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O que deu errado?: uma parábola eleitoral (página 2)

Paulo Roberto de Almeida

 

Tendo embarcado uma vez no consumo do produto, a classe média ficou, na verdade, decepcionada com o desempenho do material, insatisfeita com o que de fato lhe foi servido como produto de primeira qualidade. O que pode ter decepcionado de tal maneira a classe média, e alguns de seus aliados, nesta avaliação periódica de satisfação do consumidor que constituem as eleições a cada dois anos? Sem pretender ser exaustivo, vou listar aqui alguns elementos que me parecem relevantes nessa revolta eleitoral.

1) Ideologia: o eleitor não pretende comprar gato por lebre, e já não consome tanto esse produto que em outras eras tinha larga aceitação de mercado, sobretudo nos rincões tradicionais da velha e da nova esquerda. O eleitor é um pragmático, ele quer ver, e sentir, the real thing, não apenas discursos bonitos e belas promessas miríficas agitadas num horizonte indefinível de tempo. A promessa do futuro radioso já não encontra muitos compradores nos supermercados eleitorais, e o cidadão quer que lhe digam claramente o que vai ser servido, como, quanto vai custar e quem vai pagar a conta. Isto vale, obviamente, não apenas para a esquerda, mas é na esquerda que o discurso ideológico ainda encontra almas cândidas e receptivas.2) Retórica: O cidadão, uma vez consumado o contrato eleitoral, apreciaria ver o serviço realizado, se possível de imediato,ou pelo menos com alguma previsão de conclusão. Aquele discurso de que "estamos revisando o quadro regulatório", de que "vamos definir o novo marco conceitual", ou de que "estamos inserindo esse problema no novo projeto nacional", tudo isso soa muito artificial e distante, quando não diretamente falso e enrolador, como muitas vezes parece (ou pode) ser. Pior ainda quando as explicações pelo atraso se fazem com aquelas desculpas esfarrapadas do tipo "estamos agilizando os procedimentos" ou "todas as providência estão sendo tomadas para uma pronta implementação desse programa". O cidadão pode pensar que está sendo logrado ou embromado, sobretudo quando a transparência sobre esses tais "procedimentos" é nula ou próxima de zero.3) Programa indefinido: Quais são, de fato, as políticas oficiais da nova maioria? O distinto público foi deixado em plena bruma política e econômica, daí a existência de tantos interrogantes, nas próprias fileiras do partido majoritário, e de tantos manifestos de oposição econômica nas hostes dos intelectuais gramscianos. Eles se sentiram legitimamente logrados, sobretudos ao constatar que os banqueiros nacionais e os especuladores de Wall Street estavam tecendo elogios à nova política econômica, que de NEP só leva o nome, pois não há notícia de que os manuais de operação e controle tenham sido de fato substituídos. Políticas nacionais ou setoriais permanecem vagas ou apresentam lenta implementação, sem que a sociedade saiba o que virá pela frente. No plano interno, ao não ter ocorrido nenhum "Bad Godesberg" – um congresso de revisão da doutrina fundamental –, os militantes se sentem, como é seu direito, confusos e desorientados. Por disciplina, continuam a atuar como antes, mas o entusiasmo já não é o mesmo. 4) Prática errática: Tantas medidas provisórias, tantas comissões temáticas, tantos grupos de trabalho, tantas conversas em petit comité, tantas reuniões com as bases e com os movimentos populares, enfim, os esforços não foram poucos, e as horas investidas no "esclarecimento" de uma nova política ou programa testemunham o real esforço empenhado na solução de um problema ou em fazer avançar uma causa. Os resultados parecem ter ficado aquém das esperanças e apenas um exemplo bastaria para evidenciar as idas e vindas no terreno prático: a legislação sobre transgênicos (que a rigor já existe e poderia ser implementada imediatamente, se houvesse decisão política para tal). Estas são características gerais que podem ter contribuído para afastar a classe média da nova oferta conduzida com algum barulho de mídia e grandes doses de marketing para sustentar a versão 2004 do mesmo produto já oferecido em 2002. Pode-se dizer que, desta vez, os consumidores foram mais cautelosos na escolha dos produtos e que a estratégia de sedução apresentou alguns outros problemas que não tinham sido previstos pelos líderes da campanha. Quais seriam esses problemas e o que pode ter induzido a classe média a deixar o produto na prateleira? Seguindo a lista seqüencial, vejamos alguns desses problemas, no seu enunciado mais simples:5) Ilegalidades toleradas: A "indústria das invasões" orquestrada pelo MST e outros bolcheviques desgarrados, inclusive em terreno urbano, constitui apenas a face mais visível de um clima de descontrole e de tolerância com os abusos perpetrados por notórios inimigos da "burguesia" e da "pequena burguesia", que manifestamente não apreciam esses atentados ao "direito sagrado da propriedade". Qualquer que seja a justificativa para a leniência demonstrada em relação às invasões, inclusive de terras produtivas, em política não há ação sem custo, político ou social. 