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O que ele "descobriu", basicamente, depois de ingentes pesquisas e refinadas simulações econométricas, é que ocorreu uma redução geral das desigualdades de renda entre 1980 e 1998 e que a maior parte das disparidades globais são encontradas entre os países, não dentro dos países. Tendo estabelecido funções para a distribuição mundial de renda, ele constatou que, se em 1970 o mundo apresentava uma larga fração da população num renda modal próxima da linha de pobreza — isto é, subsistência à razão de um dólar por dia —, essa fração começou a definhar e o mundo hoje se encaminha para uma "larga classe média", em suas palavras. Tanto as taxas de pobreza quanto o número de pobres decresceram dramaticamente: o critério de um dólar por dia caiu de 20% em 1970 para apenas 5% em 1998 da população mundial, enquanto que pelo critério de dois dólares por dia a taxa reduziu-se de 44% a 8%. Em termos de "volume" humano, isso representou uma subtração de aproximadamente 400 milhões de pessoas ao "estoque mundial" de pobres entre aqueles dois anos. Ou seja, o "dramático e perturbador" aumento da pobreza e nas desigualdades no período recente da globalização simplesmente não ocorreu, ao contrário do que afirmam os anti-globalizadores e mesmo entidades aparentemente sérias e respeitáveis como o PNUD.
Em termos desagregados, as evidências são interessantes do ponto de vista das regiões e países. O exemplo mais ilustrativo da tendência global por ele revelada é obviamente o da Ásia, onde os índices de pobreza caíram de forma espetacular. A China e a Índia, ainda socialistas nos anos 1970, foram os países que mais progrediram do ponto de vista da diminuição da pobreza e da convergência em relação aos indicadores de países mais avançados. Nos EUA, por sua vez, simplesmente inexistem aquelas faixas de renda correspondendo a pessoas que vivem com 1 ou 2 dólares por dia, que constituem as medidas padrões utilizadas pelos organismos internacionais para medir a pobreza. A Indonésia representou a mais dramática mudança na história econômica da humanidade, com redução sensível da pobreza e da desigualdade, mesmo a despeito da crise financeira de 1998, quando o PIB foi reduzido em mais de 15%. A América Latina não foi uma região particularmente feliz em termos de diminuição do número de pobres, embora tivesse conhecido, igualmente, uma certa redução da pobreza, mas em décadas anteriores. No Brasil, os progressos efetuados nos anos 1970 foram freados nos anos 1980 e, nos anos 1990, com exceção de alguns anos, os ricos melhoraram mais do que os pobres.
As pesquisas e regressões matemáticas de Sala-i-Martin confirmam, por sua vez, estudos do economista indiano Surjit Bhalla, para quem a globalização não resultou em taxas menores de crescimento, nem em aumento da pobreza ou da desigualdade, mas ao contrário, numa diminuição sensível das desigualdades mundiais, dos índices de pobreza e num crescimento da renda dos estratos mais pobres, relativamente aos mais ricos. Os interessados em uma discussão mais detalhada sobre as relações entre crescimento, desigualdade e pobreza na era da globalização, assim como nos principais avanços metodológicos introduzidos por Surjit Bhalla podem ler o seu livro Imagine There’s No Country: Poverty, Inequality and Growth in the Era of Globalization (Washington: Institute for International Economics, 2002) ou "ver" uma apresentação feita no Banco Mundial (links: http://www.worldbank.org/wbi/B-SPAN/sub_poverty_globalization.htm e http://poverty.worldbank.org/files/12978_Surjit_Bhalla_Two_Policy_Briefs.doc).
Os trabalhos de Surjit Bhalla são efetivamente importantes pela sua contribuição ao avanço dos métodos de pesquisa em terrenos clássicos da economia política como o da distribuição de renda e riqueza (que não são obviamente sinônimos). Mas ele também não deixa de tocar nas implicações políticas de suas teses, como a questão de saber quem perde com a globalização. De um modo geral, as evidências sobre a convergência entre sistemas econômicos nacionais parecem agora bem estabelecidas, sobretudo do ponto de vista da equalização de salários em níveis similares de produtividade, o que deve beneficiar os mais capacitados no mundo em desenvolvimento (que alguns chamam de burguesia, ou de elite, do Terceiro Mundo). Os únicos, talvez, a perderem com esse processo impessoal seriam os trabalhadores pouco qualificados dos países desenvolvidos e uma difusa classe média que sente que lhe estão sendo retirados os benefícios do "velho" welfare State. São exatamente estes grupos que compõem o grosso da massa mobilizada pelos movimentos da anti-globalização: "velhos" sindicalistas e jovens de classe média, todos eles bem alimentados e já inseridos na globalização. Alguma surpresa nisto?
