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2. Sistemas autopoiéticos.

Vimos que o que diferencia os sistemas isolados, fechados e abertos é a possibilidade de troca de elementos entre estes sistemas e seus respectivos ambientes. Trata-se de um conceito relacionado aos elementos constitutivos do sistema.

Quanto à organização do sistema podemos dividi-los em alopoiéticos [1] e autopoiéticos [2].

A alopoiese é um processo pelo qual uma determinada organização produz algo diferente de sua própria organização. Um exemplo de sistema alopoiético seria uma linha de produção de uma indústria automobilística.

Uma linha de produção é capaz de produzir carros, mas não as máquinas usadas na própria linha de produção.

Por outro lado, sistemas autopoiéticos são literalmente aqueles que se auto-produzem.

O conceito foi criado nas ciências biológicas para descrever o surgimento da vida na Terra. A origem dos seres vivos não estaria relacionada, pois, a um criador. Os elementos constitutivos de um sistema vivo teriam se auto-organizado após bilhões de anos de caos quando, em um determinado momento, surgiu no planeta simultaneamente uma série de circunstâncias físico-químicas que permitiram o êxito desta auto-organização.

Nas palavras de MATURANA e VARELA:

"A característica mais peculiar de um sistema autopoiético é que ele se levanta por seus próprios cordões, e se constitui como diferente do meio por sua própria dinâmica, de tal maneira que ambas as coisas são inseparáveis." (MATURANA et VARELA, 2002, p. 55)

O surgimento das primeiras células vivas teria se dado no momento em que houve uma primeira distinção clara da organização do sistema e de seu ambiente externo:

"esse metabolismo celular produz componentes e todos eles integram a rede de transformações que os produzem. Alguns formam uma fronteira, um limite para essa rede de transformações. Em termos morfológicos, podemos considerar a estrutura que possibilita essa clivagem no espaço como uma membrana. No entanto, essa fronteira membranosa não é um produto do metabolismo celular tal como o tecido é o produto de um tear, porque essa membrana não apenas limita a extensão da rede de transformações que produz seus componentes, como também participa dela. Se não houvesse essa arquitetura espacial, o metabolismo celular se desintegraria numa sopa molecular, que se espalharia por toda parte e não constituiria uma unidade separada como a célula". (MATURANA et VARELA, 2002, p. 52-53)

O sistema autopoiético, portanto não é criado, mas nasce do caos a partir de uma auto-organização bem sucedida após uma série quase infinita de tentativas fracassadas.

A partir de seu surgimento, o sistema organiza-se de tal forma que tenha como principal função a sua manutenção enquanto sistema organizado.

Assim, uma célula estará viva enquanto mantiver sua organização estável que terá como função manter esta organização estável.

Segundo MATURANA e VARELA:

"O que lhes é peculiar é que sua organização é tal que seu único produto são eles mesmos. Donde se conclui que não há separação entre produtor e produto. O ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, e isso constitui seu modo específico de organização." (MATURANA et VARELA, 2002, p. 57)

A organização de um sistema autopoiético tem com fim a manutenção de sua própria organização, pois a desordem para um sistema autopoiético corresponde à própria morte do sistema com a conseqüente difusão de seus elementos ao ambiente.

A morte de um sistema é, em última análise, o fim da organização do sistema e o conseqüente término da distinção entre o que é sistema e o que é ambiente.

Isto fica bastante visível se tomarmos uma célula como exemplo: sua morte corresponde à falência de sua dinâmica intracelular com a perda de sua organização. A célula deixa de ser célula quando seus componentes perdem sua organização vital e se misturam ao ambiente.

É bom frisar que o fato de o sistema ser autopoiético não implica que ele é um sistema fechado já que a troca de elementos entre o sistema e seu ambiente, em princípio, nada altera a organização do sistema.

No caso dos sistemas computacionais e dos sistemas sociais, por exemplo, os elementos constitutivos dos sistemas são as informações que são trocadas livremente com seu ambiente.

Um computador recebe e emite informações a todo momento, mas isto em nada altera sua organização (o modo como opera estas informações).

