O que deu errado?: uma parábola eleitoral



What Went Wrong?, para os que acompanham esse tipo de literatura, é o título de um aclamado livro (publicado no final de 2001) do orientalista americano Bernard Lewis, que se dedica a explorar o impacto do Ocidente nas sociedades do Oriente Médio. O famoso estudioso das sociedades árabo-islâmicas discute a incapacidade destas últimas em realizar seu aggiornamento. De fato, os países da região não foram capazes de operar sua adaptação bem sucedida aos requisitos da modernidade tecnológica, cultural, científica e política, processo experimentado pelo Ocidente a partir do século XV e que o levou a dominar (e de certa forma a humilhar) as sociedades do arco islâmico.

Durante muitos séculos, o mundo islâmico – como, em outro diapasão e em outro contexto histórico, também o mundo chinês – esteve na vanguarda dos avanços militares e do poderio econômico, o que fez expandir-se de modo contínuo durante muito tempo por quase todo o território do antigo império romano do Mediterrâneo. A Europa ocidental era, então, uma das fronteiras da barbárie, e não poderia competir com o Islã em matéria de artes e ciências. A partir de um certo momento, porém, tudo deu errado, e o Ocidente acumulou vitória sobre vitória, não apenas no campo militar, mas no social, no econômico e no cultural igualmente. O que deu errado no Oriente Médio, o título do livro no Brasil – sem a interrogação do resumido título original –, examina as respostas, em geral passivas ou puramente reativas, dadas pelo Islã ao novo desafio "civilizacional", para concluir que, efetivamente, muita coisa deu errado, tanto no plano interno – das relações sociais, inclusive do ponto de vista do papel da mulher – como no externo, caracterizado pelas reações improvisadas à pressão ocidental. Numa avaliação global – e isso explica porque a decadência ainda continua –, o Islã não percebeu, de fato, o que deu errado consigo mesmo, daí as repostas caóticas, no limite do desespero, que ele continua a dar ao desafio do Ocidente.

Em outros termos, o declínio vai continuar por um certo tempo mais.Pois bem, não é a decadência islâmica ou a preeminência ocidental o objeto deste ensaio, mas tão simplesmente algo mais prosaico e mais próximo de nós: o que aconteceu para que o PT sofresse uma humilhante derrota nas eleições municipais de 2004? Em suma, o que deu errado?Sei muito bem que inúmeros comentaristas políticos, a começar pelos do próprio partido, poderão argumentar que, longe de ter sido derrotado, o PT, na verdade, cresceu e se expandiu nessas últimas eleições, mais do que dobrando seu número de prefeituras bem como o volume total de votos recolhidos no escrutínio. Tudo isso é verdade, e de fato o PT converteu-se no – ou continua a ser, computado o pleito presidencial de 2002 – principal partido político nacional, tanto em termos de estrutura, como no que se refere à sua base de apoio social. A despeito disso tudo, creio que se pode falar em acachapante derrota do PT. Isso ocorreu nos seus principais redutos e em diversos outros que ele imaginava conquistar ou reter. Tudo isso pode ser "normal", isto é, próprio do jogo eleitoral, mas isso não diminui o amargo sabor de derrota que ainda deve pesar na consciência de vários dirigentes e de milhares de militantes pelo Brasil afora. Reveses políticos eram até admitidos, mas essas derrotas exemplares, definitivamente, não estavam previstas no programa.

O que é pior é que, como ocorreu com as sociedades do Islã, o PT e seus militantes não parecem saber o que é que, finalmente, deu errado para que se consumasse uma tão importante derrota eleitoral, que é, também, política e moral. Não pretendo concorrer com os analistas políticos da academia ou com os exegetas do próprio partido e não tentarei levantar todos os fatores causais, todos os elementos explicativos que permitiriam diagnosticar a extensão da derrota, como tampouco pretendo separar e avaliar os aspectos positivos e negativos evidenciados neste último pleito (que se segue, diga-se de passagem, a uma série impressionante de vitórias e a um acumular constante de saldos eleitorais, nas últimas duas décadas). Deixo essas tarefas a esses intérpretes oficiais e acadêmicos da conjuntura política, alguns mais realistas do que outros, os "externos" mais isentos e frios, obviamente, do que os "explicadores internos". O próprio partido já terá feito, ou continua a fazer, uma análise "fria" da situação pós-eleitoral e de suas implicações para as próximas etapas da luta político-partidária, que não necessariamente virá a público por óbvios motivos de estratégia política. As "racionalizações" sobre o ocorrido sempre serão otimistas, os resultados declarados "favoráveis" ao partido em qualquer hipótese e a mensagem oficial para a militância será aquela mesma que se espera: acumulamos pontos, estamos revendo os aspectos insatisfatórios, mas aprendemos na vitória e nas derrotas e continuamos a ter confiança no futuro do partido e no sucesso último do seu projeto para o país.

