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COMO COMEÇAR UMA POLÍTICA NO HOSPITAL
Aqueles que pretendem desenvolver uma política hospitalar de controle do fumo devem lembrar-se que boas intenções, por si sós, não garantem ações eficazes. Não é incomum uma política antifumo começar por tentativas voluntariosas de alguém com mais iniciativa. Infelizmente, tais ações, muitas vezes, esbarram na desmotivação dos fumantes e acabam por cair no descrédito geral. Deve-se ter em mente que há todo um processo a ser desenvolvido, possivelmente ao longo de um ou dois anos. Não bastam intervenções isoladas, como determinações de chefias ou uma única palestra contra o tabagismo2. Ao contrário, o processo de banir o cigarro do hospital resultará da integração de diversas formas de atuação.
Essa idéia de um processo de implantação de uma política antifumo é útil, pois implica que cada hospital poderá traçar a sua própria rota, embora o objetivo final seja um só: que o hospital fique completamente livre da fumaça do cigarro. Para que esse processo tenha início, é essencial que a direção do hospital se comprometa seriamente com uma política antitabagista que seja sustentada ao longo de vários anos2-4. A decisão deve ser precedida da percepção da dimensão e complexidade da tarefa, e da consciência de que existirão ganhos e perdas, avanços e recuos, no curso de sua implementação. Como parte desse compromisso inicial, deve-se compreender que a nova política hospitalar deve servir para todos, da diretoria e chefes de clínicas ao mais humilde funcionário. A política deve incluir, ainda, todos os visitantes — mesmo convidados ilustres. As normas em relação aos pacientes devem ser explicitadas antes da internação. Unidades psiquiátricas podem, de acordo com a necessidade, requerer um cronograma especial de implementação, mas um estudo mostrou que mesmo esse tipo de clínica pode adaptar-se rapidamente às novas condições2.
Tomada a decisão inicial de se implantar essa política antifumo, ela deve ser divulgada amplamente, por meio de uma carta de intenções, para que todas as pessoas e setores do hospital tomem conhecimento e possam opinar. Para garantir que a política atenda, de modo justo, aos interesses das diversas pessoas envolvidas, costuma-se recomendar a formação de uma comissão de representantes. Essa comissão deve ser a mais abrangente possível, com representantes dos diferentes níveis hierárquicos, homens e mulheres, fumantes e não-fumantes. Seu objetivo é ouvir os diversos setores e captar as diferentes necessidades das pessoas. Embora, possivelmente, não se possa atender a todos os interesses, todos deverão ter o direito de expressar suas opiniões e sugestões. Para evitar mal-entendidos, deve estar claro que o objetivo final de transformar o hospital em um ambiente livre de cigarros não está sendo posto em discussão.
Uma vez decidida a criação de um hospital livre da fumaça de cigarros, algumas decisões devem ser tomadas. A primeira refere-se à opção entre proibição total dos cigarros ou limitação parcial de seu uso. O banimento total é preferível por ser mais abrangente, claramente definível e mais facilmente fiscalizável. No entanto, por ser uma atitude mais drástica, o banimento repentino está mais sujeito a oposição. Desta forma, para evitar o desencadeamento de uma resistência muito grande, pode-se adotar uma política de banimento gradual, começando-se por restringir o fumo a locais designados, progredindo até a proibição total.
Existem algumas alternativas quanto à forma de se restringir parcialmente o fumo: demarcação de áreas para fumantes, determinação de horários em que o fumo é permitido, e permitir o fumo apenas quando houver consenso. A demarcação de áreas específicas para o fumo é, provavelmente, a alternativa mais comum. As áreas escolhidas devem ser bem ventiladas. Não se deve escolher áreas de uso comum, como salas de repouso, refeitórios, banheiros ou áreas de passagem. A forma mais adequada é a limitação do fumo a uma sala específica, o chamado "fumódromo". Esta alternativa tem a grande vantagem de ser facilmente fiscalizável. Seus pontos negativos são a ocupação de um espaço provavelmente precioso e implicar no deslocamento dos funcionários até um local eventualmente distante. Outro inconveniente é que obrigar os fumantes a se afastarem do local de trabalho pode dificultar a fiscalização de seu trabalho e atrair críticas dos não-fumantes que continuam trabalhando.
