surgem: elas existem sempre como funções que se cumprem e podem ser estudadas em suas manifestações e variações mas nunca em seu desenvolvimento e declínio. As únicas coisas que existem são variações de atributos: poder, peso, produtividade pautas de organização e autoridade etc A definição funcional não permite, quando levada às suas conseqüências, que questões de poder burocrático, interesses específicos da burocracia e outros fenômenos que não sejam manifestações de controle e execução de direitos e deveres definidos politicamente, sejam estudados dentro da analise comparada de burocracias nacionais Uma abordagem bem distinta é aquela desenvolvida por S. M. Eisenstadt.5 Eisenstadt fala em sistemas burocráticos, o que significa que existem sistemas sociais que não são burocráticos. Para ele, sistemas burocráticos são aqueles em que o sistema político é autônomo e claramente diferenciado e onde existe uma organização dedicada especialmente à mobilização dos principais tipos de recursos Esta situação conduz à existência de um grupo político dirigente que não é idêntico a nenhum grupo social adscrito, determinado Quando este grupo especifico existe podemos falar de um sistema burocrático. Os sistemas burocráticos são bem diferentes dos sistemas primitivos ou feudais e Eisenstadt da uma lista de seis condições que conduzem ao surgimento de sistemas burocráticos Além do mais ele trabalha com a ideia de graus de burocratização, usando como o seu valor máximo o tipo ideal weberiano: assim, um sistema social é tanto mais burocrático quanto mais exista uma especificidade da hierarquia política, organizações especificamente administrativas e políticas, regulamentação do aparato burocrático por regras também específicas, e formas de remuneração não patrimoniais . Esse tipo de conceituação que podemos denominar estrutural é o que utilizaremos no texto que se segue.

3. Quatro questões a Respeito de Burocracias Nacionais

A discussão a respeito dos diversos níveis de poder, produtividade, formas de organização de autoridade e pautas de comportamento de burocracias e burocratas públicas é sempre perturbada pelos diferentes sentidos que cada uma dessas variáveis pode assumir . Por exemplo, poder politico, que é especialmente um conceito de integração, pode ser visto desde o ponto de vista de quem o tem (o Estado, o estrato burocrático, a instituição burocrática, o burocrata) e sob a perspectiva de em relação a quem este poder é exercido. Isto nos dá 16 possibilidades e um número similar de tipos de produtividade, autoridade organizacional, pautas de comportamento, etc., que podem ser derivados sem muitas dificuldades . E claro que algum princípio de organização é necessário para reduzir todas essas possibilidades lógicas a um conjunto de conceitos mais manejável.

A escolha desse princípio de organização é uma questão de preferência pessoal que não pode, em última análise, ser reduzida a uma justificação formal. Devemos começar por uma afirmação de valor, e nossa afirmação de valor é o ideal de uma sociedade plenamente desenvolvida, pluralista, e igualitária. Desenvolvimento aqui se refere a bem-estar, tal como é entendido hoje nas sociedades desenvolvidas contemporâneas. Pluralismo se refere à distribuição do poder através da sociedade, e não concentrado em um pequeno grupo ou setor; igualitarismo, finalmente, se refere à idéia de que a mobilidade social não é limitada por barreiras adscritas e que os direitos da pessoa são garantidos e incrementados.

Nosso interesse em comparar burocracias deriva desses valores, e nossa questão geral pode ser colocada nos seguintes termos: como podemos explicar a contribuição diferencial dos sistemas burocráticos para esse Estado ideal? A especificação desta questão. geral dá origem à investigação teórica e empírica.

A questão do poder tem um impacto direto nesses valores . Estaremos interessados em como a burocracia pode reduzir, ou aumentar, o pluralismo e as liberdades individuais e também no poder diferencial que têm as burocracias de provocar o desenvolvimento, se a produtividade é constante.

A questão da produtividade é, diretamente, uma questão dc desenvolvimento e estaremos interessados na produção de bens que se relacionem a ele.

Uma vez que não estamos interessados em todas as possíveis variações das instituições burocráticas, mas tão-somente naqueles aspectos que se relacionem com nossos valores, lidaremos com problemas de formas organizacionais, pautas de autoridade e de comportamento somente na medida em que eles tenham algum impacto nestes valores . Assim, essas variáveis serão consideradas como independentes ou intervenientes em relação às de poder e produtividade.

 


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