Pois bem: se o partido não conseguir chegar a uma explicação satisfatória sobre o que deu errado neste pleito, ele corre o risco de sofrer novas frustrações no futuro imediato, o que também compreende o importante enfrentamento de 2006. Sem pretender deter a chave explicativa para o que aqui foi chamado de acachapante derrota do PT, pretendo apenas e tão somente debruçar-me sobre o que me parecem ser os fatores causais mais importantes do fracasso eleitoral, que são também os mais prosaicos. O insucesso se deve, tão simplesmente, ao fato de que o eleitor, mestre soberano do seu voto, denegou apoio ao PT, aliado ao segundo fato, evidente, este também, de que o partido não soube convencer o eleitor a emprestar-lhe o seu voto. Elementar, meu caro Watson? Talvez, mas ainda assim é preciso que essa falta de conjunção entre a denegação de votos, de uma parte, e a incapacidade de atrair votos, de outra parte, receba alguma explicação convincente, do contrário não poderemos determinar o que, efetivamente, deu errado nesse pleito e o que poderia ser feito para inverter o curso da parábola na sua trajetória declinante.A alusão geométrica à parábola parece fora de propósito, uma vez que, pelo número de votos e pela extensão do território agora coberto por alcaides e edis do PT, o curso ainda parece ser ascensional, o que desmentiria esse tipo de análise pessimista.

Deve-se lembrar, porém, que o próprio da parábola é apontar até um certo ponto para o alto, quando, na verdade, o movimento descendente já começou a desenhar tendencialmente a sua curva.Com efeito, o conceito de parábola tem, segundo os dicionários, dois significados distintos. No campo da matemática, ele representa uma curva oblonga, com um pináculo no centro e uma linha em cada lado, sendo a primeira ascendente e a segunda descendente. No terreno da literatura (ou da religião), ele significa uma estória bíblica, contendo algum ensinamento de fundo moral como conclusão. Ambos os conceitos parecem aplicar-se à trajetória do PT enquanto força eleitoral na vida política brasileira. Por um lado, sua aceitação pública parece sinalizar, efetivamente, o da parábola matemática, tendo atingido o ápice de seu sucesso nas eleições de 2002 e iniciando agora o que promete ser um longo e doloroso declínio. Por outro lado, a fábula da ética e da moralidade, que eram ostentadas pelo partido, parecem ter se esfumaçado na voragem das peripécias e alianças contraídas ao longo dos últimos vinte meses de comando da vida política do país. Assim, quando o PT pensou que ainda estava subindo, ele já estava, de fato, descendo a rampa. O que deu errado?, perguntamos mais uma vez. Alguns setores do partido, aqueles identificados com as teses da esquerda, responderão pela via já repisada do abandono das teses tradicionais do PT nos campos econômico e social, quais sejam, as da ruptura com a política econômica neoliberal, a escolha de uma abordagem claramente desenvolvimentista na definição das principais políticas macroeconômicas e setoriais, a ruptura com o FMI e o setor financeiro, enfim, o coquetel tradicional de medidas intervencionistas e dirigistas que sempre fizeram sucesso no imenso arraial socialista que constitui a clientela política mais evidente do partido da mudança. Quem, porém, estiver achando que a população "rejeitou o modelo neoliberal do governo federal" está incorrendo em grave erro de avaliação. Outros setores tenderão a privilegiar os fatores locais – como "fadiga do material" – ou mesmo a personalidade de determinados candidatos – "arrogância", por exemplo – para justificar a recusa do eleitorado em confirmar ou sufragar aqueles que lhe foram submetidos pela máquina do PT, inclusive apoiados em grandes doses de marketing eleitoreiro.