Todas essas evidências são válidas no plano global, mas elas não resolvem, obviamente, a situação de países ou indivíduos ameaçados pela perda de competitividade e de emprego trazida pelo processo de globalização. O Brasil, reconhecidamente um país "classe média" em termos de renda mundial, se vê ameaçado, como tantos outros, pelo imenso "dumping social" provocado pelo exército industrial de reserva da China, tendo de aumentar constantemente o conteúdo tecnológico de seus produtos ou a produtividade de seus processos produtivos para fazer frente a essa ameaça crescente vinda do Oriente.
Fugir da globalização, ou seja, da abertura aos intercâmbios globais, não constitui resposta apropriada a esse tipo de ameaça, pois isso só nos conduziria à defasagem tecnológica e ao atraso econômico absoluto: os empregos preservados hoje seriam perdidos amanhã, com a baixa da competitividade geral da economia e a pressão interna sobre os custos. Dura realidade, mas a ela só se pode responder fazendo esforços pela melhoria geral da qualidade da nossa força de trabalho. Como regra geral, a exposição à globalização é que é geradora de avanços tecnológicos e de progresso social, não o insulamento e a política do avestruz. De resto, são as classes médias já globalizadas que, por inércia, acomodação ou medo, tendem a recusar a intensificação desse processo, ao passo que os pobres, pouco globalizados, tendem a votar com os próprios pés, emigrando celeremente para os centros da globalização contemporânea. Miragem para alguns, pesadelo para outros, este parece ser o destino da globalização capitalista. Pode-se protestar contra ela, frear-lhe o curso impessoal é que parece difícil.
Não necessariamente, uma vez que todos os processos de interdependência – a fortiori de integração – sempre se dão entre parceiros relativa ou absolutamente desiguais e os mais exitosos são justamente aqueles que mobilizam países em estágios diversos de desenvolvimento.
A geografia e a história distribuíram fronteiras, agrupações humanas, sistemas econômicos e regimes políticos aleatoriamente pelos diversos continentes, não havendo um padrão comum a dois países, mesmo vizinhos. Obviamente, traços civilizacionais e aspectos culturais tendem a aproximar os vizinhos de uma mesma sub-região, mas ainda assim as unidades nacionais diferem bastante em tamanho, recursos naturais, organização interna ou na propensão à inovação e ao progresso econômico e social. O arco cristão deslocou-se ao longo dos séculos, do Oriente Médio ao conjunto da Europa e daí para o Novo Mundo, ao passo que o islâmico expandiu-se na África e na Ásia do Sul, o que não implicou necessariamente em homogeneização dessas sociedades, dos seus estados ou de seus substratos materiais.
Em duas palavras: diferenças históricas e assimetrias estruturais entre as várias formações nacionais são uma constante em qualquer época ou região, sendo as mais importantes aquelas que decorrem do "volume" relativo de cada uma delas e das suas respectivas dotações em termos de poder e riqueza. Algumas dessas dotações são "naturais", outras "herdadas" ao longo dos séculos, outras ainda criadas ou desenvolvidas em períodos históricos relativamente curtos, como alguns exemplos podem demonstrar.
O glorioso Império Britânico representava, ao início do século XX, o maior conjunto populacional, territorial e econômico da história da humanidade, mas ele não durou mais de um século, se tanto. A "massa atômica" da jovem república americana, por sua vez, cresceu continuamente ao longo do século XIX, mas salvo alguns pequenos experimentos coloniais – como no Caribe e nas Filipinas – seu imperialismo foi basicamente econômico e virtual. A Rússia conforma um caso único de crescimento fragmentado: ela expandiu-se tremendamente sob o czarismo, continuou a crescer sob a forma de União Soviética, mas implodiu sem nenhuma glória numa miríade de novos estados independentes depois que o socialismo deu dois suspiros e morreu de esclerose múltipla.
