As Condições Políticas para a ação governamental

Enviado por Simon Schwartzman


A Nova República encontrou o Brasil profundamente transformado, depois de 20 anos de regime militar. Era um país muito mais urbanizado, industrializado e populoso do que nos anos 60. Ao mesmo tempo, as condições sociais pareciam ter piorado: aumentou a desigualdade da renda, a criminalidade urbana parece fora de controle, os problemas de saúde pública são críticos. Ao final do Governo Sarney, a crise social não diminuiu, e a crise econômica parece fora de controle. Quantos destes problemas se devem ao regime político que imperou nas últimas décadas? Quantos ao governo Sarney? Quantas ocorreriam independentemente de um ou outro?

A experiência do autoritarismo gerou muitas análises e controvérsias a respeito de seu verdadeiro sentido. Teriam sido estes anos apenas um desagradável acidente em um processo inelutável de desenvolvimento econômico, social e político, tal como as teorias do desenvolvimentismo dos anos 50 e 60 fariam supor? Ou, ao contrário, teriam sido eles uma simples volta a um padrão recorrente e mais profundo da sociedade ou da cultura brasileiras, por natureza autoritárias e incapazes de evoluir para uma ordem democrática estável? Como entender os anos de regime autoritário? É possível dizer que o Brasil parou em 1964, para sair 20 anos depois de um grande pesadelo? Ou será que as transformações ocorridas nestes anos foram suficientemente amplas e profundas, independentemente das intenções dos sucessivos governos militares, para que seja impossível pensar em um simples retorno aos tempos pre-64? E como interpretar a situação atual em que nos encontramos? Podemos supor que o padrão de desenvolvimento com desigualdade não passou de uma perversão dos regimes militares, infelizmente prorrogada pela transição abortada do governo Sarney, a ser corrigida agora que vivemos em uma democracia? Ou, ao contrário, trata-se de uma característica mais permanente e profunda do autoritarismo brasileiro, e por isto fadada a persistir, fazendo com que o prognóstico de nossa incipiente democracia seja necessariamente pessimista?

É impossível responder a estas questões neste nível de generalidade. Para abordá-las, é necessário ter um entendimento adequado de nosso passado social e político, das mudanças profundas que ocorreram nas últimas décadas, e das repercussões que esta bagagem acumulada ainda tem na maneira pela qual nossa sociedade se move. Ao final deste texto não teremos ainda condições de saber com segurança o que o futuro nos espera; mas teremos, pelo menos, uma idéia mais clara sobre as questões que estão em jogo.

A temática das perversões do Estado brasileiro não é um simples fenômeno passageiro, mas tem raízes profundas e implicações que não se desfazem por meros rearranjos institucionais.

Bases do Autoritarismo Brasileiro pretende ser uma contribuição para este esforço. Sua versão inicial, com o título de São Paulo e o Estado Nacional, foi escrita e publicada no inicio dos anos 70, portanto em plena vigência do AI-5 e nos anos mais duros do regime militar. A atual versão, aqui republicada com simples correções de detalhe, foi escrita no inicio dos anos 80, quando o processo de abertura política já se prenunciava como irreversível. O interesse continuo que o livro tem encontrado ao longo destes anos parece confirmar que a temática do autoritarismo brasileiro não é um simples fenômeno passageiro, mas tem raízes profundas e implicações que não se desfazem por meros rearranjos institucionais. Reconhecer isto não significa supor que o Brasil padece de um estigma autoritário congênito, para o qual não existe salvação. Reconhecer isto não significa supor que o Brasil padece de um estigma congênito, para o qual não existe salvação. Mas significa, isto sim, que este passado, e suas conseqüências presentes, tem que ser vistos de frente, para que tenhamos realmente chance de um futuro mais promissor.

Uma das teses centrais deste livro é que o Brasil herdou um sistema político que não funciona como "representante" ou "agente" de grupos ou classes sociais determinados, mas que tem uma dinâmica própria e independente, que só pode ser entendida se examinamos a história da formação do Estado brasileiro. Esta tese parece incompreensível dentro de uma visão de corte marxista ou economicista convencional, que tende a interpretar tudo o que ocorre em uma sociedade em termos de sua divisão de classes, mas torna-se mais inteligível em uma perspectiva que vê o estado como uma formação histórica específica, com seus próprios interesses, e que desenvolve um sem número de arranjos e alianças com diferentes setores da sociedade, para diversos fins. É nesta perspectiva weberiana que podemos ver que o Estado brasileiro tem como característica histórica predominante sua dimensão neo-patrimonial, que é uma forma de dominação política gerada no processo de transição para a modernidade com o passivo de uma burocracia administrativa pesada e uma "sociedade civil" (classes sociais, grupos religiosos, étnicos, lingüísticos, nobreza, etc.) fraca e pouco articulada. O Brasil nunca teve uma nobreza digna deste nome, a Igreja foi quase sempre submissa ao poder civil, os ricos geralmente dependeram dos favores do Estado, e os pobres, de sua magnanimidade. Não se trata de afirmar que, no Brasil, o Estado é tudo e a sociedade nada. O que se trata é de entender os padrões de relacionamento entre Estado e sociedade, que no Brasil tem se caracterizado, através dos séculos, por uma burocracia estatal pesada, todo-poderosa mas ineficiente e pouco ágil, e uma sociedade acovardada, submetida mas, por isto mesmo, fugidia e freqüentemente rebelde.