A sociedade, por outro lado, também troca informações com seu ambiente – daí por que a consideraremos cognitivamente aberta – mas esta troca de informações com seu meio em nada altera sua organização – razão pela qual a conceberemos como operativamente fechada.

As trocas de elementos entre sistema e ambiente originam mudanças de estado.

3. Mudanças de estado

Os sistemas enquanto conjunto de elementos organizados estão sujeitos a mudanças de estado que podem ser desencadeadas por elementos do próprio sistema ou elementos externos provenientes de seu ambiente.

Tomemos a Terra e a Lua como um sistema caracterizado pela órbita desta em torno daquela. Supondo que haja uma guerra química na Terra e que a vida seja extinta no planeta, tal fenômeno interno ao sistema em nada alteraria sua organização (a Lua continuaria girando ao redor da Terra). Trata-se de uma mudança de estado do sistema.

Supondo que por um hipotético fenômeno lunar a lua se espatife em milhares de pedaços sem qualquer interferência externa ao sistema, tal fato afetaria completamente a organização do sistema (é possível que a maioria dos pedaços viesse inclusive a cair sobre a Terra). Teríamos então, a partir de uma modificação estrutural, a perda da própria organização do sistema com o seu conseqüente desaparecimento. Estaríamos diante de uma mudança destrutiva.

Imaginemos agora que um meteoro colidisse com a Terra e extinguisse a vida em nosso planeta. Haveria uma mudança de estado que em nada interferiria na organização do sistema Terra-Lua. Haveria uma mera perturbação do sistema pelo ambiente (já que o meteoro originou-se do ambiente e não do próprio sistema).

Por fim, suponhamos que um meteoro colidisse com a Lua, partindo-a em pedaços e ocasionasse o fim da organização do sistema. Estaríamos diante de uma interação destrutiva, já que foi um elemento externo ao sistema que desencadeou sua destruição.

Note que o meteoro não determinou a destruição do sistema, mas apenas desencadeou o processo que culminou na sua extinção.

Isto porque é a própria estrutura do sistema que irá definir se ele irá ou não ser destruído pelo elemento externo. Fosse a Lua constituída de rochas mais resistentes ou mesmo de ferro e o sistema seria tão-somente perturbado.

Em última análise a destruição do sistema está sempre condicionada a seus elementos e, principalmente, à sua organização.

Um meteoro que entrasse no sistema solar e colidisse com a nossa lua poderia ser uma interação destrutiva para o sistema Terra-Lua, mas uma mera perturbação para o sistema solar.

São as características do sistema perturbado que irão definir a manutenção de sua organização ou seu aniquilamento.

Em tese, seria perfeitamente possível um sistema indestrutível capaz de sobreviver a toda e qualquer perturbação de seu ambiente, pois a organização deste hipotético sistema seria tal que qualquer que fosse a perturbação externa, esta não seria capaz de liquidar com a organização do sistema.

4. Acoplamento estrutural

Evidentemente as interações ente sistemas e seus ambientes acontecem a todo instante e podem ser meras perturbações ou interações destrutivas.

Enquanto uma unidade não entrar numa interação destrutiva com o seu meio haverá entre o sistema e seu ambiente uma série de perturbações mútuas que desencadearão mutuamente mudanças de estado. A esse processo continuado, denomina-se acoplamento estrutural.

Este processo é válido para qualquer sistema e, portanto, para os sistemas autopoéticos.

Evidentemente que o sistema autopoiético troca elementos com seu ambiente (ar, alimento, excrementos, etc) mas esta troca em nada altera sua organização.

MATURANA e VARELA afirmam que:

"Nessa congruência estrutural, uma perturbação do meio não contém em si uma especificação de seus efeitos sobre o ser vivo. Este, por meio de sua estrutura, é que determina quais as mudanças que ocorrerão em resposta. Esta interação não é instrutiva, porque não determina quais serão seus efeitos. Por isso, usamos a expressão desencadear um efeito, e com ela queremos dizer que as mudanças que resultam da interação entre o ser vivo e o meio são desencadeadas pelo agente perturbador e determinadas pela estrutura do sistema perturbado." (MATURANA et VARELA, 2002, p. 108)

Esta troca de elementos do sistema com seu ambiente é regida pela organização do sistema.