Mais próximo de nós, os sonhos bolivarianos de uma confederação de estados ordeiros deram lugar a instáveis repúblicas caudilhescas, ao passo que a centralização bragantina do Império do Brasil logrou preservar a unidade nacional do maior país sul-americano. Falando do Brasil, justamente, ele tinha, em 1960, o dobro da renda per capita da Coréia do Sul, ao passo que os coreanos ostentam hoje um renda média bem superior à dos brasileiros, aliás muito melhor distribuída, sem mencionar a excelência do avanço tecnológico coreano.
Independentemente, porém, do tamanho, cor ou religião, o fato é que essas várias formações nacionais passam a interagir entre si, de modo mais ou menos pacífico, até se alcançar, eventualmente, uma eliminação das fronteiras físicas e a unificação dos espaços econômicos nos fenômenos da integração e até mesmo da união. Invariavelmente, todos esses experimentos se dão entre parceiros "desiguais", ainda que, em vários casos, traços comuns de desenvolvimento econômico e social sejam evidentes entre os parceiros. A Comunidade (hoje União) Européia reuniu desde o começo a "enorme" França e o minúsculo Luxemburgo, assim como ela colocou em confronto zonas relativamente ricas como a Holanda e Bélgica e outras bastante pobres como o mezzogiorno italiano. Esses países não esperaram a eliminação das "assimetrias estruturais" entre eles para dar a partida na integração, mas, ao contrário, elas foram sendo corrigidas e eventualmente eliminadas no decorrer do próprio processo. Alguém ouviu dizer que o sul da Itália foi "explorado" pela rica Alemanha, ou que Portugal e Espanha tivessem exigido a mudança de regras da então Comunidade Européia para então decidirem "ingressar" num bloco decididamente "assimétrico"?
Aqueles que agitam o perigo das assimetrias numa futura (e ainda hipotética) Alca acenam precisamente com o princípio do tratamento "diferenciado e mais favorável" que recebem os sócios menores ou relativamente menos desenvolvidos no esquema europeu de integração, para exigir o mesmo tipo de "compensação" no âmbito americano. Não importa aqui as demandas contraditórias pela preservação da "soberania nacional" nesse espaço de livre comércio hemisférico em construção, quando um dos elementos característicos da experiência européia é, precisamente, a renúncia quase total de soberania "em troca" desses mecanismos de correção de desigualdades estruturais ou coetâneas ao processo de integração.
O que pretendem, na verdade, os defensores da "teoria" das desigualdades assimétricas é "provar" que a existência de uma economia "elefantina" como a dos EUA faz correr, aos demais países, um risco insuportável de fragilização ("sucateamento" e "depauperamento") das atuais estruturas econômicas nacionais na América Latina. Sem dúvida, a maior parte dessas economias são pouco competitivas (com várias exceções, entre elas a do Brasil), o que justificaria, segundo o argumento, que o mandato de Miami seja necessariamente complementado por um programa (gigantesco?) de correção dessas desigualdades estruturais. Simples, não é mesmo?
Sem considerar o importante aspecto político de que estamos falando de dois animais completamente diferentes – um mercado comum completo de um lado, uma mera zona de livre comércio, de outro – e a circunstância institucional de que tal tipo de tratamento compensatório não se encontra previsto no mandato de Miami – a não ser para as chamadas "economias menores" –, atente-se para o fato de que nenhum processo de integração, nem mesmo o europeu, ocorreu na ausência de "desigualdades estruturais". São elas, aliás, que justificam e dão todo sentido à construção integracionista, ao mobilizar parceiros desigualmente dotados num mesmo empreendimento de unificação (e também de crescente homogeneização) de mercados e espaços econômicos.
São as desigualdades estruturais que estão na base das "vantagens comparativas" de cada país – ainda que alguns tenham horror a tal expressão ricardiana – e que passam a estimular a circulação de pessoas, capitais, bens, serviços e tecnologia num ciclo ascensional de economias de escala e de ganhos de competitividade. Ainda que muitos não acreditem, mesmo o pais mais miserável do planeta também possui "vantagens comparativas", ainda que neste caso ligadas à miséria (sempre relativa) de grande parte de sua população e, portanto, ao custo infinitamente menor de sua mão-de-obra fabril ou agrícola, comparativamente ao parceiro mais desenvolvido. Todo e qualquer país, mesmo em áreas insuspeitas, possui um imenso manancial de vantagens comparativas, sejam elas a densidade e a concentração de seu capital financeiro, a potência de suas empresas, ou, mais geralmente, a inventividade de seu povo, que pode manifestar-se na música, no futebol, na sua natureza bem explorada e até na sua joie de vivre, como seria o caso do carnaval ou da própria "afetividade" e "cordialidade" da sociedade em questão.