Quem tende a privilegiar essa via explicativa também incorre em grave de avaliação e não está pronto a entender o recado das urnas.Minha explicação tentativa é de ordem puramente política, ou se quisermos de natureza "psicológica". A população não votou contra este ou aquele candidato do PT; os eleitores votaram mesmo contra o PT, inclusive e principalmente naquele caso exemplar de uma militante local que se impôs à custa de vontade e dedicação, sem o aval e sobretudo contra as decisões da cúpula do partido. Neste caso também, assim como nos dois grandes testes eleitorais em redutos tradicionais do poder petista, os eleitores dos grandes centros desenvolvidos votaram contra o partido – ou contra uma "certa idéia de partido" –, numa clara demonstração de que pretendiam transmitir uma mensagem que ultrapassa os condicionantes locais das administrações municipais.Pois bem: grande parte dos eleitores dos centros mais educados e mais ricos do país votou contra o PT, numa demonstração clara de que estava se posicionando contra um determinado "projeto de poder", não necessariamente contra este ou aquele candidato. Tanto isso é verdade, que as derrotas sofridas no primeiro turno também corresponderam a um recuo no número de vereadores eleitos nos principais centros envolvidos nas disputas emblemáticas (grandes capitais do Sul e Sudeste, com exceção de Belo Horizonte). Vou apresentar minhas teses de modo relativamente sintético e não vou tentar, neste momento, embasá-las em dados empíricos muito elaborados ou retomar as opiniões e comentários já enunciadas por outros observadores da conjuntura política. Meus argumentos quanto ao fracasso eleitoral do PT estão resumidos na fórmula "simplística" que adotei acima: o eleitor negou o seu voto ao PT e a máquina do partido – ou sua mensagem – revelou-se incapaz em conquistá-lo.Não faltam, é verdade, dados para apoiar todo o tipo de análise: o PT é o partido mais votado do país, mas o fato é que o PSDB vai governar 25 milhões de pessoas e o PT apenas 17 milhões (próximo do PMDB, que no entanto detém maior número de prefeituras).

Mas, o fracasso se evidencia na ausência de qualquer comando petista – à exceção da já referida capital mineira – nas regiões mais ricas e nas cidades mais importantes do país. Mais derrotado do que o PT foi o PFL, mas este é um fenômeno que se confunde também com o comportamento do eleitor: houve uma rejeição dos velhos "ismos" da política brasileira, o fisiologismo, o coronelismo, o caciquismo e outras práticas de tempos passados. O fenômeno do Rio de Janeiro não tem nada a ver com o PFL, assim como a mudança em Porto Alegre tem pouco a ver com a capacidade de penetração do PPS. Independentemente, porém, de números e de fatos, o que o resultado das urnas revela é uma realidade singular, que deveria ser pensada pelos dirigentes do principal partido brasileiro, cuja trajetória de lutas se deu em torno de um projeto de nação e de um modo de se fazer política que inovavam em relação às velhas práticas políticas brasileiras. O que a maioria dos eleitores e dos cidadãos brasileiros aspiram é um país solidário, com menos pobres, menor desigualdade distributiva, mais segurança e bem estar, melhores condições de saúde e educação, em suma, a esperança de um futuro melhor, para si mesmos e seus filhos. Adicionalmente, a maior parte da classe média, que é que forma opiniões e de certa forma decide o voto no Brasil, deseja um sistema político menos corrupto, com legítimas considerações de ética na (e da) política e de moralidade no trato da coisa pública tendo precedência sobre os velhos e surrados truques da esperteza e do conchavo.Estas eram (e são) aspirações sinceras e legítimas da maior parte do povo brasileiro que por um momento o PT pareceu encarnar.

Considerações programáticas, isto é, de orientação política e econômica, têm um estatuto à parte e são igualmente importantes, mas suas manifestações concretas ou específicas, sob a forma de programas de campanha, podem ser acomodadas em plataformas eleitorais que cumprem o seu papel de "guia" momentâneo no momento de arrebanhar votos – de modo sincero ou enganoso, não cabe agora discutir –, e não definem, portanto, o que eu chamaria de "modo de ser" do partido.O "modo de ser" petista, combinado a uma reconversão pragmática do velho programa socialista e distributivista em uma plataforma moderna, respeitadora dos contratos e das realidades econômicas, em um determinado momento casou-se com a vontade da classe média brasileira de experimentar um outro modelo, de partir para uma aventura de mudança com garantia de preservação do essencial. Esse "contrato" entre a classe média e o PT foi feito na campanha presidencial de 2002, quando se disse que "a esperança venceu o medo". Pois bem, creio que o "contrato" se desfez em 2004 e a classe média, que tinha perdido o medo, parece agora ter perdido a esperança, ou talvez ela tenha medo de assistir à repetição do que já viu neste intervalo de tempo. E o que é que a classe média assistiu que a fez dar agora as costas ao partido da esperança, ao "modo petista de ser" e de governar?O que eu vou dizer não é gentil, não é bonito e, sobretudo, vai enfrentar uma dura discordância, em primeiro lugar daqueles que acreditam que o PT tem, sim, uma missão a cumprir no Brasil, e que essa missão se confunde com a eliminação das injustiças sociais, das históricas desigualdades que caracterizam a iníqua sociedade brasileira, com a construção de um Brasil mais solidário, quiçá menos capitalista e menos inserido nas engrenagens do sistema financeiro internacional, provavelmente um Brasil com mais conselhos populares e menos oligarquias rentistas e exploradoras, seja no campo, seja nas cidades.