"Se uma célula interage com uma molécula X, incorporando-a a seus processos, o que acontece como conseqüência da interação não está determinado pelas propriedades dessa molécula, e sim pela maneira como ela é "vista" ou tomada pela célula, ao incorporá-la à sua dinâmica autopoiética." (MATURANA et VARELA, 2002, p. 61)

Muita vez, o ambiente do sistema autopoiético é outro sistema autopoiético dando origem, no caso dos seres vivos, aos organismos pluricelulares. Nas palavras de MATURANA e VARELLA:

"Duas (ou mais) unidades autopoiéticas podem estar acopladas em sua ontogenia, quando suas interações adquirem um caráter recorrente ou muito estável." (MATURANA et VARELA, 2002, p.87)

E prosseguem:

"A íntima junção entre as células que descendem de uma única célula – e que resulta numa unidade metacelular – é uma condição inteiramente consistente com a continuação da autopoiese dessas células. Mas certamente não é imprescindível, na medida em que na filogenia dos seres vivos muitos permanecem unicelulares." (MATURANA et VARELA, 2002, p. 92)

Os organismos pluricelulares, por sua vez, também se encontram em permanente contato com outros organismos pluricelulares.

Quando estas interações são recorrentes ocorre uma fenomenologia peculiar dando origem a acoplamentos de terceira ordem que denominamos de sistemas sociais.

5. Sociedade e Direito como sistemas autopoiéticos

A Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann procura aplicar o conceito de sistemas autopoiéticos às ciências sociais.

Para Luhmann a sociedade é um sistema autopoiético cuja organização sustenta-se na comunicação.

A sociedade até então concebida como o conjunto de indivíduos, passa a ser tratada como um sistema que tem como elemento a informação e como organização a comunicação.

Assim sendo, a informação é elemento da sociedade, e é trocada livremente com seu ambiente. A comunicação, porém, só existe na sociedade e é criada pela própria sociedade que, em última análise, visa a produzir mais comunicação. A organização do sistema social é, pois, a comunicação social.

Note-se que, na teoria de Luhmann, os seres humanos somos mero ambiente da sociedade.

Isto porque um único ser humano não produz comunicação, visto que a comunicação só pode ser produzida socialmente. É necessário um alter e um ego para que a comunicação se produza, donde se conclui que a comunicação é a organização do sistema social que tende a produzi-la cada vez mais e gerar uma sociedade mais complexa e organizada.

O Direito surge como um subsistema dentro de uma sociedade complexamente estruturada e, como sistema social autopoiético, também tem como elemento a informação e como organização a própria comunicação.

Seu surgimento deriva de uma diferenciação funcional na organização do sistema social como um todo que, em sua autopoiese, gera subsistemas encarregados de funções específicas.

Assim dentro da organização da sociedade, caberá ao sistema social Direito definir o que é direito e não direito na comunicação.

Note-se que, ao definir o que é direito e o que não é direito, o sistema cria novo conteúdo jurídico, o que reafirma seu caráter autopoiético.

O produto do Direito (decisões, leis, jurisprudência) gera mais direito que é incorporado ao sistema, aumentando assim a complexidade de sua organização. O juiz, ao decidir, gera jurisprudência, que por sua vez influenciará novas decisões. O legislador, ao aprovar leis, gera novas normas, que por sua vez influenciarão não só os magistrados na aplicação do direito, mas também novos legisladores. Este caráter de realimentação é próprio dos sistemas autopoiéticos: o produto do direito é sempre mais direito.

A autopoiese do Direito não se confunde com a concepção kelseniana de direito positivo até porque, como já dito anteriormente, sistemas fechados não se confundem com sistemas autopoiéticos.

O Direito observa – na terminologia adota por Luhmann – seu ambiente e a todo instante troca informações com ele (que são elementos do sistema).

Estas informações poderão desencadear mudanças no direito, mas jamais determiná-las, pois a comunicação, por definição, só se consuma com a existência de um alter e um ego. Ao conhecer da informação como alter esta se tornará uma comunicação de acordo com a organização do sistema jurídico.