Resumindo – e retomando uma das lições do grande historiador economista russo Alexander Gerschenkron –, o "atraso" tem suas vantagens, mais não fosse para explorar esse diferencial de custos e também o potencial de superação do atraso saltando etapas no processo de desenvolvimento. Aos que se apressam em condenar como "capitalistas" ou "burguesas" estas idéias das vantagens do atraso, não custa lembrar que elas provêm diretamente do pensamento marxista, ou mais especificamente trotsquista, sendo conhecidas como "teoria" do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo (e do socialismo também, pode-se acrescentar).
Enfim, nada como uma "boa" desigualdade para estimular a emulação (cópia) e a competição (nessa ordem), virtudes válidas tanto no plano individual como no nacional. As situações de igualdade, absoluta ou relativa, tendem a ser aborrecidas, quando não a gerar acomodações regressistas, como já demonstrado por setenta anos de transição do socialismo ao capitalismo. Em todo caso, no longo prazo, o capitalismo dos processos de abertura e de liberalização tendem a produzir o socialismo do livre comércio. Que outra prova da excelência da teoria marxista da sucessão dos modos de produção poderíamos pretender de melhor?
Contra a corrente: treze idéias fora do lugar
(VI)
Talvez, ou certamente, mas atitudes auto-congratulatórias raramente são benéficas do ponto de vista da manutenção da qualidade do serviço.
Parece haver um consenso, dentro e fora da carreira diplomática, de que o serviço exterior brasileiro, em especial o seu estamento diplomático, apresenta traços e padrões de funcionamento institucional que o colocam num patamar de alta qualidade, em todo caso bem superior quando visto comparativamente a outras categorias profissionais do serviço público em seu conjunto. Duas atitudes podem resultar dessa "constatação" – de certa forma algo impressionista, uma vez que não se conhecem estudos de avaliação comparada dotados de uma certa confiabilidade científica – quanto ao padrão esperado do serviço diplomático: ele poderia ser visto como resultando de "condições excepcionais" no quadro da sociedade brasileira ou deve ser considerado como uma "situação normal" de uma estrutura burocrática típica da organização do Estado contemporâneo.
Sempre existiu essa distinção superior do serviço diplomático brasileiro? Talvez sim, mas as percepções devem ter mudado bastante ao longo da história administrativa brasileira. No Império, os escalões superiores da burocracia eram inevitavelmente recrutados, até por sistemas de cooptação ou compadrio, dentre os filhos da elite, uma reduzida fração da sociedade que detinha os meios materiais de dominação (econômica, política, intelectual). Na história republicana, o mérito passou a fazer parte dos métodos de recrutamento para o serviço público, mas o serviço diplomático continuou a selecionar seus integrantes dentre os mais afortunados filhos da elite, compreensivelmente dotados das qualidades esperadas de um diplomata: educação refinada, conhecimento de línguas estrangeiras, bom pedigree de modo geral.
A democratização do Estado brasileiro a partir da era populista ampliou de certa forma a base do recrutamento, o que de certa forma foi acompanhado da "mediocrização" das instituições públicas: parlamento, corporações estatais e sobretudo as escolas públicas sofreram o impacto dessa ampliação de oportunidades, deixando de ser o refúgio e o ambiente natural de atuação das camadas médias e alta e passando a incorporar representantes dos chamados estratos "subalternos" da sociedade. As disfunções acumuladas desde então modificaram substancialmente o padrão de funcionamento dessas agências públicas e as qualidades intrínsecas de seus integrantes, mas não parecem ter diminuído a capacitação do estamento diplomático.