6) Aparelhamento do Estado: Provavelmente não deve ser maior do que o que era conduzido em administrações anteriores, sob a égide de partidos da "direita", mas o fato é que há uma percepção social de que os primeiros, segundos, terceiros e quartos escalões da máquina pública foram "invadidos" por uma massa de militantes convertidos em funcionários, cuja função não é apenas fazer rodar a roda do Estado, mas também as engrenagens do partido. Deve ter pesado na imagem pública da nova administração, que também promoveu um real crescimento do número total de funcionários em muitos anos: certa ou errada, justificada ou não, a decisão repercutiu não apenas aos olhos do público externo, mas igualmente no plano das despesas públicas, que vem experimentando crescimento mais do que "vegetativo".7) Falta de transparência sobre determinados gastos: Não só isso, a própria natureza dos gastos é suscetível de despertar reações no seio da classe média, como pode ter sido o caso do alardeado avião presidencial. A recusa em tornar visíveis, na Internet, determinados gastos do gabinete presidencial, ou dos gastos pessoais feitos na residência oficial, vai provavelmente custar mais caro do que o próprio montante das despesas, e de fato já deve ter sido descontado nos resultados eleitorais. A questão pode ser mais de ordem moral do que de natureza material, ou financeira, mas o fato é que o antigo partido da ética e da transparência apareceu subitamente nu, e não soube esconder suas vergonhas (ou melhor, soube, mas isso fica mal de toda forma). Agora que o estrago já foi feito, fica difícil voltar atrás, mas essa fatura vai ser novamente cobrada em 2006. Melhor começar a preparar uma resposta convincente. 8) Assistencialismo suicidário: O suicídio, na verdade, só existe para as contas públicas, porque do ponto de vista das famílias beneficiadas – muitas dotadas de conta em banco e com carro na garagem – ou na visão política de quem concebeu os programas, a estratégia de perenização da assistência é perfeita: uma mão lava a outra. Chegar a 2006 com 11 milhões de famílias assistidas consistirá, simplesmente, num dos mais importantes programas de transferência de renda de que se tem notícia em todo o mundo. Em população, será equivalente a uma Argentina inteira, toda ela dotada de cartões magnéticos que permitem uma mesada mensal garantida. Trata-se de uma estratégia perfeita para garantir um exército permanente de assistidos que, junto com o outro exército envolvido nas operações – assistentes sociais, membros dos conselhos de controle, prefeitos interessados em fazer o programa render politicamente e outros –, garante, por outro lado, um formidável curral eleitoral. Tudo isso é muito meritório e pode ter reais razões de existir, começando pelo fato de que o Brasil conta, efetivamente, com um número anormalmente elevado de pobres e miseráveis. O problema é que nossa classe média, que é quem de fato paga a conta, via imposto de renda ou outras taxas e contribuições, pode não achar bonito um sistema que preserva um número estável – talvez até crescente – de assistidos que estão ali mesmo para justificar a existência do programa. Ou alguém acha que em 2006 ou em 2007 será possível anunciar que acabou a brincadeira? Os interesses criados em torno dessa formidável máquina de produzir pobres serão muito grandes e aí o desastre já está feito. 9) Indústria das indenizações: A última safra de decisões da douta comissão nacional de reparações a anistiados políticos e outras vítimas da ditadura militar foi especialmente generosa com quem menos merecia receber recursos públicos, "o seu, o meu, o nosso dinheiro", como diria um ex-banqueiro-central. Partiu-se da suposição de que aquele jornalista famoso pela sua oposição (retórica) aos governos militares acabaria por galgar todas as posições possíveis naquele jornaleco de oposição, e que lá chegando ele teria direito a salários milionários, uma vez que o jornaleco se teria convertido numa vibrante folha de opinião, de alcance nacional. Daí ao montante da "ajuda de custo" e à pensão até a morte é uma simples questão de matemática: basta calcular os "salários cessantes", mais os vencimentos atualizados e, voilà, estamos na faixa de 1,5 milhão de reais de indenização e uma pequena pensão de 20 mil mensais. Já se calculou quantas bolsas-família seria possível transferir aos mais pobres com essa dinheirama toda? A classe média incorporou mais essa conta na sua calculadora. Os resultados também serão cobrados no próximo pleito.