Assim como a invasão de um meteoro no sistema solar afetará o sistema tão-somente de acordo com a própria organização deste sistema, também nos sistemas sociais as "invasões" de informações neste sistema podem tão-somente desencadear perturbações, mas jamais determiná-las, pois será a própria organização do sistema que, em última análise, definirá o quão importante é aquela informação proveniente de seu ambiente.

Vale lembrar que é possível até que uma perturbação do ambiente acabe desencadeando a própria destruição do sistema do Direito (v.g. um golpe de estado), mas esta informação externa não será determinante para a extinção do sistema. O determinante é que a organização do sistema pode até entrar em colapso, mas isto se dará por uma deficiência em sua organização. É o modo como a informação foi recebida que causou a destruição do sistema e não propriamente a informação.

Em um exemplo simples: se alguém recebe a informação que seu filho foi reprovado na escola, esta informação por si só não gerará o fim da comunicação entre pai e filho. Se porém, o pai resolve suicidar-se, por uma deficiência em sua organização psíquica, sua conduta evidentemente colocará um fim à comunicação entre ambos. Mas não se pode dizer que foi a informação da reprovação em si que causou o colapso do sistema, mas a forma como foi recepcionada e processada pelo pai. A informação desencadeou o fim do sistema, mas não o determinou.

6. Direito como instrumento de manutenção do status quo

A concepção de Direito como sistema autopoiético retoma o organicismo social de forma infinitamente mais bem elaborada, mas não consegue superar seus principais problemas.

Não se trata de um organicismo social tão tosco quanto os clássicos em que a sociedade é concebida como um todo orgânico, no qual as células cerebrais são menos numerosas, mas as que mandam, porque são melhores, mas mais diferenciadas, as mais "lúcidas"[3].

A concepção organicista da Teoria dos Sistemas não trata a sociedade a partir de analogias com seres vivos, como no organicismo clássico. A sociedade agora é vista efetivamente como um organismo vivo por sua própria definição como sistema autopoiético.

A definição de um conceito para "ser vivo" sempre foi um busílis para os biólogos. A este respeito MATURANA e VARELA questionam-se:

"como saber quando um ser é vivo? quais são os critérios? ao longo da história da biologia, foram propostos muitos critérios e todos eles apresentam dificuldades. Por exemplo, alguns propuseram que o critério fosse a composição química. Ou a capacidade de movimento. Ou, ainda a reprodução. Ou por fim , alguma combinação desses critérios, ou seja, uma lista de propriedades. Porém, como saber quando uma lista está completa? Por exemplo, se construirmos uma máquina capaz de se reproduzir – mas que é feita de ferro e plástico, não de moléculas orgânicas – podemos dizer que ela está viva?" (MATURANA et VARELA, 2002, p. 48-49)

A conclusão a que chegam os ilustres pensadores não é outra senão que:

"O que caracteriza o ser vivo é sua organização autopoiética. Seres vivos diferentes se distinguem porque têm estruturas distintas, mas são iguais em organização." (MATURANA et VARELA, 2002, p. 55)

Eis aqui o grande problema da Teoria dos Sistemas.

Ao conceber a sociedade como um ser vivo (já que se trata de um sistema autopoiético, que por definição é vivo), o funcionalismo sistêmico coloca o indivíduo em segundo plano.

Aliás, LUHMANN e DE GEORGI são expressos ao afirmarem o caráter anti-humanístico de sua teoria:

"Las investigaciones que este libro presenta buscan dar el paso a un concepto de sociedad radicalmente antihumanístico y radicalmente antirregionalístico." (LUHMANN et DE GEORGI, 1993, p. 33)

Em suma, ao tratar o ser humano como ambiente do sistema autopoiético social, a teoria o relega a um segundo plano.

Não se pode esquecer que, se a sociedade é um sistema autopoiético, sua organização a leva a se preservar a todo custo, mesmo que o preço desta autopreservação seja a vida humana.

É próprio da autopoiese esta organização interna que vise a todo custo a autopreservação: o fim último de todo ser vivo é continuar vivo.