Na fase autoritária do Estado brasileiro, algumas categorias preservaram ou ampliaram esse padrão de qualidade (real ou percebido, não importa agora), confirmando aliás a suposta "excepcionalidade" do serviço diplomático, que foi de certa forma preservado e até insulado de "contaminações" políticas e logrou conformar sua profissionalização e dedicação às lides exclusivamente diplomáticas. Junto com algumas outras poucas categorias que também se distinguiram na burocracia pública, a diplomacia emergiu dessa fase ostentando a já referida classificação de excelência, sem dúvida merecida, na medida em que ela preservou, junto com a impessoalidade geral da maior parte dos procedimentos de seleção, o alto padrão de recrutamento que sempre foi o seu desde tempos recuados. Menos dinástica – ou endogâmica – do que foi até um passado ainda recente (talvez até o Rio de Janeiro, o que para o Itamaraty significa meados dos anos 1970), a burocracia diplomática abriu-se como nunca aos talentos, consolidando esse padrão superior que constitui sua marca distintiva no serviço público numa situação de transição para um novo tipo de Estado ainda não de todo definido.
Os diplomatas são, reconhecidamente, melhores do que a média do serviço público brasileiro e os diplomatas brasileiros são, sim, melhores do que seus contrapartes regionais e até mesmo do que vários outros estamentos similares ou equivalentes – em alguns existe mais "osmose" ou menos exclusividade do que no Brasil – de países mais avançados. Dito isto, alerte-se também para o fato de que a manutenção dessa qualidade só pode ser assegurada pelo aperfeiçoamento constante dos métodos de recrutamento e de seleção para a carreira e pela continuidade dos programas de formação e de treinamento da mão-de-obra assim mobilizada. Em outros termos, não há porque se encerrar numa redoma de auto-satisfação congratulatória e continuar achando que a excelência é um dado "natural" da diplomacia, quando na verdade ela é o resultado de esforços contínuos que devem ser objeto de perseverança em vários níveis de organização do serviço. Não apenas os exames de entrada, mas as avaliações de meio de caminho e a disponibilidade de estímulos adequados à formação contínua – dentro e fora da carreira – devem continuar apoiando os programas de "controle de qualidade" do serviço diplomático do Brasil.
Uma burocracia acomodada, ou apenas satisfeita de sua realizações costumeiras, é uma burocracia esclerosada ou receptiva à estagnação do déjà vu: para escapar da gaiola de ferro weberiana, a diplomacia brasileira precisa continuar sabendo se renovar em cada um dos escalões em que ela se divide. Ela deve, sobretudo, ser capaz de abrir-se aos talentos e méritos do desempenho funcional dos estratos mais jovens, relativamente aos velhos padrões da hierarquia e da disciplina, consagrados em décadas e décadas de profissionalização institucional. Não menos importante, no quadro mais amplo do Estado brasileiro, seria preservá-la de uma indesejada e indesejável politização de seus critérios próprios de avaliação, assim como da importação puramente política nas tarefas de representação exterior, que exigem uma certa competência técnica e uma sensibilidade propriamente diplomática.
13. A ação diplomática brasileira deve servir ao processo de desenvolvimento nacional.
Sem dúvida, mas não se deve fazê-la cumprir objetivos que não são os seus.
O processo de desenvolvimento, até porque o Brasil não se classifica de outro modo a não ser como "país em desenvolvimento", constitui verdadeira obsessão nacional, desde o início da era Vargas pelo menos, quando nos descobrimos "subdesenvolvidos" ou de toda forma dotados de poucas condições para disputar posições de poder e prestígio com as potências militares e econômicas que davam (e continuam dando) as cartas no sistema internacional. Essa noção está em parte associada ao conceito de "poder nacional", que tem conhecidas e notórias manifestações militares que, em outras épocas, já denotaram uma pouco saudável inclinação pela aquisição, em curto prazo, dos meios elementares de afirmação nacional – poder militar, tout court – em detrimento da mais consistente formação educacional da população (cujos resultados são mais lentos).
Essa sensação de "inferioridade" no plano internacional tem motivado as várias elites que ocuparam posições de comando no país nas últimas décadas a buscar o atalho cômodo ou a via rápida em direção ao "Santo Graal" do desenvolvimento econômico, tido como condição indispensável – e ele certamente o é – para a afirmação do Brasil no chamado concerto de nações. Trata-se não apenas do passaporte para a modernidade – e o Brasil sempre foi receptivo às "modas" estrangeiras, identificadas com o padrão dito moderno de civilização – mas também do remédio milagre para algumas de nossas taras mais persistentes, como os baixos padrões de civilidade, de respeito aos direitos humanos e a anomia relativa das instituições públicas.