A limitação dos cigarros a horários específicos tem a vantagem de que estes horários são previsíveis, não acarretando perda de tempo de trabalho. Freqüentemente, adotam-se horários de refeições e outros intervalos como os períodos em que é permitido fumar. Uma desvantagem é que, se não complementado por outras medidas, esse sistema pode submeter os não-fumantes à exposição maciça à fumaça em alguns horários. Embora pareça simples, permitir o fumo quando houver consenso entre os presentes esconde algumas armadilhas. Muitos não-fumantes terão dificuldade de dizer "não", quando confrontados com um número expressivo de fumantes, ou com fumantes que ocupem graus mais altos na hierarquia. Além disso, nem todos os fumantes sabem ouvir um não, o que pode dar margem a atritos.
O próximo passo no planejamento é a comunicação da decisão ao corpo de funcionários e a realização de um inquérito a respeito do tabagismo na instituição. Os objetivos desse inquérito são: 1) determinar a prevalência de tabagismo na instituição, bem como o perfil de fumantes e não-fumantes; 2) ajudar a aumentar a informação e percepção dos funcionários em relação ao problema; 3) identificar áreas-problemas que não tenham sido antecipadas; 4) explorar focos de preocupação em relação a pacientes e funcionários fumantes; 5) avaliar o interesse por formas de auxílio para os fumantes que não consigam parar de fumar. Embora, provavelmente, nem todas as sugestões possam ser atendidas, a realização do inquérito garante que todos sejam ouvidos, contribuindo para diminuir eventuais resistências.
Durante a implementação de um programa de eliminação do fumo realizado no Mayo Medical Center2, as preocupações mais freqüentemente apontadas foram: 1) preocupação pelos pacientes que fumam; 2) preocupação com os colegas fumantes; 3) necessidade de programas de auxílio à cessação de fumar; 4) preocupação com o modo pelo qual se dariam a fiscalização e implementação da nova política, em especial se as regras seriam as mesmas para toda a hierarquia do hospital; e 5) preocupação de que a política pudesse representar uma violação dos direitos individuais.
A eficiência da implementação desta política dependerá, em grande parte, de que todos estejam suficientemente informados, convencidos e motivados da importância das medidas. Para tanto, deve-se considerar diversos meios de comunicação, como palestras, panfletos e outros tipos de texto, vídeos, grupos de discussão, etc. Deve-se manter distância de um evangelismo exagerado contra o fumo e ressaltar os benefícios para todos de se viver num ambiente livre de fumaça. Bom humor, tolerância e criatividade deveriam permear qualquer iniciativa de comunicação.
O êxito do programa depende da fiscalização por todos os funcionários. Com o passar do tempo, cria-se uma cultura contrária ao uso dos cigarros dentro da instituição e essa fiscalização se torna uma realidade. No entanto, no início da implantação, é preferível que algumas pessoas sejam especificamente responsáveis pela fiscalização das medidas. Esse grupo deve incluir as chefias de clínica, de enfermagem e de serviços auxiliares, inclusive secretaria, manutenção e segurança. É importante que todos os porteiros e funcionários da segurança recebam treinamento para que saibam orientar funcionários, pacientes e visitantes de modo preciso, gentil e firme a respeito da natureza das medidas.
Todas as entradas do edifício devem portar avisos sobre as restrições ao fumo. Todos funcionários, pacientes e visitantes devem estar suficientemente informados sobre a natureza das proibições. Também o interior do edifício deve conter sinalização contra o fumo em todos os recintos. Isso evita que alguém possa alegar desconhecimento ou se ofender ao ser advertido para não acender ou apagar um cigarro. Para evitar a saturação de informação, deveriam existir vários formatos e mensagens nos cartazes, alteradas a intervalos regulares.
Como no planejamento estabeleceu-se a idéia de um processo, a implementação também deverá seguir alguns passos. Deve-se criar e comunicar, progressivamente, a expectativa e determinação de uma nova política a ser implementada. Essa política deveria ter início a partir de um dia bem definido, mas não muito distante, e que seria amplamente divulgado. Esse dia deveria, também, ter uma certa preparação ambiental, como a retirada de cinzeiros, colocação de flores no local e ampla sinalização de restrições ao fumo.
Deve-se esperar algumas resistências à implementação dessa política. Se essa resistência não for identificada, muitas pessoas passarão a testar a implementação desobedecendo as regras e testando os limites da decisão. Para contornar essa resistência, é importante manter o momentum da implementação. As pessoas com postos chaves clínicos ou administrativos terão papel fundamental nesse estágio como formadores de opinião e modelos de comportamento que servirão para reforçar o entusiasmo pela continuidade das medidas.