10) Estradas, hospitais, escolas, portos, impostos, salários etc., etc., etc.: Existem, ainda, vários etceteras, mas não vale a pena entrar em cenas constrangedoras do ponto de vista da distância entre o prometido e o realizado. A oposição de esquerda tende a acusar o superávit primário e o cumprimento de metas com o FMI como os dois bodes expiatórios dessa falta de recursos do setor público para os investimentos e gastos correntes necessários ao bom funcionamento da infra-estrutura e dos serviços públicos mais elementares. A verdade é que, mesmo sem o constrangimento dos saldos para o pagamento da dívida pública, a estrutura de gastos do governo há muito já vinha apontando para o esgotamento das possibilidades orçamentárias. O assunto, obviamente, ultrapassa a responsabilidade do partido no poder, tanto porque isso faz parte da chamada "herança maldita", tanto pelo lado das despesas, como pelo lado, mais doloroso para a classe média, das receitas. O desastre vem sendo acumulado ao longo de anos e anos de irresponsabilidade fiscal – a despeito mesmo da LRF – e de imprevisão quanto ao itinerário futuro das contas públicas (que, modestamente, apontam para um desastre ainda maior, mormente pelo lado da previdência). Independentemente, porém, do problema estritamente fiscal, ou orçamentário, muitas das lacunas em matéria de estradas ou outras obras de infra-estrutura podem ser debitadas à ineficiência administrativa e à pobre gestão pública. Mais um problema a ser colocado na conta do partido no poder.

Com isso chegamos a uma lista razoável de questões que podem ajudar a explicar, se não a justificar, o que, afinal, deu errado. Não estou considerando aqui aqueles problemas derivados de certos comportamentos autoritários que foram revelados em alguns debates públicos de duvidosa legitimidade política, como o triste episódio do jornalista americano, o caso da comissão nacional de controle sobre a melhor forma de se fazer um jornal ou a agência pública de orientação audiovisual, todos casos que certamente assustaram a nossa classe média de ordinário tão pacata.Na verdade, o problema mais relevante, que foi destacado antes e durante o recente experimento eleitoral, foi a percepção, justificada ou não – não cabe discutir isso agora –, de que estaria em curso um processo de monopolização do poder político por um partido dotado de aparentes qualidades messiânicas e outras tantas virtudes salvacionistas. Ora, o que a classe média menos pretende é que alguém salve o Brasil, ou o mundo, em seu nome, mas sem lhe consultar realmente quanto aos meios e métodos empregados. Não se trata de paranóia, mas a classe média ficou temerosa de que a extrema concentração de poder nas mãos de um único partido – que por certo não age como partido único – seria prejudicial ao bom equilíbrio do sistema político, e ela tratou de corrigir esses "desvios de conduta". Pode ser uma percepção errada, mas é uma percepção, dotada de legitimidade relativa, e como tal ela deve ser considerada pelos estrategistas do jogo político-eleitoral. O fato é que são muitos os exemplos de questões de real impacto na vida pública que chocaram a ordeira e pacífica classe média que, como dito anteriormente, é quem decide eleições neste país de ordinário igualmente ordeiro e pacífico.

Não se poderia esperar que ela não reagisse, com as armas de que dispõe, que são geralmente constituídas pelos artigos de jornal – um indicador razoável, e antecipatório, de suas percepções – e pelo voto a cada dois anos. Cabe aos dirigentes políticos perceber esses sinais de descontentamento e tentar administrá-los da melhor forma possível, se necessário antecipando-se a desastres como este que acaba de ocorrer (e que ameaça repetir-se em 2006). Quero crer, pessoalmente, que a lição, mesmo não admitida de público – et pour cause –, foi sentida, compreendida, absorvida e será transmutada na prática nos próximos 24 meses. A primeira condição para que isso ocorra, porém, é uma exata compreensão do que ocorreu, das causas reais do desastre (que a rigor não foi tão dramático assim), de suas conseqüências políticas, e que se decida, então, atuar em conformidade com as lições adquiridas dessa primeira experiência de comando em tempo real. Todos, homens ou partidos, têm de, em algum momento, enfrentar o seu batismo de fogo, em condições de combate efetivo. A despeito do que se crê habitualmente, o batismo de fogo do PT não se deu nas eleições de 2002, mas está se dando agora no exercício do que se convencionou chamar de suprema magistratura do país. O partido tem tudo para honrar seus compromissos com uma real mudança nas condições de vida das populações mais humildes – via programas de emprego e via investimentos em infra-estrutura, saúde e educação –, assim como ele dispõe das melhores condições possíveis para administrar a chamada "coisa pública" de modo ético e responsável. Estes são os objetivos mais relevantes de sua missão histórica nacional: promover um processo de crescimento sustentável e sustentado, com pleno atendimento da responsabilidade fiscal, redução significativa da desigualdade social e dos desequilíbrios regionais, preservando os valores da democracia e, se não for pedir muito, da livre iniciativa.