Daí decorre, infelizmente ao meu ver, uma tendência quase secular a tentar buscar no estrangeiro as raízes explicativas e as soluções prontas aos nossos velhos problemas de subdesenvolvimento (sem dúvida alguma material, mas também institucional e de certa forma "mental"), como se ele pudesse ser equacionado dispensando-se suas fontes e tratamento domésticos. Essa inclinação é notoriamente mais manifesta na área do financiamento público – tradicionalmente voltado para a contratação de empréstimos externos, em lugar de um esforço correspondente, até compreensível em virtude de conhecidas limitações, em direção da poupança nacional – mas ela também comparece em outras áreas de organização do Estado e da própria sociedade.
No terreno que nos concerne mais de perto, é até natural que o Brasil seja pensado e "diagnosticado" com base em comparações implícitas e até mesmo explícitas com outros países do sistema internacional, uma vez que a diplomacia representa o campo objetivo da interface externa da Nação. Os instrumentos conceituais da diplomacia não são diferentes daqueles utilizados nas ciências humanas de modo geral, fortemente embasados nas analogias e nas comparações entre processos dinâmicos ou estados de situação das unidades de análise, neste caso os Estados soberanos (ou mesmo os sistemas econômicos nacionais ou dos esquemas de integração).
Como o Brasil importou, até bem recentemente, o essencial de sua teoria social e das metodologias científicas que são consumidas ou utilizadas nos establishments universitários, parece também "normal" que muito da conceitualização explicativa do "subdesenvolvimento" existente se faça com base nesses instrumentos e modelos explicativos estrangeiros. Afinal de contas, é muito mais "chic" e refinado analisar uma prosaica figura humana da paisagem nacional – digamos um rústico garimpeiro de selvas pouco devassadas – com um ferramental analítico extraído diretamente de Foucault do que se desgastar numa pesquisa de terreno ou na leitura de carcomidos papéis de algum arquivo público. Mas, ainda que aos trancos e barrancos, a "substituição de importações" também se fez no campo das ciências sociais, e o Brasil estaria hoje em condições de pensar os atos e fatos de seu subdesenvolvimento com base numa análise própria de sua situação atual – e suas raízes estruturais –, não a partir de um reflexo mimético do que se pensa constituir as razões aparentes do sucesso de outros povos e sociedades.
Em mais de uma ocasião, nas últimas décadas e épocas de "desenvolvimentismo galopante", já se ouviu que a diplomacia brasileira também deveria participar do processo de desenvolvimento do País, trazendo reflexões ou mesmo contribuindo diretamente com esse esforço a partir de sua atuação no exterior. Certamente que uma das mais nobres – e não menos pragmáticas – funções da diplomacia (ao lado das atribuições tradicionais da informação, representação e negociação) vem a ser a mobilização de recursos externos para as tarefas internas de aumento do bem-estar nacional: abertura de novos mercados aos produtos nacionais, identificação de tecnologias apropriadas às nossas características produtivas, captação de investimentos diretos, melhoria das condições de financiamento externo, intensificação da cooperação técnica e científica, enfim, estimulo geral a todo e qualquer tipo de intercâmbio que contribua com o tão esperado objetivo da promoção do desenvolvimento econômico e social do País.
Isso de certa forma vem sendo feito, praticamente desde o surgimento do Estado independente, como já tive a ocasião de explicitar em meu trabalho de pesquisa histórica Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (São Paulo-Brasília: Funag-Senac, 2001). O que porém se pretende, quando se coloca o objetivo "desenvolvimentista" também para a diplomacia, é engajá-la mais diretamente na tarefa de encontrar aquele "atalho cômodo" ou aquela "via rápida" em direção ao "Santo Graal" do desenvolvimento econômico, o que pode parecer razoável do ponto de vista do senso comum, mas correndo aqui o risco de incorrer em pelo menos duas disfunções, uma analítica, outra processual.
A distorção analítica consistiria em atribuir à diplomacia o encargo de "definir", dentre o emaranhado de experiências nacionais de desenvolvimento econômico – sempre excepcionais e únicas do ponto de vista do processo histórico, não custa relembrar –, as "receitas" mais apropriadas às características nacionais para serem "transplantadas" ou pelo menos aproveitadas nos esforços domésticos com essa intenção. Em alguns casos chega-se até mesmo a falar de um "modelo" qualquer de desenvolvimento, assim como o Brasil da fase do "milagre" – em plena era militar – também já serviu de modelo ou de receita para alguns países asiáticos que ainda não tinham começado sua arrancada industrializadora. Passemos por cima, nesta análise forçosamente rápida, do fato de que tais modelos são simplesmente "irreprodutíveis", na medida em que representam uma espécie de consolidação teórica, a posteriori e necessariamente generalista, de algo que deu certo em algum lugar, em condições talvez excepcionais, não sendo portanto suscetíveis de constituir um guia para a administração de um outro processo nacional, em outras circunstâncias e outra época.