A este respeito MATURANA e VARELA afirmam que:

"Toda mudança estrutural acontece num ser vivo necessariamente demarcada pela conservação de sua autopoiese" (MATURANA et VARELA, 2002, p. 114)

Ora, sendo a sociedade e o Direito sistemas autopoiéticos, seria perfeitamente natural o sacrifício meramente utilitário de algumas – ou várias – vidas humanas para a manutenção do status quo e, conseqüentemente da autopoiese do sistema.

A manutenção de uma parcela de seres humanos absolutamente marginalizada, em condições sociais miseráveis, seria perfeitamente lícita desde que não prejudicasse a autopoiese do sistema.

Evidentemente as conclusões acima não são extraídas explicitamente da Teoria dos Sistemas, mas são implicações necessárias da concepção de Direito como sistema autopoiético.

Trata-se, pois, de uma teoria sociológica absolutamente amoral, que retoma muitas das concepções de Maquiavel [4].

O fim último da sociedade é a manutenção de sua autopoiese. Os meios empregados para a manutenção da organização do sistema são absolutamente irrelevantes, mormente se pensarmos que o homem é mero ambiente deste sistema.

Não se pode esquecer que, nas palavras de MATURANA e VARELA:

"A contínua mudança estrutural dos seres vivos com conservação de sua autopoiese acontece a cada instante, incessantemente e de muitas maneiras simultâneas. É o palpitar da vida" (MATURANA et VARELA, 2002, p. 114)

O palpitar da vida social é a preservação da sociedade. As condições humanas de liberdade, igualdade e bem estar social são absolutamente irrelevantes desde que a comunicação seja mantida.

Um hipotético estado do total control em que indivíduos fossem mantidos sobre uma eterna vigilância de câmeras de vídeo [5] seria absolutamente lícito desde que necessário para a manutenção da autopoiese social.

As guerras e o terrorismo também podem ser facilmente justificadas dentro da Teoria dos Sistemas, pois são formas de comunicação e, como tais, inerentes à autopoiese social.

Em resumo, a função última do direito não é garantir o bem estar do ser humano, mas garantir a preservação da comunicação destes seres humanos, ainda que com um claro predomínio de uma parcela de indivíduos sobre outros. A função do direito não é preservar o indivíduo, mas a sociedade.

O direito nada mais seria do que um mecanismo de manutenção do status quo.

O direito tem como função garantir a existência dele próprio (manutenção do status quo) e para tanto as contínuas mudanças da lei e da jurisprudência variam com este único fim.

Se uma sociedade precisa de varredores de ruas e a inclusão social destes trabalhadores implica em um caos social com as cidades imundas, então dentro da autopoiese do sistema, melhor será que continuem varrendo as ruas, pois o sacrifício individual é justificado pelo benefício da coletividade. O foco do sistema não é a proteção da vida humana (seu ambiente), mas a proteção da sociedade (que é o próprio sistema).

Não se trata da ditadura de uma minoria sobre uma maioria, nem de uma ditadura de uma maioria sobre uma minoria. Trata-se da ditadura do social sobre o individual. Do domínio de uma abstração sobre a totalidade dos seres humanos do planeta.

O desenvolvimento da sociedade equivale ao aumento do desempenho comunicativo, sendo absolutamente irrelevantes as condições em que encontram-se os seres humanos, mero ambiente da sociedade.

A racionalidade do indivíduo é superada pela racionalidade do sistema.

7. Conclusões

Os seres humanos não somos formigas e não podemos ser concebidos como insetos sociais, nos quais a autonomia de cada indivíduo é limitada ao mínimo em benefício máximo da coletividade.

