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Estagnação e Expansão do Ensino Superior Brasileiro (página 2)

Simon Schwartzman

 

Dissociar diplomas e registros profissionais, e desregular o exercício profissional.

O principal responsável pela proliferação de cursos superiores de má qualidade, inclusive no setor privado, é o Estado brasileiro, que agora busca formas de corrigir suas conseqüências, sem, entretanto, identificar e tratar de corrigir as causas. O que alimenta o mercado de educação de má qualidade é a vinculação que existe entre o diploma universitário e a habilitação para o exercício profissional. Esta vinculação, que surgiu em muitas sociedades para algumas profissionais mais tradicionais, como a medicina e o direito, se generalizou no Brasil para várias dezenas de profissões, cada qual com sua pretensão a uma reserva no mercado de trabalho, a um salário mínimo profissional e a outras distinções. O setor privado, quando pode, trata de escapar da camisa de força dos monopólios profissionais, contratando pessoas pelos seus conhecimentos e experiência, e não pelos diplomas que ostentam. O setor público, no entanto, trata de cumprir a lei com diligência, exigindo diplomas para o preenchimento de cargos, promovendo e dando aumentos salariais em função de diplomas apresentados e cursos concluídos, e assim por diante.

A solução para este problema é conhecida, tendo faltado, até agora, vontade e coragem política para propô-la. Deve haver uma separação nítida entre educação formal e habilitação para o exercício das profissões. Um diploma universitário deve ser um testemunho da educação oferecida por uma instituição determinada, mas não deve habilitar ninguém, legalmente, para nada. A exigência de registro profissional para o exercício de profissões deve ser restrita àquelas atividades onde a imperícia possa produzir danos sérios e irreparáveis à vida e à propriedade. Nestes casos pilotos de avião, maquinistas de trem, cirurgiões o registro profissional deve estar associado a um processo permanente de avaliação, a ser feito com a participação de especialistas na área, e sob supervisão das autoridades públicas.

Este processo pode incluir o credenciamento de algumas instituições de ensino, cuja qualidade possa ser acompanhada, e a realização de exames individuais para pessoas formadas por outras instituições. Para as demais profissões é útil que existam associações científicas e profissionais que avaliem cursos e credenciem pessoas que atendam a determinados critérios (como fazem, por exemplo, as diversas sociedades psicanalíticas), para melhor orientação do público; mas estas entidades não podem ser monopolísticas (como são os atuais conselhos profissionais), nem suas credenciais podem ter efeitos legais. Introduzir estas modificações significará contrariar muitos interesses, e exigirá alterações profundas na legislação. Mas, sem isto, nem a demanda por educação de má qualidade não será reduzida, nem deixará de existir sua principal causa, o inchamento progressivo da máquina pública por pessoas diplomadas e pouco competentes.

Sem a faculdade de habilitar para as profissões, e avaliadas por um "mercado de competência" transparente, as arapucas educacionais privadas perderão seus alunos e fecharão suas portas, se forem incapazes de oferecer serviços educacionais de melhor qualidade e valor profissional (as públicas, no entanto, poderão subsistir por mais tempo, questão que será examinada mais abaixo). O resultado, a curto prazo, poderá ser uma redução da demanda por educação formal; e, a médio prazo, um aumento da correlação entre educação e habilidades reais.

Uma outra conseqüência da desregulação do ensino superior e das profissões será o surgimento de modelos alternativos e competitivos de ensino para as diversas atividades profissionais, alguns mais próximos dos modelos universitários clássicos, com estudantes e professores de tempo integral, e outros mais orientados para a formação prática e de curta duração, dados preferencialmente a noite ou pelo uso de metodologias de ensino à distância ou por períodos concentrados. Eliminado o mito de que todos os cursos de determinada profissão são iguais (porque proporcionam a mesma habilitação profissional), o espaço para as diferenças surgirá, e o papel de vigilância do setor público sobre o sistema educacional privado poderá se limitar às questões mais óbvias de improbidade ou má fé. Esta desregulação eliminará ainda a fonte da grande pressão que hoje existe contra a expansão do ensino superior, e que vem das associações profissionais mais fortes, como as de medicina e de direito, que poderão aumentar seu papel no controle da qualidade das pessoas que credenciam, sem, no entanto, poder influir diretamente na quantidade, ou na existência de habilitações profissionais afins.

Desistir de prever as "necessidades sociais", e começar com planejamentos tópicos e bem delimitados.

Ninguém mais pensa, hoje em dia, que seja possível prever com alguma precisão quantos médicos, engenheiros, economistas, advogados e sociólogos um país precisará dentro de cinco ou dez anos, e usar isto para planejar as vagas de suas instituições de ensino. As sociedades e seus mercados de trabalho evoluem de forma imprevisível, e o lugar que abrem às diversas profissões depende muito das tradições, do prestígio e do reconhecimento legal e social que cada uma delas recebe, mais do que de uma suposta relação técnica entre, por exemplo, tal nível produção e tal quantidade de engenheiros em uma empresa, ou entre o número de nutricionistas e o estado alimentar de uma determinada população.