Como esses modelos ou receitas isolam um ou dois fatores ditos "causacionais", na ausência efetiva ou na impossibilidade prática de ser capturado ou reproduzido todo o contexto ambiental daquele processo específico de desenvolvimento, corre-se o risco de apontar soluções (aparentemente) "certas" para situações e épocas erradas, ou pelo menos não correspondentes às reais necessidades da sociedade receptora. Nessas condições, considero que atribuir à diplomacia a tarefa de "pensar" o processo de desenvolvimento nacional pode ser tão inócuo como nocivo à condução independente desse processo no Brasil, na medida em que ela poderia estar induzindo à adoção de políticas ineficientes ou desadaptadas ao contexto nacional.
Do ponto de vista processual, por outro lado, não se pode pedir à diplomacia mais do que ela está normalmente habilitada a fazer, ou seja, defender os interesses nacionais em função de diretrizes claras, que normalmente são estabelecidas pelo poder político. Seus métodos e técnicas são conhecidos e operados com razoável maestria pelos "técnicos" encarregados institucionalmente dessa área especializada da ação estatal, para tanto treinados e pagos pela coletividade. Em outros termos, seus servidores estão preparados para o exercício de um conjunto de funções "técnicas", típicas da função diplomática, não necessariamente para outras, de caráter mais geral (ou de public policy) que têm mais a ver com o ambiente macroeconômico governamental, como pode ser a definição e a implementação de um projeto nacional de desenvolvimento.
Não existe, em princípio, nenhuma objeção a que diplomatas participem, como simples cidadãos ou mesmo como burocratas do Estado, da concepção, da formulação e da implementação de um projeto de desenvolvimento nacional – alternativo ao existente, ou inexistente, na prática – mas deve-se ter uma consciência clara quanto aos limites e possibilidades desse tipo de exercício. Eles estão habilitados, por exemplo, a contribuir com seu conhecimento especializado para a superação de algumas barreiras ao acesso a mercados externos dos produtos brasileiros de exportação, desde que sejam dadas as condições para tanto – como a participação em negociações bilaterais, regionais ou multilaterais –, reduzindo assim uma das fontes reconhecidas de vulnerabilidade externa da economia brasileira.
Mas, como geralmente esse tipo de negociação (ou de "barganha") implica reciprocidade de benefícios e concessões, a contrapartida necessita ser medida em função dos demais objetivos da política econômica externa – atração de investimentos, por exemplo, ou a definição de um mix preciso de insumos internos e externos em políticas setoriais – ou mesmo dos outros objetivos da política econômica nacional – como a distribuição de renda, hipoteticamente –, algo que nem sempre os diplomatas estão habilitados a fazer. Não que eles estejam estruturalmente impossibilitados de cumprir tal tipo de demanda, mas é que ela precisa ser colocada no contexto próprio de formulação de políticas nacionais, não no ambiente mais especializado da política externa e da diplomacia profissional.
Como se vê, não existem respostas simples aos problemas de desenvolvimento e, sobretudo, essas respostas não são dadas, basicamente, pelo meio ambiente internacional, terreno próprio de atuação da diplomacia. Todo processo de desenvolvimento depende, essencialmente, de uma conjunção de esforços nacionais e ele só se sustenta a partir de bases propriamente nacionais, todo e qualquer impulso externo sendo meramente adicional e complementar ao ambiente doméstico. Assim como as raízes de nossos problemas não se encontram no plano externo, as soluções tampouco devem ser buscadas no contexto internacional. Dito isto, o diplomata tem um grande papel a cumprir na definição das bases nacionais do desenvolvimento econômico e social.
Publicado na Revista Virtual Espaço Acadêmico
http://www.espacoacademico.com.br
Paulo Roberto de Almeida (*)
paulo_almeida[arroba]terra.com.br
(*) Doutor em Ciências Sociais e autor de vários livros na área diplomática e das relaçoes internacionais
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