A este respeito MATURANA e VARELA são extremamente claros:

"Os organismos requerem um acoplamento estrutural não-lingüístico entre seus componentes; os sistemas sociais exigem componentes acoplados estruturalmente em domínios lingüísticos, nos quais eles (os componentes) possam operar com a linguagem e ser observadores. Em conseqüência, para o funcionamento de um organismo o ponto central é ele próprio – e disso resulta a restrição das propriedades de seus componentes. Já a operação de um sistema social humano, o ponto central é o domínio lingüístico gerado por seus componentes e a ampliação das propriedades destes. Essa condição é necessária para a realização da linguagem, que constitui seu domínio de existência. O organismo restringe a criatividade individual das unidades que o integram, pois estas existem para ele; o sistema social humano amplia a criatividade individual de seus componentes, pois esta existe para eles." (MATURANA et VARELA, 2002, p. 221)

Fica evidente que, ainda que se admita a concepção sistêmica da sociedade, visto que como seres humanos nos encontramos em permanente acoplamento estrutural com outros seres humanos, tratar-se-á de um sistema alopoiético.

Este metassistema formado pela agregação de unidades autônomas (indivíduos) é uma criação do homem para o homem.

A função do sistema social não pode ser concebida como sua própria preservação, mas como a preservação do homem enquanto homem.

Esta preservação do gênero humano, só pode ser alcançada com o progressivo incremento da autonomia individual, através da garantia pelo sistema social dos direitos humanos individuais (liberdade, igualdade, etc), sociais (educação, saúde, etc) e políticos (efetiva participação nas decisões da sociedade).

Em suma, a sociedade não pode ser concebida como uma célula que vive para manter-se viva. A sociedade deve ser concebida como uma linha de produção em benefício do homem, cuja finalidade é produzir um incremento da autonomia individual e do bem estar social de cada ser humano.

8. Bibliografia

  • ASHBY, W. Ross. Introdução à cibernética. São Paulo: Perspectiva, 1970. 345p.
  • BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999. 254 p.
  • CAPRA, Fritjof. O tao da física: um paralelo entre a Física Moderna e o misticismo oriental. 19ª ed. São Paulo: Cultrix, 1999. 274p.
  • CORSI, Giancarlo. ESPOSITO, Elena. BARALDI, Claudio. GLU: glossario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. México: Universidad Iberoamericana, 1996. 192p.
  • COVENEY, Peter, HIGHFIELD, Roger. A flecha do tempo. São Paulo: Siciliano, 1993. 335p.
  • HAWKING. Stephen. O universo numa casca de noz. São Paulo: Mandarim, 2001. 215p.
  • LESSIG, Lawrence. Code; and other laws of the cyberspace. New York: Basic Books, 1999. 297p.
  • LUHMANN, Niklas. A nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1997. 111p.
  • ______. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983. 252p.
  • ______. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985. 212p.
  • LUHMANN, Niklas, DE GEORGI, Raffaele. Teoria de la sociedad. Guadalajara: Universidad de Guadalajara, 1993. 444p.
  • MAQUIAVELLI, Nicoló di Bernardo dei. O príncipe. Porto Alegre: L&PM, 1998. 206p.
  • MATURANA, Humberto R. VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001. 288p.
  • ORWELL, George. 1984. 24ªed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2000. 277p.
  • VIANNA, Túlio Lima. Fundamentos de Direito Penal Informático: do acesso não autorizado a sistemas computacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
  • WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. 7ª ed. São Paulo: Cultrix, 2000. 190p.
  • ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. 888p.

Notas

[1]antepositivo, do gr. állos,é,o 'outro, um outro; diferente; estrangeiro'; + pospositivo, do gr. poíésis,eós 'criação' (HOUAISS, 2001)

[2] antepositivo do gr. autós,ê,ó '(eu) mesmo, (tu) mesmo, (ele) mesmo, (si) mesmo' (representado em lat. por um reduzido número de helenismos em que auto- ocorre como pref.) + pospositivo, do gr. poíésis,eós 'criação' (HOUAISS, 2001)

[3] ZAFFARONI, 2002, p. 282

[4] Cf. MAQUIAVEL, 1998.

[5] Cf. ORWELL, 2000.

VIANNA, Túlio Lima. Da Ditadura dos Sistemas Sociais: uma crítica à concepção de Direito como sistema autopoiético. Revista Crítica Jurídica, Curitiba, n. 22, p. 67-78, jul/dez. 2003.

Túlio Lima Vianna
tuliovianna[arroba]pucminas.br



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