Comunicar ativamente aquilo que já foi conseguido, com histórias de sucesso, quer seja de andares do hospital que aboliram completamente o fumo ou de pessoas que pararam de fumar após várias tentativas. Nessa comunicação, deve-se buscar um balanço entre um otimismo de acreditar na justiça e importância da política antifumo e o reconhecimento das dificuldades ainda existentes. Deve ser possível identificar o avanço conseguido sem desanimar com aquilo que ainda deve ser alcançado. As dificuldades que surgem deveriam ser encaradas como novas metas a serem atingidas e não como falhas da implementação.
Alguns setores do hospital podem oferecer uma resistência maior à implementação. Não é incomum que o período noturno — por sofrer menor controle social — resista às mudanças. Mesmo no período diurno, alguns funcionários mais graduados e fumantes já antigos também podem resistir à mudança de hábito. Algumas clínicas, como a Psiquiatria, podem ter maior dificuldade em implementar uma política de proibição total junto aos pacientes. Enfrentar essas resistências não significa um confronto aberto e perseguições com retaliações. Deve-se buscar um clima em que se perceba uma firmeza na implementação da política, mas sem enfatizar as possíveis punições pelo desrespeito constante dessa determinação. Alguns hospitais identificaram pacientes que cancelaram consultas após o banimento total do fumo nas suas instalações2, mas o efeito foi bem pequeno e não chegou a afetar o volume total de atendimento.
Uma área difícil de organizar diz respeito aos pacientes que se encontram internados. A ocorrência de fumo nos quartos e a preocupação dos efeitos dos sintomas de abstinência da nicotina, na condição clínica do paciente, são as preocupações mais comums. Uma forma possível de lidar com essa situação é, em primeiro lugar, organizar uma compilação de todos os pacientes internados que tiveram problemas em ficar sem fumar. Pode-se, também, constituir uma comissão composta de três pessoas para analisar as possíveis exceções (uma enfermeira, o médico do paciente e uma das pessoas da comissão de implementação da política antifumo no hospital). Alguns funcionários reclamam quando ocorre um banimento total do fumo no hospital, pois têm que sair das instalações hospitalares para fumar. Algumas vezes, em condições climáticas extremamente desfavoráveis. Aparentemente, não existe o risco de os funcionários demitirem-se devido a essa política2,3,5.
Como foi salientado no começo do artigo, o preparar-se para um processo de implementação é de fundamental importância para o sucesso de banir o cigarro dos hospitais. Desde que essa preparação ocorra de uma forma realista, levando-se em consideração as características locais do hospital, essa política tem grandes possibilidades de sucesso. O objetivo deste artigo não foi estabelecer regras rígidas a serem seguidas, mas algumas diretrizes empregadas por alguns hospitais norte-americanos (Mayo Medical Center, The Johns Hopkins Medical Institutions), bem como nossa pequena experiência em São Paulo (Hospital São Paulo-EPM, Hospital das Clínicas de São Paulo-USP). A melhor seqüência de procedimentos e os detalhes de implementação devem ser específicos de cada hospital e grupo de profissionais.
Os hospitais devem aproveitar o clima social de debate em relação ao fumo e adotar, o quanto antes, uma política antifumo. O potencial impacto nas atitudes em relação ao fumo da população, decorrentes de uma rede hospitalar e de médicos livres do cigarro, é por demais atraente para adiarmos essas políticas.
1. Doll R, Peto R et al. Mortality in relation to smoking: 40 years observation on male British doctors. Br Med J 1994; 309: 901-10.
2. Hurt RD et al. The making of a smoke-free medical center. JAMA 1989; 261: 95-7. [ Medline ]
3. Stillman FA et al. Ending smoking at The Johns Hopkins Medical Institutions. An evaluation of smoking prevalence and indoor air pollution. JAMA 1990; 264: 1.565-9.
4. Offord KP et al. Effects of the implementation of a smoke-free policy in a medical center, Chest 1992; 102: 1.531-6.
5. Henningfield JE et al. Smoking and the workplace: realities and solutions. J Smoking Related Dis 1994; 5: 261-70.
R. Laranjeira, M.P. Ferreira
laranjeira[arroba]uniad.org.br
Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo — Escola Paulista de Medicina; Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.
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