Ou seja, o projeto do PT, ou pelo menos a percepção de um "projeto nacional" por parte da maioria de seus seguidores, se confundia com alguma missão messiânica e salvadora, que alguns pretendiam implantar pela velha via leninista da revolução e outros – provavelmente a maioria – pela via gramsciana da construção da hegemonia cultural e política sobre a sociedade. Posso estar fazendo alguma caricatura do processo, mas é assim que as coisas eram (e são) vistas, dentro e fora do partido. Pois bem, sinto dizer com uma tal rudeza de expressões, mas esse projeto soçobrou, fez água, foi para o espaço, fez "tilt", deu dois suspiros e depois morreu (menos para os true believers, mas esses são minoria, mesmo dentro do partido). A classe média simplesmente não "comprou" esse projeto, quando ele lhe foi oferecido nos supermercados eleitorais que se sucederam à redemocratização política de 1985 e ele permaneceu nas estantes, invendido e invendável. Mas ela adquiriu sua versão "light", a tal de "mudança com justiça social", que lhe veio travestida com todos os cuidados de praxe no leilão de 2002. Ela olhou o produto – que vinha com a bula da "Carta ao Povo Brasileiro" –, pensou um pouco, olhou em volta, viu que muitos estavam comprando, embalados numa bela campanha de marketing, disse para si mesma "vamos experimentar" e colocou no carrinho de compras.

Dois anos depois, a classe média não devolveu o produto porque a garantia já tinha expirado, mas ela o rejeitou nos pontos de venda mais importantes, a despeito de mais uma bela e cara campanha de marketing que pretendia fazê-la acreditar que o produto tinha as mesmas qualidades apregoadas dois anos antes. Todo o problema parece, portanto, residir nas qualidades intrínsecas e extrínsecas do produto em questão, o que caberia agora examinar, pois isto poderia nos ajudar a explicar o que, exatamente, deu errado.O "produto PT", ou o seu "projeto nacional", se distingue, por certo, dos demais produtos dos concorrentes à venda nos supermercados eleitorais, ainda que as dúvidas atuais sejam legítimas quanto à preservação dessas qualidades ao longo do tempo. Quando esse produto era meio tosco e rude, em embalagem precária, cores agressivas e sem qualquer appeal, ele tinha, é verdade, poucos compradores: havia os sindicalistas, os militantes revolucionários e os próprios profissionais do partido, que não faziam grandes exigências de qualidade (eles eram, de toda forma, consumidores cativos do produto). A faixa de mercado era certamente restrita, mas contentava os que pretendiam manter a "beleza natural" e o "apelo exótico" desse produto.Quando se pretendeu passar a uma fatia mais ampla de consumo, atingir, digamos, os estratos "C" e "B" do mercado – ainda que muitos militantes, em especial os da tribo universitária, já fizessem parte desses segmentos –, foi preciso adotar uma estratégia mais sofisticada de venda, na qual se procurou combinar fiabilidade do material e garantia de sua durabilidade. Isso foi obtido mexendo não apenas na apresentação do produto – sua versão "exterior", digamos assim –, mas em sua própria composição. Foram deixados provisoriamente de lado – ou mesmo, para desprazer de alguns, jogados diretamente na lata de lixo da história – os elementos mais agressivos do antigo projeto revolucionário, para apenas reter aqueles aspectos que eram mais consensualmente gramscianos, cuja aceitação deveria ser obtida na base do convencimento e da indução mercadológica. O sucesso de marketing foi tamanho que mesmo a burguesia nacional se deixou convencer de que, desta vez, o produto era bom e que valia a pena experimentar.

 


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