É sabido que persiste, de forma difusa e até inconsciente, no seio do partido majoritário, uma leve desconfiança do mercado e da livre iniciativa, assim como persiste, de forma mais consciente e deliberada, um excesso de confiança nas virtudes promotoras, indutoras, corretoras e até salvadoras do Estado e da ação dirigida, com ou sem planejamento de longo prazo. Trata-se de outra herança intelectual, recebida de outras eras, que ainda não foi equacionada de modo satisfatório seja pelo partido dominante, seja pelo governo en place.Impulsos salvacionistas são inevitáveis nas circunstâncias políticas em que viveu o Brasil no último meio século – com crises, revoluções e golpes – e eles nem se reduzem ao espectro de esquerda na vida política nacional. Existem vários salvadores de direita, também, que são igualmente corrosivos do ponto de vista da liberdades econômicas e da boa gestão da coisa pública. A sociedade parece estar amadurecendo do ponto de vista político, tanto é que o recente experimento eleitoral constitui uma prova de vigor democrático. Ela ainda precisa evoluir do ponto de vista da economia e da gestão pública, duas áreas onde são notórias nossas carências, aliás refletidas nos péssimos indicadores educativos e de bem estar social. Não é certo que essas carências sejam preenchidas nos próximos anos, nem é certo que o Brasil se torne muito diferente do que é hoje, num futuro de médio prazo. Nossas deficiências são enormes e os recursos disponíveis para corrigir as mais gritantes iniqüidades são notoriamente insuficientes: o setor público é o menos propenso a liberar investimentos para sanar essas iniqüidades, o que recomendaria trabalhar em acordo com investidores privados – nacionais e estrangeiros – na busca das soluções ideais.

Talvez essas soluções passem pelo tal de "projeto nacional", tão apregoado e alardeado durante anos e anos de combate oposicionista, e ainda agitado regularmente nos encontros mais ou menos acadêmicos que continuam a ocorrer no interior do governo.Pode até ser, mas dificilmente esse projeto nacional vai sair como obra de consenso nos próximos dois ou vinte anos. Não estou sendo pessimista, apenas reconhecendo que entre o "projeto nacional" do MST e o da Sociedade Rural Brasileira ou, para dar outro exemplo, entre a política de desenvolvimento do PSTU e o da burguesia industrial vai uma enorme distância que não será fácil preencher. Em algum momento, o dirigente precisa decidir: ele não pode ficar achando que sementes transgênicas vão de fato esmagar a pequena propriedade agrícola, como apregoa o MST, ao mesmo tempo em que promete condições ótimas de trabalho no campo para o agronegócio de inspiração e motivações abertamente capitalistas. São dois universos à parte e não tenho certeza de que haverá conciliação entre eles. Assim se dá na maior parte dos casos: decisões de despesas têm de ser tomadas no momento certo, e elas ferem outros interesses que não foram atendidos.

O errado não é decidir, mas sim não decidir. Por certo, a decisão necessita ter o melhor embasamento técnico e a mais sólida percepção de que aquilo corresponde a uma demanda social legítima, ainda que nem todas as demandas sociais possam ser atendidas. A sociedade sabe premiar a decisão tomada nessas condições e reconhecerá o bom gestor nas próximas eleições. Ela só não gosta de se sentir enganada ou ter aquela indefinida sensação de que está comprando gato por lebre. Mesmo as melhores embalagens eleitorais precisam corresponder a algum produto efetivamente útil e dotado de reais qualidades. A propaganda sozinha não se sustenta. Esta talvez seja a melhor lição a ser tirada do escrutínio eleitoral de 2004

Publicado na Revista Virtual Espaço Acadêmico
http://www.espacoacademico.com.br

Paulo Roberto de Almeida (*)
paulo_almeida[arroba]terra.com.br
(*) Doutor em Ciências Sociais e autor de vários livros na área diplomática e das relaçoes internacionais



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