Este padrão de predomínio do Estado leva a que ele se constitua, historicamente, com duas características predominantes. Primeiro, por um sistema burocrático e administrativo que denominamos, para seguir a tradição weberiana, de neo-patrimonial, e que se caracteriza pela apropriação de funções, órgãos e rendas públicas por setores privados, que permanecem no entanto subordinados e dependentes do poder central, formando aquilo que Raymundo Faoro chamou de "estamento burocrático". Quando este tipo de administração se moderniza, e segmentos do antigo estamento burocrático vão se profissionalizando e burocratizando, surge uma segunda característica do Estado brasileiro, que é o despotismo burocrático. Do imperador-sábio D. Pedro II aos militares da Escola Superior de Guerra, passando pelos positivistas do Sul e tecnocratas do Estado Novo ou de pós-64, nossos governantes tendem a achar que tudo sabem, tudo podem, e não tem na realidade que dar muita atenção as formalidades da lei.

I

O jogo político que se desenvolve nestas condições consiste muito menos em um processo de representação de setores da sociedade junto ao Estado do que em uma negociação contínua entre o Estado neo-patrimonial e todo o tipo de setores sociais quanto à sua inclusão ou exclusão nas vias de acesso aos benefícios e privilégios controlados pelo Estado. Não é uma negociação entre iguais: "fora do poder não há salvação", dizia o velho político mineiro. A política é tanto mais importante quanto maior é o poder do Estado, e por isto, na tradição brasileira, todas as questões - religiosas, econômicas, educacionais - passam sempre pelo crivo do poder público. Esta negociação contínua leva a vários tipos de solução. Lideranças mais ativas são cooptadas pelo sistema político, e colocadas a seu serviço. O estamento burocrático brasileiro é permissivo, e incorpora com facilidade intelectuais, empresários, líderes religiosos e dirigentes sindicais. Quando a cooptação se institucionaliza, ela assume, muitas vezes, características corporativistas, que consiste na tentativa de organizar os grupos funcionais e de interesse em instituições supervisionadas e controladas pelo Estado. É por mecanismos corporativistas que o Estado brasileiro tem buscado, desde pelo menos os anos 30, com grau relativo de sucesso, enquadrar os sindicatos, as associações patronais e as profissões liberais, incluindo aí todo o sistema de ensino superior.

O outro lado da cooptação é a exclusão, tanto dos processos políticos e decisórios quanto da eventual distribuição da riqueza social. O Estado Novo, ao mesmo tempo em que tratava de organizar e cooptar o operariado urbano, excluía o campesinato de qualquer forma de acesso a seus benefícios. A exclusão do campesinato é somente o exemplo mais flagrante do processo de modernização conservadora que tem caracterizado o desenvolvimento brasileiro. O regime pós-64 tratou também de excluir os trabalhadores urbanos, os intelectuais e, em geral, as populações das grandes cidades de uma influência mais significativa na vida política do país. O sistema bicameral, em nome do princípio federativo, sobre-representa no Senado os pequenos estados em detrimento das grandes concentrações populacionais do centro-sul, e distorções semelhantes também existem para a Câmara de Deputados. É um quadro que já vem da Constituição de 1946, e sobrevive ao regime militar.

Além de cooptar, enquadrar ou excluir pessoas e setores da sociedade, o Estado neo-corporatista desenvolve uma atividade econômica que pode ser caracterizada como neo-mercantilista. Como no mercantilismo dos velhos tempos, o Estado se intromete em empreendimentos econômicos de todo tipo, tem seus bancos, indústrias próprias e protegidas, firmas de exportação e comercialização de produtos primários. Em parte, isto é feito através de suas próprias empresas; mais tradicionalmente, no entanto, a atividade neo-mercantilista se exerce pela distribuição de privilégios econômicos a grupos privados, nacionais ou internacionais, que estabelecem assim alianças de interesse com o estamento burocrático

A última característica do estado neo-corporativista é seu aspecto plebiscitário, ou populista. O que caracteriza o populismo é a tentativa de estabelecer uma relação direta entre a liderança política e a "massa", o "povo", sem a intermediação de grupos sociais organizados. O populismo plebiscitário, como a experiência do fascismo europeu tão bem demonstrou, é a outra cara do autoritarismo. A relação entre estas duas coisas não é simples, no entanto. Nunca se investiu tanto em relações públicas e publicidade no Brasil quanto nos anos de governo militar e durante o governo Sarney. Mas isto não foi suficiente para dar a estes regimes uma dimensão populista, que foi, no entanto, uma característica marcante de certos momentos do regime getulista. Existe além disto uma diferença profunda entre o populismo plebiscitário e o populismo de tipo fascista. O primeiro é pouco mais do que um instrumento de legitimação do poder, e, por isto, é geralmente mantido dentro de limites "convenientes". O segundo, no entanto, é utilizado para a própria conquista e manutenção do poder, uma situação em que torna-se difícil conte-lo em seus limites. O estado brasileiro convive bem com o primeiro, mas tem horror as ameaças do segundo, como foi possível constatar em 1945, 1961, 1964 e possivelmente também agora, em 1989.

 


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