O que sabemos com certeza é que as sociedades modernas demandarão cada vez mais pessoas com três ou quatro tipos de habilidades genéricas: as que sejam capazes de dominar bem a cultura e a língua, escrever, relacionar-se com diferentes públicos, comunicar; as que entendam o funcionamento das instituições humanas, sua organização, suas normas, suas maneiras de operar; as que sejam capazes de pensar em números, fórmulas, medidas, equações; e as que sejam capazes de entender e cuidar do funcionamento e da saúde dos organismos vivos. É provável que, destas quatro grandes áreas de conhecimento as humanidades, as ciências e profissões sociais, as ciências exatas e tecnológicas, e a biologia e ciências da saúde as duas primeiras tendam a envolver mais pessoas do que as duas últimas, quando não seja pela tendência à especialização e concentração destas em grandes instituições, empresas e laboratórios. Isto significa que a predominância de cursos nas áreas sociais e humanas não é necessariamente uma deformação, como geralmente se pensa. De qualquer forma, se conseguirmos desregular o sistema de diplomas e profissões, poderemos esperar que as quantidades globais de pessoas formadas nestas grandes áreas tendam a se ajustar naturalmente.

Metas quantificadas só podem existir em setores muito delimitados, e quando associadas a programas públicos bem definidos. Em saúde, por exemplo, talvez seja possível um dia calcular quantos profissionais deverão ser necessários e possíveis de contratar para que o sistema previdenciário atenda toda a população, e inclusive associar bolsas de estudo e acesso a determinados cursos à prestação posterior de serviços em determinadas regiões, por um certo tempo. Com toda a certeza serão necessários, além de médicos convencionais, enfermeiros, radiologistas, laboratoristas, parteiros, farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos clínicos, e assim por diante. Não teria sentido, no entanto, tentar estabelecer metas quantitativas para cada uma destas categorias. A hierarquia profissional e a compartimentalização que existe entre estas diversas atividades, que é em grande parte social, e não técnica, precisaria ser alterada, permitindo uma melhor redistribuição de funções e mecanismos de passagem de uma para outra, e sua substituição por hierarquias efetivas de competência e responsabilidade. Muitas pessoas se interessariam por cursos de escopo mais delimitado e de duração mais curta, que tivessem uma perspectiva certa de trabalho, principalmente se pudessem, mais tarde, se qualificar para atividades mais complexas e melhor remuneradas, através de estudos e exames complementares.

Uma outra área aonde podem existir metas razoavelmente quantificadas é a da educação, dada a necessidade urgente de expandir o ensino básico e secundário do país. A principal dificuldade, aqui, são os baixos níveis de renda e o pouco prestígio do trabalho docente, afastando as pessoas melhor qualificadas, e fazendo com que os professores abandonem sua profissão em grandes números. Nenhum planejamento educacional para esta área pode ser feito sem uma alteração profunda das condições de emprego docente. Mas o ensino básico e secundário nunca pagará tão bem a seus professores quanto as profissões universitárias de mais prestígio, e será necessário moldar os cursos de formação de professores a um público de origem social mais humilde, que passou por escolas secundárias de pior qualidade, e que freqüentemente não consegue passar nos exames vestibulares das universidades públicas. É um desafio pedagógico sério, que exigirá um grande investimento na preparação de materiais didáticos, na organização de cursos de reciclagem, no uso de diferentes tecnologias de apoio, e principalmente em uma nova visão a respeito das habilidades e conhecimentos que devem ter os professores de primeiro e segundo grau, que são certamente diferentes daqueles que se exige de uma pessoa que se prepara para a pesquisa científica e tecnológica em laboratórios e empresas. O planejamento para este setor deverá ter em conta ainda as altas taxas de turnover das atividades docentes, e estimular que pessoas em início de carreira se dediquem ao ensino de primeiro e segundo graus, podendo, mais tarde, partir para outras carreiras e projetos profissionais.

A existência de metas para algumas áreas, como a da saúde e da educação, não pode levar o Estado a restringir o direito que o setor privado tem de oferecer os cursos que melhor entenda, se não houver custos públicos e se os padrões mínimos de qualidade forem atendidos. O único instrumento de que o governo dispõe hoje para influenciar o sistema privado é o crédito educativo, que poderia ser direcionado para cursos nas áreas prioritárias, e em estabelecimentos devidamente avaliados. No setor público, por outro lado, os instrumentos são muito mais significativos.

Preservar a qualidade, aumentar a eficiência e direcionar a expansão das universidades públicas.

Pelos números que se conhece, o sistema de universidades federais poderia duplicar suas matrículas com basicamente a mesma infraestrutura física e de pessoal que possui hoje. Seria necessário proceder a grandes reajustes na distribuição dos recursos, do tempo dos professores e do espaço físico, dentro de cada universidade e entre elas, e superar todo tipo preconceitos e barreiras regionais, corporativistas e disciplinares; mas não é uma tarefa impossível. A realização de uma expansão como esta traria no entanto um risco sério, que é o da perda da qualidade das universidades públicas.

A qualidade das universidades públicas brasileiras, com poucas exceções, está concentrada em seus programas de pós-graduação e de pesquisa e em alguns cursos profissionais mais tradicionais. A pesquisa e a pós-graduação não estão livres de problemas, mas desempenham uma função vital de manter vivos os núcleos recebedores e geradores de conhecimento do país, algo que a iniciativa privada não faz da mesma forma, e que não poderia subsistir sem subsídios públicos. Os cursos profissionais de alto prestígio dependem de instalações complexas e da existência de professores de alta qualificação e tempo integral, que dificilmente podem existir sem a pesquisa e a pós-graduação.

A exigência de conhecimentos prévios nos exames vestibulares das universidades públicas tem servido de barreira para o ingresso de pessoas que tiveram menos oportunidades de uma boa educação secundária, e tem levado à existência de vagas ociosas. Dobrar o número de vagas significará baixar o nível médio de qualificação dos alunos que entram, e isto poderá prejudicar sensivelmente a qualidade dos cursos, a não ser que haja um intenso trabalho compensatório para o qual as universidades públicas não estão preparadas, e cujo resultado é incerto. Há quem argumente que a função da universidade pública deve ser atender às populações mais carentes, que isto é mais importante do que a excelência acadêmica, e que as pessoas que buscam educação superior de qualidade, e que vêm geralmente dos estratos sociais mais altos, podem se transferir para o setor privado e pagar por ela. De fato, a garantia constitucional de educação superior gratuita para quem pode pagar e vai se beneficiar pessoalmente dela é uma iniqüidade que deve ser alterada, levando à implantação de sistemas de cobrança que permitam subsidiar os que não tem recursos e aumentar os recursos disponíveis para as universidades públicas. Mas não existe nenhuma garantia de que, se o sistema público perder a qualidade que tem, ela seria reconstruída no setor privado. Por mais que se cobre dos estudantes, as mensalidades escolares dificilmente seriam suficientes para construir a infraestrutura de prédios e equipamentos e para pagar os professores e funcionários que uma escola profissional moderna, nas áreas tecnológicas e de saúde, normalmente requerem. Um movimento nesta direção terminaria por tornar irresistível a pressão do setor privado por subsídios públicos, criando assim uma dualidade que ainda não conhecemos, mas que existe em outros países do continente: por um lado, um sistema público massificado e de má qualidade; por outro, um sistema privado de qualidade e altamente subsidiado.

Afrouxar as exigências dos exames vestibulares, criar mais vagas pela introdução de cursos noturnos que sejam apenas versões mal feitas dos cursos diurnos, não parece ser o caminho mais apropriado para a expansão do ensino superior público. O procedimento mais adequado deve ser o de garantir e mesmo elevar os padrões de exigência dos cursos regulares, que supõem a existência de estudantes bem qualificados em dedicação de tempo integral aos estudos, cobrando dos que podem pagar e garantindo a subsistência dos que não o podem. E, por outra parte, criar modalidades novas de atendimento a outros públicos que hoje buscam o ensino superior pessoas mais velhas, profissionais que buscam se aperfeiçoar, mulheres que iniciam carreiras depois que os filhos cresceram, jovens que necessitam trabalhar para se manter enquanto estudam e que têm pouco em comum com o jovem recém saído das escolas secundárias para os quais o modelo das universidades públicas brasileiras foi estabelecido. Estas modalidades novas podem requerer procedimentos pedagógicos e formatos de curso sobre os quais paira hoje um manto de preconceito em círculos acadêmicos bem pensantes ensino à distância, cursos de férias e de fins de semana, cursos de especialização e reciclagem, cursos de duração curta, e assim por diante.

O envolvimento dos melhores professores das universidades públicas nestas atividades garantiria sua qualidade, e a existência de mecanismos flexíveis de passagem de alunos de uma a outra modalidade de ensino e tipo de curso evitaria os problemas de compartimentalização e desvalorização das modalidades aparentemente menos "nobres". E, na medida em que estes desenvolvimentos se dêem em áreas priorizadas por programas de longo alcance como de educação, ou saúde haveria inclusive condições para maiores investimentos, e projetos mais ambiciosos.

Começar a caminhar

O resultado das transformações aqui propostas seria uma nova realidade com a cara do Brasil, naquilo que o país tem de mais marcante: grande, complexo, contraditório, flexível, desigual, dinâmico, criativo e progressista. Colocá-las em marcha significa mexer na Constituição, nas leis ordinárias, em interesses entrincheirados, e sobretudo nos hábitos mentais das pessoas, que custam a entender que a realidade pode ser muito distinta do que aquilo a que elas estão acostumadas. Mas este parece ser, de qualquer forma, um tempo de mudanças importantes em todas as áreas, e a educação, em todos os seus níveis, também precisa começar a caminhar.

Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon



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